CPI

Ricardo Noblat: O paradoxo Bolsonaro – entre a pandemia e a CPI da Covid

O presidente colhe o que plantou

Quatro ministros da Saúde depois e com a estagnação do ritmo de vacinas aplicadas porque não as comprou a tempo, o máximo que fez até aqui o governo Bolsonaro contra a pandemia da Covid foi montar um comitê especial para cuidar do assunto formado por representantes dos três poderes da República e sob o comando de Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado.

Nos últimos 30 dias, o comitê instalado com toda pompa reuniu-se duas vezes e só produziu abobrinhas. Bolsonaro faz questão de manter-se diante dele. Não quer ouvir falar de máscara, lavar as mãos com álcool gel, e respeitar medidas de isolamento. Atrapalharia suas pregações diárias e passeios semanais, todos na direção contrária do que aconselha o comitê.

Prefere continuar insistindo com o uso da cloroquina e de outras drogas sem eficácia para combater o vírus – o tal do tratamento precoce que ele agora não chama pelo nome para não ter seus vídeos suspensos nas redes sociais. Ultimamente, deu para acenar com a intervenção do Exército contra qualquer tentativa de lockdown nacional ou de saques ao comércio.

De fato, o espantoso é que até agora, dado ao crescente número de desempregados e de pessoas que retornaram à condição de miseráveis, não se tenha notícia de atentados à ordem pública. Ao que tudo indica, Bolsonaro torce para que isso aconteça com a esperança de angariar novos poderes a pretexto de restabelecer o império da ordem e da lei. É o seu sonho.

Na outra ponta das preocupações do presidente está a CPI da Covid no Senado que será instalada na próxima terça-feira. Dos 11 membros da CPI, 6 são independentes e de oposição ao governo, e 5 mais ou menos governistas, a depender do andar da carruagem. Na verdade, a um ano das eleições gerais de 2022, ninguém ali está disposto a se imolar para salvar o mandato de Bolsonaro.

Cuide-se, Bolsonaro, portanto – e é o que ele passou a fazer mobilizando todos os recursos ao seu alcance. Deu ordem ao general Luiz Eduardo Ramos, chefe da Casa Civil, para que montasse uma força tarefa, composta por representantes de todos os ministérios, encarregada de coletar documentos e informações que possam ser usadas a favor do governo na CPI.

Estão sendo mapeados os funcionários e ex-funcionários do governo que poderão ser convocados a depor. E a eles será oferecido treinamento sobre como comportar-se e o que dizer em depoimentos e acareações. Dos ex-funcionários, o que inspira maior cuidados à força tarefa é o general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, desempregado e um pote de mágoas.

Uma marca indelével do governo Bolsonaro é a de estar sempre correndo atrás do prejuízo semeado por ele mesmo. Dito de outra maneira e bem ao gosto dos nordestinos: o presidente está como um vira-lata sem dono e perdido em meio à festa do santo padroeiro de uma cidade, a pular assustado daqui para acolá a cada vez que uma bomba estoura perto dele.


Eliane Cantanhêde: O nosso Exército, sem aspas

Objetivo não é usar Exército contra o caos, mas contra a CPI, o STF e a candidatura Lula

O ex-presidente Lula coleciona vitórias no Supremo e o presidente Jair Bolsonaro reage com medo a Lula e à CPI da Covid, ameaçando os governadores – e o País – com o Exército nas ruas. Está apoiado no GSI, no novo ministro da Defesa, general Braga Neto, no novo comandante do Exército, general Paulo Sérgio, e em todos os seus ministros? Isso não é brincadeira.

O Supremo já tem maioria pela suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no caso do triplex do Guarujá, que levou Lula à prisão por 580 dias. O grande vitorioso é Lula, já em campanha para 2022. Os maiores derrotados são Moro e a Lava Jato. E perde também o relator Edson Fachin, que tentou favorecer Lula e a Lava Jato ao mesmo tempo. Não rolou.

Bolsonaro está em pé de guerra. Já não se refere ao “meu Exército”, mas ao “nosso Exército”, e embrulha seus propósitos com legalidade ao dizer que vai usar os militares para “fazer valer o artigo 5.º da Constituição”, sobre o direito de ir e vir, a liberdade de trabalho e culto. Mero pretexto, porque ele nunca esteve preocupado com direitos e não vê a hora, isso sim, de dar um golpe branco, dentro da lei.

Por que ele inviabilizou o Censo pelo segundo ano seguido? Pelo medo da terrível realidade que o IBGE divulgaria às vésperas da eleição. É justamente por causa dessa realidade, de desemprego, fome, drama social, que o presidente acena com Exército nas ruas.

O que evitaria esse caos? Liberar geral? Deixar o vírus tomar conta do País de vez? Não. É o oposto. Uma política nacional para restringir com rigor a circulação de pessoas e garantir rápida e maciçamente as vacinas é o que seguraria o vírus, aliviaria o sistema de saúde, garantiria a volta à normalidade e a reação da economia mais rapidamente.

Depois de exibir os generais Braga Neto e Eduardo Pazzuelo num ato de campanha em Goianópolis (GO), sem máscara e distanciamento social, Bolsonaro arranjou um cargo para Pazzuelo, pôs o general debaixo do braço e foi com ele a Manaus, síntese dos erros na pandemia. E há a primeira manifestação do novo comandante do Exército.

O general Paulo Sérgio tirou 10 ao praticar no Exército tudo o que Bolsonaro não praticou no País contra a pandemia. Não foi nomeado por isso, obviamente, mas entrou em sintonia com o presidente ao dizer que o Exército é 1) “vigoroso vetor de estabilidade e de garantia da ordem e da paz social” e 2) “esteve e estará sempre junto ao povo brasileiro”. Isso reforça a dúvida desta coluna em 18/4: que povo? A Nação brasileira ou o “povo” do Bolsonaro?

Excepcionalidade exige medidas excepcionais. Estados e municípios decretam restrições à circulação, a cultos e compras, não por serem sádicos, contra a Constituição e queiram destruir a economia, mas pelo oposto: porque têm de salvar vidas e recuperar o quanto antes a economia. Com a incerteza das vacinas, a arma é isolamento. Mas o presidente ataca pelos dois lados: é o grande culpado pela falta de vacinas e guerreia também contra os paliativos.

Bolsonaro é um prato cheio para a CPI e a entrevista do ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten à Veja, apesar da dubiedade, põe mais pimenta ao acusar o Ministério da Saúde de Pazzuelo pelo fracasso na compra da Pfizer em 2020 e relatar que a questão foi tratada – e as chances desperdiçadas – dentro do gabinete presidencial.

Bolsonaro fez tudo errado desde o primeiro momento, deu no que deu. Agora, quer manipular o Exército, atacar os governadores e prefeitos e convencer o “povo” de que a culpa do caos é do combate à pandemia, não da sua total incompetência no combate à pandemia. Seu real objetivo é usar as Forças Armadas, não contra o caos que ele criou e alimenta, mas contra a CPI, o STF e a candidatura Lula.


Janio de Freitas: Fissura em relação com Exército é o pior enfraquecimento que Bolsonaro pode sofrer

A importância dessa reversão é grande e pode ser decisiva na CPI do genocídio

A perda de Bolsonaro com a encrencada substituição de comandos militares encontrou rápido meio de aferição. Em resposta à aprovação da CPI, no meio da semana voltou à insinuação ameaçadora: “O pessoal fala que eu tenho que tomar providências, eu estou aguardando o povo dar uma sinalização”. Para depois dizer que faz, ou fará, “o que o povo quer”. Nenhuma repercussão.

A interpretação geral daquele episódio, com o pedido de demissão conjunta decidido pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Força Aérea, foi a de demonstrar o surgimento de uma distância, no mínimo uma fissura, que rompe a conexão do Exército com Bolsonaro tal como induzida ainda na campanha eleitoral. Esse é o pior enfraquecimento que Bolsonaro pode sofrer nos seus recursos para ver-se sustentado a despeito do que faz e diz.

A importância da reversão é grande e pode ser decisiva na CPI do genocídio. Antes, o Exército não precisaria explicitar insatisfação com a CPI para inibir-lhe a criação ou a atividade. Sua identificação com Bolsonaro o faria, por si só. A maneira distensionada como os senadores procederam nas preliminares para a CPI já foi claro fruto do novo ambiente sem cautelas e temores. O grau em que os senadores se sentiram desamarrados mostra-se ainda maior por terem um general da ativa, Eduardo Pazuello, entre os itens mais visados pelo inquérito.

Estudos recentes, publicados nas revistas científicas Science e Lancet, juntam-se agora a estudos científicos brasileiros e proporcionam levantamentos e análises primorosos para poupar à CPI muitas pesquisas e apressá-la. Ainda que não seja a ideal, sua composição é satisfatória; não será presidida por Tasso Jereissati, como deveria, mas conta com sua autoridade; e Renan Calheiros, se agir a sério, tem competência como poucos para um trabalho relatorial de primeira.

Bolsonaro tange o Brasil para os 400 mil mortos. Tem sido o seu matadouro. Estudo do neurocientista Miguel Nicolelis conclui que ao menos três em cada cinco mortos não precisariam ter morrido, no entanto foram vitimados pela incúria, a má-fé e os interesses com que Bolsonaro e seus acólitos têm reprimido a ação da ciência. Uma torrente de homicídios que não podem ficar esquecidos e impunes. Do contrário, este país não seria mais do que uma população de Bolsonaros.

A ENGANAÇÃO

Joe Biden insinua outra Guerra Fria. É curiosa a atração entre os democratas, não os republicanos, e as guerras. Os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra sob a presidência do democrata Wilson. Na Segunda Guerra, a presidência era do democrata Roosevelt. Bem antes dos chineses, em 1950 os Estados Unidos entregaram-se à Guerra da Coreia levados pelo democrata Truman. O democrata Kennedy criou a Guerra do Vietnã. E pôs o mundo a minutos de uma guerra nuclear, de EUA e URSS, na crise dos mísseis em Cuba.

É contraditória a inadmissão de uma China em igualdade com os Estados Unidos e a determinação de sustar o aquecimento global. A primeira abre um risco de guerra em que questões como ambiente e clima não subsistem.

Apesar disso, nos dias 22 e 23 os governantes de 40 países fazem uma reunião virtual sobre clima, por iniciativa de Biden. Os americanos esperam comprar de Bolsonaro, por US$ 1 bilhão, o compromisso de medidas verdadeiras contra o desmatamento na Amazônia, essenciais para deter o aquecimento climático.

Esse bilhão sairá caríssimo ao Brasil, porque o compromisso de Bolsonaro será tão mentiroso quanto as afirmações que fará, como já fez em carta a Biden, sobre os êxitos do governo na preservação da Amazônia.

Em março, o desmatamento foi recordista: 13% maior que o de março de 2020. Desde o início do governo Bolsonaro, o desamamento por fogo, o roubo de madeira e o garimpo aumentam sem cessar. O setor de fiscalização do Ibama foi destroçado. Bolsonaro protege o garimpo ilegal, pondo-se contra a destruição de seu maquinário. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, protege os madeireiros criminosos.

Apresentado há três dias, o Plano Amazônia 2021/2022 não é plano, nem outra coisa. Sua meta de redução de desmatamento é maior do que o encontrado por Bolsonaro. Não contém restauração dos recursos humanos, nem as verbas condizentes com esforços reais. Mas “o governo dos Estados Unidos espera seriedade e compromisso de Bolsonaro” na reunião. Espera o que não existe.


Bruno Boghossian: CPI vai apurar papel de Bolsonaro na propagação intencional do vírus

Senadores citam incentivo à imunidade de rebanho como item a ser investigado

Nas primeiras semanas da pandemia, Jair Bolsonaro mostrou que seu plano era trabalhar para que o coronavírus se espalhasse pelo país. “Como dizem os infectologistas: 60%, 70% da população será infectada, e só a partir daí nós teremos o país considerado imunizado”, disse o presidente, em abril de 2020.

Não se sabe que infectologistas eram aqueles ou de onde veio a matemática macabra, mas o incentivo à imunidade de rebanho se tornou estratégia oficial do governo. O presidente estimulou contaminações, agiu para derrubar restrições impostas para conter o vírus e atrasou uma campanha de imunização inteligente a partir da vacinação em massa.

A CPI da Covid deve se debruçar sobre o papel de Bolsonaro na propagação deliberada do vírus –já apontado numa pesquisa de Deisy Ventura, Fernando Aith e Rossana Reis, da USP. A oposição e o senador Renan Calheiros (MDB), cotado para a relatoria da comissão, citam a defesa da imunidade de rebanho como um dos itens que serão investigados.

O estímulo ao alastramento da doença foi uma opção do presidente. Em maio, o Ministério da Saúde dizia que a imunidade de rebanho não era "a melhor estratégia se você não tem vacina". Mesmo assim, Bolsonaro agiu contra medidas de contenção e insistiu no papo de que a contaminação generalizada era o caminho.

Ao estimular aglomerações, o presidente dizia que o coronavírus era "uma coisa que vai pegar em todo mundo". Depois, ao sabotar a compra de imunizantes, ele afirmou que a contaminação era a forma ideal de se proteger. "Eu tive a melhor vacina, foi o vírus. Sem efeito colateral", declarou, em dezembro. Para Bolsonaro, bastava tomar cloroquina.

Essa linha de investigação ajuda a desmontar a versão fantasiosa de que a tragédia brasileira foi provocada exclusivamente por um vírus desconhecido, que surpreendeu governantes em todo o mundo. O presidente escolheu um caminho e se manteve nele, contra todas as evidências científicas. Bolsonaro sabia muito bem o que estava fazendo.


Hélio Schwartsman: Vale gravar o presidente?

Penso que Kajuru podia, sim, ter gravado Bolsonaro

"A que ponto chegamos no Brasil aqui. [Fui] Gravado". Foi assim que o presidente da República, Jair Bolsonaro, expressou contrariedade por ter um diálogo seu com o senador Jorge Kajuru divulgado para o público. A indignação se justifica?

Do ponto de vista legal, a questão é complexa. De modo geral, admite-se que uma pessoa grave conversação de que seja parte, especialmente se o objetivo for defender-se de alguma coisa. Mas vale lembrar que a lei só vai até certo ponto. Ela pode regular enquadramentos penais e a licitude de provas, mas não os efeitos políticos de uma gravação com conteúdos picantes.

Basta lembrar que tanto o diálogo entre Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva em que a então presidente dizia estar enviando o Bessias como as conversas entre o então juiz Sergio Moro e procuradores da Lava Jato constituem provas ilícitas, mas isso não as impediu de desencadear terremotos políticos que também tiveram consequências jurídicas.

O melhor modo de analisar a questão, portanto, não é o legal, mas o ético. É correto gravar conversa própria sem avisar os outros participantes de que tudo está sendo registrado? Fazê-lo é por certo deselegante. Pode ser também uma violação ética, mas isso depende do contexto.

Se você grava sem avisar uma conversa íntima com seu melhor amigo e a divulga, fracassou nos deveres da amizade. Mas, se faz o registro de uma autoridade pública tentando extorqui-lo e a denuncia, cumpriu uma obrigação cívica. A ética tem menos a ver com o ato de gravar do que com as circunstâncias e personagens envolvidas.

Kajuru podia gravar Bolsonaro? Penso que sim, e não apenas porque a palavra do presidente não pode ser levada muito a sério —o que torna toda gravação um ato de defesa. Altos cargos públicos vêm com alguns ônus. Um deles é o de não dizer nada que cause uma crise política. Quem viola esse princípio o faz por conta e risco.


Bruno Boghossian: Com manobra no Senado, crescem chances de CPI não dar em nada

Mudança abre caminho distrações que podem acabar poupando Bolsonaro na pandemia

A missão número um de Jair Bolsonaro era "mudar o objetivo" da CPI da Covid. Com a ajuda do Congresso, o presidente conseguiu. O Senado ampliou o foco da investigação e incluiu o dinheiro federal repassado aos estados. De quebra, parlamentares começaram a criar empecilhos para a realização das sessões. Na prática, cresceram as chances de a comissão não dar em nada.

Bolsonaristas já trabalham para que a CPI só exista no papel. O líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (MDB), quer que o colegiado só se reúna depois que a vacinação avançar. Ele espera ter o apoio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM), que era contra o funcionamento da comissão agora.

Se não for possível segurar o andamento dos trabalhos, a base governista tem outras saídas. A decisão de transformar a CPI numa investigação abrangente, como pediu Bolsonaro, abre caminho para manobras diversionistas que podem acabar poupando o presidente.

Com a ampliação de escopo, a comissão passa a incluir as ações de estados e municípios “no trato com a coisa pública” durante a pandemia. Isso significa que a CPI pode investigar praticamente qualquer despesa com verba federal em qualquer lugar do Brasil. É o suficiente para distrair senadores que não estiverem interessados em investigar Bolsonaro.

Os integrantes da CPI também ganham poder para mirar adversários políticos e desafetos. Aliados de Bolsonaro estão de olho em rivais do presidente nos estados, enquanto outros senadores, interessados em concorrer a governos estaduais em 2022, querem aproveitar para desgastar concorrentes locais. O Planalto deve se beneficiar da confusão.

A blindagem de Bolsonaro vai depender do comportamento dos 11 titulares da CPI. O governo não conseguiu escalar uma tropa de choque fiel, mas a comissão terá uma minoria de oposicionistas convictos e uma maioria de senadores do centrão ou de partidos sem alinhamento político claro. O Planalto tem muito a oferecer para esse grupo.


Ricardo Noblat: CPI da Covid pode virar a CPI do fim do mundo de Bolsonaro

Se não terminar em pizza, é claro

Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sabe-se como começa, mas não como termina. A da Covid, sequer se sabe como começará. Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, leu o pedido de abertura da CPI como mandou na semana passada o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal.

CPI é direito assegurado pela Constituição à minoria parlamentar. Mas no que depender da tropa aliada ao governo Bolsonaro dentro do Senado, ela não sairá do papel. Se sair, não será instalada até que passe a pandemia. Se for instalada antes, simplesmente não funcionará. Se funcionar, será sabotada até o fim.

Em sessão nesta tarde, o Supremo deve avalizar a decisão de Barroso que tanto irritou Bolsonaro, deixando-o em pânico. O principal objetivo da CPI é investigar erros cometidos pelo governo no combate à Covid. Secundariamente, poderá investigar erros de governadores e prefeitos no uso de verbas federais.

Faltam vacinas no país. Faltam remédios para a intubação de vítimas da doença em estado grave. Na maioria dos municípios, faltam UTIs, e os doentes são transferidos para municípios que as tenham. Acontece que nesses lugares a rede de UTIs está perto do colapso. E o número de mortes só faz crescer.

Salvo os ideológicos, nenhum parlamentar, deputado ou senador pouco importa, se presta a defender o governo de graça numa CPI, qualquer governo. Bolsonaro já é refém do Centrão, do qual depende  para aprovar projetos do governo no Congresso e barrar pedidos de impeachment que possam abreviar seu mandato.

Caberá ao MDB a relatoria da CPI da Covid. É o cargo mais importante. O senador Renan Calheiros (MDB-AL), aliado de Lula e do PT, deve ser o relator. A oposição ao governo e os partidos que se dizem independentes indicarão 7 dos 11 titulares da CPI. É um mau sinal para Bolsonaro. Certeza de encrenca feia.

O MDB tem um pé dentro do governo, mas quer pôr os dois. Se conseguir, não significa que apoiará a reeleição de Bolsonaro no ano que vem, longe disso. A tendência do partido é apoiar um candidato do centro (não confunda com Centrão), mas se ele não tiver chances de vencer, poderá se alinhar a Lula.

Nada pode haver de pior para um governo do que a abertura de uma CPI justamente no momento em que ele está mais fraco, e por ora, sem perspectivas de se recuperar. Se a CPI decolar e investigar a fundo o que deve, haverá chuvas e trovoadas em Brasília com um final imprevisível. Certas coisas serão inevitáveis.

Por exemplo: convocar para depor o atual ministro da Saúde e os três que o antecederam – entre eles, o general da ativa Eduardo Pazuello que saiu de lá insinuando que políticos do Centrão tentaram encher os bolsos nas negociações para a compra de vacinas. Um general sendo interrogado por senadores, já pensou?

Não deverá ser o único. Quanto foi gasto pelo Exército para produzir cloroquina receitada por Bolsonaro para tratamento precoce do vírus? Tratamento precoce para a doença jamais existiu. Quem deu ordem ao Exército para tal? O general Fernando Azevedo e Silva, ex-ministro da Defesa, talvez saiba.

Por que o sucessor de Luiz Henrique Mandetta, o médico Nelson Tech, foi ministro da Saúde por menos de 30 dias? O que o levou a pedir demissão? Não pôde nem montar sua equipe. Por que não pôde? E a história da vacina da Pfizer oferecida ao governo em junho do ano passado e recusada até o final de dezembro?

Se não terminar em pizza, a CPI da Covid tem tudo para no futuro tornar-se conhecida como a CPI do fim do mundo de Bolsonaro e de muita gente.


Elio Gaspari: Bolsonaro quer pizza de limão

Em geral, as CPIs resultam em fábricas de vento e a da pandemia promete vendavais

Bolsonaro pediu ao senador Jorge Kajuru que o ajude a fazer “do limão uma limonada” na Comissão Parlamentar de Inquérito da pandemia. O que ele quer mesmo é uma pizza. Noves fora a ameaça de “porrada”, a fala do capitão é uma enciclopédia bolsonarista:

Mania de perseguição: “Se não mudar o objetivo da CPI, ela vai vir só pra cima de mim”.

Havendo um problema cria-se outro: “É CPI ampla, investigar ministro do Supremo”.

Num momento, Bolsonaro soltou uma frase intrigante: “Se não mudar a amplitude, a CPI vai simplesmente ouvir o Pazuello”.

Qual é o problema de se tomar o depoimento do general que ele colocou no Ministério da Saúde? De uma hora para outra “ouvir o Pazuello” virou uma fonte de ansiedade.

Quem viu o empreiteiro Marcelo Odebrecht sendo tratado como um príncipe ao depor na CPI da Petrobras em 2015 sabe quanto há de teatro nas comissões parlamentares de inquérito que buscam fatos y otras cositas más. Odebrecht estava preso, seus malfeitos eram conhecidos e, ainda assim, informou que “não respeito delator”. Meses depois estava colaborando com a Justiça.

Em geral, as CPIs resultam em fábricas de vento e a da pandemia promete vendavais. O comportamento de Bolsonaro é público e algumas de suas atitudes já foram narradas pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta em livro. Nesse aspecto, além do depoimento desse ex-ministro, será informativo o de seu sucessor, Nelson Teich —ele poderá revelar por que se foi embora em menos de um mês.

O grande quadro está escancarado: e é um retrato de corpo inteiro de Bolsonaro. Ele chamou a Covid de “gripezinha” e combate o isolamento por uma mistura de ignorância com oportunismo que estava no seu código político já ao tempo em que era vereador do Rio, rachando apoios e patrimônios.

Asmodeu virá nos detalhes, todos relacionados com a gestão do Ministério da Saúde. Mandetta já contou que semanas depois de sua posse o Planalto pediu a cabeça de quatro colaboradores. Seria o jogo jogado, mas “quem articulou as exonerações e impôs os novos nomes mirava o controle de mais de oitenta por cento do orçamento do Ministério da Saúde.” Quem?

O general Eduardo Pazuello assumiu o ministério com seu pelotão de militares e deu no que deu. Na sua despedida, insinuou que tem algo a revelar. Contou que “a liderança política que nós temos hoje que nos mandou uma relação para a gente atender e nós não atendemos”. Ele acrescentou: “A operação de grana com fins políticos acontece aqui”. Novamente, quem?

Essa fala de Pazuello teria caído mal no Planalto. Por quê?

O general chegou a falar de um “grupo dos oito”, formado por colaboradores que levou para o ministério e passou a orquestrar sua fritura. Quem?

A certa altura, tentaram “ empurrar uma pseudonota técnica ” defendendo um medicamento. Cadê a nota? Que medicamento era esse?

Pazuello disse a congressistas que não deveriam falar mais em isolamento, foi ao Amazonas oferecer cloroquina quando faltava oxigênio e sua equipe mandou as vacinas de Manaus para Macapá. Isso mostrou que seus conhecimentos de logística, aplicados no Dia D, em vez de levar os Aliados a Paris, levariam os alemães a Londres.

Ele é um asterisco no manifesto bolsonarista mas, como Mandetta e Teich, tem o que contar.


Fernando Exman: Bolsonaro tenta refundar o governo

Executivo tem responsabilidade no aumento da miséria

O Supremo Tribunal Federal (STF) eclipsou os planos do presidente Jair Bolsonaro de refundar o governo a partir da recente reforma ministerial.

Acreditava-se, dentro do Executivo, que depois de mudanças na cúpula da Saúde essa nova configuração no primeiro escalão pudesse dar tempo suficiente ao governo para promover um rearranjo na base e construir os alicerces de uma aliança voltada à reeleição. Melhorariam também as relações com militares e com a comunidade internacional, ao passo que se tentaria dar novo impulso à coordenação entre as pastas com a troca na Casa Civil.

Problemas mais urgentes seriam também atacados. Uma preocupação dentro do governo é, por exemplo, com uma possível escalada da violência decorrente do crescimento da miséria, embora o próprio combate à fome tenha sido negligenciado.

Surgiram, então, as duas recentes decisões disparadas do STF. A primeira foi de autoria do ministro Luís Roberto Barroso, que instou o Senado a criar a CPI da pandemia. Dificilmente o governo não sairá alvejado da comissão parlamentar de inquérito, mesmo que ela amplie o seu escopo para investigar eventuais irregularidades ocorridas nos Estados e municípios que receberam recursos federais.

São amplos os instrumentos que os parlamentares terão para abespinhar Bolsonaro. Afinal, CPIs podem quebrar sigilos fiscais, telefônicos e bancários. Na história recente, muitas comissões foram instaladas e em nada resultaram. Mas tantas outras buscavam informações sobre determinados assuntos e, ao obterem dados sigilosos, tropeçaram em revelações mais preciosas.

Cabe também aos estrategistas do Planalto avaliarem o custo-benefício - além dos riscos - de se adiar a instalação da CPI da pandemia para o fim do ano. Esse é um movimento capaz de levar à sobreposição do plano de trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito ao calendário eleitoral.

O segundo petardo levou a assinatura da ministra Rosa Weber. Na segunda-feira, a poucas horas de os decretos presidenciais que ampliam o acesso a armas e munições começarem a valer, ela sustou trechos da nova regulamentação tão aguardada pela ala armamentista que apoia o governo.

Os decretos dividem a base eleitoral do presidente. Enquanto atiradores, caçadores e colecionadores esperavam uma postura até mais agressiva de Bolsonaro na flexibilização da regulação do setor, evangélicos se mantém contra qualquer investida nesta seara. É um tema delicado, mas do qual o chefe do Executivo demonstra que não abrirá mão.

Nesse caso, será interessante ver como o advogado-geral da União, André Mendonça, tentará se equilibrar entre a missão de defender os pontos de vistas do chefe e ainda sim ter o apoio das igrejas para ser o indicado “terrivelmente evangélico” à próxima vaga do STF. O caminho mais fácil que ele terá para percorrer acabará sendo a fundamentação segundo a qual a maioria da população já se manifestou em 2005 contra a proibição da comercialização de armas e munições e ainda hoje mantém majoritariamente essa posição.

Mendonça já precisou advogar sobre esse tema quando comandou a AGU pela primeira vez, antes de ser nomeado ministro da Justiça. Sua recolocação na posição original foi, inclusive, um dos lances centrais da estratégia de refundação executada no fim do mês passado.

O substituto, Anderson Torres, foi alçado do posto de secretário do Distrito Federal justamente em meio ao temor no governo de que a crise sanitária, depois de se tornar uma crise socioeconômica, possa ganhar os contornos de uma crise de segurança pública.

Torres é delegado da Polícia Federal e possui experiência na área, além de bom trânsito no meio político. Em seu discurso de posse, destacou que a Justiça e a Segurança Pública são a espinha dorsal da paz e da tranquilidade da nação, principalmente em meio a uma crise sanitária mundial com impactos na economia e na qualidade de vida dos cidadãos. Ele sublinhou que se deve garantir o “ir e vir sereno e pacífico”, para então emendar: “A Segurança Pública foi uma das principais bandeiras da sua eleição e ela voltará a tremular alta e imponente”. Foi um discurso direcionado ao setor, mas também para os agentes políticos.

Já a nomeação da deputada Flávia Arruda (PL-DF) pode ter o condão de manter Bolsonaro próximo do próprio PL e do PP, de onde o presidente pode tirar seu candidato a vice e garantir mais tempo de televisão para a campanha.

Bolsonaro gosta de dizer que foi eleito sem dinheiro e tempo de propaganda em 2018. Mesmo assim, até seus aliados concordam com a tese de que sua eleição resultou de uma conjunção de fatores de difícil reedição. O campo adversário busca se fortalecer nas redes sociais. E o presidente pode precisar se expor em debates e ter mais tempo de TV para defender as realizações de seu governo.

Até agora, porém, a reforma ministerial ainda não conseguiu acabar com a desarticulação crônica da administração federal, origem de grande parte dos desgastes sofridos pelo Executivo. O impasse relacionado ao Orçamento deste ano, por exemplo, é uma dessas turbulências gestadas dentro do próprio Executivo.

A preocupação de Bolsonaro com a possibilidade de o aumento da miséria provocar distúrbios sociais também se remete, em parte, a essas divergências internas.

É preciso pontuar que o governo demorou muito para editar uma medida provisória e estabelecer o novo benefício emergencial. Milhões de brasileiros receberão um auxílio emergencial menor e muito mais tarde do que suas famílias podem suportar. Os saques em dinheiro só terão início em maio. Quem nasceu em dezembro só poderá colocar as mãos no dinheiro em junho, e as últimas parcelas estão previstas para setembro. Isso não tem nada a ver com o que o STF decidiu sobre a autonomia dos entes subnacionais para combater a pandemia nem com as medidas de isolamento adotadas por governadores ou prefeitos. Os demais Poderes não podem ser culpados pela morosidade e desarticulação do Executivo.


Andrea Jubé: CPI testa casamento de Bolsonaro

Presidente dependerá mais do Centrão em 2022

Os manuais de biologia definem a simbiose como a relação entre duas espécies em que uma, ou ambas, se beneficiam da união. Se apenas uma das partes se favorece, o enlace descamba para o parasitismo.

Aplicando-se a biologia à política, a controversa CPI da pandemia colocará à prova o casamento do Centrão com o governo Jair Bolsonaro, e o tempo definirá a natureza dessa também relação simbiótica: mutualismo, comensalismo, ou, num cenário de esgarçamento dos laços - diante de eventual corrosão da popularidade presidencial -, parasitismo.

O apogeu dessa relação materializou-se na nomeação da deputada Flávia Arruda, do PL do Distrito Federal, para a Secretaria de Governo. A CPI que investigará responsabilidades do governo federal - mas também de governadores e prefeitos - na condução da pandemia colocará à prova a solidez do enlace e a habilidade da ministra estreante.

Se o Centrão tomar para si as rédeas da investigação, centrando fogo sobre os governadores, que entraram na mira graças à articulação de Bolsonaro, essa relação tende a se fortalecer, com a provável expansão dos domínios do bloco no governo, e fragilizando os militares.

Nessa hipótese, uma fonte miliar, com trânsito no Palácio do Planalto, vê até mesmo o ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, velho amigo de Bolsonaro, com a cabeça a prêmio, se o presidente for obrigado a reafirmar os laços com o Centrão em um “recasamento” - que aliás, está na moda.

Esse raciocínio parte da necessidade de Bolsonaro ratificar a aliança com o Centrão no ano que vem para a campanha da reeleição. “São os políticos que têm bagagem para conduzir o processo eleitoral, não os militares”, argumenta a fonte militar.

A mesma fonte observa que os três ministros palacianos - Fábio Faria (Comunicações), Onyx Lorenzoni (Secretaria-Geral), e Flávia Arruda (Secretaria de Governo) -, são pré-candidatos aos governos de seus Estados, respectivamente, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, e Distrito Federal. Faria é contabilizado como palaciano, porque despacha em dois gabinetes: no Bloco R da Esplanada, e no Planalto.

“Os políticos vão querer estar com o Planalto na mão. E o Bolsonaro precisará nessa hora dos políticos, não dos militares”, prossegue a fonte militar. “Dos militares, o general Braga Netto [novo ministro da Defesa] vai tomar conta. Por isso, o general Ramos terá dificuldade de ficar na Casa Civil”, conclui.

É nesse pano de fundo, com o propósito de ter o governo em mãos, verbas e cargos, que o Centrão vai para a CPI da Pandemia com a faca nos dentes, determinado a blindar o governo com um time de atacantes. O ponta-de-lança é o presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), aliado de primeira hora do Planalto. Ele tem na mira, o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), ex-aliado, que tentará apear do poder no pleito de 2022.

Mas será uma briga de profissionais, e cada sessão da CPI lembrará uma final de campeonato. Quatro vezes presidente do Senado, e líder da maioria, Renan Calheiros (MDB-AL) demarcou o espaço dos times no campo: a oposição será majoritária, com pelo menos seis dos 11 integrantes. Ele calcula que se o PSDB e o PSD indicarem quadros independentes, como Tasso Jereissati (CE), e Otto Alencar (BA), respectivamente, o bloco da oposição poderá somar até oito dos 11 votos.

O MDB só escalou profissionais: Renan e o líder da bancada, Eduardo Braga (AM). Como a maior bancada do Senado, os emedebistas invocam a prerrogativa de indicar o presidente ou o relator. “Depois que o Bolsonaro ajudou a esmagar o MDB nas urnas, só podemos fazer oposição ao governo”, vociferou Renan à coluna.

Um problema lateral é que o Centrão é um parceiro inconstante. Endossou ao lado de Davi Alcolumbre (DEM-AP) e Rodrigo Maia (DEM-RJ) a criação da outrora temida CPI mista das “fake news”, emplacando na vice-presidência o deputado Ricardo Barros (PP-PR. Como a política muda como as nuvens, meses depois, Barros virou líder do governo na Câmara. Quando (e se) a CPMI for retomada, Barros será um aliado na direção do colegiado.

Um dos autores do mandado de segurança para que a CPI da Pandemia seja instalada, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) acredita que o presidente Rodrigo Pacheco (DEM-MG) fará a leitura do requerimento hoje, abrindo prazo para as indicações dos integrantes do colegiado. Ele aposta na fusão dos requerimentos de investigação do governo federal, e dos governadores e prefeitos. “Não vejo dificuldade para isso, podemos trabalhar com subrelatores”, descomplica. Vieira não acredita que o Supremo Tribunal Federal module a liminar de Luís Roberto Barroso para retardar a instalação do colegiado para o fim da pandemia.

Renan acrescenta que a ampliação da investigação para governadores e prefeitos já é consenso, e não será obstáculo à instalação do colegiado. Ele duvida que Pacheco continuará protelando a CPI. “Não acredito que ele continuará pagando o preço desse desgaste, ele está se tornando cúmplice desse morticínio”.

Em 2005, Renan presidia o Senado quando teve de acatar determinação do STF para instalar a CPI dos bingos. A decisão partiu do então decano da Corte, Celso de Mello, que abriu o precedente hoje invocado por Barroso. Mello registrou em seu voto que as comissões de inquérito são direitos das minorias porque “as maiorias não precisam de CPIs”.

Na biologia, é o “comensalismo” que mais evoca a relação do governo, o “hospedeiro maior” ou “anfitrião”, com o “comensal menor”, que seria o aliado. Um exemplo dessa espécie de casamento na natureza são as hienas e os leões. Os primeiros se alimentam dos restos da caça dos grandes felinos.

Se a relação na política se deteriora, beirando o fim da aliança, assemelha-se gradativamente ao “parasitismo”. Neste caso, o parasita é o único a se beneficiar, sugando a energia do hospedeiro até o fim. Na natureza, os exemplos mais comuns são as pulgas e os carrapatos.


Ricardo Noblat: Bolsonaro coleciona derrotas na guerra contra a CPI da Covid

Um presidente em apuros

O presidente Jair Bolsonaro negou que soubesse que fora gravada sua conversa com o senador Jorge Kajuru (CIDADANIA) e que autorizou sua divulgação. Gravar conversa com presidente da República é crime, segundo ele. (Não é, mas deixa pra lá.) O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos) denunciou Kajuru ao Conselho de Ética do Senado que não se reúne há dois anos.

Kajuru disse que grava todas as suas conversas com políticos para poder se defender depois, caso digam que ele falou uma coisa que não tenha falado. Dispõe para isso de uma caneta-gravador que ganhou de presente. Disse que avisou, sim, a Bolsonaro, em um segundo telefonema, que divulgaria o conteúdo da conversa. E que o presidente não se opôs a isso.

Bolsonaro é presidente do baixo clero, como Kajuru é do baixo clero do Senado. Não se deve dar importância ao episódio, aconselham políticos experientes e ministros do Supremo Tribunal Federal. Valer-se de Kajuru como escada revela o crescente isolamento de Bolsonaro. Os dois formam uma dupla do barulho. Ambos se merecem. O país passaria muito bem sem eles.

Mas como ignorar que Bolsonaro, deputado do baixo clero por quase 30 anos, acidentalmente eleito presidente, governa – ou desgoverna – o país há 15 meses, e tem mais 20 pela frente? O fato é que ele perdeu a batalha inicial da CPI destinada a apurar os erros do seu governo no combate à Covid. Os senadores mantiveram suas assinaturas no pedido de convocação.

Para completar, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, ordenou a Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, que instalasse a CPI. É o que ele começará a fazer hoje. Restou a Bolsonaro, portanto, criar tumulto com o propósito de retardar o início da CPI, e uma narrativa a ser compartilhada com seus devotos mais radicais sempre dispostos a defendê-lo.

A conversa com Kajuru faz parte do tumulto. O pedido de convocação de outra CPI, essa para investigar as ações de governadores e de prefeitos durante a pandemia, também. Ocorre que o regimento interno do Senado, no seu artigo 146, diz que investigar ações de governadores e prefeitos não lhe cabe. Cabe às Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais.

Em 2014, para esvaziar a CPI que investigaria a roubalheira na Petrobras, Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, ampliou o seu alcance, determinando que também fossem investigadas supostas irregularidades em contratos relativos aos trens e metrôs de São Paulo e do Distrito Federal. A presidente da República era Dilma Rousseff, e Renan seu aliado.

A oposição acionou o Supremo, e a ministra Rosa Weber deferiu liminar determinando que a CPI fosse instalada com “objeto restrito”. Escreveu: “O procedimento adotado pelo eminente presidente do Senado Federal, ainda que amparado em preceitos regimentais, desfigura o instituto constitucional assegurado às minorias políticas”. E argumentou:

– Não se pode prever, ao certo, quais deliberações serão tomadas; mas é possível antecipar que, uma vez alterada a quantidade de fatos determinados objeto das investigações, o universo de deliberações e a dinâmica interna dessas já não serão os mesmos constantes da proposta original.

Seria tão simples Bolsonaro proceder como sugeriu o deputado Fábio Faria (PSD-RN), seu ministro das Comunicações.  Faria condenou a CPI, mas disse que se ela fosse instalada, ficaria provado que o governo Bolsonaro acertou em cheio no combate à pandemia. Ora, pois, vamos lá! CPI para salvar o governo e parar com essa história de que Bolsonaro é um genocida.


Eliane Cantanhêde: Bolsonaro tenta fazer, do limão, da CPI e das mortes, uma limonada

Presidente finge que não tem nada a ver com pandemia e faz chantagens contra ministros do Supremo, governadores e prefeitos

O ambiente está como o diabo e o presidente Jair Bolsonaro gostam: uma verdadeira bagunça, com a pandemia fora de controle, as mortes disparando e as vacinas e leitos acabando, mas todas as atenções de Executivo, Legislativo e Judiciário estão na CPI da Covid no Senado. Em vez de discutir e agir contra a pandemia, Brasília faz o que Bolsonaro quer: esquece a covid para privilegiar a guerra política.

Em conversa gravada com o curioso senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO), Bolsonaro resumiu sua estratégia: fazer do limão uma limonada. Finge que não tem nada a ver com pandemia – nem com o próprio governo e os erros do governo – e faz chantagens contra ministros do Supremo, governadores e prefeitos, enquanto compra apoios no Senado.

A sensação, porém, é de que a CPI vai pegar fogo contra Bolsonaro e o Ministério da Saúde, porque há uma consciência generalizada, dentro e fora do Congresso, de que os fatos, as falas e os resultados não admitem tergiversação nem jogar a poeira – e os mortos – para debaixo do tapete.

No meio, entre os pró e os contra a CPI, o plenário do Supremo poderá dar uma mãozinha para Bolsonaro amanhã, ratificando a liminar do ministro Luís Roberto Barroso que mandou instalar a CPI, mas ressalvando que o funcionamento depende de condições práticas e reuniões presenciais. Em resumo: o STF mantém a instalação da CPI, mas liberando os trabalhos depois da pandemia. Esquisito? Muito. Mas o que não é esquisito no Brasil hoje em dia?

Desde que Barroso determinou a instalação da CPI, ninguém mais fala nos erros criminosos de Bolsonaro na pandemia e que faço questão de frisar aqui: troca de ministros na pior hora, desdém ao tratar da crise e das mortes, péssimos exemplos para a cidadania, gastança com remédios inúteis e perigosos e desleixo ao contratar vacinas.

Assim, Bolsonaro vai fazendo a limonada. Dá o grito de guerra à arquibancada bolsonarista e não se fala de seus erros, só contra ministros do STF e de estender as investigações para governadores e prefeitos. Exemplo: em vez de cuidar de Queiroz, rachadinhas, funcionários fantasmas e mansões de R$ 6 milhões, o senador Flávio Bolsonaro está a mil por hora para enlamear os outros.

Então, a CPI é boa para Bolsonaro e ruim para seus adversários e todos os demais? Não! Hoje será a leitura da CPI, e é hora de organizar os times para anunciar os 11 titulares e seus reservas amanhã. Apesar das chantagens de Bolsonaro e de eventuais saídas heterodoxas do Supremo, é isso, a composição da comissão, que vai definir o principal: até onde a CPI irá.

Pode até resvalar para Estados e municípios, mas seu alvo principal é, evidentemente, Jair Bolsonaro. É ele, sem sombra de dúvida, o grande responsável pela tragédia, pela carnificina. A pandemia, como o nome já diz, atingiu o mundo todo, mas cada país cuidou de um jeito. Bolsonaro foi quem cuidou pior e o resultado está aí.

Uma CPI paralela ou a inclusão de governadores e prefeitos no escopo da própria CPI da Covid enfrentam obstáculos, porque, segundo seu regimento interno, o Senado não pode investigar Estados e municípios. Mas há um atalho para chegar lá naturalmente, pela própria dinâmica das investigações. Basta seguir o dinheiro federal e apurar se houve desvios.

Quanto ao impeachment e à CPI contra ministros do STF, é para fazer barulho e dar carne aos leões bolsonaristas contra as instituições e a democracia. A oposição grita “genocida” para Bolsonaro e os bolsonaristas gritam contra ministros do STF e Congresso. Mas o passado, o presente e os fatos condenam Bolsonaro. Ele personaliza os ataques contra Barroso, mas, sem defesa, não tem interesse nenhum numa guerra desse tamanho contra o Judiciário e Legislativo.