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Bernardo Mello Franco: Meninos mimados. O chororô de Trump e Bolsonaro

Jair Bolsonaro quer bajular Donald Trump até o fim. Em Washington, o republicano se recusa a admitir que foi derrotado por Joe Biden. Em Brasília, seu imitador se finge de morto para não cumprimentar o presidente eleito.

A birra de Bolsonaro expõe o país a mais um vexame diplomático. Ao ignorar a vitória de Biden, o Brasil aprofunda seu isolamento no mundo. Outras nações governadas pela ultradireita, como Hungria e Polônia, já reconheceram a derrocada de Trump.

Por aqui, todos os ex-presidentes vivos deram os parabéns ao democrata: Sarney, Collor, FH, Lula, Dilma e Temer. A galeria reúne políticos de esquerda, de direita e de centro. Só o extremista Bolsonaro, atual inquilino do Planalto, insiste na tática do avestruz.

Não é por falta de oportunidade. Ontem o capitão conversou com eleitores, discursou numa solenidade e fez propaganda para candidatos a prefeito de São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Fortaleza, Manaus, Santos e Parnaíba. Pediu voto até para Wal do Açaí, que foi apontada como sua funcionária fantasma e agora quer ser vereadora em Angra dos Reis.

Bolsonaro falou de tudo, menos do que interessa. Na cerimônia oficial, repórteres tentaram saber quando ele pretende cumprimentar Biden. O presidente ouviu as perguntas, mas desviou o olhar e saiu de fininho.

Um chanceler com juízo teria evitado o novo desastre diplomático. Mas o Itamaraty permanece nas mãos de Ernesto Araújo, que vê comunistas embaixo da cama e enxerga em Trump o salvador do Ocidente.

O capitão insiste em pôr paixões ideológicas acima do interesse nacional. Ele já havia hostilizado a China, provocado os países árabes e boicotado líderes eleitos na Argentina e na Bolívia. Agora comete outro erro grave para não melindrar seu ídolo americano.

Os dois presidentes se comportam como meninos mimados. O americano sai de cena como mau perdedor, e o brasileiro mostra, mais uma vez, que é incapaz de ser pragmático e agir como um adulto. As relações de Biden e Bolsonaro já seriam difíceis sem esse chororô. Agora devem começar sob tensão ainda maior.


Bernardo Mello Franco: Medo e delírio na Casa Branca

Donald Trump já havia indicado que não deixaria o poder facilmente. Ontem, ele mostrou que é capaz de implodir a democracia americana para não reconhecer uma possível derrota.

Em desvantagem na apuração, o presidente dos Estados Unidos atentou contra o sistema que o elegeu em 2016. Sem qualquer base factual, ele alegou que a disputa deste ano estaria sendo roubada.

Em mais um abuso de poder, o republicano fez as declarações falsas na sala de imprensa da Casa Branca. Usou a estrutura e os símbolos da Presidência para difundir mentiras em interesse próprio.

Trump alegou que os votos enviados pelo correio, de acordo com as regras do jogo, seriam “ilegais”. O motivo é conhecido: os eleitores democratas aderiram em peso a essa modalidade de voto.

As grandes redes americanas interromperam a transmissão do discurso pela metade. Ainda assim, as mentiras do presidente atingiram milhões de americanos pela TV e pelas redes sociais.

Mais cedo, Trump já havia tuitado, em maiúsculas: “PAREM A CONTAGEM!”. Foi uma confissão de desespero. A cada hora que passava, Joe Biden reduzia a distância na Pensilvânia e na Georgia.

O presidente age como um sabotador da democracia. Sua ofensiva mina a confiança nas eleições e o respeito às regras do jogo. A esta altura, a judicialização da disputa parece ser o menor dos riscos. Trump encorajou os extremistas e acendeu um pavio que pode incendiar as ruas americanas.

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Em setembro de 1992, um deputado subiu à tribuna da Câmara e anunciou: “Tenho dignidade e vergonha na cara e não subirei jamais em palanque em que esteja o atual presidente”.

O presidente era Fernando Collor. O autor da promessa, Jair Bolsonaro. Ontem, os dois subiram no mesmo palanque em Piranhas, no sertão de Alagoas. Sorridente, o capitão definiu o novo aliado como “um homem que luta pelo interesse do Brasil”.


Bernardo Mello Franco: Trump igualou os EUA a uma república bananeira

Os americanos gostam de dar lições de democracia, mas não têm muito a ensinar sobre eleições. Mais uma vez, a corrida à Casa Branca terminou em tumulto. Ontem à noite, ainda não era possível cravar quem venceu a disputa presidencial.

Parte dos problemas decorre de um sistema arcaico. Os Estados Unidos resistem a abandonar o voto indireto, que distorce a vontade dos cidadãos. Quem recebe mais votos nem sempre leva a Presidência. Na matemática do colégio eleitoral, um morador do Wyoming vale por três da Califórnia.

A apuração dos votos também deixa a desejar. No país mais rico do mundo, muitos estados ainda usam cédulas de papel. Em 2000, a eleição empacou por falhas na contagem de cartões perfurados. Agora o problema é a demora para contabilizar os votos enviados por correio.

Na disputa deste ano, surgiu um novo e poderoso fator de incerteza. Mau perdedor, Donald Trump quer garantir sua reeleição no grito. Ele cantou vitória antes da hora e disse, sem qualquer prova, que haveria fraude para prejudicá-lo. Um factoide para tumultuar o processo e desacreditar os números oficiais.

O circo armado pelo republicano igualou os EUA a uma república bananeira. Se um líder latino-americano fizesse algo parecido, seria chamado de golpista e candidato a ditador. As ameaças de Trump não despertam a mesma indignação de entidades que dizem zelar pela democracia, como a OEA.

Vista do Brasil, a a confusão americana sempre causa espanto. Aqui a votação é eletrônica e os resultados são divulgados em poucas horas. Na noite da eleição, o país já sabe quem o governará pelos próximos quatro anos. Isso não significa, no entanto, que a nossa democracia seja muito melhor que a deles.

Enquanto os americanos contavam seus votos, o MP informou que Flávio Bolsonaro finalmente foi denunciado no caso da rachadinha. Acusado de embolsar dinheiro público, o senador passou o feriado em Fernando de Noronha com passagens pagas pelo Senado. Nos EUA, ele já teria perdido o mandato e trocado o paletó por um uniforme laranja.


Bernardo Mello Franco: A mentira contra a vida

Pós-verdade foi a palavra do ano de 2016. Como manda a tradição, o dicionário “Oxford” anunciou a escolha em dezembro. Um mês antes, Donald Trump havia sido eleito o 45º presidente dos Estados Unidos.

Na era da pós-verdade, os fatos importam pouco. O que conta são as versões, que podem ser fabricadas para confirmar crenças, preconceitos ou visões de mundo.

Trump usou uma mentira deslavada para se lançar na política. Ele ajudou a propagar a falsa tese de que Barack Obama teria nascido no Quênia. Isso o tornou popular entre os radicais do Partido Republicano, que não se conformavam com a presença de um negro na Casa Branca.

Na campanha, o magnata continuou a espalhar lorotas. Ele inventou que o crime não parava de crescer (as estatísticas mostravam o contrário), que os mexicanos estavam invadindo os EUA (havia mais gente saindo que entrando no país) e que Obama teria fundado o Estado Islâmico (essa dispensa comentários).

Ao assumir o poder, Trump transformou o embuste em arma cotidiana. Em julho, o jornal “The Washington Post” informou que ele já havia divulgado 20 mil informações falsas ou distorcidas.

Como todo mitômano, o republicano se apresenta como portador da verdade. Quem ousa contestá-lo é acusado de produzir fake news. Assim ele mina a confiança na ciência, na imprensa e nas universidades.

A pandemia ensinou que a indústria da pós-verdade, alimentada por populistas como Trump, pode provocar danos ainda maiores que a corrosão da democracia. “Mentiras e desinformação, conspiração e ódio não prejudicam apenas o debate democrático, mas também a luta contra o coronavírus”, afirmou na semana passada a chanceler alemã Angela Merkel.

A conservadora fez o alerta após ser vaiada por deputados do partido de extrema direita AfD, que se opõe às medidas de combate à Covid. “Não é apenas o debate democrático que depende do nosso compromisso com os fatos e a informação. As vidas humanas dependem disso também”, prosseguiu Merkel.

A frase ajuda a explicar o que está em jogo na eleição americana de 2020.


Bernardo Mello Franco: O Trump deles e o nosso

Em julho de 2019, Donald Trump definiu o presidente Jair Bolsonaro, logo ele, como um “grande cavalheiro”. “Dizem que ele é o Trump do Brasil. Eu gosto disso. É um elogio!”, acrescentou.

O republicano poderia ter economizado a última parte. Vaidoso e egocêntrico, ele batizou torres comerciais, condomínios, hotéis, resorts e campos de golfe com o próprio nome. Seria estranho se não gostasse de alguém tão empenhado em imitá-lo.

Desde a campanha, Bolsonaro faz de tudo para ser comparado a Trump. Ele já copiou os tuítes destrambelhados, as teorias conspiratórias, as provocações à China e os ataques à imprensa. Só faltou besuntar o rosto com aquela pasta laranja.

Truques lançados lá foram repetidos à exaustão por aqui. Um dos mais manjados foi tachar de fake news qualquer notícia incômoda para o governo. Outro foi ressuscitar o fantasma do comunismo, como se o Muro de Berlim ainda estivesse de pé.

Na pandemia, Bolsonaro replicou o discurso de Trump contra o distanciamento social, o uso de máscaras e as recomendações da OMS. Os dois presidentes fizeram pouco da doença até se contaminarem. A diferença é que o americano abandonou a propaganda da cloroquina quando foi parar no hospital.

Hoje os americanos vão às urnas na eleição mais tensa da história recente. Em desvantagem nas pesquisas, Trump ameaça não aceitar uma possível vitória do rival Joe Biden. Com medo de quebra-quebra, lojistas de Washington, Nova York e Los Angeles espalharam tapumes pelas vitrines.

O republicano já deixou claro que recorrerá aos tribunais em caso de derrota. O plano seria invalidar votos de regiões dominadas pelos democratas. Isso lançaria a maior potência do mundo num cenário de convulsão social e descrédito da democracia.

A contestação dos resultados nos EUA seria um mau sinal para o Brasil. Se o Trump deles apelar ao tapetão, o nosso não hesitará em imitá-lo em 2022. Ele já começou a criar o clima para isso ao disseminar informações falsas contra a urna eletrônica.


Bernardo Mello Franco: Vitória de Biden deixaria Bolsonaro à deriva

Há dez dias, o ministro Ernesto Araújo disse não se importar com a perda de relevância do Brasil no cenário internacional. “É bom ser pária”, desdenhou, em discurso para jovens diplomatas. O isolamento do país já é uma realidade desde a posse de Jair Bolsonaro. Mas pode se agravar a partir de terça-feira, quando os Estados Unidos escolherão seu próximo presidente.

Uma possível vitória de Joe Biden será péssima notícia para o capitão e seu chanceler olavista. Os dois ancoraram a política externa numa relação de vassalagem com Donald Trump. Agora arriscam ficar à deriva se o republicano for derrotado, como indicam as pesquisas.

Quando ainda sonhava em ser embaixador nos EUA, o deputado Eduardo Bolsonaro posou com um boné da campanha de Trump. O pai chegou perto disso. Às vésperas da eleição, ele reafirmou a torcida pelo magnata. “Não preciso esconder isso, é do coração”, declarou-se.

Para bajular o aliado, o bolsonarismo pôs a diplomacia brasileira de joelhos. O Itamaraty abriu mão de protagonismo, deu as costas à América Latina e trocou a defesa do interesse nacional pela subordinação ao interesse americano. Em setembro, permitiu que o secretário Mike Pompeo usasse Roraima como palanque para agredir um país vizinho.

Na pandemia, Bolsonaro imitou a pregação de Trump contra a Organização Mundial da Saúde, o uso de máscaras e as medidas de distanciamento. O negacionismo da dupla abriu caminho para o avanço do vírus. Não por acaso, os EUA e o Brasil lideram o ranking de mortes pela Covid.

O capitão surfou a onda nacional-populista que produziu o Brexit, elegeu Trump e impulsionou partidos de extrema direita na Europa. Uma derrocada do republicano deixará essa tropa sem comandante. Será um alento para quem aposta no diálogo e na cooperação internacional, hoje sufocados pelo discurso do ódio e pela intolerância.

Biden está longe de ser um símbolo do progressismo. Mesmo assim, comprometeu-se com a defesa da democracia, do meio ambiente e dos direitos humanos. Isso significa que sua possível vitória provocará mudanças sensíveis nas relações entre Washington e Brasília.

No primeiro debate presidencial, Biden já avisou que pressionará Bolsonaro a frear o desmatamento da Amazônia. Ele acenou com uma cenoura e um porrete: a criação de um fundo de US$ 20 bilhões para estimular a preservação da floresta ou a imposição de sanções econômicas ao Brasil.

No dia seguinte, o capitão acusou o democrata de tentar suborná-lo. Além de exagerar no tom, conseguiu errar o primeiro nome do adversário de Trump. O bate-boca indicou o que vem por aí se Joseph — e não John — assumir a Casa Branca.


Quando a política produzia fatos estranhos e inimagináveis, o vice-presidente José Alencar costumava usar uma expressão da roça: “Até a vaca está estranhando o bezerro”. Na quinta-feira, o ministro Paulo Guedes atacou a Federação Brasileira de Bancos. Logo ele…


Bernardo Mello Franco: Os generais devem uma autocrítica

O general Rêgo Barros era um alegre propagandista do presidente Jair Bolsonaro. Agora se juntou à tropa dos desiludidos com o capitão.

Em artigo no “Correio Braziliense”, ele criticou um certo líder seduzido por “comentários babosos” e “demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião”. “Sua audição seletiva acolhe apenas as palmas. A soberba lhe cai como veste”, escreveu. O general não precisou citar nomes. Seu alvo era Bolsonaro, de quem foi porta-voz.

Rêgo Barros fracassou na tentativa de estabelecer alguma civilidade no trato do governo com a imprensa. Foi sabotado pelo próprio chefe, que o desautorizava diariamente na portaria do Alvorada. Demitido em agosto, ele reforçou o clube dos militares amargurados. O patrono da turma é o ex-ministro Santos Cruz, derrubado pela artilharia dos filhos do presidente.

Varrido do Exército por indisciplina, Bolsonaro parece ter prazer em humilhar oficiais superiores. Na semana passada, ele expôs o general Eduardo Pazuello a uma desmoralização pública. Depois permitiu que um ministro civil chamasse o general Luiz Eduardo Ramos de “Maria Fofoca” e “Banana de Pijama”.

Em seu artigo, Rêgo Barros traçou o destino dos militares que não se curvam ao capitão: “Alguns deixam de ser respeitados. Outros, abandonados ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas”. O general também criticou aqueles que, pela sobrevivência, optam por uma “confortável mudez”. Só faltou explicar por que ele passou um ano e oito meses no pelotão dos mudos.

Além de silenciar diante de abusos, o ex-porta-voz protagonizou momentos de bajulação explícita. “Em qual cidade nosso presidente chega e não é ovacionado?”, questionou certa vez, ao divulgar uma viagem do chefe.

Os oficiais pendurados no governo não foram vítimas de sequestro. Alistaram-se voluntariamente no projeto de Bolsonaro, em busca de um atalho para voltarem ao poder. Alguns se julgavam capazes de tutelar o presidente extremista. Outros só pensavam em engordar os contracheques.

Hoje muitos generais querem subscrever as queixas de Rêgo Barros. Antes disso, deveriam fazer uma autocrítica. Eles sempre souberam quem era o capitão.


Bernardo Mello Franco: O negócio da saúde

O ensaio de privatização do SUS resumiu, em um episódio, quatro características do governo Bolsonaro: insensibilidade social, autoritarismo, falta de transparência, voracidade para fazer negócios.

Ontem o Diário Oficial trouxe um decreto que dispunha sobre a “qualificação da política de fomento ao setor de atenção primária à saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada”.

Com o palavrório, abriu-se uma porta bilionária para a privatização das unidades básicas de saúde, que atendem até 80% dos problemas dos brasileiros.

Avesso à participação social, o governo não ouviu os conselhos de saúde, as entidades médicas ou os gestores locais. O ministro decorativo da Saúde, Eduardo Pazuello, também foi ignorado. Neste mês, o general admitiu que assumiu a pasta sem saber o que era o SUS. Dias depois, reconheceu que está no cargo para cumprir ordens. “Um manda, o outro obedece”, explicou.

A Constituição define a saúde como “direito de todos e dever do Estado”. Com a canetada de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, o sistema público, universal e gratuito seria rifado a operadores privados. A experiência com as organizações sociais (OSs) dá uma ideia de onde isso poderia parar. No Rio, o modelo produziu escândalos de corrupção, precarização de serviços e calotes em servidores.

Para os empresários da saúde, a privatização seria uma mina de ouro. Além de lucrar com o atendimento, eles receberiam informações coletadas desde o nascimento dos pacientes. Um fabuloso banco de dados para impulsionar novos e velhos negócios.

Num país em que 71,5% da população não conseguem pagar um plano de saúde, as UBSs garantem consultas, exames, remédios e vacinas de graça. Privatizá-las significaria quebrar a espinha do SUS. Apesar de todas as dificuldades, o sistema reafirmou sua importância no combate à pandemia. Isso explica a pressão que obrigou Bolsonaro a revogar o decreto um dia depois de publicá-lo.


Bernardo Mello Franco: O exilado do Laranjeiras

Mergulhado numa crise econômica e sanitária, o Rio de Janeiro completa hoje dois meses sem governador. Em 28 de agosto, o Superior Tribunal de Justiça afastou Wilson Witzel. Eleito com discurso moralista, ele foi acusado de desviar verbas da Saúde na pandemia.

O ex-juiz não tem do que reclamar. Enquanto ex-comparsas mofam em Bangu, ele desfruta um doce exílio no Palácio Laranjeiras. Divide o ócio com a mulher, três filhos e o gato Elvis, que se estica livremente sobre o mobiliário Luís XV.

Embora tenha sido alijado do poder, o governador continua a usufruir suas mordomias. Um garçom fica de prontidão para manter seu copo cheio. Ele alterna os goles de uísque com baforadas de charuto cubano.

No início de outubro, uma ação popular pediu que o Churchill de chanchada fosse removido do palácio. O juiz Marcello Leite, da 9ª Vara de Fazenda Pública, decidiu que ainda não era hora de despejá-lo. Até que o impeachment seja sacramentado, ele poderá permanecer na residência oficial.

O processo deve ter novidades amanhã. O deputado Waldeck Carneiro promete entregar seu relatório ao tribunal misto que examina as denúncias. O texto tende a ser aprovado na semana que vem, mas a novela da cassação pode se estender até o fim de janeiro. Até lá, o estado será governado interinamente pelo vice Cláudio Castro, também investigado sob suspeita de receber propina. A exemplo do colega de chapa, ele nega todas as acusações.

A derrocada não abalou a megalomania de Witzel. Em entrevista à revista “Veja”, ele informou que continua a mirar a Presidência. Atribuiu o desejo a um “sentimento patriótico”. “Minha missão na política está apenas começando”, disse.

Denunciado por corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa, o ex-juiz já ensaia fugir do país para não ser preso. “Se perceber que há perseguição política e cooptação das instituições contra mim e a minha família, pretendo pedir asilo político no Canadá”, declarou. Depois de sonhar com o Planalto, Witzel pode acabar na lista da Interpol.


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro contrata crise com o Supremo

Jair Bolsonaro contratou mais uma crise com o Supremo Tribunal Federal. Ontem o presidente disse que nenhum juiz pode decidir “se você vai ou não tomar a vacina”. Foi uma clara provocação à Corte, que deve julgar três ações sobre o tema.

Na sexta-feira, o ministro Luiz Fux avisou que a disputa sobre a vacina tende a ser judicializada. É o desfecho mais provável caso Bolsonaro insista em sacrificar a população para fazer guerra política. Na semana passada, ele mandou o Ministério da Saúde cancelar a compra da vacina em desenvolvimento no Instituto Butantan. Tudo para atingir o tucano João Doria, seu virtual adversário em 2022.

Ontem o capitão disse que seria “mais fácil” investir na cura do que na vacina. A declaração tenta impor um falso dilema. Cura e vacina são esperadas com a mesma ansiedade. Não faz sentido trocar a segunda pela primeira. Abrir mão da vacinação significaria condenar milhões de brasileiros, especialmente os idosos, a uma quarentena sem fim. Além disso, seria loucura permitir que as pessoas adoeçam se for possível imunizá-las contra o vírus.

Bolsonaro parece insano, mas sabe aonde quer chegar. Ao fomentar um embate com o Supremo, ele tenta repetir um truque de abril, quando tentou impedir estados e municípios de decretarem medidas de distanciamento. O tribunal barrou a ideia por 9 votos a 0. Em seguida, o presidente passou a vender a falsa versão de que foi deixado “de mãos atadas”.

Ao atacar a Justiça, o capitão tentou se eximir de responsabilidade pelas milhares de mortes. A tragédia humanitária seria culpa dos prefeitos, dos governadores e até dos ministros do Supremo. Menos dele, que nada fez para combater a pandemia.

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O deputado Ricardo Barros pode ser acusado de muitas coisas, mas não de falta de transparência. Ao torpedear a Constituição de 1988, o líder do governo disse que a Carta garantiu muitos direitos. Deixou claro que o objetivo do bolsonarismo é retirá-los.


Bernardo Mello Franco: Cheque em branco

O Senado assinou um cheque em branco para Kassio Nunes Marques, que substituirá Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal. Na quarta-feira, o desembargador passou dez horas na Comissão de Constituição e Justiça. Poderia ter passado dez minutos, e o resultado seria o mesmo. Culpa dos senadores, que abriram mão de escrutinar as credenciais e as ideias do futuro ministro.

Ao abrir a sessão, a emedebista Simone Tebet disse que a sabatina “não é, nunca será e não pode parecer ser mero ato protocolar”. Faltou combinar com os colegas. A maioria estava ali para gastar tempo e cortejar o indicado. Ele ouviu mais elogios do que perguntas de quem deveria inquiri-lo.

Apesar das inconsistências no currículo, Kassio foi chamado de “culto”, “ilustre” e “dedicado”. “O orgulho que nos enche hoje não é só do Piauí, é do Nordeste como um todo”, desmanchou-se Ciro Nogueira, o poderoso chefão do PP. “É uma grande e oportuna indicação, que elevará a nossa Corte Superior”, emendou o emedebista Renan Calheiros, também investigado na Lava-Jato.

A oposição poderia apertar o sabatinado, mas preferiu destacar suas virtudes. O líder do PDT, Weverton Rocha, informou que não faria nenhuma pergunta. “O Piauí está feliz, o Maranhão, o Nordeste, o Norte”, empolgou-se. O líder do PT, Rogério Carvalho, ignorou os indícios de plágio e felicitou Kassio por seu currículo. Na segunda-feira, ele já havia oferecido um jantar para o desembargador.

Em meio ao clima de confraternização, alguns senadores ficaram à vontade para tratar de assuntos particulares. Soraya Thronicke, do PSL, reclamou de uma condenação por litigância de má-fé. Ela disse discordar da multa imposta pela Justiça. “Por isso eu me nego a depositar uma parte do valor”, acrescentou.

Questões que poderiam provocar embaraço foram deixadas de lado. Ninguém quis saber se o futuro ministro vai se declarar impedido de julgar Flávio Bolsonaro, que fez lobby por sua indicação. Questionado sobre os padrinhos políticos, Kassio desconversou. “Ninguém interferiu na escolha do presidente”, disse, sem que ninguém o contestasse.

Em outro momento, ele alegou não saber o que sua própria mulher faz como assessora do senador Elmano Férrer, do PP. “Realmente eu não tenho essa informação”, embromou. Mais uma vez, ficou por isso mesmo.

O indicado recorreu a um truque conhecido para se esquivar de polêmicas. Disse que não poderia opinar sobre casos que poderão ser julgados no Supremo. Como quase tudo pode passar pela Corte, o artifício serve para que os sabatinados não digam nada de relevante. Os senadores aceitaram a desculpa sem protestar.

Kassio só deixou o figurino escorregadio para acalmar a base bolsonarista, que esperava a nomeação de um juiz “terrivelmente evangélico”. Ele citou trechos da Bíblia e prometeu “valorizar a vida, a família e os valores morais e cívicos brasileiros”.

Na prática, quem resistiu às dez horas de sabatina continuou sem saber o que pensa o futuro ministro. Com o cheque em branco do Senado, ele deverá permanecer no Supremo até 2047.


Bernardo Mello Franco: Sabujismo orgulhoso

No governo Bolsonaro, não basta ser servil. É preciso ostentar a subserviência como prova de lealdade. Ontem dois ministros se humilharam em público para agradar ao chefe. Encolheram as próprias biografias e avacalharam as pastas que deveriam comandar.

Eduardo Pazuello, dublê de paraquedista e ministro da Saúde, recebeu Bolsonaro após ser desautorizado sobre a compra de vacinas. Sem corar, ele reconheceu a falta de autonomia no cargo. “Senhores, é simples assim: um manda e o outro obedece”, explicou.

Seguiu-se um diálogo constrangedor entre o general da ativa e o capitão reformado. “A gente tem um carinho”, disse Pazuello. “Opa, tá pintando um clima”, animou-se Bolsonaro. O ministro está com Covid, mas rompeu o isolamento para gravar com o presidente. Sem máscaras, os dois voltaram a fazer propaganda da cloroquina.

Mais cedo, Bolsonaro foi ao Itamaraty. Em discurso para formandos do Instituto Rio Branco, Ernesto Araújo deu uma aula de antidiplomacia. A turma foi batizada de João Cabral de Melo Neto. “Modestamente, me considero também as duas coisas, diplomata e poeta”, arriscou o chanceler, sem modéstia alguma.

Ao microfone, o ministro se atreveu a atacar o homenageado. Disse que ele “dirigiu-se para o lado errado: para o lado do marxismo e da esquerda”. Perseguido por outros Ernestos, o autor de “Morte e vida severina” chegou a ser afastado do Itamaraty, em 1953.

“A diplomacia pode ser lírica, pode ser dramática, mas também pode ser épica”, prosseguiu o ministro, repetindo palavras do discurso nazista de Roberto Alvim. Na sequência, ele passou a elogiar Bolsonaro. “Nosso presidente conhece e ama esse povo e nos ensina a conhecer e a amar esse povo”, derramou-se.

Sem disfarçar o ressentimento, o chanceler reclamou da atenção dada a cientistas e intelectuais “prudentes e sofisticados”. Ele disse liderar uma “política externa do povo brasileiro”, inspirada nas ideias do capitão e inimiga de um imaginário “complexo marxista-isentista”.

Num breve surto de lucidez, Ernesto admitiu que o Brasil de Bolsonaro se tornou um pária na comunidade internacional. Mas não deu o braço a torcer. “Talvez seja melhor ser esse pária, deixado ao relento, do lado de fora, do que ser um conviva no banquete do cinismo interesseiro dos globalistas”, disse, orgulhoso do próprio sabujismo.