daniel silveira

Nas entrelinhas liberdade de expressão | Imagem: reprodução

Nas entrelinhas: Quando a liberdade de expressão é um subterfúgio

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

O pensamento liberal no Brasil muitas vezes é traduzido com segundas intenções. Por exemplo, na Constituição de 1824, outorgada por D. Pedro I, o direito à propriedade privada não foi adotado para favorecer o florescimento de uma economia capitalista como as que se desenvolviam na Europa e nos Estados Unidos, mas para proteger o regime escravocrata.

O dogma liberal era invocado sempre que se falava de abolição, pois os escravos eram considerados propriedade inalienável. Ou seja, um fundamento das revoluções burguesas serviu a três gerações de escravocratas, até 1888. Hoje, o racismo estrutural, a causa de muitas das nossas desigualdades, é um mal invisível, que ninguém confessa, como a inveja.

De igual maneira, a nossa legislação trabalhista surgiu durante a Carta Magna de 1937, a constituição fascista do Estado Novo. Nem todos os seus dispositivos estavam a serviço do regime autoritário, mas toda a parte que envolvia os direitos coletivos, como greves, sindicatos, convenção coletiva e mesmo a Justiça do Trabalho, serviam ao corporativismo estatal inspirado na Carta del Lavoro, fascista. Entretanto, o engessamento da legislação trabalhista e sindical não impediu o posterior desenvolvimento dos direitos dos trabalhadores nem o avanço nas relações sociais.

Não é de se estranhar que o presidente Jair Bolsonaro e seus aliados, no confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF), a propósito do chamado inquérito das fake news, esgrimam o princípio da liberdade de expressão contra o Estado democrático de direito. No caso do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), que desafia o STF, se invoca o princípio da liberdade de expressão com a mesma esperteza que os senhores de escravos defendiam o direito à propriedade privada.

A liberdade de expressão é uma conquista de toda a humanidade, faz parte dos direitos fundamentais das pessoas, nas legislações da ONU, convenções internacionais e países democráticos. No Brasil, esse conceito dá suporte à democracia, pois afasta a ideia de censura que marca os governos autoritários. Soberania, cidadania, dignidade humana, valores do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político estão associados à liberdade individual. A filósofa Hanna Arendt dizia que o pensar e o agir politicamente são o fundamento da condição humana, que não pode ser dissociada da liberdade de opinião.

Obama e Rússia

O Art. 5º, IV da Constituição Federal diz: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Entretanto, é assegurado o direito de resposta aos prejudicados, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem (inciso V). No Art. 200, a lei diz: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.

Porém, há limites para esse direito, em especial quando é utilizado para violar ou negar garantias fundamentais estabelecidas pela Constituição. Por exemplo, são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

No Brasil, a lei não admite censura, mas há responsabilização, inclusive punitiva. O Estado democrático não restringe informações e ideias, mas deve responsabilizar o cidadão que não respeite o direito dos demais. Nos Estados Unidos, por exemplo, o ex-presidente Barack Obama faz autocrítica de não ter se preocupado com as fakes news como deveria.

Agora, promove um debate sobre o funcionamento das redes sociais e sua utilização para influenciar o resultado das eleições. Acusa a Rússia de favorecer a eleição de Donald Trump “trolando” as redes sociais norte-americanas. O The Washington Post, recentemente, dedicou um editorial ao tema, a propósito dos questionamentos de Obama, que fez um apelo para que as empresas de tecnologia se “redesenhem” para proteger o público da polarização de falsidades on-line. Em um longo discurso na Universidade de Stanford, localizada no coração do Vale do Silício, Obama falou sobre as maneiras pelas quais as plataformas de tecnologia ajudaram a dividir o público, espalhar desinformação e corroer a confiança nas instituições democráticas, levando à ascensão de autocratas e mortes desnecessárias pelo coronavírus.

“As pessoas estão morrendo” por causa da desinformação nos serviços de mídia social, disse ele. As empresas não estão sendo transparentes com o público sobre como seus algoritmos — o software que usam para espalhar conteúdo em seus serviços — funcionam.

Obama afirmou que, quando era presidente, não percebeu “como nos tornamos suscetíveis a mentiras e teorias da conspiração, apesar de ter passado anos sendo alvo de desinformação”, dizendo que ainda guarda arrependimentos até hoje. A desinformação refere-se a uma campanha coordenada por líderes políticos, corporações ou outras figuras para espalhar falsidades prejudiciais e narrativas enganosas.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-quando-a-liberdade-de-expressao-e-um-subterfugio/

Alon Feuerwerker: A montanha-russa da oposição

Daniel Silveira uniu a esquerda, mas a Petrobras voltou a dividi-la

A prisão do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) e a mudança no comando da Petrobras expuseram ao longo dos últimos dias possíveis caminhos e também dificuldades para a formação de uma frente ampla contra Jair Bolsonaro em 2022. A oposição a ele terá mais liga se o foco do debate estiver na dita “questão democrática”. E menos se enveredar pela condução da economia. (Isso já se sabia. Mas é sempre bom quando os fatos comprovam as teorias.)

Claro que em condições normais de temperatura e pressão. Se, por exemplo, o freio econômico trazido pela Covid-19 estender-se durante, pelo menos, mais um ano e meio, aí o discurso usual da “mudança” encontrará forte eco mesmo se a pauta for a economia. Mas, vamos supor, apenas por hipótese, que ela exiba leve ascensão na segunda metade de 2022. Com alguma recuperação sustentada da atividade e do emprego.

Até porque o governo tem instrumentos para criar o microclima favorável. E a mudança na Petrobras mostrou que o presidente não vai hesitar se precisar acionar o joystick.

Sobre Daniel Silveira, quando a prisão do deputado fluminense foi a voto em plenário, viu-se não apenas a coesão da esquerda contra ele, mas inclusive a luta dos parlamentares dela para assumir a linha de frente no apoio à decisão do Supremo Tribunal Federal. O objetivo político imediato de enfraquecer o bolsonarismo sobrepôs-se a preocupações da esquerda com tornar-se ela própria, algum dia, eventualmente, vítima do cerceamento à imunidade parlamentar.

Funcionou a máxima de que não se faz omelete sem quebrar os ovos. E assistiu-se finalmente à formação da frente amplíssima. Mas poucas horas depois o Planalto já dava sinais de a pauta dele ser outra: impedir que a autonomia absoluta do comando da Petrobras acabe provocando uma greve de caminhoneiros em meio à pandemia, um fato político 100% capaz de reintroduzir na agenda a desestabilização do governo.

 “Defender reajustes dos combustíveis bem acima da inflação não é propriamente algo popular”

E isso poucas semanas depois de Jair Bolsonaro ter afastado a ameaça de impeachment, pois os candidatos dele venceram as eleições para as presidências no Congresso. Em especial na Câmara, onde o bicho começa a pegar nesses casos.

A decisão do acionista controlador de trocar o CEO da petroleira rachou a frente ampla de poucas horas antes. Do centro para a direita, viu-se uma condenação unânime do ato presidencial. Já na esquerda, notou-se simpatia por quem rechaça a ideia de que lucros e distribuição de dividendos devam ser a única variável quando a diretoria da Petrobras toma decisões.

Há um setor da esquerda disposto a pagar (quase) qualquer preço para ver Bolsonaro pelas costas em 1º de janeiro de 2023. Mas não é ainda majoritário. Inclusive porque a sucessão presidencial é fundamental, mas 2022 também tem eleição para um monte de outros cargos. E tem cláusula de desempenho a atingir. E os candidatos, de deputado estadual a senador, precisam estar munidos de alguma narrativa própria, distintiva, dizer coisas atraentes ao eleitor no delicado tema do sustento.

E defender reajustes dos combustíveis toda hora e bem acima da inflação não é propriamente algo popular.

Publicado em VEJA de 3 de março de 2021, edição nº 2727


Catarina Rochamonte: STF - Autoritarismo contra boçalidade

O deputado se excedeu em palavras e o ministro se excedeu em ato: tentou combater a boçalidade com autoritarismo.

A verborragia do deputado Daniel Silveira que deu azo ao mandado de prisão em flagrante expedido pelo ministro Alexandre de Moraes é de estarrecer pela sua vileza, violência, chulice e boçalidade. Essa boçalidade tem degradado a política brasileira, mas, convenhamos, ela não é exclusividade do deputado que serviu de boi de piranha para o Supremo mandar seu recado ao bolsonarismo.

Que a fala do deputado foi criminosa, parece consenso; todavia, a prisão em flagrante teve sua legalidade amplamente questionada no meio jurídico. O deputado se excedeu em palavras, e o ministro se excedeu em ato: tentou combater a boçalidade com autoritarismo e defender o Estado de Direito corroendo seus alicerces. A punição deveria ter sido pleiteada segundo o rigor das normas constitucionais.

O STF merece muitas críticas, que podem ser feitas sem excessos criminosos. Não apenas pode ser criticado como deve ser investigado, inclusive pela já de há muito proposta CPI da Lava Toga, que está barrada no Senado pelo acordo de impunidade entre os Três Poderes. CPI essa, aliás, que sofreu ativa resistência do senador Flávio Bolsonaro.

Mesmo sendo legalmente questionável, a prisão do deputado foi referendada pela unanimidade do STF e corroborada pela Câmara. O presidente Bolsonaro, por sua vez, silenciou, como já o fizera em relação às prisões de Sara Winter e Oswaldo Eustáquio. É que a turma radical não lhe é útil nesse momento: tornou-se um ruído a perturbar a paz que uniu Planalto, ala anti-Lava Jato do STF e políticos de rabo preso que não se podem indispor com o Supremo.

Se a Câmara optou por não oferecer resistência aos arroubos autoritários dos que se julgam intocáveis, cabe agora ao Senado fazê-lo, abrindo os processos de impeachment protocolados contra ministros do Supremo e instalando a CPI da Lava Toga. Se a independência e harmonia dos poderes é pilar do Estado de Direito, é preciso agora que o Senado exerça algum protagonismo republicano.


Bruno Boghossian: Ministros querem evitar que processo de Silveira saia do STF em caso de cassação ou renúncia

Integrantes do tribunal acreditam que deputado tem menos chances de ser condenado se ação mudar de instância

Mesmo com a prisão mantida pela Câmara, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) ainda tem chances de escapar de uma punição definitiva. Ministros do STF lembram que, se o parlamentar for cassado ou renunciar ao mandato, o processo contra ele pode ser remetido a um tribunal de primeira instância.

No Supremo, o ambiente é evidentemente desfavorável ao deputado, como mostrou a sessão da última quarta (17). Até o decano Marco Aurélio Mello, famoso por ficar isolado nas votações, aderiu à maioria e ressaltou que “ninguém coloca em dúvida a periculosidade do preso”. É praticamente certo, portanto, que o tribunal deve tornar Silveira réu.

Ainda assim, o processo pode sair das mãos do STF. As regras do foro especial determinam que uma ação muda de instância se um político perde o cargo antes da conclusão da fase de depoimentos. Em caso de renúncia ou de cassação do mandato por seus colegas da Câmara, ele pode responder em Petrópolis (RJ) pelas ameaças ao Supremo.

Alguns ministros consideram improvável que Silveira seja condenado em sua cidade natal. Um dos juízes federais que atuam no município já citou Olavo de Carvalho, ideólogo do bolsonarismo radical, ao rejeitar uma denúncia de estupro contra um militar da ditadura. Ele escreveu que direitos humanos não devem ser “meros pretextos para dar vantagens a minorias selecionadas que servem aos interesses globalistas”.

Ainda que a Câmara prefira não cassar Silveira, o deputado pode renunciar para encontrar um terreno mais confortável. De quebra, ele escaparia de se tornar inelegível e poderia disputar eleições em 2022.

Integrantes do Supremo querem parar o chamado “elevador processual”. Um dos ministros defende uma questão de ordem para que o processo continue no tribunal em caso de cassação ou renúncia, sob o argumento de que não é possível escolher o órgão julgador. O próprio STF manteve essa brecha no confuso processo que atropelou a lei e mudou à força as regras do foro especial.


Elio Gaspari: Daniel Silveira errou o tiro

Deputado, que se dizia “cagando e andando” para as opiniões do STF, pensou em criar uma crise institucional; deu errado, fosse qual fosse a intenção

Daniel Silveira é um ex-PM do Rio. Em seis anos na corporação, pagou 26 dias de prisão, com 14 repreensões. Antes de entrar para a polícia, ele se valia de falsos atestados médicos fraudados por um faxineiro para faltar ao serviço. Preso na semana passada, manteve dois celulares na sala da Polícia Federal onde ficou, por decisão do ministro Alexandre de Moraes.

Esse personagem, que dias antes se dizia “cagando e andando” para as opiniões de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), pensou em criar uma crise institucional no Brasil. Ele foi o estuário de uma visão nascida em 2018, quando o deputado Eduardo Bolsonaro disse que “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal”. Não bastam.

Ao seu estilo, Daniel Silveira usou a repercussão do depoimento do general da reserva Eduardo Villas Bôas para atacar, em nome de sua agenda pessoal, os ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Os inquéritos sobre mobilizações antidemocráticas propagando mentiras estão na mesa de Moraes. Fosse qual fosse a intenção de Silveira, deu errado.

Na última terça-feira, quando os ataques do deputado chegaram ao conhecimento de ministros do Supremo, vários deles discutiram o caso com Moraes. À noite, ele mandou prendê-lo. Silveira sustenta que o flagrante citado por Moraes não se sustenta. O que não se sustenta é sua jurisprudência. Enquanto uma mensagem está postada pelo autor, o delito está em curso. (Depois que Silveira foi em cana, o vídeo foi apagado.)

Pelo andar da carruagem, ainda nesta semana o doutor poderá passar para um regime de tornozeleira, com limitações cautelares. A partir daí, tudo dependerá do seu comportamento.

A julgar pela sua conduta respeitosa durante a audiência de custódia de quinta-feira, o que foi combinado ficará de pé. Caso Silveira tenha uma recaída, saindo por aí “cagando e andando” por onde bem entende, cairá de novo na jurisdição de Alexandre de Moraes.

Villas Bôas também esperou três anos

O general da reserva Eduardo Villas Bôas ironizou o arroubo do ministro Edson Fachin, que considerou “gravíssima” sua revelação dos bastidores da preparação do famoso tuíte de 2018. Nele, o então comandante do Exército prensou o Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento de um habeas corpus impetrado em favor de Lula.

Villas Bôas foi breve: “Três anos depois”.

Na mosca. Fachin demorou para ficar indignado, e não foi por falta de exemplo, porque o ministro Celso de Mello repudiou o tuíte no dia seguinte.

“Três anos” também foi o tempo que Villas Bôas demorou para contar como produziu o texto, colocado na sua conta pessoal do aplicativo. Com uma diferença: Fachin demorou, mas pôs a cara na vitrine; Villas Bôas terceirizou parte da iniciativa.

Nas suas palavras:

“O texto teve um ‘rascunho’ elaborado pelo meu staff e pelos integrantes do Alto Comando residentes em Brasília. No dia seguinte — dia da expedição—, remetemos para os comandantes militares de área. Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente.”

O general fez dois tuítes, somando 75 palavras. Se elas tomaram todas as horas do expediente, cada uma foi medida. A certa altura, Villas Bôas assegurou que “o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade”. Deu no que deu.

Em outros tuítes, Villas Bôas havia louvado o “soldado Luciano Huck” e uma apresentação de Sabrina Sato na Academia das Agulhas Negras. Noutra ocasião, defendeu o desempenho da atriz Regina Duarte, então secretária de Cultura, numa entrevista, por sua “grandeza, perspicácia, inteligência, humildade, confiança, doçura, (e) autoconfiança.”

Ao revelar detalhes da edição do tuíte, Villas Bôas compartilhou sua gênese. Chefe militar pode ouvir seus comandados por respeito e até mesmo por cortesia, mas não revela isso três anos depois.

Imaginar comandantes como Leônidas Pires Gonçalves ou Orlando Geisel contando que suas palavras foram submetidas e discutidas com subordinados equivale a imaginá-los de boné num show do cantor Belo na Maré.

Nunca é demais lembrar o papelzinho que o general Dwight Eisenhower guardou no bolso em 1944, durante o dia do desembarque das tropas aliadas na Normandia, caso a operação fracassasse:

“Se alguma culpa deve ser atribuída à tentativa, ela é só minha”.

Deu tudo certo, e em 1953 ele se tornou presidente dos Estados Unidos.

Nunes Marques

Na noite de quarta-feira, os ministros do Supremo achavam que no dia seguinte a Corte sustentaria a decisão de Alexandre de Moraes por 10x1.

Ficaria vencido o ministro Nunes Marques. Feitas as contas do outro lado, entendeu-se que esse resultado seria pior. E assim chegou-se à unanimidade.

Ricardo Boechat

Completaram-se dois anos da morte do jornalista Ricardo Boechat, e o laboratório Libb, que o havia contratado para uma palestra em Campinas, interrompeu as negociações amigáveis para custear a continuidade do tratamento médico de uma das filhas que deixou, estimado em R$ 15 mil a R$ 20 mil mensais. Enquanto viveu, Ricardo Boechat arcou com essa despesa.

Boechat morreu quando caiu o helicóptero que o trazia de volta a São Paulo, depois de uma palestra no Libb, em Campinas.

Contratualmente, o transporte de Boechat era de responsabilidade do Libb. A aeronave estava bichada, e a empresa contratada não tinha autorização para fazer esse tipo de serviço.

Depois de quatro meses de negociações amigáveis, o laboratório Libb resolveu judicializar a questão. Ele é o oitavo maior do mercado, com o slogan “empresa inspirada pela vida”.

Numa conta de padaria, uma decisão de primeiro grau poderá demorar mais de um ano. Com recursos, pode-se ir a cinco anos.

Turismo irresponsável

Disposto a mostrar que não é um “maricas”, Jair Bolsonaro passou o carnaval na praia, festejando curiosos, sempre sem máscara.

Seu governo lançou a campanha “Turismo Responsável”, criando um selo para agências de serviços e empresas.

Quem vê os vídeos da propaganda do selo pode pensar que está na Nova Zelândia. Lá, sob o comando da primeira-ministra Jacinda Ardern, morreram 26 pessoas, cinco para cada milhão de habitantes. Na terra das palmeiras, onde canta o capitão, morreram mil para cada milhão de brasileiros.

Perseverança

Depois de cinco meses de viagem, o robô Perseverance pousou em Marte.

Completaram-se 14 meses do dia em que o repórter Aguirre Talento revelou a existência de um edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)que torraria R$ 3 bilhões na compra de equipamentos eletrônicos para escolas públicas. Os 244 alunos de um colégio mineiro receberiam 30.030 laptops.

Ainda não se sabe quem botou esse jabuti na burocracia do FNDE.

A perseverança da Nasa é coisa de principiantes.


El País: Câmara mantém prisão de bolsonarista Daniel Silveira, que ameaçou STF e defendeu AI-5

Deputados acolhem relatório que entendeu que o parlamentar do PSL cruzou a linha que diferencia a crítica e a liberdade de expressão do ataque às instituições democráticas

Afonso Benites, El País

A Câmara dos Deputados decidiu manter a prisão do deputado federal bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ). Por 364 votos a 130, os parlamentares concordaram com a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal que decretou sua detenção sob acusação de ter cometido os crimes de coação e ofensas à Corte e ao Estado Democrático de Direito. Houve ainda 3 abstenções. Silveira está preso desde a última terça-feira. O relator do processo no STF, ministro Alexandre Moraes, justificou a detenção sob o guarda-chuva da lei de segurança nacional e de que o crime cometido teria ocorrido em flagrante ―única condição para a prisão de um parlamentar―, pois foi feito em vídeo publicado em suas redes sociais, agora deletadas por decisão judicial.

Com a decisão, o Legislativo segue o script de não entrar em confronto com a cúpula do Judiciário em um momento em que os Poderes desfrutavam de uma trégua após passarem um ano de 2020 de extrema tensão, muito por conta das atitudes e ataques do presidente Jair Bolsonaro e de seu séquito. Nesse cenário, a Câmara sinalizou que não quer comprar brigas com os Poderes em nome da radicalização da base bolsonarista, ainda que o presidente esteja adotando uma conduta de cautela após os acordos que o aproximaram dos fisiológicos parlamentares do Centrão. A votação desta sexta-feira foi simbólica. Na ponta do lápis, houve mais votos a favor da prisão de Silveira do que apoios a Lira na eleição de 2 de fevereiro. Naquela ocasião, o parlamentar do Progressistas recebeu 302 votos.

Pesou contra Daniel Silveira seu histórico de extremista e de quem tem poucas relações políticas com o atual establishment. Os parlamentares ignoraram os apelos da defesa do colega bolsonarista que alegava irregularidades na prisão por entender que não havia flagrante no suposto crime e que as falas em que Silveira ameaçava os magistrados deveriam ser analisadas pelo Conselho de Ética da Casa, sem que resultasse em sua prisão. A maioria dos que seguiram em suas fileiras são bolsonaristas do PSL, filiados ao NOVO, membros da bancada da bala e representantes do PTB – partido que ainda busca seduzir Bolsonaro a se filiar na legenda.

Processos no Conselho de Ética

Mesmo preso, Silveira ainda enfrentará dois processos no Conselho de Ética da Câmara que podem resultar na cassação de seu mandato parlamentar. Uma representação nesse colegiado, no entanto, não significa quer necessariamente haverá punições. Outros parlamentares de seu grupo político, como Eduardo Bolsonaro ou o próprio presidente Jair Bolsonaro, quando era deputado, já responderam a processos fazendo discursos semelhantes exaltando o AI-5 ou torturadores da ditadura militar. Nenhum deles foi punido.

No último dia 16, Silveira publicou um vídeo no qual chamou o ministro Edson Fachin, do STF, de filho da puta e disse que imaginava ele e outros magistrados da Corte levando uma surra nas ruas. Também falou a favor do Ato Institucional número 5, principal instrumento de repressão da ditadura militar brasileira (1964-1985).

“O que acontece, Fachin, é que todo mundo tá cansado dessa tua cara de filha da puta, que tu tem, essa cara de vagabundo”, afirmou o deputado Silveira. Na sequência, disse: “Quantas vezes eu imaginei você [Fachin] e todos os integrantes dessa corte aí. Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra. O que você vai falar, que estou fomentando a violência? Não, só imaginei. Ainda que eu premeditasse, ainda assim não seria crime, você sabe que não seria crime. Você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível. Então, qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada com gato morto até ele miar, de preferência após cada refeição, não é crime”.

Em seu relatório para a votação desta sexta na Câmara, a deputada Magda Mofatto (PL-GO) entendeu que o parlamentar atacou as instituições democráticas e que viu clara intenção de seu colega de intimidar os ministros do STF. “É preciso traçar uma linha e deixar clara a diferença entre a crítica e o verdadeiro ataque às instituições democráticas. Temos entre nós um deputado que vive a atacar a democracia e as instituições e transformou o exercício de seu mandato em uma plataforma para a propagação do discurso do ódio, de ataques a minorias, defesa de golpes de Estado e de incitação à violência contra as autoridades públicas.”

No documento que defendeu a manutenção da prisão, Mofatto ainda disse que fala de Silveira não foi uma suposição qualquer. “O parlamentar não fazia meras conjecturas, mas faz entender que existia um risco concreto aos integrantes do STF”.

Em sua defesa, Daniel Silveira disse que se arrependeu de suas palavras, pediu desculpas ao povo brasileiro que tenha se sentido ofendido e citou que sua detenção era ilegal, pois infringia a imunidade de palavra que todo o parlamentar tem. Diz que pode ter agido por meio da pressão popular. “Às vezes vem aquele diabinho que vem no ouvido e diz: faz isso, e você vai lá e faz.” Ele reclamou que foi perseguido pela imprensa e de ter suas redes sociais suspensas. Seus perfis no Facebook e no Instagram foram apagados por ordem judicial de Alexandre de Moraes. “Todas as minhas redes foram deletadas, sumariamente. E não há nada mais grave que isso”, afirmou.

Apesar de ter elogiado e defendido o Ato Institucional número 5, instrumento de repressão da ditadura militar, Daniel Silveira negou que o tenha feito. “Nunca defendi o Ato Institucional número 5. Tampouco admiro ou quero um regime ditatorial. Acho isso tudo jurássico. A arbitrariedade do Estado é desnecessária”.

Logo na abertura da sessão, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que o caso Silveira servirá como um ponto de inflexão na Câmara e anunciou que criará uma comissão pluripartidária para regular o artigo constitucional que trata da imunidade parlamentar. O artigo 53 aborda a inviolabilidade de congressistas, civil e penalmente, “por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. De acordo com esse dispositivo, os legisladores federais só podem ser presos em flagrante se crime for inafiançável. “A inviolabilidade do mandato foi inscrita de forma cabal no mesmo texto magno, no mesmo, pelos mesmos constituintes que definiram o papel do Poder Judiciário”, disse. “Respeitar a Constituição é respeitá-la por inteiro. E vamos zelar por isso”, afirmou Lira.

Antes mesmo do fim da votação, quando 17 partidos orientaram pela manutenção da prisão (4 contra e 3 liberaram as bancadas), defensores de Silveira reclamaram da derrota iminente. “Não se trata de defesa corporativa. Trata-se de defesa da democracia, do Estado de direito, da defesa de que não nos submetamos como vassalos, humilhados, ao Supremo Tribunal Federal”, declarou Marcel Van Hattem (NOVO-RS). Para ele, a detenção do colega era uma espécie de AI-5 do Judiciário.


Hélio Schwartsman: O que a Folha me ensinou

Errando e acertando, é jornalismo o que a Folha procura fazer

A Folha faz nesta sexta (19) 100 anos de existência. Eu, dentro de um par de meses, farei 33 anos de Folha. Foi meu primeiro e único emprego, ao qual cheguei por acidente.

É verdade que desde pequeno eu lia o jornal. Meu pai assinava a Folha e o Estado, e foi sobre o diário da alameda Barão de Limeira que minha atenção naturalmente recaiu. A Folha era visivelmente menos sisuda que o Estado na segunda metade dos anos 70. Nunca, porém, imaginei que um dia trabalharia no jornal.

A guinada veio em 1988. Recém-formado, em busca de algo para fazer antes de me dedicar integralmente ao que seria uma tese sobre a verdade em Platão, respondi a um anúncio da Folha em que ela recrutava tradutores. Não era bem assim. A vaga, na realidade, era para uma posição de redator na editoria de Exterior. Fiz a prova, a entrevista, fui chamado, aceitei e estou no jornal até hoje. Jornalismo vicia. A tese nunca foi escrita.

Esses 33 anos me ensinaram duas lições ontológicas. A primeira é sobre o papel do acaso, muito maior do que estamos dispostos a admitir. Uma edição de jornal nada mais é do que o catálogo dos principais acontecimentos fortuitos do dia anterior, do sorteio da Mega-Sena aos terremotos e acidentes. Assim como o acaso foi decisivo para a minha carreira, o é para tudo.

A outra é sobre a verdade. Cada um tem a sua. Platão estava errado. Mas, mesmo admitindo que objetividade e imparcialidade sejam uma quimera, não precisamos necessariamente concluir que o jornalismo é a realização diária de uma impossibilidade teórica.

Entre o dogmatismo com tons religiosos e o cinismo niilista, sobra bastante espaço para relatos que, sem a pretensão de verdade acabada, procuram honestamente estar tão perto dos fatos quanto possível.

Errando e acertando, é o que chamamos de jornalismo, e é o que a Folha procura fazer. Ao menos foi isso o que testemunhei ao longo de 1/3 dos 100 anos desta Folha.


Bruno Boghossian: Aos 100, Folha encara missão de expor investidas contra a democracia

Informação é pedra no sapato de autoridades que têm algo a esconder ou querem extinguir contestação

Quando um governante decide dar um passeio fora dos limites da democracia, alguns de seus primeiros alvos costumam ser os tribunais e a imprensa. O autocrata tenta intimidar as cortes porque sabe que juízes conseguem impor um freio imediato a medidas autoritárias. O jornalismo não tem esse poder nas mãos, mas é um obstáculo diante de candidatos a ditador.

Um público bem informado é uma pedra no sapato para autoridades que têm algo a esconder ou que precisam extinguir focos de contestação. Ditaduras não convivem bem com uma imprensa livre porque a circulação de informações estimula o país a discutir e decidir seus próprios rumos –algo que um tirano não consegue suportar.

É normal que um político fique incomodado com o que lê nos jornais. Pode reclamar da postura crítica de um veículo, de uma reportagem que teve um peso maior do que ele gostaria ou até de uma informação errada. Ainda que jornalistas possam ficar contrariados, esse debate faz parte das regras democráticas. O problema ocorre quando as autoridades preferem jogar outro jogo.

O mundo tem um punhado de populistas que se intitulam democratas, mas dizem que “o certo é tirar de circulação” jornais que os deixam aborrecidos. Fazem ataques virulentos à imprensa quase todos os dias e tentam classificar qualquer informação desconfortável como falsa.

Governantes dessa natureza usam a desinformação como arma política. De um lado, exploram o peso da máquina dos governos para torpedear a credibilidade do jornalismo profissional e reduzir o alcance de notícias verdadeiras. De outro, empunham o megafone de seus cargos para espalhar mentiras e convencer o país dos maiores absurdos ou apenas tumultuar o ambiente.

A imprensa livre ajuda a sustentar a democracia porque expõe investidas como essas e mostra que os fatos não se dobram aos desejos de qualquer autoridade do momento. Ao completar seu centenário, a Folha continua a encarar essa missão.


Rogério Furquim Werneck: Jair, Guedes e Lira

Não falta agora quem queira se convencer que, com sua nova escalação, o governo passará a funcionar como um relógio suíço. E a verdade é que nem mesmo se sabe para que lado girará o relógio. Para vislumbrar com mais clareza divergências que terão de ser enfrentadas, é preciso perceber que Guedes, o Centrão e Bolsonaro acalentam visões muito distintas do que será possível extrair de 2021.

Há 12 meses, Guedes esperava que, na esteira da reforma da Previdência, 2020 fosse o ano do aprofundamento da consolidação fiscal, em que seriam aprovadas as três PECs que o governo submetera ao Congresso no final de 2019. É bem sabido que nada disso aconteceu. E, pior, entregue ao negacionismo, diante da eclosão da pandemia, o governo acabou levado de roldão por pressões políticas em favor da adoção de medidas de amenização dos desdobramentos socioeconômicos da disseminação da covid-19. E, tendo em vista a pressa e a improvisação com que foram concebidas, as medidas afinal aprovadas acabaram tendo impacto primário de mais de 8% do PIB nas contas do governo central, no ano passado.

O esforço de consolidação fiscal que agora se faz necessário afigura-se incomparavelmente mais difícil do que parecia em fevereiro do ano passado. E é mais que natural, portanto, que o ministro da Economia acalente a esperança de transformar 2021 num ano de vigorosa retomada do esforço de consolidação fiscal que teve de ser abandonado em 2020.

No final do ano passado, Guedes contentou-se em ressaltar que a não prorrogação do auxílio emergencial havia sido um sinal importante de compromisso do governo com a responsabilidade fiscal. Comemoração um tanto precipitada. O recrudescimento da pandemia, as novas cepas do vírus e o desalento com o avanço da campanha de vacinação, em um quadro de desemprego ainda muito elevado e perspectiva de recuperação mais lenta da economia, vêm dando força redobrada às pressões políticas em favor da restauração do auxílio emergencial.

O ministro já se viu obrigado a recuar para posição mais conciliatória. Declara-se, agora, até disposto a conceder mais três ou quatro meses de auxílio emergencial se, em contrapartida, o Congresso lhe der condições de levar adiante o esforço de ajuste fiscal que se faz necessário. Quer vincular a concessão de novo auxílio à aprovação de gatilhos de contração de gastos que seriam a disparados na medida do agravamento da situação fiscal.

Tendo afinal se apossado da presidência da Câmara, com apoio ostensivo do Planalto, o que espera o Centrão de 2021? Que uso pretende dar ao temível poder de barganha com que agora poderá contar nas suas relações com o governo?

O agrupamento parece, de fato, um saco de gatos. A argamassa que lhe dá coesão é a visão comum, que seus integrantes compartilham, do que constitui a essência da atividade política: um processo de infindável extração de benesses do Estado para atendimento de interesses especiais. A ascensão de Arthur Lira à presidência da Câmara não caiu do céu. Foi fruto de longa campanha no Congresso. Sobram promessas de campanha a pagar.

É improvável que o Centrão não faça pleno uso da posição de força que agora detém para avançar para valer na ordenha do Estado. E se disponha a entregar a Guedes as chaves do acionamento de gatilhos que garantiriam o programa de corte de gastos públicos que o ministro contempla. Não entregará mais do que o estritamente necessário para livrar as autoridades fazendárias e o presidente da República do risco de responsabilização pela expansão fiscal que advirá da restauração do auxílio emergencial. E para manter as contas públicas em seu nível atual de precariedade.

Não será um desfecho que desagradará a Bolsonaro. Tendo solapado o avanço de todos os esforços mais sérios de ajuste fiscal no ano passado, o presidente tem outros planos para o Centrão. Proteção contra o impeachment e, na medida do possível, avanço da sua velha pauta conservadora no Congresso. Restaurado o auxílio emergencial, é o que, por ora, o mobiliza.


Reinaldo Azevedo: Silveira sequestra turma do miolo mole. Ou: a nossa moral e a deles

Senhores da oposição, tomem cuidado com uma eventual cassação que poderia servir à impunidade do criminoso Daniel Silveira

O lugar de Daniel Silveira é a cadeia. Agora e depois. É preciso cuidado para não oferecer a ele uma tábua de salvação. Se cassado, seu caso vai para a primeira instância, com o risco de o desfecho ficar para as calendas gregas, aquele tempo sem tempo. A Procuradoria-Geral da República já o denunciou ao Supremo com base nos artigos 344 do Código Penal e 18 e 23 da Lei de Segurança Nacional. Que se torne logo réu.

Que seja julgado, condenado e preso em regime fechado, com consequentes perda de mandato e inelegibilidade. Tudo de acordo com o devido processo legal. Ele sonha com surras públicas de gato morto em ministros do Supremo e convoca uma guerra não só contra os magistrados, mas também contra um Poder da República. A propósito: o general Eduardo Villas Bôas e pares se deram conta da qualidade dos aliados que mobilizam? É com esses Bombadões de Plutarco que pretendem construir a terra dos "homens de bem", sobre uma montanha de quase 250 mil cadáveres? Atenham-se aos quartéis.

A correta decisão do STF gerou mais debate entre advogados do que entre os pares de Silveira. Pois é. O que une os livros "Como as Democracias Morrem" (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt), "O Povo contra a Democracia" (Yascha Mounk) e "Fascismo "“ Um Alerta" (Madeleine Albright), com olhares e ângulos às vezes bastante diversos? Os três registram a inércia dos regimes democráticos quando confrontados com a subversão reacionária.

Os Estados democráticos estão preparados para se defender de uma improvável disrupção revolucionária, mas não têm sabido responder, em tempos de redes sociais, ao devotado ódio dos extremistas de direita à democracia. Eles se apropriam de seus códigos para destruí-la. E podem encontrar aliados improváveis entre os ditos "progressistas" e liberais do miolo mole.

Confundir os crimes de Silveira com imunidade parlamentar —ou liberdade de expressão— corresponde a permitir que garantias constitucionais que protegem a democracia sejam usadas para solapá-la. Não há filigranas retóricas nem excertos supostamente sapientes que contestem essa evidência. Assim é no mundo.

No Brasil, a questão já passou pelo crivo do STF: a prerrogativa não acoberta crimes —e só por isso Jair Bolsonaro é réu duas vezes no tribunal. Ou se deveria, então, ter considerado a apologia do estupro protegida pela imunidade? Nesse caso, "progressistas" não fizeram coro aos bolsonaristas. Devem ter ficado com receio da vigilante militância feminista. Inexistem militantes "esseteefistas", né?

Flagrante discutível? Discutíveis são comida japonesa, o "Bolero de Ravel" e "single malt" defumado. O flagrante não. O artigo 302 do Código de Processo Penal define as condições da flagrância. O caso se encaixa à perfeição no inciso III do dito-cujo. Leiam lá. O CPP é de 1941, pré-YouTube, e veio à luz na forma do decreto-lei 3.689. A propósito: junto com o Código Penal, compõe o que alguns chamariam por aí de "arsenal da ditadura" —no caso, a do Estado Novo... Devemos evitá-los?

Defendo, noto, que a Lei de Segurança Nacional seja substituída pela Lei de Defesa do Estado Democrático, projeto do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), em parceria com juristas, liderados por Pedro Serrano e Lenio Streck. Mas não perderei a vida por delicadeza, como escreveu o poeta. Não combaterei o uso contra Silveira de uma "lei da ditadura", como dizem, para que ele possa esculhambar a República e defender o AI-5.

Será que eles podem, em nome de sua moral, pregar golpe de Estado, ameaçar as instituições, perseguir minorias, sabotar os esforços coletivos contra a Covid-19 etc.? E nós, os democratas, em nome da nossa —que compreende a defesa da liberdade de expressão— estaríamos impedidos de reagir, deixando, então, que nos engulam?

Ah, não sou peru de Natal de fascistoide. Não morro de véspera. Por isso, senhores da oposição, tomem cuidado com uma eventual cassação que serviria à impunidade. Silveira, como deputado, tem de ser julgado pelo Supremo. Segundo as mais severas regras do devido processo legal.


Ricardo Noblat: Sinceros votos de que o deputado Daniel Silveira dê-se mal

Para que sirva de exemplo

Não basta que logo mais à tarde a Câmara confirme a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal de mandar prender o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) que atentou contra o Estado de Direito em vídeo que ele mesmo gravou e postou nas redes sociais.

Para que provas a mais do seu crime? O vídeo é prova cabal, indesmentível de que ele é um criminoso confesso. Nunca antes na história democrática deste país um parlamentar pregou tão acintosamente o desrespeito à Constituição e aos seus zeladores.

Nem basta que na próxima semana o Conselho de Ética da Câmara, inativo há tantos meses, conclua que Silveira feriu o decoro parlamentar e deve ter seu mandato cassado. É preciso que o plenário da Câmara casse o mandato e que a Justiça o condene.

O tratamento dado a Silveira deve servir de exemplo aos que conspiram para cancelar mais uma vez a democracia, sejam eles vivandeiras de quartéis ou militares. Um traço no chão para além do qual ninguém se arrisque a ir imaginando que ficará impune.

Foi o bolsonarismo que pariu um feto mal formado como é Silveira. Com o agravante, no seu caso, de que ele acabou se elegendo deputado federal apesar da folha corrida repleta de antecedentes criminais. Não serviu para vestir a farda da polícia.

Por que serviria para ganhar um assento no Congresso? Atos de violência física pontuaram toda a sua trajetória até aqui. Ousou dar um salto mortal, sem rede, ao enveredar pelo caminho estranho para ele da violência verbal. Está aí um corpo estendido no chão.

Faltaram a Silveira a cultura, a sutileza, o domínio das palavras e, principalmente, a farda que permitiram ao general Villas Bôas, à época comandante do Exército, interferir com sucesso no resultado de um julgamento do Supremo. Foi em abril de 2018.

Tanto o deputado quanto o general afrontaram a Constituição. A diferença é que um tinha tropas bem armadas para atender ao seu chamado – o outro tinha nada. Por ignorante, acreditou que o direito à livre manifestação o liberava para dizer o que quisesse.

De nada adiantou a Jair Bolsonaro invocar o direito à livre manifestação e a imunidade parlamentar para se livrar de ações no Supremo. Ali, ele é duas vezes réu por incitamento ao estupro. Os processos voltarão a andar depois que deixar a presidência.

O gato escaldado tem medo de água fria. Bolsonaro já quis confusão com o Supremo, não quer mais. Por ser réu e porque seus filhos investigados poderão ser promovidos à igual condição. Daí o seu silêncio exemplar e barulhento quanto à sorte de Silveira.


Pedro Doria: O deputado, o Centrão e o algoritmo

Há uma lógica diretamente ligada à estrutura das redes sociais no vídeo que custou a prisão ao deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ). Silveira é, dentre os bolsonaristas, um tipo ainda mais agressivo do que o padrão do grupo, já uns tantos tons acima do normal. Mas, neste vídeo em que deseja uma surra aos ministros do Supremo embalado por atos institucionais da ditadura, sua agressividade não é apenas um ato político antidemocrático. É, também, uma técnica conhecida de fazer com que a audiência potencial do filmete seja maior. A intenção lá atrás, quando se tornou conhecido pelo gesto de quebrar a placa da vereadora assassinada Marielle Franco durante a campanha, também era a mesma.

O algoritmo, o código de computador que seleciona quem será exposto a que foto, texto, vídeo, compreende muito da natureza humana. É uma inteligência artificial que compreende nossas fraquezas. E uma delas é que, quando a pressão sobe, e a adrenalina corre, ligamos o alerta. Ficamos mais atentos quando as emoções são fortes. Quem nos deixa mais indignados, nas redes sociais, ganha mais pontos para aparecer mais.

Silveira sabe disso, como sabe Carlos Bolsonaro quando opera as contas de seu pai, o presidente da República. Como, aliás, sabem quaisquer influenciadores.

A esperança que a internet trazia quando surgiu é que o debate político seria democratizado. Não seria mais necessário ter uma verba imensa para contratar as melhores pesquisas, as mais capazes equipes de vídeo e, assim, costurar publicidade eleitoral de primeira. O mercado de ideias enfim se realizaria, utopicamente, permitindo que, nos diálogos constantes da praça digital, as melhores emergissem pela criação de consensos. A democracia é tão bonita nos livros e tão difícil na prática. Pois a entrada da inteligência artificial no jogo confirmou as previsões só pela metade. Não é preciso mais dinheiro para se sobressair. Mas as regras do jogo fazem com que, no mercado real das ideias, sejam os mais radicais que chamem a atenção.

Para prender Silveira, o ministro Alexandre de Moraes fez uma leitura perigosa do princípio de flagrante. Se o vídeo está no YouTube, e pessoas estão constantemente expostas a ele, então o crime é continuado. Como já disse alguém, se isso for verdade, quem tem Twitter, tem medo. Tudo o que já se escreveu na rede e ficou pode ser usado para criar o flagrante.

Mas, interpretação à parte, Moraes — e os outros dez ministros do Supremo que unanimemente concordaram com a decisão de prender o deputado — estão certos em se preocupar. Nada é mais radical politicamente do que um ataque à democracia. É defender o rompimento do regime, o fim da liberdade, da igualdade de direitos.

A violência, afinal, pode começar retórica, pode ser um truque para deslumbrar o algoritmo e, assim, conquistar mais curtires e visitas. Mas ela não fica só aí. A violência retórica, o discurso contra a democracia, ilude eleitores e constrói eleitorado. Nós, os brasileiros, entendemos de ditadura — só na República tivemos três. A de Deodoro e Floriano, a de Vargas e a dos generais. Podemos dizer com tranquilidade que não entregam países melhores. A última nos deixou um legado de analfabetos e hiperinflação que custou à democracia uma década para resolver. Ainda assim, mesmo porque, no tempo das fake news, até a história é falsificada, tem gente convencida de que ditadura é bom jogo.

A lição que os EUA de Donald Trump nos deixaram é que a violência iniciada no algoritmo tampouco para na conquista de um nicho de eleitorado. Ela vai além, se torna real e invade Parlamentos. O Centrão que abra o olho — é com eles também.