direito ao esquecimento

Cacá Diegues: Uma nova adolescência

Deixem o esquecimento em paz, ele é a garantia de uma existência mais alegre para idosos feito nós

Estamos perdidos, o Supremo acaba de proibir o esquecimento. Não sei se a sábia decisão inclui questões de foro privado, como fracassos pessoais e amores insanos, essas coisas que fazem de nossa vida inevitável sequência de frustrações dolorosas. Vou ler o documento com atenção, deve haver um parágrafo redentor dizendo que, a partir de certa idade, temos o indiscutível direito de não mais lembrar tristes momentos.

Em vez de nos condenar à memória, bem que o Supremo podia nos ajudar no suplício do que preferíamos que não tivesse acontecido. Valorizar nosso empenho em esquecer por respeito a nós mesmos. Não temos mais como reparar o desastre da juventude. Mas temos o direito de não darmos atenção aos que, nos salões, balbuciam nosso nome com trejeitos e risadas. Esquecer é uma bênção dos céus; rejeitá-la é um grave pecado masoquista de orgulho e pretensão.

Em certo momento adiantado da vida, começamos a nos conformar com o que somos. Seguimos vivendo a combinação patética de euforia e depressão, marca da existência, mas sabemos que o que somos dificilmente deixará de ser o que é. Ninguém vai nos reavaliar. O que foi já foi, não temos como consertar. Para que lembrar de tudo, mesmo que tenhamos sido campeões do mundo ou namorados de princesas? Sempre haverá algo de desagradável, em cada um desses sucessos.

Para a nova humanidade, não existem mais “velhos”, coisas gastas e desnecessárias. Agora somos “idosos”. O que, convenhamos, é muito mais conveniente e impõe um certo respeito. Outro dia, li na internet um post, encaminhado por meu amigo Walter Lima, o cineasta baiano, dizendo que os jovens estão achando nos idosos sinais de adolescência. Somos uma nova faixa social, idolescentes vivendo de um jeito peculiar, inventivo e agitado, capaz de renovadas provocações civilizatórias. A adolescência foi uma invenção de meados do século XX, para dar identidade demográfica e cultural a um desabrochar humano original, depois da Segunda Guerra Mundial. O desabrochar dos idosos é uma invenção desse século XXI, posterior à Guerra Fria, sei lá pra quê.

Como muitos de minha idade, esses que chamo de idolescentes, faço exercícios físicos para manter certa forma. Meu mestre em fisioterapia e shiatsu, o doutor Sashide, me garantiu que o idoso pode fazer tudo que um jovem faz. A diferença é que o idoso tem que fazer uma coisa de cada vez, concentrado no que está fazendo. Se você estiver subindo uma escada, por exemplo, se concentre só nisso, esqueça para onde vai, quem está a seu lado ou que música está tocando mais adiante. Preste atenção apenas a cada degrau, ao espaço em que, no próximo, você vai colocar o pé. A vida talvez fique mais lenta e mais chata, mas certamente mais segura e comprida.

Um amigo meu, cuja jovem filha morreu recentemente de mal incurável, me disse que, mesmo aos 79 anos de idade, só depois desse evento trágico começou de fato a envelhecer. Ele não desejou morrer por causa da morte da jovem e bela menina, a vida apenas perdeu para ele grande parte de sua graça. Agora estou tentando transformar esse meu amigo, com todo o respeito por sua dor, num idoso disposto a viver. Mas, para isso, ele precisa esquecer. Não necessariamente tudo. O rosto de sua filha sem vida, por exemplo, nunca mais deixará sua memória.

Por favor, senhores ministros do Supremo, defendam com ardor a liberdade e a democracia, deem a vida pelas duas. Mas deixem o esquecimento em paz, ele é a garantia de uma existência mais alegre para idosos feito nós.


O Estado de S. Paulo: Supremo rejeita pedido de reconhecimento de ‘direito ao esquecimento’ no País

Por nove votos a um, ministros seguiram entendimento que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição por atingir a liberdade de expressão e o acesso a informações

Paulo Roberto Netto, O Estado de S. Paulo

Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou por nove votos a um o pedido de reconhecimento do chamado ‘direito ao esquecimento’, no qual uma pessoa poderia pedir à Justiça para proibir a publicação ou exibição de um fato antigo, ainda que verdadeiro, sob justificativa de defesa da intimidade. O entendimento cria precedentes que devem modular decisões sobre o tema em todo o País.

O julgamento foi iniciado na semana passada e concluído na tarde desta quinta, 11, com a fixação da tese de que direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição e que eventuais abusos e excessos da liberdade de expressão devem ser analisados caso a caso.

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A proposta foi elaborada a partir do voto do ministro Dias Toffoli, que foi acompanhado nesta sessão pelos ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello e o presidente do STF, Luiz Fux. Na quarta, os ministros Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Rosa Weber votaram contra o direito ao esquecimento. O único que divergiu foi o ministro Edson Fachin.

Em seu voto, Cármen Lúcia destacou que um ‘direito ao esquecimento amplo’ como se buscava no Supremo seria um ‘desaforo’ para a sua geração.

“Em um país de triste desmemória como o nosso, discutir e julgar o esquecimento como direito fundamental neste sentido aqui adotado – de alguém poder impor o silêncio e até o segredo de fato ou ato que poderia ser de interesse público – pareceria, se existisse essa categoria no Direito, um desaforo para a minha geração”, afirmou a ministra. “Minha geração lutou pelo direito de lembrar”.

Ricardo Lewandowski, por sua vez, afirmou que o chamado direito ao esquecimento jamais correspondeu a um instrumento jurídico, mas sim a uma ‘aspiração subjetiva de uma pessoa que sente desconforto psíquico com fatos ocorridos no passado’. “A humanidade ainda que queria suprimir o passado, a todo momento é obrigada a revivê-lo”, afirmou.

O decano do Supremo, ministro Marco Aurélio Mello também acompanhou o entendimento da maioria, frisando que a Constituição não permite restrições à liberdade de expressão, pensamento e informação. “Não cabe numa situação como essa simplesmente passar a borracha e partir-se para um verdadeiro obscurantismo”, afirmou.

O presidente da Corte, ministro Luiz Fux, também votou contra o reconhecimento do direito ao esquecimento, afirmando que o instrumento ‘não pode reescrever o passado e nem obstaculizar o acesso à memória, o direito de informação ou a liberdade de imprensa’.

O recurso em discussão envolve uma ação movida pela família de Aída Curi, assassinada em 1958 no Rio de Janeiro. O crime teve ampla cobertura midiática à época e, em 2004, foi reconstituído pelo programa Linha Direta, da TV Globo. Inicialmente, a família de Curi solicitou que o episódio não fosse ao ar e, após a sua exibição, acionou a Justiça em busca de indenizações e pelo ‘direito ao esquecimento’ do caso. A justificativa é que a lembrança do episódio causou sofrimento aos familiares de Aída.

No caso concreto, os ministros também formaram maioria para negar indenizações à família Curi. Os únicos votos proferidos a favor da reparação partiram dos ministros Kassio Nunes Marques e Gilmar Mendes. Apesar de não reconhecerem o direito ao esquecimento, os dois ministros vislumbraram violação à intimidade de Aída Curi por parte da reportagem do Linha Direta.

Na semana passada, o ministro Dias Toffoli votou contra o direito ao esquecimento por considerá-lo incompatível com a Constituição ao restringir ‘direitos da população de serem informados sobre fatos relevantes da história social’.

“É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento assim entendido como o poder de obstar, em razão do tempo, a divulgação de fatos verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação análogos ou digitais”, afirmou Toffoli, ao propor a tese que baseia seu voto. “Eventuais excessos ou abusos da liberdade de expressão devem ser analisados caso a caso a partir dos parâmetros constitucionais relativos à proteção da honra, imagem, privacidade e personalidade em geral”.

Toffoli foi acompanhado por Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Rosa Weber, que votaram na sessão d quarta, 10. Os ministros frisaram que um eventual reconhecimento ao direito ao esquecimento aumentaria o risco de censura no País.

“A liberdade de expressão é ampla e não pode ser limitada previamente. Não vislumbro nenhuma possibilidade de se extrair do texto da Constituição norma, seja sob que determinação for, que proíba a veiculação da notícia em si ou que exija autorização prévia dos envolvidos”, frisou Nunes Marques.

Alexandre de Moraes foi enfático ao afirmar que a existência de um ‘genérico, abstrato e amplo direito ao esquecimento’ seria equivalente à ‘censura prévia’. “Como e quem seria o órgão responsável para estipular se aquelas informações são verídicas, foram desvirtuadas ou são degradantes? Nós teríamos um controle preventivo das informações a serem divulgadas? Isso claramente configura censura prévia. Não há permissivo constitucional que garanta isso”, disse.

A ministra Rosa Weber, que votou por último na sessão de quarta, afirmou o julgamento não busca colocar a liberdade de expressão em suposta posição de supremacia ao direito à privacidade, mas sim ‘delimitar os campos próprios a cada posição’.

“Além de inconstitucional, a exacerbação do direito ao esquecimento é o tipo de mentalidade que, revestida de verniz jurídico, direta ou indiretamente contribui para, no longo prazo, manter um país culturalmente pobre, a sociedade moralmente imatura e a nação economicamente subdesenvolvida”, apontou Rosa, “No Estado Democrático de Direito , a liberdade de expressão é a regra”.

Divergência

Isolado na divergência, o ministro Edson Fachin foi o único que reconheceu a existência do direito ao esquecimento. No entanto, destacou que o caso de Aída Curi não se enquadraria neste contexto pois a reportagem do Linha Direta apenas registrou a trágica realidade da época e do crime.

“Eventuais juízos de proporcionalidade, em casos de conflitos ao direito ao esquecimento e a liberdade de expressão, devem sempre considerar a posição de preferência que a liberdade de expressão possui, mas também devem preservar o núcleo essencial dos direitos da personalidade”, afirmou Fachin.

Especialistas divergem sobre decisão

Juristas ouvidos pelo Estadão divergiram sobre o entendimento da Corte em relação ao direito ao esquecimento. Segundo alguns especialistas, a Constituição já prevê instrumentos que podem ser acionados em casos semelhantes ao de Aída Curi, enquanto outros alegam que o direito ao esquecimento é algo fundamental para o século XXI.

O advogado Carlos Affonso Souza, sócio da Rennó Penteado Sampaio Advogados e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), afirmou que os ministros foram enfáticos em ressaltar que ninguém tem o poder de controlar o próprio passado e as lembranças alheias.

“A ideia de direito ao esquecimento é tentadora, pois parece dar controle sobre as informações que circulam sobre todos nós. Essa tentação é igualmente perigosa e ilusória”, alertou. “É perigosa porque em nome do direito ao esquecimento poderiam ser apagadas ou restringidas informações de interesse público. É igualmente ilusória porque nenhuma ordem judicial pode fazer com que a sociedade se esqueça de alguma informação. Não raramente acontece o justo oposto”.

O ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo, Belisário dos Santos Júnior, afirmou que segue o que disse o ministro Alexandre de Moraes, que votou destacando o risco de censura prévia no direito ao esquecimento. “O direito ao esquecimento não é garantido em nosso direito. A liberdade de expressão, embora não seja absoluta, não está sujeita à censura prévia. Os seus excessos podem ser punidos civil e criminalmente”, afirma.

Por outro lado, Ernesto Tzirulnik, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro, afirma que o ‘mundo midiático’ tem seus benefícios sociais, mas também ‘tem a sua face perversa’, quando há invasão da privacidade alheia ou quando se ‘banaliza e transforma em coletivo ou atribui falsa relevância àquilo que é irrelevante para as pessoas e principalmente para o conjunto da sociedade’. Sendo assim, ele defende que o ‘direito ao esquecimento, nestes casos, protege os cidadãos contra os danos dessas perversidades’.