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Miguel Nicolelis: Sem vacina, sem seringa, sem agulha e sem rumo

Sem uma ação coordenada de todo o país, envolvendo medidas sincronizadas de isolamento social, bloqueio sanitário das rodovias e uma campanha nacional de vacinação, o Brasil não conseguirá derrotar a covid-19

Apesar de assemelhar-se a um refrão de sucesso de carnavais passados, o título da minha última coluna de 2020 certamente não tem qualquer ambição de servir como inspiração para alguma futura marchinha carnavalesca. Pelo contrário, ao tentar reproduzir o estilo literário predileto do último astrofísico-poeta da humanidade, o persa Omar Khayan, que viveu entre os séculos XI e XII, esta quadra sem rima rica tem como propósito expor, de forma nua e crua, a situação trágica vivida pelo Brasil, depois de nove meses de uma pandemia que nunca esteve sob controle das autoridades governamentais e que ameaça atingir níveis ainda maiores de casos e óbitos nas próximas semanas.

Além dos quatro itens, que fazem parte da “Lista dos Sem”, como a batizei, eu poderia continuar enumerando outras várias razões que transformaram o Brasil num verdadeiro navio à deriva, uma nau “Sem capitão”; um barco gigantesco que, “Sem comando”, se contenta em vagar às cegas num vasto oceano viral, à mercê de ventos e correntes fatais, que ameaçam conduzir este nosso Titanic tupiniquim, depois da maior crise sanitária da nossa história, para dentro de um redemoinho que pode culminar na maior catástrofe socioeconômica jamais vivida abaixo da linha do equador.

O meu alarme decorre de uma simples análise de risco do cenário atual. Por exemplo, apesar de inúmeros avisos prévios, mesmo antes das festas de final e ano, o Brasil já sofre com uma nova explosão de casos e óbitos de covid-19. Esta escalada de casos, gerada pelo afrouxamento das medidas de isolamento social, abertura desenfreada do comércio e pelas aglomerações eleitorais, desencadeou uma segunda onda de superlotação hospitalar em todo país, com algumas capitais atingindo taxas de ocupação de leitos de UTI acima de 90%. Sem qualquer plano de comunicação de massa para alertar a população sobre os riscos que, em razão das aglomerações geradas no período das festas de final de ano, esta nação enfrentará uma explosão ainda maior de casos e óbitos, como ocorrido no período após o feriado de Ação de Graças nos Estados Unidos, quando o “Sem governo” ―ou seria (des)governo?― abandonou sua população à própria sorte. Não é à toa, portanto, que boa parte do país hoje se orienta através do último boato de Whatsapp a viralizar nas redes sociais. Acima de tudo, entre outros crimes lesa-pátria cometidos em 2020, há uma total falta de informações confiáveis e recomendações apropriadas para orientar a população em como proceder para se proteger contra o coronavírus, antes da chegada de uma vacina eficaz e segura.

Mas os absurdos não param aí. No país do “Sem a menor ideia”, técnicos do Tribunal de COntas da União (TCU), depois de minuciosa auditoria, concluíram que não existe planejamento estratégico minimamente aceitável para a distribuição de equipamentos de proteção, kits de testes, bem como de seringas e agulhas, e de vacinas ―até mesmo porque ninguém sabe qual ou quais serão usadas― para todo o território nacional. Se tudo isso não fosse o suficiente para gerar alarme em Pindorama, mesmo depois de vários países terem proibido todos os voos, de passageiros e de carga, oriundos do Reino Unido, para evitar a propagação de uma nova cepa mais contagiosa de SARS-CoV- 2, que provocou o estabelecimento de novo lockdown na Inglaterra, o espaço aéreo brasileiro continua aberto, e nossos aeroportos continuam não checando os passageiros, permitindo desta forma que diariamente novos casos de viajantes infectados possam entrar no Brasil, sem qualquer tipo de controle sanitário.

Diante desta situação dantesca, o Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste publicou na última sexta-feira o seu Boletim de número 13. Nele, além da análise minuciosa da situação atual e futura de cada um dos Estados nordestinos, o comitê fez uma série de recomendações emergenciais para os nove governadores da região. Dentre elas, a mais urgente é a que os governadores nordestinos levem a seus colegas de todo o Brasil a proposta de criar, em caráter emergencial, uma Comissão Nacional de Vacinação, formada pelos principais especialistas na área, para atuar de forma independente do Ministério da Saúde e do Governo federal e criar um Plano Nacional de Imunização efetivo e seguro, a ser implementado em todo território nacional, através da ação conjunta de todos os Estados brasileiros. Esta proposta traz à luz do dia a verdade que ficou escondida em baixo do tapete durante todo o ano de 2020: sem uma ação coordenada de todo o país, envolvendo medidas sincronizadas de isolamento social, bloqueio sanitário das rodovias em todas as regiões do país, e uma campanha nacional de vacinação, o Brasil não conseguirá derrotar a covid-19 nem a curto prazo, nem a médio prazo. E o custo desta omissão será épico, em termos de centenas de milhares de vidas perdidas.

Depois de quase 200.000 mortes, não há mais nenhum tempo a perder se a sociedade brasileira deseja realmente evitar que no Natal de 2021 tenhamos mais de meio milhão de mortos como consequência daquela que já entrou para a história brasileira como a pandemia dos “Sem Noção”.

Miguel Nicolelis é um dos nomes com maior destaque na ciência brasileira nas últimas décadas devido ao trabalho no campo da neurologia, com pesquisas sobre a recuperação de movimentos em pacientes com deficiências motoras. Para a abertura da Copa de 2014, desenvolveu um exoesqueleto capaz de fazer um jovem paraplégico desferir o chute inicial do torneio. Incluiu recentemente à sua lista de atividades a participação no comitê científico criado pelos governadores do Nordeste para estudar a pandemia da covid-19. Twitter: @MiguelNicolelis


El País: Bolsonaro ignorou regras contra coronavírus e pode ter contaminado ao menos 76 pessoas

Presidente, que diz ter contraído a doença, mas não mostrou exame, transforma contágio em oportunidade para promover cloroquina. Em nota, presidente argentino ironiza colega brasileiro

Afonso Benites, El País

Jair Bolsonaro, o líder mais negacionista da pandemia no mundo democrático, está disposto a transformar o contágio pelo novo coronavírus - ele disse nesta terça-feira ter testado positivo para a doença - em um veículo de propaganda para a suas ideias a respeito da covid-19. O mandatário brasileiro seguiu insistindo que a infecção pelo novo vírus só é perigosa para idosos e pessoas com doenças prévias, e horas depois do anúncio, postou nas redes sociais um vídeo tomando a hidroxicloroquina, o remédio originalmente para artrite e lúpus que ele defende como capaz de curar a doença, apesar de admitir que não há comprovação científica para tal.

“Estou tomando aqui a terceira dose de hidroxicloroquina. Estou me sentindo muito bem. Estava mais ou menos domingo, mal segunda-feira. Hoje, terça-feira, estou muito melhor do que sábado. Então, com toda certeza, está dando certo”, disse, em vídeo postado no Facebook. “Eu confio na hidroxicloroquina e você?”, arrematou ele, que, como Donald Trump, tem defendido o medicamento em embates até com as próprias autoridades sanitárias de seus países. O Ministério da Saúde brasileiro, sob pressão de Bolsonaro, ampliou o uso da cloroquina no país, embora a OMS (Organização Mundial de Saúde) ainda espere resultados de estudos em larga escala para indicar o remédio como tratamento oficial na pandemia. Nos EUA, o FDA, órgão que regula as ações de saúde, revogou a autorização para a utilização deles nos hospitais do país por considerar “improvável” os efeitos das duas drogas contra a doença.

Bolsonaro, de 65 anos, parece disposto a acomodar seu discurso de minimização sobre a doença com a atual situação de contagiado. O cenário está longe de ser cômodo, em um país que está há quase dois meses sem ministro da Saúde e investe pesadamente na produção de cloroquina. Apesar de o presidente pregar a reabertura da economia e criticar as medidas de isolamento, o Brasil está longe de ter controlado a doença em todo o gigantesco território do país: a covil-19 já matou mais de 66.000 pessoas no Brasil. Se dá sinais de estabilização em São Paulo, por exemplo, ainda está em franca expansão justamente no Centro-Oeste, região onde fica Brasília, a capital federal, e por onde o presidente sempre circulou sem qualquer respeito às medidas de isolamento social.

É por isso que o contágio declarado de Bolsonaro pode ter atingido dezenas de pessoas. Dias antes de ser diagnosticado com a covid-19, o presidente da República se reuniu cara a cara com pelo menos 76 pessoas desde o dia 29 de junho. O período em que uma pessoa que está com a doença pode transmiti-la é de dois a seis dias antes do início dos sintomas, conforme dois médicos infectologistas consultados pela reportagem.

O presidente registrou indisposição, febre e tosse no domingo, dia 5. Se levar em conta dois dias antes o número de pessoas que se reuniram com o mandatário chega a 44. Os dados constam da agenda oficial do presidente, de imagens registradas por sua equipe de comunicação nesses encontros e das transmissões ao vivo que ele próprio fez em seus perfis nas redes sociais.

Ainda assim, o levantamento está subestimado, já que em várias das reuniões consta o nome de apenas uma pessoa, mas havia várias outras estavam presentes. Por exemplo, no dia 30 de junho, o encontro oficial foi com o presidente do time de futebol Palmeiras, Maurício Galiote. Mas é possível notar nas fotos publicadas pelo Palácio do Planalto dirigentes de ao menos mais oito clubes brasileiros. O mesmo ocorreu no encontro com o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Paulo Skaf. Há outras 11 pessoas que não foram nominadas na reunião. As que aparecem nas imagens oficiais é possível contabilizar. As demais, não.

Também não estão neste levantamento os familiares do presidente, as dezenas de apoiadores com quem ele se encontrou nos jardins do Palácio da Alvorada ao longo da semana ou os espectadores da cerimônia de ampliação no auxílio emergencial no dia 30 de junho, tampouco seus seguranças e funcionários que o acompanham no dia a dia ou os militares que estiveram no sobrevoo que fez no sábado passado em Santa Catarina.

Entre os dias 29 de junho e 7 de julho, quando confirmou que estava com covid-19, o presidente se encontrou com ministros, empresários, parlamentares, diplomatas, dirigente de clube de futebol, a vice-governadora de Santa Catarina, Daniela Reinehr, e o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Paulo Skaf. Em algumas dessas reuniões, Bolsonaro cumprimentou as pessoas normalmente, as abraçou e tirou fotos. Uma delas foi no encontro que teve com o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Todd Chapman, no dia 4 de julho, para comemorar a independência norte-americana.

Nesta terça-feira, ao anunciar para três emissoras de TV que estava infectado, Bolsonaro se afastou dos repórteres e cinegrafistas e retirou a máscara para que mostrassem o seu rosto e demonstrar que ele estava “muito bem”, segundo suas palavras. No momento em que fez esse anúncio, o Brasil registrava 1,6 milhão de infectados por coronavírus e 65.487 óbitos. Os dados são do Ministério da Saúde.

Depois que o presidente divulgou o resultado de seu exame, várias dessas pessoas informaram que também foram testadas, nenhuma delas informou se também contraiu a doença. “A recomendação é que só faça o teste quem apresentar os sintomas. Caso contrário, há chance de apresentar falso negativo”, disse a infectologista Rosana Paiva.

No meio político nacional e internacional, a reação ao exame do presidente foi imediata. Em mensagem irônica, o presidente da Argentina, Alberto Fernandéz, enviou uma nota de pesar a Bolsonaro. No documento, ele deseja pronto restabelecimento ao colega brasileiro. “Este vírus não distingue entre governantes e governados. Todos e todas estamos ameaçados e por isso os cuidados devem ser redobrados”, dizia trecho do documento. Por ser peronista, Fernandez é considerado um opositor por Bolsonaro.

Os opositores do presidente ressaltaram que a atitude negacionista dele e ao não respeitar o distanciamento social acabaram resultando em seu contágio. “Bolsonaro promoveu aglomerações. Vetou a obrigatoriedade das máscaras. Minimizou os efeitos da covid-19 diante de mais de 65 mil mortos. Hoje, após anúncio de seu teste positivo, tirou a máscara e expôs os jornalistas. De tão aliado do coronavírus, Bolsonaro e ele viraram um só”, criticou o líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (REDE-AP), em sua conta no Twitter.

Derrotado no segundo turno da eleição presidencial de 2018, o petista Fernando Haddad, também comentou o tema pelas redes sociais. “Lamento pelos mais de 1,6 milhão de infectados e pelo fato de termos entre nós o pior gestor de crise do mundo. Desejo que todos se restabeleçam, inclusive Bolsonaro”.

O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, afinou o discurso com seu pai sobre o uso da hidroxicloroquina, mesmo que não haja provas de que o medicamento funcione no combate à doença. “O presidente há de sair dessa, o tratamento com cloroquina é bastante eficaz no início da doença (e deveria estar disponível para todo brasileiro que necessitar)”, afirmou em seu Twitter.