Contardo Calligaris

Contardo Calligaris: A cavalo e sem máscara, Bolsonaro avança para seu triunfo, o triunfo da morte

Não usar máscara significa não ter medo de matar

Todos vamos morrer um dia. No mundo clássico, grego e romano, esta era sabedoria básica: para aprender a viver é bom se lembrar que não será para sempre.

Os cristãos, apesar de seu ódio pela cultura greco-romana, preservaram esse elemento da sabedoria clássica, atribuindo-lhe um sentido mais pobre.

Para os filósofos clássicos, a lembrança do destino mortal era um elemento crucial da condição humana e podia fundar uma moral da alegria: aproveite o dia de hoje, pois a vida não dura para sempre.

Os cristãos fizeram dessa lembrança uma forma de chantagem moralizante: não peque, reprima-se porque você pode morrer a qualquer momento, e é melhor estar preparado, de modo a ser “recompensado” por suas renúncias.

Seja como for, nossa cultura adotou mil formas de “memento mori” (lembre-se da morte). Da Idade Média até o século 19, as caveiras pipocaram em cantos inesperados de qualquer tipo de imagem —só para lembrar. E houve duas grandes celebrações da presença constante da morte: a dança macabra e o triunfo da morte, que surgiram, ambas, a partir do século 14.

Nas danças macabras, os esqueletos levam todos, humildes e poderosos, até a tumba. O triunfo da morte mostra quer seja o desfile, quer seja a cavalgada da morte com sua comitiva, ceifando os que ela encontrar —as imagens se tornaram mais cruentas a partir do século 14 avançado, depois da grande peste.

Como disse, a mensagem cristã é sempre a mesma: prepare-se, viva em função do julgamento na hora de sua morte. Eu acho o lembrete pagão (lembre-se e aproveite, não perca seu tempo) mais saudável do que o cristão (mais saudável significa menos raivoso contra os eventuais prazeres da vida).

Também me pergunto se não seria mais sábio ainda invejar os outros mamíferos superiores, que, ao que tudo indica, sabem da morte que os espera mas não fazem disso um grande tema de reflexão —vivem por um tempo, e está bem assim.

O mais lindo exemplo de triunfo da morte é do século 15 e está no Palazzo Abatellis, em Palermo (na Sicília, Itália).

Quem teve ou terá a chance de frequentar um pouco o Instituto Warburg, na Universidade de Londres, sabe que é o lugar ideal para se pesquisar a recorrência das imagens que nossa cultura adota para significar seus grandes temas, sempre de uma maneira que é, ao mesmo tempo, recorrente e diferente.

Pois bem, daqui a um século ninguém vai se lembrar do que aconteceu no Brasil em 2020, mas há uma imagem que talvez permaneça e seja repertoriada no Instituto Warburg como mais um extraordinário exemplo do triunfo da morte. É uma fotografia de Pedro Ladeira, da Folha, que mostra Bolsonaro montado num cavalo da Polícia Militar, durante uma manifestação de apoio ao governo. Ele vem na nossa direção, com sua comitiva de cavaleiros.

É difícil não notar a imperícia de Bolsonaro: ele está com a careta de limão azedo de quem não consegue deslizar naturalmente na sela e, pior para a boca do cavalo, está com ambos os cotovelos bem abertos, como se precisasse se equilibrar. Sugestão: se ele quiser repetir a experiência, seria bom que pedisse umas aulas discretas para Mourão, que sabe montar. Seja como for, Bolsonaro parece ser sacudido na sela como um corpo totalmente desengonçado, ou seja, exatamente como um esqueleto.

A imperícia do cavaleiro é parte da composição. Na comitiva, todos sabem montar e todos usam uma máscara de proteção preta. O único que não sabe montar, Bolsonaro, não usa máscara. Alguns imaginam que não usar máscara signifique não ter medo de se contaminar e de morrer, mas não é assim: não usar máscara significa não ter medo de contaminar os outros, ou seja, não ter medo de matar.

Sacudido como um esqueleto, Bolsonaro avança para seu triunfo, o triunfo da morte. As narinas absurdamente dilatadas do cavalo que ele monta são a reação normal à dor que lhe inflige a imperícia do cavaleiro, mas, com um esforço poético, também assinalam a dor e o furor do cavalo pela morte que, com seu cavaleiro, ele vem trazer ao mundo.

O comentário de Bolsonaro diante das vítimas da Covid-19 —“todos nós iremos morrer um dia”— poderia ser sábio, como sempre foi a lembrança da morte que nos espreita. Mas o comentário pode ser só cínico e odioso quando ele vier de quem for cúmplice da morte prometida —e tanto faz que a cumplicidade se dê por ignorância, por cálculo político ou simplesmente por bravata.

*Contardo Calligaris é psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus)