Eleições EUA

Bernardo Mello Franco: Trump igualou os EUA a uma república bananeira

Os americanos gostam de dar lições de democracia, mas não têm muito a ensinar sobre eleições. Mais uma vez, a corrida à Casa Branca terminou em tumulto. Ontem à noite, ainda não era possível cravar quem venceu a disputa presidencial.

Parte dos problemas decorre de um sistema arcaico. Os Estados Unidos resistem a abandonar o voto indireto, que distorce a vontade dos cidadãos. Quem recebe mais votos nem sempre leva a Presidência. Na matemática do colégio eleitoral, um morador do Wyoming vale por três da Califórnia.

A apuração dos votos também deixa a desejar. No país mais rico do mundo, muitos estados ainda usam cédulas de papel. Em 2000, a eleição empacou por falhas na contagem de cartões perfurados. Agora o problema é a demora para contabilizar os votos enviados por correio.

Na disputa deste ano, surgiu um novo e poderoso fator de incerteza. Mau perdedor, Donald Trump quer garantir sua reeleição no grito. Ele cantou vitória antes da hora e disse, sem qualquer prova, que haveria fraude para prejudicá-lo. Um factoide para tumultuar o processo e desacreditar os números oficiais.

O circo armado pelo republicano igualou os EUA a uma república bananeira. Se um líder latino-americano fizesse algo parecido, seria chamado de golpista e candidato a ditador. As ameaças de Trump não despertam a mesma indignação de entidades que dizem zelar pela democracia, como a OEA.

Vista do Brasil, a a confusão americana sempre causa espanto. Aqui a votação é eletrônica e os resultados são divulgados em poucas horas. Na noite da eleição, o país já sabe quem o governará pelos próximos quatro anos. Isso não significa, no entanto, que a nossa democracia seja muito melhor que a deles.

Enquanto os americanos contavam seus votos, o MP informou que Flávio Bolsonaro finalmente foi denunciado no caso da rachadinha. Acusado de embolsar dinheiro público, o senador passou o feriado em Fernando de Noronha com passagens pagas pelo Senado. Nos EUA, ele já teria perdido o mandato e trocado o paletó por um uniforme laranja.


Ascânio Seleme: Frustração, vergonha e medo

Uma parcela gigantesca da população acreditou e segue acreditando em Trump

Mesmo que Joe Biden ganhe a eleição, o fato que se sobrepõe é que os poderosos Estados Unidos são uma nação aterrorizada pelo medo. Há diversas explicações para os milhões de votos dados a Donald Trump, o mais antidemocrático presidente americano de todos os tempos, mas o fantasma do radicalismo de esquerda é de longe o fator mais importante. Uma parcela gigantesca da população acreditou e segue acreditando na acusação de Trump de que Biden e os democratas são perigosos socialistas. Uma bobagem sem tamanho. Nas questões econômicas, os democratas estão mesmo à direita dos republicanos.

Ainda assim, o discurso de que políticas socialistas dos democratas mudariam a cara dos EUA se Biden ganhasse conquistou número astronômico de eleitores. O avanço de Trump sobre os votos hispânicos, tradicionalmente democratas, ajuda a explicar esse medo. Trump disse ao longo da campanha, e mesmo antes dela, que os democratas abririam as fronteiras. Mentira. Mas, se fosse verdade, poderia se supor que seria uma boa novidade, porque enfim os imigrantes se reuniriam com familiares que ficaram para trás. Nada disso. Mais de 75% dos hispano-americanos nasceram nos EUA, seus círculos familiares e pessoais estão lá assentados, e uma abertura ampla para imigração ameaçaria diretamente seu posto de trabalho.

Deve-se considerar também que os hispânicos são religiosos e conservadores. Na Flórida, onde Biden perdeu, os cubano-americanos lideram a comunidade e extravasam seu ódio ao comunismo desde 1960, quando Fidel Castro tomou o poder em Cuba. Nos últimos 20 anos, um grande contingente de venezuelanos imigrou para o estado americano, fugindo da política de Chávez e Maduro, e trouxe na bagagem o mesmo espírito. Além disso, ao redor dos Estados Unidos, o medo do desarranjo econômico que os “esquerdistas radicais” poderiam produzir também impulsionou a campanha de Trump.

Apesar de a economia americana ter sofrido um impacto enorme com o coronavírus, como de resto o mundo inteiro, americanos médios que acreditam na retórica de Trump tremem de pavor só em pensar que a situação pode se degradar ainda mais sob o comando dos “radicais” democratas. A aposta de que a economia poderia definir uma eleição e o slogan “America First” (América em primeiro lugar) mais uma vez acalentaram corações assustados.

A verdade, até este ponto da apuração, é que os votos no presidente que busca a reeleição surpreenderam os republicanos e frustraram os democratas. Todos, uns efusivos e outros calados, esperavam uma vitória clara e incontestável de Joe Biden. O que se vê, mesmo que as projeções estejam certas e ocorra uma vitória democrata, é que as pesquisas mais uma vez erraram. A eleição que se esperava dar com uma vantagem categórica pode acabar nos tribunais.

A diferença entre a expectativa e o resultado que emergiu das urnas, que também se explica pelo medo, tem um outro componente, visto reiteradamente em eleições ao redor do mundo. As pessoas mentem aos pesquisadores por vergonha, sobretudo numa eleição como esta, inflamada pelo descaso do presidente com o coronavírus e pela campanha “Vidas negras importam”. Muitos dos que queriam manter Trump na Casa Branca por razões genuinamente políticas podem ter se sentido constrangidos em apontar corretamente seu voto. Poderiam parecer negacionistas ou, pior, aliados dos supremacistas brancos.

Claro que os Estados Unidos saem desta eleição mais divididos do que nunca. Isso já foi dito pelos analistas, desnecessário acrescentar qualquer coisa. Mas é importante ressaltar que a chance de se reconstruirem pontes é muito mais provável se Biden for o eleito. O democrata é um conciliador pragmático que saberá desobstruir canais e aproximar opostos em torno de objetivos comuns. Esse é seu perfil. O contrário, a reeleição de Trump, seria mais do que a manutenção do estado de beligerância interna, seria seu aprofundamento. Nesse caso, nada mais atual que o velho provérbio americano: “A única coisa que se aprende em uma nova eleição é que não aprendemos nada com a última”.


Ricardo Noblat: Trump deve perder, mas o trumpismo continuará vivo

Eleição histórica, mas não decisiva

Na noite de 4 de novembro de 2008, minutos depois de Barack Obama ter feito o discurso da vitória, começou nas redes sociais a articulação para eleger um presidente de direita. Para a eleição seguinte não deu – Obama foi reeleito com folga.

Mas deu para a próxima quando o empresário do ramo imobiliário e astro de televisão de nome Donald Trump derrotou a candidata democrata Hillary Clinton, duas vezes primeira-dama dos Estados Unidos e senadora pelo Estado de Nova Iorque.

A primeira eleição de Obama pode ser considerada histórica. Foi o primeiro presidente negro. A de Trump pode ser tachada de eleição improvável, surpreendente. Nem ele acreditava que fosse possível. Entrou na Casa Branca sem saber o que fazer.

Deverá sair por sua culpa. Subestimou a pandemia do coronavírus que já matou mais de 235 mil americanos, e que somente ontem registrou 100 mil novos casos, o que levou as pessoas a anteciparam seus votos e a votarem pelo Correio.

A eleição de Joe Biden não surpreenderá. Foi prevista pelos institutos de pesquisa. O desempenho de Trump foi que surpreendeu, mais vigoroso do que se imaginava. Histórica, esta eleição é pelo número gigante de americanos que votaram.

Discute-se se será uma eleição decisiva para definir novos rumos a serem trilhados pelo país com Biden à frente. Tudo indica que não. Os Estados Unidos continuarão rachados quase ao meio. E seus dois principais partidos sem condições de governar direito.

Biden apresentou-se como o presidente de todos os americanos. É isso o que ele gostaria de ser. Trump, como presidente da parcela dos americanos que se alinha às suas ideias. Trump perdia até esta madrugada. O trumpismo continuará vivo.

Os Estados Unidos ainda são a maior potência econômica e militar do mundo, mas tal condição está com seus dias contados. A economia chinesa superará a americana até o final deste ano. A China já é a maior potência tecnológica do planeta.

Não importa quantos mísseis os Estados Unidos tenham a mais – os da China seriam suficientes para provocar grandes estragos. O que inviabiliza a guerra atômica é a capacidade de destruição mútua. A paz armada mantém o mundo relativamente em paz.

Não haverá paz interna nos Estados Unidos porque a radicalização ideológica, não só ali, veio para ficar ou para durar muito tempo. A divisão está na essência do sistema bipartidário. Os brancos de raiz não se conformam com a perda de sua supremacia.

A herança de Trump será pesada. Nunca antes na história dos Estados Unidos a democracia foi tão solapada. Trump contribuiu para corroer seus dois principais pilares: a confiança e a verdade. Sabotou um dos valores fundadores do país.

Democratas e republicanos não conseguem se mover para além de suas caixas. Por mais experiente, afável, experiente e habilidoso que possa ser, Biden terá dificuldades para governar com um Senado e uma Suprema Corte sob controle dos adversários.

Obama foi melhor presidente fora do que dentro. Seu primeiro mandato foi melhor do que o segundo porque os republicanos barraram todas as suas iniciativas. Clinton, que o antecedeu, emporcalhou o vestido da estagiária Monica Lewinsky.

Biden será o presidente americano mais velho a assumir o cargo. Pela idade, natural que tenha uma saúde frágil. Seu substituto é uma mulher, negra, senadora brilhante. Chegou a Washington há apenas 3 anos. É uma estreante nas altas rodas do poder.

Deus salve a América!

Queiroz assumirá a culpa pela rachadinha para salvar Flávio

Ele não tem muito o que perder

É, vai sobrar para Fabrício Queiroz. E, por tudo que vaza do terceiro andar do Palácio do Planalto, onde funciona o gabinete do presidente Jair Bolsonaro, Queiroz está disposto a assumir sozinho a responsabilidade pelo que aconteceu, livrando o senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um, de qualquer culpa.

Flávio foi denunciado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa no caso do esquema da rachadinha à época em que foi deputado estadual no Rio. Sua situação agravou-se com o depoimento prestado ao Ministério Público pela ex-funcionária Luiza Souza Paes. Ela confessou tudo.

Contou que durante seis anos devolveu quase todo o salário a Queiroz, pelo menos 90% da remuneração, benefícios do cargo e até a restituição do imposto de renda. Como ela, dezenas de outros servidores do gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa. Luiza apresentou comprovantes dos depósitos para Queiroz.

O Ministério Público tem provas de contas pessoais de Flávio e da sua mulher Fernanda pagas regularmente por Queiroz. E de transferência de dinheiro feitas por Queiroz para Flávio. No mínimo 89 mil reais foram depositados por Queiroz e sua mulher Márcia na conta de Michelle Bolsonaro, a primeira-dama.

Se a denúncia do Ministério Público for aceita pela justiça, Flávio virará réu. E para salvá-lo de uma condenação, Queiroz dirá que a culpa foi unicamente sua. Por que fará isso? Porque é amigo de Bolsonaro, o pai, desde os tempos de quartel. A ele e aos filhos deve muitos favores. De resto, quer proteger sua própria família.

Assim como o abrigaram em um sítio de Atibaia do advogado Frederick Asseff, e deram um jeito para que fossem pagas todas as suas contas quando foi obrigado a desaparecer, os Bolsonaros se comprometem em seguir amparando Queiroz até o fim de sua vida. Queiroz está doente. Se condenado, pegará uma pena leve.


Merval Pereira: Paradoxos da democracia

Esta eleição presidencial dos Estados Unidos está sendo paradoxal, com cerca de 157 milhões de americanos comparecendo às urnas sem serem obrigados a isso, a maior participação popular nos últimos cem anos, ao mesmo tempo que o presidente Trump, que tenta a reeleição, coloca em dúvida a lisura da apuração em estados como Wisconsin e Michigan, mas joga suas fichas numa vitória em alguns outros estados que ainda apuram para impedir que Biden seja declarado presidente.

Ou seja, Trump quer parar a apuração em estados em que está perdendo, e acelerar a apuração nos que acredita poder vencer. Mas ele tenta parar também a apuração em estados em que vence, como a Pensilvânia, mas teme perder ao final, pois considera suspeita a recuperação de Biden com os votos vindos pelo correio.

A diferença entre Biden e Trump em vários estados é muito pequena, e o presidente Trump já começa a pedir recontagem. Mas ele venceu Hilary em 2016 por uma margem muito apertada também em vários estados, e não houve apelação dos democratas. Os republicanos na era Trump passaram a fazer jogadas políticas muito mais desleais do que historicamente acontecia. Trump dominou o partido republicano e suas práticas. Como nomear uma ministra da Suprema Corte em processo rapidíssimo, poucos meses antes da eleição, quando impediram que o então presidente Obama nomeasse o substituto de Antonin Scalia quase um ano antes da eleição.

Não creio que tenham resultado positivo esses recursos, porque é tão obvia a falta de razão, tão claro que está com medo dos votos pelo correio, que qualquer ação sem provas cabais não será aceita. Depois do caso de 2000, em que Bush acabou vencendo Al Gore por excesso de recursos, que esgotaram o prazo legal para a recontagem, há mais cautela na Justiça americana.

Tudo demonstra que Trump está preparado para fazer o que puder para não perder a Casa Branca. Há possibilidade, cada vez menor, de que ganhe, mas se perder, vai tentar barrar a vitória de Biden na Justiça, o que só prejudica a democracia americana. O fato é que Trump mostrou enorme capacidade de convencer as pessoas, de ganhar votos, e a maneira de ele ver o mundo predomina em praticamente metade do eleitorado americano. O recurso da campanha de Trump à Suprema Corte para que seja derrubada uma decisão que permitiu à Pensilvânia receber até sexta-feira cédulas de votação enviadas pelo correio é sua terceira tentativa.

Os juízes já rejeitaram dois recursos semelhantes, mas haveria uma possibilidade de anular esses votos caso fossem decisivos para a definição da eleição. O problema para Trump é que tendo Biden vencido em Michigan, Wisconsin e Arizona, os democratas não precisam dos votos da Pensilvânia para vencer. Faltariam apenas seis delegados para alcançar os 270 votos necessários no Colégio Eleitoral, o que pode acontecer com a retomada da apuração em Nevada, onde Biden vence por uma estreita margem.

Os 157 milhões de eleitores que votaram para eleger o novo presidente representam 65,7% dos cidadãos com direito a voto, acima dos 60,1% registados nas eleições presidenciais de 2016, vencidas por Trump. O candidato democrata Joe Biden recebeu mais de 70 milhões de votos pessoais, a maior votação individual de um candidato na história dos Estados Unidos. Todos esses recordes demonstram que a democracia americana está em plena potência, apesar da polarização política que foi reafirmada nessa eleição.

A atuação de Trump, lançando acusações sem provas contra a apuração dos votos vindos pelo correio, e judicializando a eleição como estratégia política, mina a democracia, e coloca um país dividido diante de uma possibilidade de confrontações de grupos políticos. O candidato Joe Biden teve uma atuação de estadista quando foi a público fazer uma exigência mínima: vamos contar os votos até o final. Cada voto vale, e o que a apuração mostrar será a verdade das urnas, a verdade do eleitor americano. Não cantou vitória antes do tempo.


Vinicius Torres Freire: O extremismo odiento, com ou sem Trump

Polarizações socioeconômicas e ódios diversos não vão passar tão cedo nos EUA

Donald Trump é uma doença ou sintoma de um mal pior? Derrotado ou vitorioso, já terá deixado sequelas, de qualquer modo. Trump inspirou, incentivou ou legitimou supremacistas brancos, a xenofobia, a desconfiança na razão, em instituições que promovem o debate público esclarecido e que arbitram conflitos de modo democrático, promoveu a mentira sistemática e a disseminação da paranoia. Avacalhou tudo isso que faz parte do pacote básico da democracia liberal.

Há surtos de paranoia ou ressentimento reacionários que causam comoção e sofrimento, mas passam. Ao menos, acabam não tendo força bastante para abalar pilares dessas democracias liberais.

Não foi o caso nem com o macarthismo dos Estados Unidos dos anos 1950, por exemplo. Deixou marcas, destruiu vidas e inoculou para sempre na política americana a rejeição mesmo a ideias sociais-democratas e o delírio anticomunista, mas não produziu instituições autoritárias.

Um movimento contemporâneo, na França, o poujadismo, agregou o ressentimento da pequena burguesia reacionária, corporativista, revoltada com a modernização do país e com instituições da democracia francesa da época, que funcionavam muito mal, aliás, tanto que acabaram em um golpe militar disfarçado, em 1958. Mas a democracia francesa progrediu e o poujadismo é uma nota de rodapé, embora uma de suas crias, Jean-Marie Le Pen, tenha dado brotos depois de quatro décadas dormente.

Trump muita vez é explicado pelo ressentimento dos trabalhadores largados nas regiões decadentes da indústria, pela revolta das comunidades do interior, dos desconfiados da civilização dos costumes e dos direitos de minorias ou discriminados quaisquer, contra as “elites” ilustradas e a indiferença dos tecnocratas econômicos.

A desigualdade de renda e de educação teria sido um fator também, assim como, contraditoriamente, o ressentimento contra programas sociais que justamente atenuam tais iniquidades (de modo diminuto, nos EUA).

Mas mesmo tais ressentimentos não bastam para explicar a força renovada do racismo, das milícias armadas ou o descaramento neonazista. Um grande, embora controverso, sociólogo americano, Richard Sennett escreveu nesta semana no jornal britânico “The Guardian” que o ressentimento seria mais profundo. Reflete uma degradação civilizacional mais séria e que seria a atitude de uns 30% dos americanos.

Trata-se de pessoas para quem a vida socioeconômica é um jogo de soma zero: reconhecer direitos de outros por si só implica a perda dos próprios direitos; rebaixar outrem é um progresso para si. Seria assim parte dos brancos americanos, diz Sennett, um pessimista a respeito da vida pública, do sentimento do propósito da vida ou da situação do trabalho contemporâneo.

Parte da base trumpista de 2016 desertou o presidente agora, acredita Sennett (aposentados, trabalhadores da indústria, pequenos empresários, classe média alta dos subúrbios e parte dos evangélicos). Restaria um núcleo fanático, mas imenso, que tende se tornar ainda mais extremista em caso de Trump: viriam a se sentir mais abandonados e, agora, traídos por outros eleitores e pelo “sistema” em geral.

As feridas americanas não serão curadas tão cedo, conclui Sennett. É difícil captar de modo mais preciso esse ressentimento branco entranhado. Mas decerto tão cedo, no mínimo, não vai se dar um jeito nas polarizações de cor, renda, educação, poder e da falta de entendimento básico do que sejam razão e terreno comum de diálogo.


Ricardo Noblat: Biden perde o favoritismo, vira azarão, mas pode surpreender

Nunca antes na história dos Estados Unidos um presidente da República falou em fraude em meio a apuração de votos. Mas Donald Trump não seria o que é se não fosse o primeiro a falar, mesmo quando sua eventual vitória poderá ser confirmada a qualquer momento.

Por que o fez? Sabe-se lá. Talvez por receio de que os votos que ainda faltam ser apurados em Estados importantes possam favorecer o Democrata Joe Biden. Ou talvez para ser coerente com o discurso que mais repetiu durante a campanha, o de que poderia ser vítima de uma fraude.

Biden amanheceu nesta quarta-feira com 238 votos no Colégio Eleitoral dos 270 necessários para que se eleja, contra 213 de Trump. Esse placar é das 6h30m. E com algo como dois milhões de votos populares a mais do que Trump. Sua sorte depende dos resultados da apuração em Nevada, Geórgia e Pensilvânia.

Caminha para vencer em Nevada. Na Geórgia, os votos que restam ser apurados são dos condados de Fulton e DeKalb. Ficam em Atlanta. DeKalb já apurou 98% dos votos, e ali Biden tem 83%. Fulton falta contar todos os seus 440 mil votos. Espera-se mais de 70% para Biden. Ou seja: ele tem chances de vencer na Geórgia.

A apuração na Pensilvânia será retomada às 11h. Trump, ali, está na frente. Dos 2 milhões e meio de votos enviados pelo Correio, só 39% foram apurados. Filadélfia, capital da Pensilvânia, costuma votar em democratas. Há poucos instantes, Biden emparelhou com Trump no Estado do Wisconsin.

A eleição ainda está aberta.

Bolsonaro inventa vacina para se imunizar contra derrotas

Se não se reeleger em 2022, seu discurso da derrota já está pronto

Em 2016, a vitória de Donald Trump sobre Hillary Clinton surpreendeu o mundo, inclusive o próprio Trump que até o último minuto da apuração não acreditava que venceria. Já fazia planos para retornar aos seus milionários negócios imobiliários.

À época, portanto, não passava pela cabeça de Trump bater às portas da Suprema Corte para contestar sua eventual derrota. Não falava disso. Passou a falar agora quando se viu desafiado por Joe Biden. “Perder logo para esse cara?” – comentou com um amigo.

Pelo menos nisso, Jair Bolsonaro largou à frente de Trump. Em 2018, ao lançar-se candidato a presidente, começou a desqualificar o processo eleitoral caso não vencesse. Disse que jamais reconheceria os resultados se não fosse eleito.

Para espanto dele mesmo, elegeu-se. Na verdade, o que ele pretendia com sua candidatura era ajudar a carreira política dos seus três filhos mais velhos – Flávio aspirante a senador, Eduardo a deputado federal e Carlos à reeleição como vereador.

Este ano, em março, ao visitar os Estados Unidos de onde voltou com a ideia de que o coronavírus não passaria de uma gripezinha, Bolsonaro afirmou que a eleição presidencial brasileira de 2018 fora fraudada para impedir que ele ganhasse no primeiro turno.

Sim, ele garantiu que tinha provas disso e que as apresentaria em breve. Como sempre, mentiu e por conveniência esqueceu o assunto. Ontem, temendo uma derrota de Trump de quem se diz amigo, idiomas à parte já que um não fala a língua do outro…

Bolsonaro, que despreza a utilidade de vacinas contra o coronavírus, inventou uma para se imunizar contra possíveis derrotas nas urnas – hoje ou no futuro. Hoje, a julgar pelo que se desenha nos Estados onde ele apoia candidatos a prefeito.

Não há um só candidato bolsonarista a prefeito em cidades importantes que lidere as pesquisas de intenção de voto. Havia um até ontem: o Capitão Wagner (PROS), em Fortaleza, que evita falar o nome de Bolsonaro ou defender o seu governo. Não há mais.

Wagner deve sua posição nas pesquisas ao desempenho como deputado estadual e ao fato de que liderou uma greve ilegal de policiais militares. Se for para o segundo turno, enfrentará uma parada dura contra um candidato apoiado pelo PT e PDT.

Foi de olho nestas e nas eleições de 2022 que Bolsonaro, ante a ameaça de ver Trump na lona, criticou a “ingerência de outras potências” nas eleições americanas, e advertiu que isso poderá repetir-se também por aqui. Bolsonaro com a palavra:

– No Brasil, poderemos sofrer uma decisiva interferência externa, na busca, desde já, de uma política interna simpática a essas potências, visando às eleições de 2022.

Se ele não se reeleger como pretende, seu discurso da derrota já está pronto. Com a diferença de que não adiantará apelar para o Supremo Tribunal Federal porque, ali, não contará com a maioria folgada de votos que Trump detém na Suprema Corte.


Bernardo Mello Franco: A mentira contra a vida

Pós-verdade foi a palavra do ano de 2016. Como manda a tradição, o dicionário “Oxford” anunciou a escolha em dezembro. Um mês antes, Donald Trump havia sido eleito o 45º presidente dos Estados Unidos.

Na era da pós-verdade, os fatos importam pouco. O que conta são as versões, que podem ser fabricadas para confirmar crenças, preconceitos ou visões de mundo.

Trump usou uma mentira deslavada para se lançar na política. Ele ajudou a propagar a falsa tese de que Barack Obama teria nascido no Quênia. Isso o tornou popular entre os radicais do Partido Republicano, que não se conformavam com a presença de um negro na Casa Branca.

Na campanha, o magnata continuou a espalhar lorotas. Ele inventou que o crime não parava de crescer (as estatísticas mostravam o contrário), que os mexicanos estavam invadindo os EUA (havia mais gente saindo que entrando no país) e que Obama teria fundado o Estado Islâmico (essa dispensa comentários).

Ao assumir o poder, Trump transformou o embuste em arma cotidiana. Em julho, o jornal “The Washington Post” informou que ele já havia divulgado 20 mil informações falsas ou distorcidas.

Como todo mitômano, o republicano se apresenta como portador da verdade. Quem ousa contestá-lo é acusado de produzir fake news. Assim ele mina a confiança na ciência, na imprensa e nas universidades.

A pandemia ensinou que a indústria da pós-verdade, alimentada por populistas como Trump, pode provocar danos ainda maiores que a corrosão da democracia. “Mentiras e desinformação, conspiração e ódio não prejudicam apenas o debate democrático, mas também a luta contra o coronavírus”, afirmou na semana passada a chanceler alemã Angela Merkel.

A conservadora fez o alerta após ser vaiada por deputados do partido de extrema direita AfD, que se opõe às medidas de combate à Covid. “Não é apenas o debate democrático que depende do nosso compromisso com os fatos e a informação. As vidas humanas dependem disso também”, prosseguiu Merkel.

A frase ajuda a explicar o que está em jogo na eleição americana de 2020.


Míriam Leitão: Hora de o país acertar o passo

O final desta eleição tensa e deste tempo infeliz pode ser o fortalecimento da democracia americana. Os Estados Unidos viram de perto os defeitos do seu sistema que permitiu a um presidente manipular os fatos, acirrar conflitos, dividir o país, tentar restringir o voto. O país chegou à eleição com tapumes nas lojas, cerca na Casa Branca e temor de escalada da violência. Nada disso é normal, como escreveu Dorrit Harazim.

Depois de duas eleições em 16 anos nas quais o vencedor do voto popular perdeu no colégio eleitoral, depois de um governo tão extremista quanto o de Donald Trump, está claro que os Estados Unidos precisam atualizar o legado dos fundadores da pátria. O federalismo não pode dar tanto poder às autoridades locais para restringirem o direito de voto, eliminando postos eleitorais. Não pode haver o temor de que o voto pelo correio vá para o lixo. Aumentaram as vozes respeitáveis nos Estados Unidos propondo reforma do sistema eleitoral.

Dias atrás, em conversa com o embaixador Rubens Ricupero, ouvi a sua expectativa:

— Eu tenho muita esperança de que as eleições provoquem uma reviravolta — ainda tenho medo de me decepcionar uma vez mais — mas se Trump perder nós vamos ter um verdadeiro terremoto, porque isso vai mudar todo o clima ideológico, político, psicológico do mundo. A eleição dele foi um choque de ruptura violentíssimo. A derrota dele não quer dizer que vamos voltar a uma situação maravilhosa, mas é como você despertar de um pesadelo, quando acorda você não está no paraíso. O fim do pesadelo não é o começo do sonho. É a volta à realidade.

A realidade tem uma recessão forte e uma pandemia descontrolada. Apesar disso, essa é a chance de um reencontro dos Estados Unidos com eles mesmos, se os líderes aproveitarem o momento para o recomeço.

Aqui também o melhor é acertar o passo. Quando Jimmy Carter foi eleito previa-se tensão com o Brasil porque ele defendia os direitos humanos e o fim da tortura nos países latino-americanos. O governo Ernesto Geisel torcia o nariz e se falava em intervenção em assuntos internos. Que país deve ser livre para torturar e desrespeitar os direitos humanos? Agora, se fala em tensão entre Joe Biden e Jair Bolsonaro. É, na verdade, a chance de Bolsonaro sair de duas posições erradas: o isolacionismo na política externa e o estímulo ao desmatamento da Amazônia.

Na sua série de tuítes ontem sem pé nem cabeça, Bolsonaro já estava em posição defensiva. Falou, no contexto da eleição americana, em ingerência estrangeira “visando às eleições de 2022”. E se referiu às “nossas riquezas, nosso futuro”.

A política ambiental do governo Bolsonaro até agora estimulou o desmatamento, o garimpo ilegal e a grilagem. Isso é que põe em perigo o nosso futuro e destrói a nossa riqueza. O ministro das Relações Exteriores do governo Bolsonaro acha bom o Brasil ser um “pária”. O cargo dele é cuidar das “relações exteriores”. Por óbvio, um país pária não as tem. Ernesto Araújo está no emprego errado. Biden prometeu um governo multilateralista, a volta dos Estados Unidos ao Acordo de Paris e defendeu a proteção da Amazônia. Tudo isso é ótimo porque o Brasil fez muito nas negociações do clima para que se chegasse ao acordo e somos os maiores beneficiários do combate ao desmatamento.

Uma pressão externa contra os crimes ambientais se somará aos grupos cada vez mais majoritários, até do agronegócio, que exigem mudança. Seria tão absurdo requerer soberania para desmatar quanto se Geisel tivesse defendido o direito soberano de o Brasil torturar.

A melhor resposta para a crise da democracia é mais democracia. Não se pode tolerar um presidente que pede a grupos supremacistas brancos que recuem e aguardem. Não se pode tolerar um presidente numa manifestação que pede fechamento do STF. Países lenientes com desvios dos seus governantes correm o maior dos riscos, o da perda da democracia.

A resposta da sociedade americana foi um comparecimento recorde às urnas. Uma senhora negra de 69 anos, da Carolina do Norte, entrevistada pela NBC, disse que votou pela primeira vez em sua vida. A repórter quis saber porque ela mudara de comportamento, e ela respondeu que ficou em casa por causa da pandemia, pôde se informou melhor e decidiu participar. Ela votou Biden-Harris. Os caminhos da democracia são sempre surpreendentes.


Lourival Sant’Anna: Onda azul não veio, e Trump está tão forte no jogo quanto Biden

Resultado não está definido, e matematicamente ambos podem ainda ganhar

Quando a contagem dos votos começou, o caminho de Joe Biden para a vitória na eleição dos EUA passava por 11 Estados. A madrugada avançou com esses Estados reduzidos a seis: Arizona, Geórgia, Pensilvânia, Michigan, Wisconsin e Nevada.

O resultado não está definido, e matematicamente ambos podem ainda ganhar. Mas uma onda azul, a cor do Partido Democrata, não aconteceu, e o presidente Donald Trump está no jogo tanto quanto Joe Biden.

Em mais um lance que mostra como essa é uma eleição atípica, Biden fugiu totalmente ao protocolo e fez um breve discurso pouco antes das 3h da manhã, hora de Brasília, 1h em Wilmington, Delaware, onde mora.

O candidato enfatizou que a tendência estava a seu favor, mas o propósito visível do pronunciamento era mobilizar seu eleitorado para garantir que todos os votos fossem contados, apesar das ameaças anteriores de Trump de não reconhecer as cédulas apuradas depois do dia da eleição.

Pela tradição americana, os candidatos presidenciais só se pronunciam depois do fechamento das urnas para informar que telefonaram para o adversário para lhe conceder a vitória, ou para celebrar seu triunfo. Trump anunciou em seguida pelo Twitter que estava ganhando e que falaria “esta noite”, significando a madrugada desta quarta.

Trump venceu em 2016 com 306 votos no Colégio Eleitoral — 36 a mais do que os 270 necessários. De lá para cá, segundo todas as pesquisas, ele não conquistou nenhum Estado novo. Por isso o mapa eleitoral de 2016 servia de base para a estratégia de vitória de ambos os candidatos.

A tarefa de Biden é derrotar Trump em Estados que totalizem 38 cadeiras no Colégio, evitando também o empate por 269 a 269, que levaria a decisão para a Câmara dos Deputados.

A votação no caso seria entre as bancadas, com cada Estado valendo um voto. Na atual Câmara, os democratas venceriam, mas a votação seria feita pelos deputados eleitos neste pleito, cujo resultado ainda não se sabe.

Os 11 Estados que poderiam ajudar na vitória democrata eram aqueles nos quais, segundo as pesquisas, Biden estava à frente de Trump, dentro ou fora da margem de erro. Com a evolução da apuração, os democratas foram perdendo cinco desses Estados: Flórida, Ohio, Carolina do Norte, Iowa e Texas.

Biden ganhou um voto no Nebraska, um dos dois Estados que separam os resultados por distritos. Agora, para atingir 270, ele precisa somar 37 votos seguindo diferentes combinações possíveis de Arizona (11 cadeiras no Colégio Eleitoral), Geórgia (16), Pensilvânia (20), Michigan (16), Wisconsin (10) e Nevada (6). Ou 36, se ganhar em um distrito do Maine, o outro Estado em que o vencedor não leva tudo.

Desses seis Estados, Biden liderava a contagem parcial de votos apenas no Arizona. Aquele em que ele perdia pela menor margem, às 4h da manhã desta quarta-feira, era o Wisconsin: Trump estava 4 pontos à frente.

A esperança dos democratas era que grande parte dos votos antecipados ainda não tinha sido contada nesses Estados. Esses votos são predominantemente democratas. É por isso que a principal mensagem dos democratas, nessa madrugada, era: deixem contar até o último voto.

  • É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS

Alberto Aggio: EUA no centro do mundo … uma vez mais

É indiscutível a importância dos EUA para o mundo. O século XX foi caracterizado, com razão, como o “século americano”. Depois do fim do comunismo, no início da década de noventa, isso ficou ainda mais claro. Depois de percorridas duas décadas do século XXI, nem mesmo o protagonismo assumido pela China conseguiu deslocar a importância dos EUA no mundo, se considerarmos as dimensões tecnológicas, econômicas, culturais, etc.. Ainda que se possa falar de um relativo arrefecimento do poder dos EUA, não resta dúvida a respeito do papel hegemônico que os EUA ainda jogam na cena mundial.

Mesmo não sendo eleitores, nós brasileiros, assim como boa parte da população mundial, não temos como não expressar grande interesse sobre o embate que se trava nas eleições presidenciais norte-americanas. Depois dos quatro anos de Trump, há uma grande expectativa sobre o resultado destas eleições. Há muitas razões para ser assim, a começar pelo fato de que já se espera que o resultado não seja conhecido de imediato em razão tanto da polarização confrontacional que Trump instituiu ao processo eleitoral, com acusações de fraude e ameaça de não respeitar os resultados, que fica difícil antever quando se dará a conhecer o vencedor da eleição.

De toda maneira, é inegável que os EUA ocupam o centro do sistema mundial atualmente existente. Direta ou indiretamente, as escolhas políticas feitas nos EUA invariavelmente repercutem de maneira global. E isso vale para problemas que os EUA acabaram gerando – como se observou na grave crise global de 2008-9, cujas repercussões ainda sentimos – quanto para decisões de governança que, sem a presença norte-americana, perdem em credibilidade e até mesmo em eficácia.

Por outro lado, os EUA exercem um papel pedagógico sobre o mundo que não tem padrão de comparação com outros países. Assim, o que ocorrer lá repercute positiva ou negativamente numa dimensão global. A vitória de Trump em 2016 foi sinal verde para o avanço de lideres e governantes iliberais em diversos países, com o destaque infeliz de Bolsonaro não só para os brasileiros. É de se esperar, como apontam as pesquisas, que uma derrota de Trump nessas eleições corresponda a um efeito inverso, abrindo espaço para se restituir ou restaurar uma nova situação no cenário internacional de caráter mais colaborativo e de afirmação do multilateralismo.

Isto porque, com Trump se pôde observar com mais clareza a fragilidade da ordem internacional. Nos últimos 4 anos houve um visível déficit de governança mundial, aprofundando uma lacuna entre a globalização e as instituições responsáveis por dirigi-la e governa-la. E isto gerou contradições e tensões bastante perigosas, voltando-se a favar em uma “nova guerra fria”. Como diz Mario del Pero, cientista político da CienciPo, de Paris, com Trump abriu-se um “fosso entre globalização e a globalidade”. Estas eleições são importantíssimas uma vez que a superação dessa situação demanda um empenho ativo dos EUA no interior da ordem mundial.

Trump contaminou o cenário internacional com uma orientação reacionária inteiramente extemporânea. Enfraqueceu o lugar hegemônico dos EUA aos olhos do mundo, mas não a vitalidade da sociedade norte-americana em defesa de valores democráticos, humanistas e igualitários. Quis restituir os termos do antigo imperialismo a partir da lógica de “única potência”, coisa que já não é mais possível no mundo de hoje. O resultado é que, depois de 4 anos, lhe faltam tanto aliados sólidos e importantes, quanto um horizonte de futuro que possa ser compartilhado pelos demais países, especialmente pelos aliados tradicionais dos EUA como foram os países europeus desde o pós-guerra.

Ao futuro de sociedades democráticas de perfil ocidental, em sentido gramciano, interessa vivamente uma recomposição da aliança entre EUA e União Europeia (UE), não o seu enfraquecimento como objetivou Trump. O conflito econômico mundial não foi abolido com o fim da URSS, ele apenas ganhou novos contornos que precisam ser governados a partir de critérios de interdependência, multilateralismo e democracia. Os problemas da EU, tais como um novo padrão de crescimento econômico, a imigração descontrolada, a luta contra o jiradismo mulçumano, o desemprego, etc., têm demonstrado uma resiliência muito grande e tudo o que a UE não precisa é da confrontação de tipo unilateral que Trump instituiu nos últimos anos. Por tudo isso que estas eleições se apresentam ao mundo todo como históricas. Serão dias e noites que europeus, latino-americanos e boa parte da população mundial estarão atentos ao que vai se passar nos EUA. O clima é de que se possa ultrapassar os descaminhos dos últimos anos.

*Alberto Aggio, historiador, professor titular da Unesp


Ricardo Noblat: Ganhe Trump ou Biden, a eleição de hoje já passou à história

Nunca tantos votaram tão cedo

A eleição presidencial norte-americana de 2020 já garantiu seu lugar na história. Em um país onde o voto não é obrigatório, até o final da tarde de ontem, pessoalmente ou pelo Correio, 97,6 milhões de pessoas já haviam votado. Isso significa mais de dois terços do número total de votos apurados na eleição de 2016.

No último dia de campanha, na maioria dos cinco comícios que fez em quatro Estados, o presidente Donald Trump atacou a Suprema Corte onde 6 dos 9 ministros são conservadores. Trump disse que tribunal pôs o país em perigo ao permitir que a Pensilvânia aceite votos que chegarem pelo Correio após o dia da eleição.

Segundo Trump, a decisão da Suprema Corte foi política e poderá estimular manobras fraudulentas dos seus adversários. No Twitter, escreveu que ela seria capaz até de induzir “à violência nas ruas”. De imediato, o Twitter classificou as afirmações do presidente como potencialmente falsas e alertou os seus usuários para isso.

A segunda-feira foi um dia de muitas queixas feitas por Trump. Além da Suprema Corte, foram alvos delas a mídia, o ex-presidente Barack Obama, a senadora Hillary Clinton e a investigação sobre a interferência russa nas eleições de 2016. O coronavírus foi mencionado apenas de passagem. Trump tentou desacreditar as pesquisas que apontam a vitória do Democrata Joe Biden.

Parecia claramente nervoso. Em Kenosha, cidade do Estado de Wisconsin, Trump reclamou até das falhas do microfone que lhe deram. “Este é o pior microfone que já usei na vida”, disse segundo o jornal The New York Times. Prometeu devolver a todos que ali compareceram metade do preço que pagaram pelo ingresso.

Os institutos de pesquisa, menos um, concordam que Biden deverá vencer Trump com uma larga vantagem no voto popular, e uma vantagem menos expressiva no Colégio Eleitoral. O instituto que discorda da eventual vitória de Biden também no Colégio Eleitoral foi o único que há 4 anos previu a eleição de Trump.

Em cinco ocasiões, o presidente que ganhou no voto popular perdeu no Colégio Eleitoral, que é o que vale de fato. A última vez foi o próprio Trump. Cada Estado tem sua própria legislação. Há Estados menos populosos com mais votos no Colégio Eleitoral, e Estados mais populosos com menos votos. É uma zorra total.

Falta aos Estados Unidos um órgão como o nosso Tribunal Superior Eleitoral para coordenar a apuração dos votos. É a mídia, com base nas pesquisas de boca de urna, que antecipa o nome do provável vencedor. Isso poderá acontecer na madrugada desta quarta-feira. Ou arrastar-se por mais um dia.


Eliane Cantanhêde: Falando sozinho

Risco de derrota de Trump é bom para mundo, EUA e Brasil, mas péssimo para Bolsonaro

A possibilidade de derrota de Donald Trump nas eleições de hoje nos Estados Unidos é uma excelente notícia para o mundo, para os Estados Unidos, para os costumes e talvez para o Brasil, mas traz um gosto amargo para o presidente Jair Bolsonaro. Boa para o mundo, ruim para Bolsonaro, seu governo e sua ideologia enviesada.

Os eleitores norte-americanos não estão decidindo entre o republicano Trump e o democrata Joe Biden, mas, sim, fazendo um plebiscito, a favor ou contra Trump, estivesse quem estivesse do outro lado. Casou de ser Biden, com uma vice poderosa, Kamala Harris, mulher, negra, filha de imigrantes e defensora ardorosa dos princípios que dão sustentação à democracia americana: direitos humanos, igualdade, justiça.

Trump usou o “America First” para escamotear o “só America, dane-se o resto” e bombardear o multilateralismo, a começar da ONU, da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), em plena pandemia. Se confirmado presidente, Biden retornará ao Acordo de Paris e a todas elas. Para alívio geral, menos para regimes populistas de extrema direita, como os da Hungria, Polônia e Brasil, que ficarão isolados.

Nos EUA, a tendência pró Biden traz, de imediato, a expectativa de alguma racionalidade no combate à pandemia e o retorno a princípios de humanidade e de direitos humanos, tão caro às democracias. Na direção oposta de Trump, Biden e Kamala Harris tendem a manifestar crítica à forte cultura racista das polícias e apoio aos cidadãos negros assassinados cruelmente. Não é pouco.

Um mandato democrata deve tratar a covid-19 como ela deveria ter sido tratada desde o início: não como gripezinha, mas como uma pandemia gravíssima, que contamina, mata, destrói a economia, os empregos e o equilíbrio internacional. E, com certeza, não se imaginem Biden e Kamala Harris fazendo propaganda da cloroquina.

Para o Brasil, é bem-vinda a derrota de um mentiroso contumaz, que manipula seus satélites contra a China e dá de ombros às pautas da sustentabilidade e dos direitos humanos. Isso, porém, não significa que Biden e Kamala Harris serão mais camaradas em negociações bilaterais, relações comerciais, acordos de defesa. Democratas e republicanos, diferentemente de Bolsonaro, têm algo em comum: a prioridade número 1, 2, 3 e mil da política externa é o interesse nacional.

Bolsonaro, seus ministros e o chanceler Ernesto Araújo admitiram cotas de aço e etanol favoráveis aos EUA, sem nenhuma contrapartida para o Brasil, e é improvável que, dê Biden ou Trump, isso vá ser revertido. O que pode mudar é que Trump fechava os olhos para meio ambiente, mas Biden vai endurecer o jogo. Ele prometeu US$ 20 bilhões para a proteção da Amazônia (considerados um exagero), mas acenando com sanções econômicas caso não haja mudança e ação.

Para os excessivamente pragmáticos, uma eventual vitória de Biden pode prejudicar os negócios do Brasil, mas a ótica deve ser outra: é alvissareiro que a maior potência se alie à Europa e às maiores democracias ocidentais em favor de meio ambiente, direitos humanos e democracia no Brasil. Mais do que questões financeiras imediatas, trata-se de princípios, justiça, futuro, avanços civilizatórios.

Quanto a Bolsonaro: depois de trombar com França, Alemanha, Noruega, Argentina, Chile, mundo árabe e, particularmente, a China, principal parceiro comercial do Brasil, só falta se isolar dos EUA e ficar falando sozinho nos foros internacionais. Se a subserviência a Trump é irritante, o que dizer de afundar com Hungria e Polônia, sob inspiração de Steve Bannon, Olavo de Carvalho e outros ícones do atraso? A eleição de hoje é um divisor de águas para o mundo, os EUA e o Brasil de Bolsonaro.