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Daniel Rittner: Os US$ 4 bilhões que travaram na Esplanada

Empréstimos do BID, CAF e NDB esbarram em vaivém de pareceres

O governo Jair Bolsonaro está deixando parado um financiamento internacional de US$ 4 bilhões, com taxas de juros mais baixas e prazos mais longos do que as captações feitas pelo Tesouro no mercado, para arcar com o pagamento do auxílio emergencial e ações de combate à crise econômica provocada pela pandemia.

A tomada do crédito, que foi anunciada em maio, travou na burocracia da Esplanada dos Ministérios. Enquanto isso, o Brasil abre mão de um alívio de algumas centenas de milhões de reais na gestão de sua dívida pública porque é obrigado a pagar mais caro para credores privados que têm financiado o gigantesco déficit primário no nosso “Orçamento de guerra”.

Seis bancos multilaterais e agências de desenvolvimento se dispuseram a emprestar para o Brasil. Todos já aprovaram, em suas instâncias decisórias, a liberação do crédito. As fontes de financiamento são as seguintes: US$ 1 bilhão do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), US$ 1 bilhão do Banco Mundial, US$ 1 bilhão do NDB (conhecido como Banco do Brics), US$ 420 milhões do banco de fomento alemão KfW, US$ 350 milhões do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e US$ 240 milhões da Agência Francesa de Desenvolvimento.

No entanto, de forma atípica, nenhuma mensagem foi enviada ao Senado até agora pedindo autorização para essas operações. O passo a passo de qualquer financiamento é o seguinte. Primeiro, o próprio Poder Executivo analisa os termos do empréstimo negociado. Isso costuma ser um procedimento rápido, toma no máximo algumas semanas depois de aprovado o crédito pelos organismos internacionais, que é o tempo para a elaboração de um parecer do Tesouro e um sinal verde da Casa Civil. Na sequência, a mensagem do Palácio do Planalto vai para a análise dos senadores - tanto na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) quanto do plenário. Uma vez votada, ela se transforma em projeto de resolução do Senado. Não cabe veto. Há apenas promulgação.

Por causa do excesso de burocracia no governo, está tudo demorando. A primeira operação de crédito, do Banco do Brics, foi aprovada por sua diretoria em Xangai no dia 20 de julho. Lá se vão mais de quatro meses e nada de o financiamento caminhar em Brasília. Em agosto, foi a vez de aprovações pelas diretorias do BID e da CAF, o banco que ainda usa a sigla histórica de quando se chamava Corporação Andina de Fomento. Essas operações estão na mesma situação - bem como os recursos do Banco Mundial, da alemã KfW e da francesa AFD.

Há grande mal-estar, nos seis organismos internacionais que fizeram os empréstimos, com a demora do governo. Eles frisam o caráter de emergência que as operações receberam dentro de cada banco ou agência. Em uma das instituições, na última reunião de diretoria, houve surpresa do colegiado com o relato de que o dinheiro ainda não poderia ser transferido por falta de aprovação no Brasil. Era o único dos países beneficiados sem receber financiamento para ações de combate à pandemia.

O Ministério da Economia pretendia usar da seguinte forma o crédito levantado: US$ 1,72 bilhão para o programa de renda básica emergencial, US$ 960 milhões para a ampliação do Bolsa Família, US$ 780 milhões para o aumento das concessões de seguro-desemprego e US$ 550 milhões para o programa de manutenção do emprego. No total, pela taxa de câmbio mais atualizada, são R$ 21,2 bilhões.

Segundo fontes do governo, que reservadamente admitem as reclamações de organismos internacionais, tem havido um vaivém dos pareceres técnicos elaborados pela Secretaria do Tesouro Nacional. A Casa Civil teria rejeitado as primeiras versões dos documentos. No meio disso, comenta-se que também houve ressalvas da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). A coluna não conseguiu obter detalhes do que estaria causando as divergências.

Em termos práticos, existem dois problemas. Um é se os empréstimos programados para este ano podem escorregar para 2021. Tecnicamente, diz um dirigente de organismo internacional, há condições de manter o crédito de pé. Do ponto de vista político, bate um constrangimento. “Não era para financiar programas emergenciais? Houve decisão política de liberar os recursos rapidamente e a demora não condiz com o que havia sido dito”, afirma esse dirigente.

As taxas dos empréstimos negociados ainda não foram divulgadas. Elas se tornam públicas com a mensagem ao Senado. O último crédito internacional tomado pela União - uma operação de US$ 195 milhões do BID para o fortalecimento da defesa agropecuária em 2019 - tinha juros iniciais de 3,78% ao ano e 300 meses (25 anos) como prazo para o pagamento.

Para ilustrar a diferença: no mercado, os títulos pré-fixados mais longos do Tesouro, com vencimento em 2031, pagam 7,94% ao ano. O resultado é que, sem colocar as mãos no dinheiro dos bancos multilaterais e agências de desenvolvimento, o Brasil está gastando mais para financiar parte do déficit fiscal.

Conclusão: às vezes o que chamamos de “burocracia” é um excesso de zelo legítimo e o que chamamos de “atraso” só reflete a sobrecarga de trabalho de determinados técnicos. De qualquer forma, a demora no envio das mensagens para o Senado soa como uma falta de prioridade pouco justificável.


El País: Por Trump, Bolsonaro ignorou aposta de Paulo Guedes para presidência do BID

Documentos mostram que Economia chegou a defender nome brasileiro para o banco em cartas a países caribenhos. Secretário de Estado Mike Pompeo visita o Brasil nesta sexta

Para manter seu alinhamento automático ao Governo Donald Trump, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro ignorou a aposta feita pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para o comando do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a instituição multilateral de crédito mais influente do continente. Ao contrário do que o Governo Bolsonaro vem afirmando, o Brasil teve, sim, um candidato ao posto, o economista Rodrigo Xavier, indicado por Guedes. O nome de Xavier chegou a ser sugerido a países caribenhos em documentos oficiais enviados pela pasta da Economia, mostram papéis obtidos pelo partido oposicionista PSOL aos quais a reportagem teve acesso. Na reta final da campanha pelo BID, Bolsonaro acabou decidindo ouvir os conselhos do chanceler Ernesto Araújo e concordou com a indicação do norte-americano Maurício Claver-Carone, que ganharia o posto em 12 de setembro.

A eleição do candidato de Donald Trump para o órgão quebrou um pacto firmado desde a criação do BID, há 61 anos, de que os Estados Unidos não indicariam o presidente da entidade como uma maneira de prestigiar os parceiros latino-americanos. Agora, quando seria justamente a vez de o Brasil nomear o chefe da instituição, o Itamaraty resolveu seguir a Casa Branca, em mais uma demonstração da guinada histórica pró-EUA da diplomacia brasileira que, na opinião de especialistas em política externa, neste momento tem rendido frutos mais à campanha de reeleição de Trump do que aos interesses de Brasília.

A falta de sintonia entre Guedes e Araújo ficou clara em dois documentos oficiais que os ministérios da Economia e das Relações Exteriores enviaram à Câmara dos Deputados como resposta a requerimentos de informação formulados pela bancada do PSOL. As duas pastas foram questionadas sobre a razões de o Brasil ter apoiado o nome do americano Claver-Carone para a presidência do BID ao invés de insistir na candidatura de Xavier, que havia sido sugerido pelo ministro da Economia em maio.

Nas repostas enviadas ao Legislativo, os ministérios afirmam que o nome de Xavier não chegou a ser formalizado. Mas a Economia se contradisse e apresentou cópias de cartas que foram enviadas a ministros de cinco países caribenhos nas quais apresentam o nome do candidato de Guedes e pede o apoio a ele. Já o Itamaraty se baseou nas exceções previstas na lei de acesso à informação para classificar como reservadas as informações que constavam em dez comunicações feitas com representantes de governos estrangeiros. Quando esse tipo de sigilo é decretado sobre um documento público, o teor oficial dele só é possível ser descoberto após um período de cinco anos. Ao menos dois desses sigilos foram decretados após o questionamento oficial da bancada do PSOL, o que gerou desconfiança até entre membros de três representações diplomáticas ouvidos pela reportagem. O partido opositor a Bolsonaro fez uma representação no Ministério Público Federal contra Araújo por conta disso.

Trecho de documento do Ministério da Economia, assinado pelo ministro Paulo Guedes, para o ministro das Finanças de Bahamas. Na carta, ele diz que o Brasil decidiu apresentar a candidatura de Rodrigo Xavier para o BID.
Trecho de documento do Ministério da Economia, assinado pelo ministro Paulo Guedes, para o ministro das Finanças de Bahamas. Na carta, ele diz que o Brasil decidiu apresentar a candidatura de Rodrigo Xavier para o BID.

“Não é comum ter segredo em comunicações tão simples”, disse um dos diplomatas latino americanos ouvidos pelo EL PAÍS. Outro afirmou que, desde o início, os movimentos de Araújo pareciam ir em direção oposta ao de Guedes. “Enquanto representantes da Economia diziam para votarmos no Xavier, no Itamaraty o sinal era para esperarmos uma orientação americana”. Guedes só suspendeu a campanha por seu indicado no dia 15 de junho, depois de conversar por telefone com representantes do Governo americano. No dia 16, os Estados Unidos anunciaram a indicação de Claver-Carone, que acabou eleito com os votos de 30 dos 48 países que integram o BID. A Argentina de Alberto Fernández puxou a campanha pela abstenção.

Com sede em Washington, nos Estados Unidos, o BID tem como principal papel financiar de forma multilateral ações públicas e privadas que tenham como objetivo reduzir da pobreza e os problemas sociais na América Latina e no Caribe. Por isso, a importância de ter alguém da região no comando, e não um representante de outros sócios do banco, como EUA, Japão, Reino Unido, Alemanha ou China. Só no ano passado, o banco aprovou 11,3 bilhões de dólares em 106 operações. Entre seus clientes, estão órgãos públicos e privados. Seu atual presidente, cujo mandato se encerra neste ano é o colombiano Luís Alberto Moreno. Ele está no cargo desde 2005.

O alinhamento automático com a Casa Branca

O desfecho do BID se une a outras questões onde, desde que Bolsonaro assumiu a presidência, o Palácio do Planalto tem se alinhado automaticamente às pautas internacionais do Governo Trump. O elo se intensificou no último mês, exatamente no momento em que Trump passou a aumentar seus eventos de campanha e a sua mobilização para tentar se reeleger. No período, o Brasil, além de atender aos interesses norte-americanos ao abrir mão de uma candidatura própria para a presidência do BID para apoiar o nome apoiado por Trump, contrariou os interesses de produtores brasileiros aceitando ampliar por mais três meses o prazo de importação de etanol americano com tarifas mais baratas e não se opôs ao anúncio de Washington de que cortaria 80% da importação do aço brasileiro. No comunicado em que citou esse último o Governo americano ainda agradeceu ao “diálogo produtivo” estabelecido com o chanceler Ernesto Araújo.

Antes, o Brasil já havia concordado em liberar da entrada de americanos em território brasileiro sem a necessidade de vistos ―ainda que não houvesse uma reciprocidade americana― e concordou em se retirar do pacto global de migrações. “Todos os movimentos feitos pelo Governo Trump têm de levar em conta a sua campanha à reeleição. Não é diferente em sua relação com o Brasil”, alerta a diretora de programas da ONG Conectas, Camila Asano. Nos três casos mais recentes, Bolsonaro foi orientado por Guedes a seguir caminho distinto do que tomou. Mas o ignorou solenemente.

Premiação simbólica

Nesta sexta-feira, como uma espécie de reconhecimento aos trabalhos de Araújo, o ministro se reunirá com o Secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, em Boa Vista (RR). É a segunda visita de Pompeo ao Brasil. Ele esteve em Brasília na posse presidencial em janeiro do ano passado. No encontro de agora, o secretário fará uma espécie de ato político contra o regime do venezuelano de Nicolás Maduro. Ele ainda passará por cidades da Colômbia, Suriname e Guiana, países que também se opõe ao governante da Venezuela. O pano de fundo é o apoio da comunidade latina dos Estados Unidos no pleito de 3 de novembro. Em sua conta no Twitter, o secretário afirmou que a visita seria para celebrar a democracia e a “liberdade” no hemisfério ocidental.

Em Roraima, Pompeo visitará ao lado de Araújo os centros de atendimento humanitário de venezuelano da operação Acolhida. O curioso, neste caso, é que desde março o Brasil não recebe novos migrantes venezuelanos por causa da pandemia de covid-19. Há a expectativa de que os dois chanceleres ainda discutam o leilão da internet 5G e as concessões do etanol que o Brasil tem feito aos EUA. “Estamos diante de uma política externa contraproducente. Ela rompe tradições e não traz nenhum ganho, nem econômico, nem de soft power”, diz Camila Asano.

Para outros analistas, o Brasil corre o risco de se isolar, caso o republicano Trump perca a eleição para o democrata Joe Biden. “Se a política brasileira dos últimos dois anos nos ensinou alguma coisa é que nunca podemos subestimar o presidente da República", escreveu o colunista do EL PAÍS e professor de relações internacionais, Oliver Stuenkel. O professor diz que seria uma excelente notícia se Bolsonaro conseguisse adotar uma postura pragmática caso o democrata fosse eleito. "Porém, diante do histórico da política externa bolsonarista até agora, é preciso se preparar para uma crise na relação com os EUA ― e o crescente isolamento do Brasil no Ocidente.”


El País: Candidato de Trump é eleito novo presidente do BID

Mauricio Claver-Carone se tornou o primeiro líder do organismo de origem norte-americana

Mauricio Claver-Carone foi efeito neste sábado presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para um período de cinco anos. O assessor de Donald Trump para a América Latina terá em suas mãos uma entidade crucial para a recuperação da região após a crise do coronavírus. Sua candidatura e nomeação provocaram tensões entre os países acionistas da instituição, já que quebram a tradição —não escrita— de que o líder do banco deve ser um latino-americano.

A assembleia que o elegeu, realizada em Washington por videoconferência, reuniu os 48 países que integram o capital do BID. “Essa vitória é para a América Latina e o Caribe. Quero agradecer a todos os nossos parceiros na região por manter a integridade deste processo eleitoral e compartilhar nossa visão comum de um BID mais forte”, declarou Claver-Carone numa mensagem enviada à imprensa após a eleição. O assessor de Trump obteve o respaldo de 30 países, incluindo 23 da região, e com eles alcançou 66,8% dos votos. Assumirá a presidência no próximo 1º de outubro por um período de cinco anos.

Claver-Carone foi o único candidato que se apresentou na votação deste sábado. A candidatura de um norte-americano à liderança do BID gerou tensões entre os países nos últimos dois meses. Trump ignorou as queixas de diversas nações e apresentou o advogado de ascendência cubana como seu homem forte na América Latina.

Os EUA nomearam Claver-Carone em junho para disputar a presidência da entidade. O anúncio levantou suspeitas em toda a América e também na Europa: o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, enviou uma carta em julho aos membros europeus do banco para advertir que o candidato norte-americano quebraria a harmonia na América Latina. Na época, a Argentina iniciou um esforço para adiar a votação até março de 2021, enquanto promovia seu próprio candidato: Gustavo Béliz. Claver-Carone acusou a Casa Rosada de “tentar sequestrar a eleição” do novo presidente.

A chave da estratégia proposta pela Argentina estava nos números. Inicialmente, buscou-se evitar o quórum da sessão deste sábado, que devia alcançar 75% para que houvesse votação. Chile, México e Costa Rica se uniram ao plano argentino e tentaram fazer com que outros países da região se ausentassem da assembleia. Nos últimos dias, porém, os apoios foram diminuindo até que o México reconheceu, na quinta-feira, que compareceria à votação. A Argentina anunciou na sexta que Béliz não seria candidato. O Executivo argentino também afirmou que se absteria de votar em protesto contra a candidatura do assessor norte-americano e incentivou os demais países a fazerem o mesmo. Fontes da Casa Rosada próximas às negociações dizem que 16 países se abstiveram da votação neste sábado —11 deles, latino-americanos— e somaram 31,23% dos votos, informou Federico Rivas.

Claver-Carone mostrou vantagem desde o anúncio da candidatura. Os EUA contavam com 30% dos votos, e seu nome foi apoiado por países com generosas participações no BID como o Brasil (11,3%) e Colômbia (3,1%), além de ter se apresentado como representante de El Salvador, Guiana, Haiti, Israel e Paraguai. Para vencer, o candidato só precisava do apoio de 15 dos 28 países americanos. Claver-Carone assumirá o posto do colombiano Luis Alberto Moreno, que esteve à frente do organismo desde 2005.

Na Casa Branca, o candidato de Trump conta com histórico de pulso firme contra o chavismo e o castrismo. Uma das preocupações entre os países latino-americanos com sua eleição é que ele previsivelmente terá em suas mãos a recuperação econômica da Venezuela nos próximos anos. Além disso, Claver-Carone revelou numa entrevista a este jornal que um dos principais interesses dos EUA é influir, através do banco, nos espaços que a China ocupou na América Latina.

A candidatura de Claver-Carone tampouco convenceu completamente Washington, sobretudo os democratas e os republicanos que se distanciaram da Administração Trump. Por isso, uma das incógnitas que prevalecerão até 3 de novembro, data das eleições presidenciais nos EUA, é se ele terá apoio do democrata Joe Biden caso este chegue à presidência. Biden considera que o candidato de Trump é “ideológico demais, pouco qualificado e está buscando um novo trabalho para depois de novembro”, como disse um porta-voz da campanha democrata ao site Politico.

Fundado em 1959, o BID possui um capital de mais de 100 bilhões de dólares (533 bilhões de reais). É o maior banco regional, e os EUA são o país que mais contribui. Com créditos de 12 bilhões de dólares (63,6 bilhões de reais), a entidade lidera a lista de ajudas ao desenvolvimento no continente. Seu funcionamento depende em boa medida dos aportes dos EUA, que são autorizados pelo Congresso.


Roberto Simon: Qual é a diferença entre Trump e Biden para América Latina?

Disputa em torno do BID dá pistas sobre rumos de Washington na região

Ao que tudo indica, o dia de hoje será um marco na história das organizações multilaterais das Américas. Pela primeira vez em seis décadas, deve ser violada a regra tácita segundo a qual um latino-americano preside o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), enquanto um americano ocupa o segundo posto na organização.

Em uma votação virtual, os 43 governos-acionistas do banco devem eleger o cubano-americano Mauricio Claver-Carone, ex-diretor de assuntos latino-americanos da Casa Branca de Donald Trump. O BID deverá emprestar cerca de R$ 100 bilhões em 2020.

Mais de 20 ex-chefes de governo da América Latina e Europa se insurgiram publicamente contra a candidatura. A Argentina, sob a centro-esquerda de Alberto Fernández, o Chile, sob a centro-direita de Sebastián Piñera, e a União Europeia tentaram até poucos dias atrás postergar a data da votação. Mas os EUA contaram com aliados leais. Segundo país com maior peso na eleição, o Brasil de Bolsonaro rifou seu próprio candidato para apoiar o de Trump.

Não se trata de um assunto restrito ao departamento de RH do banco. Com a manobra, o governo Trump tenta enquadrar de vez o BID em sua estratégia para a América Latina –sobretudo, para fazer frente à expansão da influência chinesa e minar regimes “inimigos”, tipo Venezuela, Nicarágua e Cuba.

A ideia é botar ordem no que veem como seu quintal. “Orgulhosamente proclamamos para que todos ouçam: a Doutrina Monroe está viva e bem”, disse há algum tempo John Bolton, o ex-chefe direto de Claver-Carone na Casa Branca.

À oposição de vários governos, soma-se uma complicação política em Washington: Joe Biden também foi contra a candidatura do ex-assessor de Trump. Portanto, se o democrata vencer em novembro, o BID estará debaixo de um americano com relações precárias com seu próprio governo.

Esse cenário expõe a grande questão de fundo, embora ainda pouco discutida: o que de fato mudaria, sob Trump ou Biden, nos objetivos dos EUA na América Latina? As fanfarras retóricas, nostálgicas da Doutrina Monroe, assim como o plano de controlar diretamente o banco de desenvolvimento regional, referem-se mais aos meios da diplomacia trumpista –os quais Biden e seus assessores categoricamente rejeitam.

Mas conter os chineses na região e sabotar a ditadura de Nicolás Maduro também serão objetivos estratégicos de um governo democrata.

Há dois pontos de enorme divergência entre Trump e Biden em relação à América Latina. O primeiro é a política de imigração, que tem consequências drásticas sobre o México e a América Central. Trump pretende dobrar a aposta na sua agenda –da separação de crianças na fronteira à campanha pela construção do muro ao sul. Do outro lado, considerando o peso do eleitorado latino e da esquerda democrata em sua coalizão, Biden deverá ter a política mais progressista dos últimos tempos em relação a indocumentados e refugiados.

O segundo ponto: Cuba. Trump reverteu totalmente a normalização dos laços com Havana, promovida por Barack Obama, e empilhou sanções adicionais contra cubanos. Biden promete voltar à estratégia de aproximação, embora indique que ela virá com maior ênfase nos direitos humanos (mensagem especialmente dirigida à Flórida, onde ele tem 38 pontos de desvantagem em relação a Trump entre cubano-americanos).

Diante dos outros grandes temas da região –incluindo as relações com países-chave, como Brasil, México, Argentina, Colômbia, Chile e Peru –, é improvável que um novo governo americano dê uma guinada estratégica. Como escrevi antes por aqui, o triunfo de Biden representaria o maior revés diplomático do governo Jair Bolsonaro. Mas a subserviência a Trump nunca rendeu ganhos reais, e uma administração democrata, de início, evitaria crises bilaterais e buscaria um modus vivendi com o Brasil do capitão.

Sobretudo, as mudanças seriam pontuais porque a América Latina, inevitavelmente, figurará nos degraus mais baixos da lista de prioridades globais do próximo presidente americano, seja Trump ou Biden. O futuro do BID e outros temas centrais latino-americanos continuarão a ter muito mais importância em capitais da região do que em Washington, onde fica a sede do banco.Roberto Simon

*É diretor sênior de política do Council of the Americas e mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard


Rubens Barbosa: Brasil atropelado

EUA lançam candidato à presidência do BID, quebrando uma tradição de 60 anos

Com sede em Washington, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) foi criado em 1959. Embora com participação acionaria majoritária dos EUA, ficou estabelecido que a presidência sempre caberia a um nacional da região e a vice-presidência, a um norte-americano. Nos últimos 60 anos essa regra não escrita (antigamente se dizia acordo de cavalheiros) foi mantida: o BID, um bem-sucedido banco de fomento econômico e social das Américas, foi presidido por chileno, mexicano, uruguaio e colombiano.

Na sucessão do atual presidente havia a expectativa de que Brasil ou Argentina pudessem apresentar candidatos, o que de fato foi feito. O Brasil lançou Ricardo Xavier, de pouco peso político, para a presidência do BID. O ministro da Economia, Paulo Guedes, havia avisado o secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, da apresentação do nome brasileiro, na expectativa de que o Brasil pudesse pela primeira vez eleger o novo presidente. Mnuchin, contudo, com um telefonema acabou com a pretensão do Brasil ao informar que o governo de Washington havia decidido lançar para presidente do BID Mauricio Claver Carone, diretor para assuntos de América Latina no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, quebrando uma tradição de 60 anos. Na contramão do interesse brasileiro, em nota oficial conjunta Ministério da Economia e Itamaraty se alinharam aos EUA, ao afirmarem “ter recebido positivamente o anúncio do firme comprometimento do governo dos Estados Unidos com o futuro do BID por meio da candidatura norte-americana à presidência da instituição”. E completou a nota alinhada ao governo americano: “O Brasil e os Estados Unidos compartilham valores fundamentais, como a defesa da democracia, a liberdade econômica e o Estado de Direito. O Brasil defende uma nova gestão do BID condizente com esses valores”.

Os EUA sempre preservaram sua influência no BID pelo poder do voto, cerca de 30%, nas decisões, mais do dobro dos outros países latino-americanos maiores acionistas. O anúncio de Washington não causou nenhuma reação dos governos, pela ausência de lideranças afirmativas na região. Os principais países encontram-se vulneráveis e sem capacidade de reagir. A Argentina, pela delicada situação econômico-financeira e social, em meio a um processo de negociação de sua dívida externa para evitar mais um default; o México, por ter um passivo de atritos com os EUA nas áreas comercial, de imigração, da construção do muro separando os dois países; o Brasil, concentrado em seus problemas de saúde e políticos internos.

A reação política à medida de Washington veio inicialmente de cinco ex-presidentes latino-americanos, que lançaram uma declaração em que condenam a indicação de um norte-americano para a presidência do BID. “A proposta de nomeação não anuncia bons tempos para o futuro da entidade, o que nos leva a expressar nossa consternação com essa nova agressão do governo dos Estados Unidos ao sistema multilateral, com base nas regras acordadas pelos países-membros”, destaca o documento assinado pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (Brasil), Ricardo Lagos (Chile), Julio Maria Sanguinetti (Uruguai), Juan Manuel Santos (Colômbia) e Ernesto Zedillo (México).

Além da declaração dos presidentes, há também a que foi assinada por todos os ex-chanceleres, ex-ministros da Fazenda e vários do Planejamento brasileiros. A reação dos países começou timidamente com manifestação do governo chileno pedindo que a eleição fosse adiada por seis meses, depois da eleição presidencial dos EUA. México, Peru e União Europeia, associada ao BID, passaram a apoiar a iniciativa chilena.

Em seguida, ampliando a articulação contra a escolha de um norte-americano para a presidência do BID, conhecidas personalidades politicas somente dos EUA, entre as quais ex-secretários do Tesouro e do USTR, divulgaram carta contra a indicação de Trump e pedindo o adiamento da eleição para março de 2021, argumentando que com a eventual vitória de Joe Biden a indicação seria anulada. Na semana passada, em nota conjunta do Ministério da Economia e do Itamaraty, o governo brasileiro associou-se à declaração de um grupo de países favoráveis à manutenção da eleição virtual nas datas previstas (12 e 13 de setembro), assim como instou todos os países-membros a cumprirem as resoluções aprovadas. Essa nota foi resultado da pressão de Washington e indica o temor de que os que propugnam pelo adiamento da eleição estejam ganhando força. O resultado até aqui é imprevisível.

A crescente presença da China na América do Sul está na raiz da decisão de Washington de apresentar candidato à presidência do BID, contra um representante brasileiro, e pode ser indício de um renovado interesse político dos EUA em conter Beijing pela pressão financeira sobre os países da região. Seria a volta da Doutrina Monroe (América para os americanos) e do corolário Roosevelt (speak softly and carry a big stick).

Não é do interesse brasileiro apoiar medidas que tragam para nosso entorno geográfico preocupações geopolíticas globais com a volta da confrontação entre superpotências e a pressão por alinhamentos absolutos, deixando de lado o interesse da Nação, e não apenas do governo da vez.

*Presidente do IRICE