Câmara

Rosângela Bittar: Gênio ou...

Ao submeter o Congresso aos seus desígnios, Bolsonaro logrou vantagens inesperadas

Contra fatos não há argumentos, diria o debatedor preguiçoso. Por isto, resumidamente: não foi pequena a conquista política de Jair Bolsonaro neste início do terceiro ano de sua inoperante gestão presidencial.

Ao submeter o Congresso aos seus desígnios, ungindo, a preços da União, os que viriam a ser os presidentes da Câmara e do Senado, o presidente logrou outras vantagens inesperadas. Implodiu um partido forte, o DEM, que transitou, em apenas 60 dias, do sucesso absoluto (eleições municipais) ao fracasso retumbante (rendição ao governo).

Ao fazê-lo, destruiu duas articulações já avançadas de seus adversários na disputa eleitoral de 2022.

Numa delas, atingiu os arranjos para o lançamento de uma candidatura viável de centro, dos quais o DEM era interlocutor privilegiado. Por esta fenda foram arrastadas as candidaturas de João DoriaLuiz Henrique Mandetta e Luciano Huck.

Noutra, conseguiu desafinar as cordas de uma orquestração para união das esquerdas na sucessão. Com a adesão do PT ao arrastão no Senado soou o alarme na praia onde devia estar o ex-presidente Lula.

Ordenou a Fernando Haddad se declarar candidato do PT à sucessão de Bolsonaro, de forma a guardar novamente sua vaga enquanto espera decisões judiciais.

O recado à militância e às bancadas foi, assim, entendido: nada de união, o PT terá candidato próprio. Com apenas um telefonema Lula ajudou Bolsonaro a firmar precocemente a polarização que ele vinha tentando, sem sucesso, reconstruir, para ser novamente o beneficiário do voto antipetista.

Dois candidatos desta frente reagiram. Ciro Gomes acusou a presunção petista de achar que um aceno seu à esquerda seguirá na direção apontada. Guilherme Boulos foi mais direto. Lembrou ao ex-presidente que ele transgrediu a filosofia da incipiente união: primeiro, o projeto conjunto, depois o nome do candidato.

Com este espetacular resultado, Jair Bolsonaro ainda não pode anunciar a conclusão de sua trama de espertezas. Falta eleger a deputada extremista Bia Kicis presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. A indicação foi imposta na mesa de negociação presidida pelo general Luiz Eduardo Ramos.

Implícitas nela, as fixações bolsonaristas para atender a freguesia de sua agenda de costumes, ou de maus costumes, para ser mais precisa. Caberá à deputada extremista submeter a maioria da sociedade às ansiedades do seu grupo íntimo.

Kicis encarna um repertório de radicalismo, reacionarismo, golpismo, que sintetiza o ideário dos grupos que o presidente quer favorecer nas decisões do Parlamento. No que dependia de sua capacidade de impor, Bolsonaro agiu sem limites. Estão aí as ruínas dos ministérios da Educação, da Saúde e do Meio Ambiente.

O controle da CCJ pela extremista mergulhará o País em debates que, obrigatoriamente, liberarão ódios, frustrações, confrontos, meandros onde ela, pregadora do fechamento do Congresso e da extinção do Supremo, prefere se ambientar. Numa ordem arbitrária se discutirá da ruptura com a volta do AI-5, como defende Eduardo Bolsonaro, à liberação do mercado já descontrolado de armas e munições, como quer Carlos Bolsonaro.

A excitação de temas marginais, que atraem proselitismo religioso por privilégios e concessões, por exemplo, ficará na conta dos 68% dos votos evangélicos que foram para Bolsonaro, já no primeiro turno, e precisam com ele ficar.

Dominado neste momento por sinais de volúpia do poder, Bolsonaro, ao escolher a deputada extremista, está ainda reforçando sua proteção. Desconfiado da natureza dos políticos do Centrão a quem entregou o poder, Bolsonaro quer ter na CCJ uma executiva fanática para barrar as CPIs da Pandemia e das Fake News, além do impeachment, caso o presidente da Câmara caia em tentação.

Seria Bolsonaro um gênio? Ou...


Elio Gaspari: A teimosia ignorante de Bolsonaro

Imaginar que seu governo seja capaz de organizar um plano coerente, como o Bolsa Família, é querer demais

Jair Bolsonaro administra a própria ignorância com o pior dos temperos, a teimosia. Em março passado ele disse que a Covid-19 era uma “gripezinha”, vá lá que fosse, os mortos em Pindorama eram apenas cinco. Em dezembro, ele disse que a pandemia estava no “finalzinho” (os mortos passavam de 150 mil) e um mês antes classificara a segunda onda de contágios de “conversinha”. Veio a tragédia do Amazonas, os mortos já são mais de 233 mil, e a média móvel ficou acima de mil por dia por mais de duas semanas. Conversinha?

O ministro da Saúde, um general da ativa, gosta de brigas. Seu secretário-executivo, um coronel, disse que o governador João Doria estava “sonhando acordado” quando anunciou que a vacinação começaria em janeiro no seu estado. Começou.

Bolsonaro acredita em muitas coisas. A cloroquina ajuda contra a Covid-19, a Amazônia não pode ter queimadas porque é úmida, e a eleição americana foi fraudada. Todas essas crenças têm devotos e, salvo os agrotrogloditas que tocam fogo na mata, nenhum deles causa grandes prejuízos aos outros. No caso da pandemia, a superstição presidencial causa danos. O coronel do Ministério da Saúde talvez não tivesse pulado na jugular de Doria se o Planalto falasse outra língua. Talvez o general Pazuello também não saísse por aí com sua maleta de cloroquina.

O estrago feito, feito está. A eleição para as presidências do Senado e da Câmara mostrou que Bolsonaro não está condenado a perder todas. Ele pode ganhar mais uma: basta esperar o dia em que começará a vacinação dos sexagenários e, em vez de ir a uma padaria numa de suas sortidas cenográficas, para entrar no fim de uma fila de vacinação.

Será um gesto de humildade, exemplo para sua infantaria e desestímulo a seus guerreiros sem causa.

O capitão encantou-se com a popularidade que lhe trouxe o auxílio emergencial e agora está correndo atrás de uma forma de alívio social para as vítimas da crise econômica agravada pela “gripezinha”. Melhor assim, até porque viu sinais de fumaça que poderiam lhe custar um retorno antecipado ao condomínio Vivendas da Barra.

Imaginar que seu governo seja capaz de organizar um plano coerente, como o Bolsa Família, é querer demais. Escravizado pela marquetagem, seu projeto tem um slogan incompreensível — Benefício de Inclusão Produtiva — e vem sendo concebido como uma árvore de Natal de jabutis para serem digeridos pelo Congresso.

A ideia de um benefício acompanhado de contrapartidas voluntárias perdeu-se na confusão da marquetagem. Afinal, um governo que se apresenta como se fosse capaz de fazer um “Plano Marshall” brasileiro é capaz de tudo. Se o general Braga Netto, chefe da Casa Civil e pai da marca de fantasia, levasse uma ideia dessas ao general George Marshall, chefe do Estado-Maior do Exército americano durante a Segunda Guerra, seria atingido por um dos acessos de fúria daquele grande chefe militar. E as broncas de Marshall eram mais pesadas que a de Paulo Guedes: “Não chamem de Plano Marshall, porque revela um despreparo enorme”.

Por falar no general Marshall, vale repetir a orientação que ele deu ao diplomata George Kennan quando o chamou para dirigir o planejamento político do Departamento de Estado: “Evite trivialidades”.

Se Bolsonaro e suas falanges evitassem trivialidades, o governo seria outro.


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro ganhou fôlego

Jair Bolsonaro ganhou fôlego. Apesar do desastre na gestão da pandemia, o presidente recuperou força no Congresso e afastou, ao menos por ora, o fantasma do impeachment. Seus adversários, que precisavam se organizar para incomodá-lo, queimam energia com intrigas e guerras fratricidas.

Em poucos dias, a ideia de uma frente ampla virou miragem. No campo da centro-direita, o fracasso de Baleia Rossi foi o menor dos males. Partidos como DEM, PSDB e MDB, que ensaiavam se distanciar do bolsonarismo, parecem mergulharar numa espiral de autodestruição.

A briga no DEM é a mais ruidosa, devido à troca de insultos entre Rodrigo Maia e ACM Neto. No entanto, as outras legendas não estão menos divididas. No PSDB, o governador João Doria passou a enfrentar oposição aberta. O grupo de Aécio Neves, que ressurgiu das cinzas como aliado do Centrão, agora ameaça melar suas ambições presidenciais.

No MDB, articula-se um movimento para tirar a burocracia partidária das mãos de Baleia. Viciado em cargos, o partido poderia acabar no colo do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha. Ele construiria a ponte para um futuro governista, alinhado aos interesses eleitorais do capitão.

O arrastão no Congresso também fez estragos na esquerda. Pela primeira vez, o PT se dividiu na eleição da Mesa Diretora da Câmara. A deputada Marília Arraes se aliou a Arthur Lira para disputar a segunda-secretaria, que distribui medalhas e passaportes diplomáticos. Levou o cargo e desmoralizou a burocracia petista.

Depois da derrota, o ex-presidente Lula indicou Fernando Haddad para concorrer ao Planalto em 2022. Sem ouvir ninguém, irritou correligionários e aliados tradicionais do partido. Guilherme Boulos, do PSOL, pôs o dedo na ferida: antes de apresentar nomes, a oposição precisa discutir projetos.

Sem isso, Bolsonaro terá um caminho mais fácil para a reeleição.


Vinicius Torres Freire: Se barrar auxílio, Bolsonaro cria crise com plano de governo do centrão

Novo comando do Congresso quer criar novo benefício mesmo sem corte de outra despesa

Se quiser evitar uma crise precoce com o novo comando do Congresso, o governo de Jair Bolsonaro vai ter de engolir a criação de um novo auxílio emergencial sem contrapartida de corte de outras despesas, ao menos de imediato.

Seria, no entanto, uma solução do gosto de Bolsonaro, embora não de Paulo Guedes.

A oferta de contrapartida do centrão, por ora, é aprovar “reformas” sem custo político, tal como a autonomia do Banco Central, que já foi para o forno, e outras medidas regulatórias setoriais (por exemplo, a lei do gás, do petróleo, talvez do setor elétrico).

Se o comando novo do Congresso azeitar a relação com suas bases, se o governo não confrontar o centrão e a popularidade Bolsonaro não for para o vinagre, é possível aprovar também uma reforma administrativa para as calendas e algum remendo mais duradouro, mas procrastinado, de aperto fiscal.

É esse o programa para 2021. Líderes partidários próximos de Artur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, e de Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, dizem que o projeto do novo auxílio será pautado, ponto, e apenas vai cair se houver grande resistência no chão do Congresso, o que é bem improvável.

As dúvidas maiores entre os parlamentares:

1) saber qual instrumento utilizar para aumentar a despesa sem estourar o teto de gastos na letra da lei (se por crédito extraordinário, emenda constitucional de “calamidade” ou variante de “orçamento de guerra” etc.);

2) definir o critério de acesso ao benefício;

3) em quanto aumentar a meta de déficit no Orçamento de 2021.Quanto maior seria o déficit por causa do novo auxílio? O governo imaginava não gastar mais de R$ 20 bilhões (três parcelas de R$ 200 para algo em torno de 30 milhões de pessoas).

Há parlamentar com voz na nova ordem para quem deve ser mais, talvez R$ 25 bilhões.A aprovação do projeto de auxílio não estaria vinculada à redução imediata de qualquer outra despesa, o que não quer dizer que alguma compensação (não necessariamente financeira) possa ser acertada para “depois”.

No fim do ano passado, a prorrogação do auxílio foi para o vinagre porque o Ministério da Economia e o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), queriam compensação em redução de despesa ou método de aperto fiscal mais duradouro.

Entre as opções estavam redução de salários e jornada de servidores, fim do abono salarial e fim do reajuste obrigatório dos benefícios da Previdência e dos gastos mínimos em saúde e educação. Foi quando Bolsonaro matou a conversa com aquele “não posso tirar de pobres para dar para paupérrimos”.

Os novos líderes também acham inviável “colocar os penduricalhos do Guedes” no novo auxílio, nas palavras de um deputado do centrão, tal como exigir cursos profissionais dos novos auxiliados. Não negam que se possa aprovar algo parecido com a “carteira verde amarela” (emprego quase sem direitos trabalhistas de Guedes), mas também não associam tal projeto à renovação do auxílio.

Nova CPMF, a fim de evitar déficit maior? Até pode ser. Mas Bolsonaro não quer aumento de imposto.Os novos líderes do Congresso parecem muito firmes no que dizem, mas haverá conflito, que dependerá da resistência de Guedes e do tamanho do salseiro que possa ocorrer na praça financeira.

​Talvez não seja grande coisa, se não exagerarem no tamanho do auxílio. Muito bancão já dava de barato desde o ano passado que viria um “fura-teto” de algo entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões em 2021, por causa da persistência da epidemia.Vinicius Torres Freire

*Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).


Cristovam Buarque: É preciso saltar

O Brasil assiste, nestes dias, às tragédias da epidemia e da educação, e das duas entrelaçadas asfixiando o futuro do país. Mas o presidente da República apresentou ao Congresso Nacional ações que deseja aprovadas como seu legado ao futuro sem a presença desses assuntos. O presidente quer que o Brasil tenha milícias com indivíduos cada vez mais armados, substituindo polícias e Forças Armadas. Ele propõe também reduzir a proteção aos nossos povos indígenas e inocentar previamente policiais que matam civis durante operações.

Ele não põe a educação como prioridade, salvo desobrigar os governos de oferecerem escola e transferir essa responsabilidade para que as famílias possam dar instrução em casa. Ignora 50 milhões de crianças em idade escolar cujas famílias não têm condições de educar os filhos em casa, como era no período medieval, com tutores, e ainda despreza o futuro da nação a ser construído por elas.

A análise das propostas do presidente assusta pela ausência de preocupação com a educação nos dois anos iniciais do governo. A ponto de isentar importações de armas e taxar importação de livros, porque seus ministros dizem que livros são comprados por ricos e armas por pobres. Se tivesse interesse em fazer com que o Brasil desse o salto na educação, ele teria apresentado as propostas já conhecidas, mas é forçoso dizer que seus antecessores também não quiseram pôr em prática. Apresentar uma estratégia para que em alguns anos, ou décadas, o Brasil atinja duas metas: ter um sistema educacional com máxima qualidade e que a educação tenha a mesma qualidade, independentemente da renda e do endereço da criança. Para tanto, seriam necessários alguns passos.

É preciso concentrar o trabalho do MEC na educação de base. Instalar uma agência para a proteção da criança e do adolescente capaz de cuidar desse público em todos os setores como saúde, cultura e bem-estar. Educação é mais que um direito de cada brasileiro, é também o vetor fundamental do progresso, sobretudo nestes tempos da economia e segurança nacional baseadas no conhecimento e a justiça social dependente da distribuição de conhecimento a todos, com a mesma qualidade.

É necessário retomar a implantação de um sistema nacional de educação de base, com proposta de adotar as escolas das cidades sem condições de oferecer a educação que suas crianças necessitam e merecem. Assumir para o governo federal a responsabilidade pela educação de base nas cidades que assim desejassem e na velocidade que os recursos federais permitirem, enviando professores de uma carreira federal, muito bem remunerados, selecionados com rigor depois de cuidadosa formação,

todos com dedicação exclusiva à escola onde estiverem lotados, aceitando substituir a estabilidade plena por estabilidade com responsabilidade, sujeita à avaliação periódica.

 Nessas cidades, as novas escolas seriam construídas com as instalações necessárias no padrão das escolas federais, especialmente as militares federais. Essas escolas iniciariam a evolução das atuais “aulas teatrais”, do professor com quadro e giz, para “aulas cinematográficas”, onde o professor utilizaria bancos de dados e de imagens. Todas as escolas das cidades adotadas teriam horário integral.

É possível fazer isso em dois anos em algumas cidades pequenas e, em 20 ou 30 anos, em todas as escolas do Brasil para todas as crianças brasileiras. É possível e é preciso. Os governos anteriores deram passos proativos, mas tímidos ainda na educação de base.

Ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil foi melhorando sua educação, mas aumentando quatro brechas que nos fazem melhorar ficando para trás: brecha entre a educação dos ricos e pobres, entre cidades ricas e cidades pobres, entre os outros países e o Brasil e entre o que é preciso conhecer e o que é ensinado.

O atual governo parece decidido a piorar nossa educação. Os governos anteriores optaram por apenas melhorar, não saltar. O Brasil precisa interromper a marcha insana do atual governo sacrificando o progresso, a segurança e a sustentabilidade do país, mas também substituir a melhoria lenta, que nos deixa para trás, e adotar uma estratégia que permita saltar aos padrões de qualidade das melhores do mundo, com equidade para todas as crianças.

Para dar o salto necessário precisamos saltar este governo. Mas a simples substituição dele não basta se os próximos vierem com a mesma perspectiva de apenas melhorar nos deixando para trás e com brechas ampliadas.

*Cristovam Buarque, Professor Emérito da Universidade de Brasília


Monica de Bolle: Índia, Rússia e China reinventaram a economia com foco na saúde pública para a covid-19

Cabe pensar como os países devem se organizar para não apenas se adequar à nova realidade, mas também para aproveitar as oportunidades que ela oferece

Nesses primeiros dias de fevereiro a Anvisa suspendeu a exigência de que ensaios clínicos de fase III sejam conduzidos no país para qualquer empresa farmacêutica que queira solicitar o uso emergencial de vacinas. Diferentemente do que circulou, a agência não deixou de exigir os ensaios de fase III, que nos fornecem as informações sobre a segurança e a eficácia das vacinas, sendo, portanto, críticos. O que a Anvisa fez foi remover a exigência de que eles sejam feitos em território nacional. A decisão produz efeitos de pronto. Abre espaço para que o Governo negocie a compra de mais doses de outras vacinas, ampliando o leque de imunizantes disponível à população.

O Ministério da Saúde, por exemplo, está em vias de negociar a compra de doses da vacina Sputnik V, produzida pelo Instituto Gamaleya, da Rússia, e da Covaxin, produzida pelo laboratório Bharat Biotech, da Índia. A Sputnik V jáestá sendo usada em cerca de 16 países, embora os ensaios de fase III ainda estejam na fase final de conclusão. A Índia, por sua vez, começou a vacinar sua população com a Covaxin, vacina de vírus inativado (como a Coronavac), mesmo sem os dados dos ensaios clínicos. Caso a Anvisa venha a aprovar o uso dessas vacinas —e espero que os faça tendo disponíveis os dados dos ensaios de fase III—, o Brasil passará a usar vacinas de três países emergentes com os quais compunha os BRICs: China, Índia, Rússia.

Tenho pensado muito na importância desses três países nas campanhas de vacinação dos países emergentes, que não tiveram acesso às vacinas gênicas, as da Pfizer e da Moderna, ou mesmo a outros imunizantes. É fato documentado, inclusive por mim e coautores em artigo recém-publicado pelo Peterson Institute for International Economics, que os países ricos adotaram a estratégia de comprar o máximo de doses que podiam de tais imunizantes, sem dar muita atenção à necessidade de cooperação global. Nesse contexto, países como Rússia, China e Índia perceberam a saúde pública como eixo reconfigurante da economia e viram nessa reconfiguração a oportunidade de serem fornecedores de vacinas para o resto do mundo, em que a escassez vacinal é a realidade.

O movimento dos três países suscita outras inquietações. A pergunta que todos se fazem é: quando a pandemia irá acabar? Penso, no entanto, que a pergunta é equivocada. Não temos resposta para ela, o que ficou ainda mais evidente com o surgimento de variantes virais preocupantes, as chamadas VOCs (Variants of Concern). O SARS-CoV-2, o vírus causador da covid-19, é ardiloso. O mais provável é que tenhamos de lidar com ele por tempo prolongado, atualizando vacinas à medida que ele encontre novas formas de escapar às nossas respostas imunológicas. Desse ponto de vista, podemos passar de uma pandemia aguda para uma pandemia crônica, ou seja, talvez tenhamos de aprender a conviver com o vírus e suas inevitáveis novas formas. Foi assim com outro vírus causador de doença distinta, a aids. Embora muitos não pensem tanto no assunto hoje em dia, a aids ainda é uma pandemia de acordo com as definições da Organização Mundial da Saúde (OMS). A diferença é que passamos de uma pandemia aguda para uma crônica.

Sendo esse o cenário adiante de nós, cabe pensar como as economias devem se organizar para não apenas se adequar à nova realidade, mas também para aproveitar as oportunidades que ela oferece. Porque, sim, há muitas oportunidades nesse cenário, como mostram no presente as ações da Rússia, da China, da Índia.

Como disse, os três países reorganizaram sua economia com centro na saúde pública, e isso faz sentido por motivos diversos: da segurança nacional à proteção social, da ordenação dos gastos públicos ao meio ambiente. No caso do meio ambiente, ter a saúde pública como eixo de políticas públicas significa garantir a existência de uma rede abrangente de saneamento básico, reduzir a poluição do ar, as emissões de carbono, preservar as reservas naturais para, inclusive, evitar o contato com novos vírus zoonóticos, aqueles capazes de pular espécies chegando a nós.

No caso do Brasil, não faltam vantagens comparativas para uma reorganização da economia nesses moldes. Temos um sistema de saúde público bem montado, dispomos de recursos naturais, possuímos alguma capacitação tecnológica. Nossas competências e experiências sanitárias sobram, já tendo sido motivo de orgulho nacional. A reorientação da nossa economia para a saúde pública sob o pano de fundo de uma pandemia crônica possibilitaria o renascimento da nossa indústria farmacêutica, voltada para as necessidades domésticas e para o abastecimento do mercado internacional, como têm feito a Rússia, a Índia, a China.

Novos empregos seriam criados, assim, na indústria e se abririam chances reais de inserção no comércio internacional, nas cadeias de valor ligadas à saúde. Tal inserção, por sua vez, ajudar-nos-ia a ampliar as possibilidades de saltos tecnológicos, que hoje inexistem. Economias voltadas para a saúde necessitam de serviços diversos, que vão de cuidadores e acompanhantes a profissionais de alta qualificação. O setor de serviços, tão abalado pela pandemia, teria a oportunidade de se reerguer a partir desse eixo, sobretudo com as necessidades que já surgem. São muitas as pessoas afetadas por sequelas de covid-19 e a elas muitas mais se somarão. Essas pessoas precisarão de atendimentos diversos.

Deixaríamos de fazer as reformas necessárias para o país? Pelo contrário. Faríamos essas reformas, agora com objetivo claro: sustentar e aprimorar o eixo central da saúde pública. O objetivo da reforma administrativa? A saúde pública. O objetivo da reforma tributária? A saúde pública. O objetivo de outras reformas fiscais? A saúde pública.

A pandemia nos tem apresentado muitas tragédias, dificuldades, dilemas, conflitos. Em meio à gestão de uma crise humanitária aguda, não é fácil elaborar o que sobrevirá. Mas é muito importante começar a fazê-lo, e isso implica abrir mão dessa espécie de pensamento mágico de que a pandemia vai acabar. A pandemia aguda, sem dúvida, acabará. Mas dela virá a pandemia crônica, essa que nos oferece o desafio e a oportunidade de uma transformação real da economia brasileira. A economia do cuidado é aquela que tem na saúde pública o eixo central e que se desenha explorando a reconfiguração do mundo que o vírus nos está apresentando. É claro que não acredito que o Brasil irá trilhar esse caminho nos próximos dois anos, com um Governo antibrasileiro. É mais provável que o país seja testemunha do que outros farão para pôr a saúde pública no centro das suas políticas. Mas quem sabe se os assistindo dessa vez, pela primeira vez, nós não nos articulamos para aproveitar a oportunidade visível, mesmo que tardiamente.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins e pesquisadora-sênior do Peterson Institute for International Economics.


Alon Feuerwerker: Instabilidade ou estabilidade?

Vitoriosas as candidaturas apoiadas pelo Planalto na eleição das mesas do Congresso Nacional, abriu-se o debate sobre a solidez da aliança entre Jair Bolsonaro e o assim chamado centrão. O discurso corrente é o pacto tender à fragilidade, pela contradição entre o programa liberal e austero, capitaneado pelo ministro da Economia, e uma dita tendência gastadora e estatista da coalizão parlamentar vencedora em 1º de fevereiro.

Ou seja, o vetor dominante seria de instabilidade.

Antes de entrar nessa discussão, vale notar que a “frente ampla” antibolsonarista mostrou bem mais vigor nas páginas da cobertura política pré-eleitoral do que na urna eletrônica propriamente dita. Arthur Lira (PP-AL) teve cerca de quinze a vinte votos além do que lhe davam as medições mais calibradas, mas Baleia Rossi (MDB-SP) recolheu no mínimo uns cinquenta a menos. Que provavelmente vazaram na maior parte para candidatos sem chance.

Ao final, a esmagadora maioria dos votos de Rossi vieram dos partidos “de oposição mesmo”, da esquerda e da rotulada centro-esquerda. A direita e a assim chamada centro-direita ficaram com Lira. A ideia de uma coligação tática entre, vamos simplificar, a esquerda e setores antibolsonaristas da direita não passou nem da fase de grupos neste primeiro teste. E aí irrompeu, como habitual, a explicação mais fácil: as verbas e os cargos.

E disso nasceu a suposição de que a união entre o presidente da República e a maioria reunida em torno de Lira e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) [o Senado não tem tanta utilidade assim para a análise, pois ali até o PT apoiou o vencedor] é frágil, baseada apenas na troca de favores. O futuro dirá, mas essa visão corre o risco de estar mais influenciada pela insatisfação com o desfecho da refrega do que pelos fatos à disposição do analista.

Por falar neles, os fatos, um é que a Câmara tem hoje, como vem tendo tradicionalmente, pelo menos dois terços de deputados eleitos do ponto médio para a direita, sobrando um terço para o outro campo. Como alguns segmentos da direita apoiavam os governos petistas em troca de espaço na Esplanada e poder sobre recursos orçamentários, floresce a teoria de que seriam parlamentares, digamos, sem lado, sem cor ideológica.

Será? Um problema sério da candidatura Baleia Rossi foi deputados do MDB, DEM e PSDB precisarem administrar nas suas bases estar aliados ao PT e à esquerda. Isso ajudou a induzir à ruptura do Democratas e quase levou à ruptura do PSDB. Aliás, basta relembrar qual tinha sido o clima nos municípios em que emedebistas, tucanos e demistas tiveram de enfrentar adversários da esquerda no ainda recente novembro de 2020.

Notou-se também na segunda feira, abertos os resultados, que se a oposição de verdade tivesse lançado um candidato do seu bloco possivelmente teria ficado em segundo lugar. E se houvesse segundo turno teria perdido nele para Lira. Aliás, o apoio da esquerda a Rossi foi explicado também pela impossibilidade de o chamado centro votar na esquerda. No fim, ele votou mesmo foi de cara no candidato do governo. Um banho de realidade.

A força centrípeta exibida pelo bolsonarismo na eleição das mesas deveria produzir alguma cautela nas previsões de instabilidade na relação com o Congresso. Se a popularidade de Bolsonaro não descer pelo ralo, a tendência é o presidente ir ao segundo turno em 2022 (na hipótese de haver dois turnos). Isso dá a ele uma expectativa de poder que serve de ímã. E não haveria dificuldade maior de a massa parlamentar acoplar-se a Bolsonaro na eleição.

O que poderia instabilizar essa fórmula? O surgimento, do outro lado, de uma força eleitoral capaz de expressar possibilidade real de poder. A correlação de forças está à espera desse adversário. É como a política funciona.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Fábio Alves: Calendário eleitoral de 2022 poderá ser um obstáculo para o Copom

É melhor o ciclo de alta de juros ser antecipado, porque o Banco Central pode ficar de mãos atadas

Sem a autonomia formal do Banco Central ainda não ter sido aprovada por completo no Congresso, é crescente o temor de que, se for leniente e não fizer o aperto da política monetária em ritmo e magnitude esperados neste ano, o calendário eleitoral em 2022 poderá ser um sério obstáculo para o Copom ser mais duro caso as expectativas de inflação estiverem desconfortavelmente acima da meta.

Em outras palavras: há sérias dúvidas no mercado se o Copom agirá com independência e elevará os juros básicos – mesmo que mais agressivamente, se as condições exigirem – em 2022, ano de eleição presidencial.

Não seria a primeira vez que o mercado suspeita das intenções do Banco Central em um ano de eleição presidencial. Analistas e investidores destacam, em rodinhas de cafezinho, duas ocasiões no passado que deixaram o mercado ressabiado.

A primeira foi em 2002, quando o BC era comandado por Arminio Fraga. Na reunião de julho daquele ano, quando a disputa entre o tucano José Serra e o petista Luiz Inácio Lula da Silva ainda estava longe de estar decidida, o Copom cortou a Selic em 0,50 ponto porcentual para 18%, surpreendendo o mercado, pois o dólar já havia começado a estressar e subir com mais força.

Não à toa, o BC teve de realizar uma reunião extraordinária do Copom em outubro de 2002, entre o primeiro e o segundo turno da eleição presidencial, e deu uma paulada: elevou os juros em 3 pontos porcentuais.

A outra ocasião foi em março de 2010, quando Henrique Meirelles chefiava o BC. Naquela reunião, o Copom manteve os juros inalterados em 8,75%, apesar da maior pressão inflacionária e da expectativa de parte dos analistas de uma alta de juros.

Três dias após o anúncio daquela decisão do Copom, Meirelles participou, no dia 20 de março de 2010, de um jantar do então PMDB para decidir o nome que seria o vice na chapa da petista Dilma Rousseff, que acabou por vencer a eleição. Em 1.º de abril de 2010, Meirelles desistiu de participar das eleições daquele ano. E na reunião daquele mês, o Copom elevou os juros em 0,75 ponto.

Qual o tamanho do trabalho que o Copom terá na política monetária neste ano e em 2022?

Na mais recente pesquisa Focus, o consenso dos analistas é de que a taxa Selic fechará este ano em 3,50%, mas há apostas que preveem os juros encerrando 2021 em 4,50%. Para o fim de 2022, segundo a pesquisa Focus, o mercado vê a Selic em 5,0%. Já a mediana das estimativas aponta para uma inflação de 3,53% neste ano, ante uma meta de 3,75%, e de 3,50% em 2022, exatamente na meta prevista para o ano que vem.

Na sua comunicação mais recente, o Copom ressaltou que vem mirando cada vez mais 2022 como horizonte relevante para a política monetária. Na ata da última reunião, indicou que, no seu cenário básico, as projeções de inflação estão ao redor da meta no horizonte relevante, mas que os riscos fiscais geram um viés de alta nessas projeções.

Em razão disso, o Copom decidiu eliminar a prescrição futura de que a taxa Selic iria ficar parada em 2,0% por um período prolongado. E a ata do Copom mostrou que “alguns membros” do comitê questionaram se ainda seria adequado manter o grau de estímulo monetário “extraordinariamente” elevado. Esses membros julgam que o Copom deveria considerar o “início de um processo de normalização parcial”.

Esse recado mais duro deflagrou revisões de apostas para a trajetória da Selic por parte de muitos analistas, que anteciparam suas estimativas para a primeira alta de juros já na próxima reunião do Copom, em março.

Como as projeções de inflação em 2022 estão ao redor da meta, qualquer surpresa negativa – na área fiscal ou um choque repentino de preços – poderá tornar a tarefa no Copom mais árdua já neste ano, deixando atrasado o consenso das apostas de uma Selic a 3,50% no fim do ano.

Ou seja, é melhor o Copom antecipar o ciclo de alta de juros e levar a cabo o aperto monetário precificado neste ano. Caso contrário, as expectativas de inflação podem sair do controle rapidamente para 2022, quando o BC talvez tenha suas mãos atadas. 

*É COLUNISTA DO BROADCAST


O Globo: Após 7 anos de trabalho e 79 operações, força-tarefa da Lava-Jato de Curitiba deixa de existir

Mudança ocorreu após determinação em dezembro da Procuradoria-Geral da República (PGR)

Dimitrius Dantas, O Globo

SÃO PAULO — A força-tarefa da Lava-Jato no Paraná anunciou nesta quarta-feira que oficialmente deixou de existir e que, a partir de agora, parte de seus integrantes passará a integrar o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público Federal (MPF) do Paraná. A decisão coloca fim na trajetória de quase sete anos do grupo responsável pela maior operação de combate à corrupção na história do país.

A mudança ocorreu por determinação de uma portaria de 7 de dezembro da Procuradoria-Geral da República (PGR), que decidiu pela integração de quatro integrantes da Lava-Jato ao Gaeco, que já contava com cinco membros. A partir de agora, os casos que faziam parte do acervo da Lava-Jato serão conduzidos por cinco procuradores alocados no Gaeco.

Até outubro, outros procuradores continuarão em alguns processos que ainda correm na Justiça Federal do Paraná.

“A força-tarefa paranaense deixa de existir, porém alguns de seus integrantes passam a atuar no Gaeco, com o objetivo de dar continuidade aos trabalhos”, afirmou, em comunicado, a força-tarefa.

No Rio, a força-tarefa da lava-Jato foi prorrogada até o final de março. Serão mais dois meses de trabalho para a equipe de 11 procuradores da República, coordenados por Eduardo El Hage, até a criação, prevista para abril, do primeiro Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado no MPF (Gaeco federal) no estado.

A Lava-Jato de Curitiba deflagrou 79 fases e condenou 174 pessoas. Entre elas estão o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o ex-governador Sérgio Cabral, além de diversos atores políticos das últimas décadas como José Dirceu e Antônio Palocci.

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Segundo a força-tarefa, R$ 4,3 bilhões foram devolvidos por meio de acordos de colaboração premiada e de leniência. Ao todo, esses acordos deverão devolver R$ 15 bilhões aos cofres públicos.

— O legado da força-tarefa Lava-Jato é inegável e louvável considerando os avanços que tivemos em discutir temas tão importantes e caros à sociedade brasileira. Porém, ainda há muito trabalho que, nos sendo permitido, oportunizará que a luta de combate a corrupção seja efetivamente revertida em prol da sociedade, seja pela punição de criminosos, pelo retorno de dinheiro público desviado ou pelo compartilhamento de informações que permitem que outros órgãos colaborem nesse descortinamento dos esquemas ilícitos que assolam nosso país há tanto tempo — afirmou o procurador Alessandro José de Oliveira, agora coordenador do núcleo da Lava-Jato no Gaeco.

A Lava-Jato também gerou a formação de outras forças-tarefa ao redor do país, com destaque para a do Rio de Janeiro.

A Lava-Jato começou com a investigação de um esquema de lavagem de dinheiro comandado pelo doleiro Alberto Youssef. Entre os locais utilizados por ele para essa prática estava um posto de gasolina em Brasília, o que deu origem ao nome da operação. Com as investigações, a operação descobriu a participação de uma série de políticos e, eventualmente, de um sistema generalizado de corrupção na Petrobras.

Até 2018, os processos foram conduzidos pelo juiz Sergio Moro. Ele deixou a Justiça Federal no fim daquele ano para assumir o Ministério da Justiça no governo Jair Bolsonaro, caro que já deixou após alegar interferência do presidente na Polícia Federal. Moro também é alvo de um pedido de anulação dos casos do ex-presidente Lula na Lava-Jato. O petista, com base em troca de mensagens entre Moro e Deltan Dallagnol, então coordenador da força-tarefa, alega que o juiz não era imparcial para julgar o seu caso. O processo corre no Supremo Tribunal Federal e deve ser julgado ainda este ano.

A Lava-Jato em números

Até o momento, a operação Lava-Jato foi às ruas em 79 fases e cumpriu 1.450 mandados de busca e apreensão e outros 132 mandados de prisão preventiva. Além disso, a Justiça determinou 211 conduções coercitivas, uma das novidades introduzidas pela operação.

As conduções coercitivas obrigavam investigados a prestarem depoimentos. Criticada por alguns juristas, a medida foi proibida por decisão do Supremo Tribunal Federal em 2017. O ex-presidente Lula, por exemplo, chegou a ser alvo de uma condução coercitiva em abril de 2016.

Outra novidade da operação foi a possibilidade de execução da pena após condenação em segunda instância. Permitida pelo Supremo Tribunal Federal após mudança de entendimento da Corte, a mudança permitiu que condenados começassem a cumprir suas penas na prisão após duas condenações.

Assim como com a condução coercitiva, a decisão também foi revertida posteriormente pelo STF, que voltou ao entendimento de que a execução da pena só pode ocorrer após o trânsito em julgado, salvo em ocasiões especiais, como quando o liberdade do investigado é vista como um risco para a sociedade.

Ao todo, a Lava-Jato apresentou 130 denúncias contra 533 acusados, que culminaram em 278 condenações. Como algumas pessoas foram condenadas mais de uma vez, a operação condenou, ao todo, 174 pessoas. As sentenças, somadas, somaram 2611 anos de pena.

A Lava-Jato também gerou consequências fora da esfera penal: foram apresentadas 38 ações civis, entre as quais ações de improbidade administrativa contra três partidos políticos: PSB, MDB e PP.


Antonio Delfim Netto: O que devemos esperar de 2021

Chegou a hora de olharmos para a frente e decidir o que queremos para o Brasil

O ano de 2020 foi doloroso. Um período dedicado ao enfrentamento de uma inesperada e devastadora pandemia, que exigiu respostas para a saúde e medidas econômicas céleres para atravessar um choque sem precedentes em quase um século.

A longo dos meses, os governos aprenderam —alguns de maneira mais eficiente do que outros— a aperfeiçoar os estímulos destinados a salvar vidas, empregos e o tecido produtivo, com resultados palpáveis que mitigaram o estrago previsto quando tudo começou.

O Brasil, entretanto, não aproveitou a parte do segundo semestre que poderia ter sido utilizada para começar a endereçar os problemas mais urgentes do país. Adentramos 2021 sem nem sequer termos aprovado o Orçamento para o ano, consequência das disputas no Legislativo e da falta de interesse do Executivo.

Passadas as eleições para o comando das duas casas, chegou a hora de olharmos para a frente e decidir o que queremos para o Brasil. A conjuntura econômica em que o país se encontra é mais adversa do que no pré-pandemia, fruto da monumental elevação da dívida e do déficit público, ambos necessários para o enfrentamento da crise. Isso significa que as escolhas a serem feitas serão ainda mais duras e necessárias.

O Legislativo precisa recuperar o sopro de reformismo que experimentou durante o governo Temer e o início do governo Bolsonaro. O Executivo deve decidir se tem interesse e comprometimento com o futuro do país e com a agenda econômica apoiada abertamente apenas por parte do governo.
As reformas necessárias estão todas postas, mas, sem a liderança do Executivo em trabalhar a sua agenda econômica junto ao Legislativo e estabelecer prioridades, é difícil acreditar que sejam bem-sucedidas.

No curto prazo, a reorganização das contas públicas e a indicação clara de sustentabilidade para a trajetória da dívida são condições necessárias para a saúde macroeconômica do país. É disso que dependem a construção crível de um programa social mais robusto e inclusivo, a ampliação do espaço para o investimento público no Orçamento e a garantia de que a política monetária poderá atuar sem sobressaltos. Optar pela ampliação pura e simples do endividamento público é a saída mais fácil, e a que escolhemos de maneira reiterada. Suas consequências sempre vêm depois, e não costumam poupar as camadas mais vulneráveis da população.

À prioridade zero soma-se o enfrentamento definitivo da reforma do Estado para dar maior eficiência ao funcionamento da máquina pública e controlar o crescimento de suas despesas, além de atacar privilégios e penduricalhos de uma casta não eleita que se apropriou do poder.

*Antonio Delfim Netto é economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.


Conrado Hübner Mendes: Crime de responsabilidade? Acho que sim, acho que não

Indigência do debate jurídico converte impeachment em outra coisa

O impeachment atormenta analistas. Diferente de sistemas parlamentaristas, onde se pode remover, sem maiores rapapés, o chefe do Executivo, uma Constituição presidencialista estipula que a destituição de presidente ocorra em virtude de crime de responsabilidade. E esse julgamento deve se dar numa Casa regida pelas paixões e interesses da competição eleitoral, não pelo desapego e serenidade que a aplicação da lei exige.

O Parlamento, instituição constituída pela lógica da barganha, deveria, nesse caso único, funcionar pela lógica da justiça. Pedimos que deputados e senadores ajam como juízes e ignorem a eleição de amanhã. Para encerrar o imbróglio entre os que ressaltam o aspecto jurídico e os que destacam o caráter político do impeachment, resolvemos classificá-lo como instituto "jurídico-político". Um acordo russomanniano: confuso para ambas as partes.

Não pergunte o que isso significa porque não tem quase nada resolvido. Nem na prática, muito menos na teoria (transtornada com a prática). O debate público sobre o impeachment de Jair Bolsonaro tem promovido o encontro de três figuras.

O cidadão indignado na torcida, perguntado se deve haver impeachment, responde "claro, tomara" (um tipo de "wishful thinking"). O analista político pondera se há condições conjunturais que galvanizem o impeachment. Às vezes, não passa de um erudito chutismo (chamemos de "chuteful thinking"). Vem o jurista e avalia se há crime de responsabilidade. Algumas declarações moram na fronteira do achismo ( "achoful thinking", se me permitem).

A situação piora quando os três personagens se fundem num só e as muitas perguntas político-empíricas (se há apoio, se as condições devem estar dadas ou podem ser criadas, se as consequências serão positivas ou traumáticas, se eventual derrota fortalecerá Bolsonaro etc.) passam a interferir e a esvaziar a pergunta jurídico-normativa (se há crime).

O componente jurídico desse híbrido "jurídico-político" vira peça decorativa e o debate criterioso sobre crime de responsabilidade acaba interditado. O jurista se deixa calar pelo cientista político. A pergunta jurídica evapora e convertemos o impeachment em voto de desconfiança. Disfarçamos a prática parlamentarista por meio dessa sangrenta e espetacular burocracia de um impeachment.

O disfarce produz outra consequência perversa. Políticos se aproveitam do rebaixamento da pergunta jurídica e, quando indagados sobre a existência de crime, qualquer "acho que não" passa impune na esfera pública. Com base na opinião vulgar, justifica a não abertura do processo e ainda alega que a razão é jurídica.

A mais intrigante especificidade política de um impeachment está aí: ao contrário de um promotor ou de um juiz, que não podem não processar um crime comum, exceto por razões jurídicas, a Câmara dos Deputados pode decidir que um processo por crime de responsabilidade não é conveniente, mesmo havendo grande consenso sobre o crime. Ao invocar um palpite jurídico qualquer sobre o crime, tentam se eximir da responsabilidade política pela inércia.

O procedimento da Câmara dos Deputados, ainda por cima, dá ao seu presidente o poder de, à revelia do plenário, bloquear o impeachment. E passamos o último ano sem poder escrutinar publicamente crimes de responsabilidade de Jair Bolsonaro com base no "acho que não" de Rodrigo Maia. Arthur Lira não hesitará em usar do mesmo expediente. O argumento jurídico virou uma pechincha.

Antes de julgar e punir, investigar e argumentar. Temos sido sonegados dessa oportunidade elementar.

*Conrado Hübner Mendes é professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.


Folha de S. Paulo: Bolsonaro planeja reforma ministerial a conta-gotas para testar fidelidade de centrão

Presidente foi aconselhado a nomear agora dois indicados de siglas aliadas e a deixar mais mudanças para o segundo trimestre

Gustavo Uribe, Daniel Carvalho e Thiago Resende, Folha de S. Paulo

Com a vitória de dois aliados para comandar o Senado e a Câmara, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) discute agora fazer uma reforma ministerial a conta-gotas para testar a fidelidade dos partidos do centrão à pauta governista.

O presidente ouviu de ministros que participam da articulação politica que, neste primeiro momento, a abertura de um espaço amplo para a base aliada na Esplanada dos Ministérios pode ter efeitos indesejados no futuro.

O primeiro deles é o risco de sofrer traições em votações de projetos, já que hoje a ocupação de espaços não está vinculada diretamente à pauta governista.

Para evitar surpresas negativas, a estratégia defendida é a de que o presidente só entregue os cargos prometidos após a aprovação de propostas prioritárias.

O segundo efeito é a possibilidade de que um pagamento integral da fatura estimule os partidos do centrão a exigir mais espaço no primeiro e no segundo escalões em um futuro próximo, obrigando o presidente a entregar mais cargos do que o pretendido inicialmente.

Para evitar esses efeitos colaterais em médio prazo, a ideia avaliada por Bolsonaro é, neste primeiro momento, nomear indicados dos partidos aliados em apenas duas pastas: Cidadania e Desenvolvimento Regional.

A primeira seria usada para fazer um aceno à Câmara, e a segunda, uma sinalização ao Senado.

Na segunda-feira (1º), Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Arthur Lira (PP-PI) venceram com grande vantagem seus adversários no Senado e na Câmara, respectivamente, após intervenção do Palácio do Planalto, que ofereceu emendas e cargos.

Apesar das vitórias expressivas, o Planalto ainda não sabe o tamanho real de sua nova base aliada, já que os 302 votos recebidos por Lira (de 513 deputados) e os 57 que elegeram Pacheco (de 81 senadores) não são, necessariamente, de parlamentares bolsonaristas.

Para abrir espaço na pasta da Cidadania, como a Folha noticiou no mês passado, a ideia é transferir o ministro Onyx Lorenzoni (DEM) para a Secretaria-Geral, que desde o início do ano está sem ministro efetivo.

Para acomodar Onyx, a pasta deve ser desidratada, perdendo o comando da SAJ (Subchefia para Assuntos Jurídicos), que passará a ser vinculada diretamente ao gabinete presidencial.

Para o comando da Cidadania, o favorito é o deputado federal Márcio Marinho (Republicanos-BA), que integra a bancada evangélica e é próximo do presidente nacional do Republicanos, Marcos Pereira (SP). A legenda se alinhou a Lira após indicações de cargos na máquina federal.

Marinho foi líder do partido em 2016, quando o Republicanos, na época ainda chamado de PRB, desembarcou do governo Dilma Rousseff (PT) e anunciou apoio ao impeachment da petista. Um dos pontos de discordância alegados era a política econômica.

No ano passado, ele defendeu a ampliação do auxílio emergencial para atender também a profissionais do setor cultural, o que sofreu resistência da equipe econômica.

O Ministério da Cidadania foi responsável pelo pagamento do auxílio financeiro e cuida do programa Bolsa Família, que, no planos do governo, deve ser reforçado.​

Já o comando de Desenvolvimento Regional foi oferecido ao agora ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP), que recusou o convite. Ele, porém, quer indicar um aliado para o posto.

O principal nome avaliado por ele para a posição é o do líder do governo no Congresso, o senador Eduardo Gomes (MDB-TO).

A nomeação dele serviria como uma compensação ao MDB, partido com a maior bancada do Senado, e que, após pressão do Palácio do Planalto, abriu mão do apoio à candidatura da senadora Simone Tebet (MDB-MS) ao comando da Casa.

Pela nova estratégia do governo, as demais mudanças em pastas ministeriais ficariam para o segundo trimestre deste ano, período em que o Planalto pretende aprovar a reforma administrativa, formulada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

O segundo pacote de mudanças pode envolver, por exemplo, a recriação do Ministério do Esporte e a alteração no comando da Saúde. Para o primeiro posto, a principal cotada é a deputada federal Celina Leão (PP-DF), aliada de Lira.

Para o segundo, é defendido desde o ano passado o nome do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), que foi ministro da pasta durante o governo de Michel Temer (MDB). O nome dele já foi citado em reunião recente promovida na Casa Civil.

Bolsonaro ainda não decidiu se irá recriar a pasta de Indústria e Comércio, desmembrando a estrutura da Economia. Caso ele leve adiante a proposta, mesmo a contragosto de Guedes, a ideia é que ela seja entregue também ao Republicanos.

Apesar da pressão pela saída do ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o presidente tem sinalizado que não fará mudanças por ora. Bolsonaro, contudo, não descarta trocá-lo a qualquer momento caso o desgaste da imagem dele se agrave.

Para o Itamaraty, três nomes são avaliados, sendo dois embaixadores: André Corrêa do Lago, hoje na Índia, e Nestor Forster, nos EUA.

O primeiro é neto do diplomata Oswaldo Aranha e ajudou a destravar o transporte das vacinas da Índia. O segundo tem o apoio do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

Com a indicação, além de nomear alguém de sua confiança para o cargo de ministro, o presidente sinalizaria ao governo do novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, uma mudança de postura ao escolher um novo chanceler.​

Uma terceira opção em análise é o nome do atual secretário de Assuntos Estratégicos, almirante Flávio Rocha. Além de falar cinco idiomas, o militar já foi enviado pelo presidente para missões diplomáticas no Líbano e na Argentina.​