ataques à democracia

Bruno Carazza: Muita água a passar por debaixo da ponte

Pesquisas a um ano das eleições dizem muito pouco

Bruno Carazza / Valor Econômico

Em 4/12/1988, Fernando Collor sequer aparecia nas pesquisas para as eleições presidenciais que iriam se realizar no ano seguinte. Nesse dia o Datafolha apontava Brizola na liderança, seguido de perto por Lula ou Silvio Santos, a depender do cenário.

A um ano da disputa de 1994, Lula ocupava confortavelmente a primeira colocação (31%), com quase o dobro das intenções de voto de José Sarney (16%). Fernando Henrique àquela altura amargava o quinto lugar, com 7%, atrás ainda de Maluf (12%) e Brizola (8%).

Com a emenda da reeleição aprovada, FHC surfava na onda do Plano Real e apareceu, em setembro de 1997, com ampla folga em relação a Lula: 37% a 22%. Maluf tinha 13%, Sarney 11% e o estreante Ciro Gomes apenas 5%.

Quatro anos depois Lula já surgia com chances de finalmente vencer uma eleição presidencial: com 30%, o petista estava bem à frente de Ciro (14%), Roseana (12%), Itamar (11%) e Garotinho (9%). Serra, que seria derrotado por Lula no segundo turno um ano depois, tinha apenas 7% da preferência dos entrevistados.

Como todos sabem, Lula chegou ao Planalto em 2003, mas em 23/10/2005 ele vivia seu inferno astral. No auge do escândalo do mensalão, sua popularidade despencou a ponto de ficar tecnicamente empatado com Serra (30% a 27%), causando a impressão de que sua reeleição estaria ameaçada. No fim das contas, Serra não disputou o pleito de 2006, e Lula acabou derrotando Geraldo Alckmin (que àquela altura tinha 16% nos levantamentos do Datafolha).

Sem Lula no páreo, em dezembro de 2009 as pesquisas indicavam a liderança de Serra (37%), bem à frente de Dilma (23%), Ciro (13%) e Marina (8%). Deu Dilma.

E quando a petista foi buscar um novo mandato, sua liderança a um ano da campanha de 2014 era bastante sólida. Com 40% em média nas pesquisas, tudo indicava que ela bateria com facilidade Marina (que tinha em torno de 30%), Serra (20 a 25%) ou Aécio (20%), e Eduardo Campos (15%). Ninguém imaginava que a disputa do ano seguinte seria tão equilibrada nos dois turnos - sem falar no trágico acidente que vitimou o então governador pernambucano.

Para completar o quadro, faltando um ano para as eleições de 2018, o Brasil vivia a indefinição jurídica se Lula poderia ou não se candidatar, pois estava preso em Curitiba. Traçando oito cenários diferentes (!), o Datafolha indicava que a vitória ficaria entre o petista (se ele pudesse concorrer) ou, em caso alternativo, com Marina Silva. Naquele momento, 1/10/2017, em todos os prognósticos Bolsonaro já despontava como presença provável no segundo turno, com quase 20% de apoio.

Bolsonaro surpreendeu ao chegar ao poder com um partido nanico e poucos segundos de propaganda eleitoral, sem alianças nos Estados e com uma arrecadação baixíssima para os padrões brasileiros.

A principal conclusão dos números acima é que as pesquisas de intenção de votos, realizadas com um ano de antecedência, não servem como guia confiável para o resultado definitivo das urnas.

Parafraseando os panfletos de aplicações financeiras, desempenho passado não é certeza de ganho futuro. Pesquisa eleitoral é fotografia de momento. Além da estratégia, carisma, propostas e alianças de cada candidato, uma série de outros fatores podem afetar a dinâmica das campanhas, do desempenho da economia à eclosão de escândalos de corrupção, sem falar na contribuição do imponderável.

Nos últimos tempos, vários balões de ensaio foram testados buscando replicar aquilo que seria “o novo normal” da política brasileira pós-Bolsonaro 2018. Sergio Moro, Luciano Huck, Luiza Trajano e agora Datena - todos foram cogitados como alternativa de fora da política, se valendo de popularidade nas redes sociais para alavancar intenção de voto; e aparentemente nenhum deles se viabilizou.

Há um ano das eleições, o quadro vai se consolidando no sentido de que não teremos nenhuma surpresa na urna eletrônica em 2022. Todos já sabemos quem é Bolsonaro, suas ideias e seu modo de governar. Como alternativa, o eleitor deverá contar com Lula, Ciro e um tucano (Doria ou Eduardo Leite). Os demais nomes colocados, todos também advindos da política tradicional, aparecem mais como opções para compor as chapas dos anteriores; parece ser o caso de Simone Tebet, Mandetta, Pacheco, Alessandro Vieira, entre outros.

Mas se engana quem acredita que as pesquisas citadas acima não enviam mensagens para o futuro.

Bolsonaro inicia o ano final de seu mandato com a mais baixa intenção de voto entre todos os presidentes que se reelegeram - FHC tinha 37% em 2001, Lula em torno de 30% em 2009 e Dilma possuía uma média de 40% em 2013, frente aos 25% do atual presidente. A depender de como seu governo vai lidar com a grave crise econômica e a ameaça de apagão, suas chances de chegar competitivo em 2022 podem estar ameaçadas.

Lula, por sua vez, posiciona-se como candidato pela sétima vez (se contarmos com 2018, quando ele foi impedido de disputar) e nunca teve um percentual tão alto de preferência do eleitor nesta altura do campeonato. Seus mais de 40% de agora, portanto, estão mais para teto do que para piso, ainda mais porque Lula ainda não foi confrontado pela imprensa a explicar os escândalos de corrupção e a crise econômica deixados pelas administrações petistas.

Da parte de Ciro, seu desafio é o mesmo desde quando ele se colocou como aspirante a um lugar no Palácio do Planalto pela primeira vez, em 1998: superar a barreira dos 10% das intenções de voto e se mostrar realmente competitivo.

Por fim, resta a opção tucana. A ideia de marcar prévias inéditas constitui a última chance de fazer algum de seus postulantes à Presidência ganhar projeção e se mostrar viável no ano que vem. Ao se mostrarem nacionalmente nos próximos dois meses, digladiando em debates transmitidos pela TV e pela internet, Doria ou Eduardo Leite tentarão repetir a façanha de FHC em 1993 ou Serra em 2001 - sair de um dígito a um ano do pleito e alcançar pelo menos o segundo turno na hora do vamos ver. Mas sem Plano Real.

A se fiar pelas pesquisas das últimas oito eleições, tudo ainda pode acontecer - inclusive nada.

*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”

Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/muita-agua-a-passar-por-debaixo-da-ponte.ghtml


Mathias Alencastro: Três lições da Alemanha

Sucessão de Merkel mostra caminhos para democracias liberais acometidas pela ascensão da extrema direita

Mathias Alencastro / Folha de S. Paulo

Terminou a campanha eleitoral na Alemanha e, pela primeira vez, o partido que sair na frente terá de encontrar pelo menos dois outros aliados para formar o governo. O processo de formação de um novo governo deve se prolongar por alguns meses, mas um cenário de impasse a longo prazo, como nas vizinhas Holanda e Bélgica, parece descartado.

popularidade de Olaf Scholz, apontado em todas as sondagens como o mais preparado para assumir o cargo, assim como o desejo de alternância depois de 16 anos de governo CDU, confere um ascendente à SPD nas negociações com potenciais aliados. O resultado do pleito também traz ensinamentos para todas as democracias liberais acometidas pela ascensão da extrema direita.

A primeira é a resiliência da centro-esquerda. A SPD defendeu o programa mais progressista das últimas décadas, mas apresentou um candidato sóbrio e pragmático, que foi vice-primeiro-ministro e ministro das Finanças nos últimos anos.

pandemia, que muitos esperavam ser um prato cheio para os populistas, acabou reforçando as credenciais dos candidatos versados na administração do Estado. Dada como morta depois da debacle do Partido Socialista francês em 2017, a centro-esquerda está voltando a contar na Europa, com governos da Península Ibérica à Escandinávia, passando agora, provavelmente, pela Alemanha.

A segunda é a dificuldade da direita tradicional diante da emergência da extrema direita. A toda-poderosa CDU não conseguiu recuperar o eleitorado perdido para a AfD, que se manteve acima dos 10% e consolidou sua presença em nível regional. Exceção feita ao Reino Unido, onde Boris Johnson conseguiu federar as direitas em torno do brexit, o campo conservador parece irremediavelmente dividido nas democracias liberais.

Muito se fala do drama da renovação da esquerda, mas a origem da crise de governabilidade europeia tem sua origem no outro lado do espectro ideológico.

A terceira dinâmica é a emergência da crise climática como tema de campanha. De acordo com todos os cenários, os Verdes devem se afirmar como a terceira maior força política e regressar ao governo, depois da experiência bem-sucedida dos anos 1998-2005 liderada pelo lendário Joschka Fischer, àquela altura ministro das Relações Exteriores.

Vencedor destacado na população abaixo de 50 anos, o partido está bem posicionado para encabeçar o governo nos próximos dez anos.

Para o Brasil especificamente, o surgimento da SPD e dos Verdes deve reforçar o ativismo internacional nas questões democráticas e ambientais da Alemanha, sempre muito contida nos tempos de Merkel.

Martin Schultz, um dos principais quadros da SPD e forte candidato a assumir uma pasta ministerial em uma eventual coalizão liderada pelo partido, foi até Curitiba para encontrar o ex-presidente Lula na cadeia. Quanto aos delinquentes neonazistas que Bolsonaro recebeu no Alvorada, eles continuarão sendo irrelevantes no futuro Parlamento.

Esses pequenos sinais também devem ser levados em conta na hora de especular sobre a reação da comunidade internacional em caso de contestação do resultado das presidenciais brasileiras em 2022.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mathias-alencastro/2021/09/tres-licoes-tiradas-da-eleicao-da-alemanha.shtml


A CPI encontrou os documentos, fez a conta e descobriu o CPF dos culpados

As provas que a comissão da pandemia recolheu não vão embora

Celso Rocha de Barros / Folha de S. Paulo

A CPI da Pandemia, que se aproxima de seu fim, provou a ocorrência do maior crime da história republicana brasileira. Encontrou os documentos certos, fez as contas certas e descobriu o CPF dos culpados.

A CPI provou, com documentos, que Jair Bolsonaro se recusou a comprar as vacinas oferecidas pela Pfizer e pelo Instituto Butantan, e que só comprou metade da oferta do consórcio Covax Facility.

Tudo documentado.

Com esse número de vacinas não compradas e os documentos que provam as datas em que elas poderiam estar disponíveis, os cientistas foram trabalhar. Eles sabem o quanto o número de mortes costuma cair conforme a vacinação progride.

Na conta do epidemiologista Pedro Hallal, feita a pedido da Folha, só as vacinas da Pfizer e do Butantan teriam salvado cerca de 90 mil pessoas. Bolsonaro matou essa gente só com duas decisões.

Por sua vez, o jornal O Estado de S. Paulo calculou que, só com as vacinas recusadas do Butantan, todos os idosos brasileiros teriam sido imunizados com duas doses até o fim de fevereiro, estando, portanto, todos imunizados a partir do meio de março. Entre o meio de março e o momento em que a reportagem foi publicada (27 de maio), 89 mil idosos morreram de Covid. Supondo que a mortalidade pós-vacinação de idosos fosse igual à do Chile (20% dos doentes), Bolsonaro matou, com uma única decisão, cerca de 70 mil idosos só entre o meio de março e maio deste ano.

Todas essas contas, que ainda não usam os números de vacinas que Bolsonaro se recusou a comprar do consórcio Covax Facility, foram apresentadas à CPI. O Ministério da Saúde tem gente que saberia refutá-las, se elas estivessem erradas. Ninguém se pronunciou.

A CPI também descobriu o que Bolsonaro estava fazendo em vez de comprar vacina: mandando os trabalhadores brasileiros para a rua para adoecer, mentindo que haveria remédio caso eles ficassem doentes.

A CPI documentou a existência de um gabinete paralelo de médicos estelionatários que, por dizerem o que Bolsonaro queria ouvir, tornaram-se mais influentes do que os técnicos do Ministério da Saúde. Foram eles que promoveram os tratamentos com remédios como a cloroquina, muito depois da ciência ter demonstrado que eles eram ineficazes.

Mais recentemente, veio à luz o caso da Prevent Senior, que executou experimentos em pacientes inocentes com o protocolo bolsonarista de cloroquina e similares. O tratamento fracassou, os pacientes morreram, mas os dados foram falsificados para que não se soubesse que os pacientes haviam morrido de Covid.

Finalmente, a CPI descobriu que o governo Bolsonaro se esforçou para que uma, e só uma, vacina específica fosse aprovada: a Covaxin, que ofereceu suborno à turma do deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo Bolsonaro na Câmara. O negócio foi denunciado antes de ser efetivado, mas não por iniciativa de Bolsonaro.

Em resumo, a CPI provou que Bolsonaro matou mais de cem mil brasileiros, mentiu para eles que haveria remédio caso adoecessem, e acobertou gente de seu governo que tentava roubar dinheiro de vacina.

As revelações da CPI terão algum efeito político? Tem gente poderosa trabalhando para que não. Mas as provas que a CPI recolheu não vão embora. Ficarão lá, à espera de um Brasil que volte a ter instituições que não se vendam nem tenham medo do próprio Exército.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/celso-rocha-de-barros/2021/09/a-cpi-encontrou-os-documentos-fez-a-conta-e-descobriu-o-cpf-dos-culpados.shtml


Fernando Gabeira: Brasil de bolsonaro mostra o dedo para o mundo

O jornal alemão Frankfurter Allgemeine disse que o Brasil mostrou o dedo para o mundo

Fernando Gabeira / O Globo

Era uma alusão à posição negacionista de Bolsonaro, que não apenas recusa a vacina, como quebrou o código de honra da ONU, que esperava um encontro de imunizados. Na verdade, a manchete era uma síntese da atitude de Bolsonaro com a do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que mostrou o dedo para manifestantes contrários ao governo.

A primeira coisa que me ocorreu é que durante muito tempo falamos do brasileiro como um homem cordial. É uma visão idealizada. No entanto jamais poderíamos suspeitar que uma delegação brasileira “mostrasse o dedo para o mundo na ONU”e que isso se transformasse na manchete de um dos principais jornais alemães.

Quando Bolsonaro defendeu a hidroxicloroquina, dizendo que a História e a ciência fariam justiça ao tratamento precoce da Covid-19, lembrei-me de seu esforço no Congresso para aprovar uma pílula contra o câncer, desenvolvida por um pesquisador de São Paulo. Bolsonaro tinha pela fosfoetanolamina a mesma empolgação e é incapaz de se perguntar hoje para quem a ciência e a História deram razão.

Tenho a impressão de que sua confiança na cura mágica cresce com a complexidade do nome do remédio. Certamente se interessou pela proxalutamida.

Dois dias depois do espetáculo de realidade paralela que ofereceu na ONU, Bolsonaro aparece com seis dedos na mão, numa imagem em suas redes sociais. Realmente, falam com os dedos, e essa linguagem foi bem captada dentro da van que levava Marcelo Queiroga. Ele mostrou o dedo médio, numa escolha claramente pornográfica. O chanceler Carlos Alberto França, diplomaticamente, optou pelos dois dedos que simulam uma arma, símbolo permanente do bolsonarismo.

Os seis dedos de Bolsonaro afirmam apenas como ele é mentiroso. Os dedos de Queiroga e do chanceler apontam para a essência da proposta bolsonarista: vulgaridade e violência.

Mas há algo que talvez os jornais estrangeiros não tenham captado. Embora Bolsonaro tenha sido eleito com a maioria dos votos, hoje seu governo é rejeitado por quase 70% da população.

Bolsonaro se orgulha de não ser vacinado. No entanto o Brasil, segundo algumas pesquisas, é o país com mais adesão popular à vacina.

Não vou cair na tentação de reafirmar pura e simplesmente a tese do homem cordial, mas o Brasil, na realidade, não pode ser confundido com o governo. A maioria dos brasileiros, longe de mostrar o dedo para o mundo, estende a mão para a humanidade. Sempre fomos um país solar, e alguns estrangeiros, cativados pela alegria de nossas festas populares, achavam até que a felicidade era um fator associado ao Brasil.

Certamente esgotaria meu espaço discorrer sobre as causas dessa transformação ou mesmo descrever como se gestou o ovo dessa serpente.

O impacto da passagem de Bolsonaro pela ONU me fez lembrar Peter Sellers no filme “Dr. Strangelove”. Bolsonaro falava de vacina, mas uma espécie de força estranha o levava a defender tratamento precoce e a combater passaportes sanitários. Havia um discurso feito para ele, e o braço rebelde que se levantava contra o consenso mundial, o pária que precisa comer pizza no passeio porque não pode entrar no restaurante.

Peter Sellers intepretava um personagem no filme de Stanley Kubrick com essa força contraditória em suas atitudes. De vez em quando, perdia o controle do braço e fazia uma saudação nazista. Se me lembro bem, em determinado momento, ele se levanta da cadeira de rodas e diz: “Mein Führer, posso andar”.

Não quero dizer com isso que Bolsonaro seja nazista. Seria banalizar uma grande tragédia da humanidade.

Seu novo espasmo numa entrevista a extremistas de direita da Alemanha:

—Algumas pessoas com Covid tinham comorbidade. Morreriam de qualquer jeito, dias ou semanas depois.

Mein Führer, consigo andar.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/mostrando-o-dedo-para-o-mundo.html


Gaudêncio Torquato: Brasil vegeta sob o reino da mentira

Hoje, o Bra­sil vive sob o Estado de Direito, mas vegeta sob o Estado da ética e da moral, com um mandatário-mor que nega a ciência

Gaudêncio Torquato / Blog do Noblat / Metrópoles

Há 44 anos, o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., falecido no dia 27 de junho de 2009, dando vazão ao sentimento da sociedade brasileira, foi convidado para ler a Carta aos Brasileiros69. O País abria as portas da redemocratização. Hoje, o Bra­sil vive sob o Estado de Direito, mas vegeta sob o Estado da ética e da moral, com um mandatário-mor que nega a ciência, é responsável pela pior gestão da pandemia de coronavírus 19 do planeta, e faz um vergonhoso discurso na abertura da ONU, privilégio que, historicamente, cabe ao Brasil desde 1947.

Em quatro décadas, o País eliminou o chumbo que cobria os muros de suas instituições sociais e políticas, resgatou o ideário liber­tário que inspira as democracias, instalou as bases de um moderno sistema produtivo e, apesar de esforços de idealistas que lutam para pôr um pouco de ordem na casa, não alcançou o estágio de Nação próspera, justa e solidária. O país faz vergonha ao mundo. O baú do retrocesso continua lotado. Te­mos uma estrutura política caótica, incapaz de promover as reformas fundamentais para acender a chama ética, e um governo que prometeu acabar com a corrupção, amarrado às mais intricadas cordas da velha política, usando a extraordinária força de verbas e cargos para cooptar legisladores e partidos, principalmente do Centrão, transformando-se, ele próprio em muralha que barra os caminhos da mudança.

Não por acaso, anos depois o professor Goffredo confessava ter vontade de ler uma segunda carta, desta feita para conclamar pela reforma política e por uma democracia participativa, em que os cida­dãos votem em ideários, não em fulanos, beltranos e sicranos. O velho mestre das Arcadas, que formou uma geração de advogados, tentava resistir à Lei de Gresham, pela qual o dinheiro falso expulsa a moeda boa – princípio que, na política, aponta a vitória da mediocridade so­bre a virtude.

No Brasil, especialmente, os freios do atraso impedem os avanços. Vivemos com a sensação de que há imensa distância entre as locomotivas econômica e política, a primeira abrindo fronteiras, a segunda fechando porteiras. Olhe-se para os Poderes Executivo e Legislativo. Parecem carcaças do passado, fincadas sobre as estacas do patrimonialismo, da competitividade e do fisiologismo. Em seus cor­redores, o poder da barganha suplanta o poder das ideias.

Em setembro de 1993, na segunda Carta aos Brasileiros, o mestre Goffredo escolheria como núcleo a reforma política, eixo da democracia participativa com que sonha. Mas falta disposição aos congressistas para fazê-la. Em 2002, Lula da Silva também leu sua Carta aos Brasileiros, onde pregava uma nova prática política e a instalação de uma base moral. Nada disso foi cumprido. O país continuou a ser um deserto de ideias.

Sem uma base eleitoral forte, os entes partidários caíram na indigência, po­luindo o ambiente de miasmas. Até hoje, os eleitores esperam que as grandes questões nacionais recebam diagnósticos apropriados e propostas de solução para nosso pedaço de chão. Infelizmente, o voto continua a ser dado a oportunistas, operadores de promessas, poucos com ideários claros e correspondentes aos anseios sociais.

A utopia nacional resvala pelo terreno da desilusão. Nesses tempos da CPI da Covid, o Reino da Mentira, descrito pelo senador Rui Barbosa, nos idos de 1919, volta à ordem do dia: “Mentira por tudo, em tudo e por tudo. Mentira na terra, no ar, até no céu. Nos inquéritos. Nas pro­messas. Nos projetos. Nas reformas. Nos progressos. Nas convicções. Nas transmutações. Nas soluções. Nos homens, nos atos, nas coisas. No rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Nas res­ponsabilidades. Nos desmentidos”.

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/o-reino-da-mentira-por-gaudencio-torquato


Alon Feuerwerker: Um Bolsonaro para Bolsonaro? E Moro

Alguém que tire do incumbente a liderança do bloco que vai do centro para a direita, exatamente como o atual presidente fez com o PSDB

Alon Feuerwerker / Blog do Noblat / Metrópoles

Toda previsão no Brasil deveria trazer junto um seguro-imprevisibilidade, mas é razoável supor que entramos num período algo estável, no qual a guerra de movimento vem sendo substituída por uma guerra de posição, e de baixa ou média intensidade. Por uma razão: nem o presidente da República reuniu até o momento força para suplantar os demais poderes nem os opositores acumularam por enquanto massa crítica para depô-lo.

Daí que as atenções comecem a se voltar cada vez mais para a próxima janela de oportunidade na disputa do poder: a eleição. Com uma competição particular entre os candidatos a ser o “Bolsonaro do Bolsonaro”. Alguém que tire do incumbente a liderança do bloco que vai do centro para a direita, exatamente como o atual presidente fez com o PSDB na corrida de 2018. Um PSDB que nas seis disputas anteriores ou ganhara ou pelo menos fora ao segundo turno…

Os dois pré-candidatos tucanos afiaram as lanças esta semana, exibindo suas impecáveis credenciais antipetistas, pouquíssimo tempo após a vaga de opiniões e emocionados apelos pela “frente ampla”. Faz sentido. Para a legenda, a vaga em disputa no segundo turno não é a de Luiz Inácio Lula das Silva, mas a do adversário dele. E os governadores paulista e gaúcho estão num momento de “ciscar para dentro”.

Enquanto isso, o presidente busca um certo reposicionamento, mostrando que a carta redigida em conjunto com o ex Michel Temer não foi raio em céu azul. Tem lógica, pois Jair Bolsonaro não enfrenta concorrência séria no campo da direita. Se mantiver os traços estruturais do discurso, pode tranquilamente fazer movimentos táticos ao “centro”, inclusive por não ter maiores antagonismos com o centrismo. Corre pouco risco de perder substância.

Quanto vai durar a (quase) calmaria? Um palpite é que dure enquanto os dois blocos que hoje travam a disputa mais acalorada, o bolsonarismo e o centrismo, acreditarem reunir potencial de voto para prevalecer em outubro de 2022. Por isso mesmo, seria imprudente apostar todas as fichas num processo eleitoral no padrão dos anteriores, absolutamente estável. Pois alguma hora um desses dois blocos notará que a vaca está indo para o brejo.

A não ser que Lula derreta no caminho. O que por enquanto não está no horizonte.

E os imprevistos? Como dito amiúde, é imprudente desprezá-los. Especialmente diante de um Judiciário fortemente inclinado ao ativismo. Mas eventuais decisões que removam algum contendor manu militari não garantem vida fácil a quem sobrar na corrida. Pois pode perfeitamente acontecer como em 2018: o removido apoiar alguém e manter ocupado o espaço político que se pretendeu deixar vago.

E há outra variável, que ensaia alguns passos, costeando o alambrado: Sergio Moro. As ofertas para ele estão feitas. Com o pulverizado cenário da “terceira via”, a possibilidade de ocupar esse espaço não deixa de ser atraente para o ex-juiz e ex-ministro.

Sobre isso, escrevi em janeiro do ano passado (E se Moro virar o “candidato do centro”?).

Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação

Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/um-bolsonaro-para-bolsonaro-e-moro-por-alon-feuerwerker


Paulo Fábio Dantas: Fusão na direita, campanha na esquerda, hora H no centro

Negar a Bolsonaro a chance de chegar a um segundo turno seria, a meu ver, o argumento mais lógico da esquerda lulista para bombardear a terceira via

A maioria das pesquisas está indicando que se a eleição fosse hoje, Lula ganharia no primeiro turno. Portanto, Bolsonaro estaria fora e ninguém da chamada terceira via decolaria. Esse é o retrato atual da realidade. Em resposta a interpretações fatalistas sobre o sentido dessa informação real, o pré-candidato Ciro Gomes lembrou que pesquisa é retrato, a vida é filme. Esta coluna tem argumentado na mesma linha há algum tempo e cheguei a usar essa mesma imagem a que o pedetista recorreu agora. Porém, as fotografias do momento têm sua relevância e vão se tornando cada vez mais persuasivas, à medida que vai ficando menor o tempo que nos separa da eleição. Daí não poderem ser ignoradas.

Um modo vesgo, no entanto, de considerar as boas notícias que pesquisas têm dado a Lula é ver, ao lado delas, como face reversa de uma mesma moeda, o que seria a “surpreendente” resiliência dos índices de intenção de voto em Bolsonaro. Essa surpresa é desatenta ao fato de tratar-se de presidente no cargo, manejando, sem senso de limites, recursos que o cargo lhe disponibiliza, não poucas vezes avançando em direção à ilicitude.  Comparativamente, sua performance pré-eleitoral tem sido menos atípica do que as derrocadas abissais acontecidas, em contextos bem diversos, nos casos de Fernando Collor e Dilma Rousseff. O argumento de que os crimes de responsabilidade do atual incumbente são incomparavelmente mais graves que os dos seus predecessores é veraz, mas não cancela a lógica do que está diante dos nossos olhos. É o exercício (o normal e o arbitrário) do poder a explicação para que, apesar dos seus crimes, Bolsonaro ainda conserve apoio político no Congresso e nível de aceitação popular para ir ficando no cargo, mesmo que a cada dia adicione, à sua maligna pobreza de espírito, a condição de alma penada. Vistas as coisas sob esse ângulo, boa parte da surpresa se dissolve. Entretanto, esse não é o ângulo político mais habitualmente adotado nas análises e sim o ângulo do espanto indignado.

Resulta, desse ângulo habitual, outra leitura imprecisa da fotografia do momento. A indignação conecta-se à legitima vontade, animada pelo impacto imediato das pesquisas, de que se faça uma espécie de justiça política, expondo o presidente golpista a uma derrota eleitoral acachapante, infligida pelo seu mais conspícuo oponente. Seu golpismo e sua antipolítica serem rejeitados pela opinião pública e pela esmagadora maioria da população não é bastante. Mesmo se essa condenação for capaz de nos livrar de sua presença nefasta na cena, não morre o desejo de execução explícita da sentença, pelo gesto redentor do voto na urna. Trata-se de desejo social que, além de compreensível, é politicamente positivo. Só não se pode dizer que as pesquisas estão a indicar que esse clímax coletivo ocorrerá.

O que aparece em todas as fotografias atuais (e nunca é demais lembrar que a vida é filme) é a vitória de Lula no primeiro turno. Elas mostram, além de uma virtual consagração do petista, duas virtuais inviabilidades: a primeira – de uma candidatura agregadora e competitiva da chamada terceira via - é apregoada aos quatro ventos por inúmeras análises que são música para Lula e o PT e, ao menos, unguento para o bolsonarismo. Mas a segunda – a virtual inviabilidade do próprio Bolsonaro chegar a um segundo turno - costuma ficar obscurecida pela imaginação desse duelo épico, sonhado por alguns, temido por outros. Mas apesar de desejos legítimos e vieses analíticos, as fotos não mentem.

Digo mais: das duas inviabilidades mostradas nas fotografias vejo a de Bolsonaro como maior porque a ele não basta ficar resiliente. Até para simplesmente ir ao segundo turno, precisa reverter o quadro declinante atual e ganhar pontos, o que, dado aquilo que mostram a tragédia social do país, o estágio atual e as perspectivas da economia, o relativo isolamento político do presidente e sua rejeição crescente junto ao eleitorado, parece ser bem mais difícil do que a duvidosa terceira via decolar. A prevalecer a visão dos céticos, de que tendem a ser mantidas as atuais condições de temperatura e pressão, Lula já poderia estar pensando em qual alfaiate contratar. E como o fatalismo anda em alta e o pragmatismo é previdente, forma-se fila para conseguir assento na suposta arca de Noé.

Apesar disso, não se pode ainda descartar que Bolsonaro vá a um segundo turno amparado em seus resilientes adeptos, mesmo que seja só para tomar uma surra eleitoral. Isso poderá ocorrer se a soma de votos dados a candidatos da chamada terceira via crescer um pouco, o suficiente para garantir a realização do segundo turno, mas sem que, por força da fragmentação desse campo, qualquer dos seus nomes ultrapasse Bolsonaro. Uma pesquisa Ibope da última quinta-feira, por exemplo, mostra que quando se admite um cenário com Sergio Moro candidato, Lula segue com intenções de voto suficientes para ganhar no primeiro turno, porém com menos folga, aproximando-se da margem de erro.

Negar a Bolsonaro a chance de chegar a um segundo turno para provocar arruaças no atacado ou a granel seria, a meu ver, o argumento mais forte e lógico da esquerda lulista para bombardear a terceira via com a obstinação que estamos vendo. O único contra-argumento possível, ao mesmo tempo realista e normativo (coisa risível para muitos),  é o de que um candidato de terceira via chegar ao segundo turno - ganhando ou perdendo para Lula - faria muito bem ao país, não só porque deixar de se classificar ao segundo turno seria uma contundente derrota política para Bolsonaro, como porque uma candidatura com postura e programa liberal-democráticos é contraponto à maré populista que tensiona o mundo atualmente, com a pretensão de minar a democracia representativa do constitucionalismo liberal e “refundar” a democracia em bases soberanistas. Esse é o sentido político que teria, neste momento, a agregação máxima possível entre centro-direita e centro, chame-se isso de terceira via, ou não.

Como evidência de que o inusitado é componente sempre possível de dada conjuntura política (sendo mais provável quando são conjunturas críticas) há gente na esquerda insinuando (ao menos em ambientes informais) que a iminente fusão DEM-PSL é biombo de uma conspiração para ressuscitar a jamais nascida candidatura do ex-juiz Sergio Moro. 

Talvez o desejo íntimo que subjaz a essa especulação seja o de que o justiceiro mítico, hoje opaco, cumpra o desiderato de distorcer e desqualificar a ideia de terceira via, sem direito a apelação. Mas conjecturar sobre uma candidatura que, se fosse possível, só interessaria a Bolsonaro (na medida em que facilitaria haver segundo turno) é um diletantismo que não ajuda a esquerda. A Lula, não tendo ele nada de amador, não deve agradar a hipótese dessa torcida crescer na sua cozinha. Se Moro entrasse no jogo – e isso poderia se dar mais por uso solitário de um atalho partidário como o do Podemos - até poderia mesmo jogar um jato de água na terceira via, mas poderia também, e mais provavelmente, jogar outro jato na chance, hoje muito real, de Lula vencer no primeiro turno. E Lula deve ter motivos para querer essa vitória antecipada, não por mera vaidade, ou por receio de efeitos colaterais da jactância morista, mas porque a vitória consumada em primeiro turno dar-lhe-ia tempo de usar disputas de segundo turno nos Estados para fazer alianças conciliatórias. Elas seriam imprescindíveis para dar estabilidade mínima a um governo seu, que não será, nem de longe, o futuro cor de rosa que ele tem prometido em sua performance populista nostálgica, até aqui a escolhida para o vôo sollo no primeiro turno.

Noves fora a insólita suposição de que políticos profissionais, dentre os quais o próprio presidente do Congresso Nacional, possam servir de agentes do projeto pessoal de um ex-juiz, carrasco da “política dos políticos” e com prestigio cadente,  a discussão da fusão dos dois partidos, além de objetivos pragmáticos ligados ao interesse de reeleição de deputados – interesse intrínseco a políticos que atuam numa democracia - sinaliza a disposição da direita brasileira de se reorganizar para fazer valer a sintonia momentânea que seu modo de pensar guarda, em muitos pontos, com o da maioria do eleitorado brasileiro, como foi demonstrado nas três diversas eleições realizadas de 2016 para cá. Tal inclinação conservadora do eleitorado não contradiz a imensa rejeição a Jair Bolsonaro, cuja atitude destruidora de instituições é uma antítese da atitude conservadora. Misturar duas coisas distintas para enxergar na rejeição uma evidente guinada do eleitorado à esquerda, ou mesmo ao centro, seria, no mínimo, uma imprudência analítica.   

Por isso, o pragmatismo que guia a iniciativa da fusão está longe de ser evidência de aproximação dos dois partidos a uma estratégia eleitoral de Bolsonaro ou mesmo do governo, se é que alguma estratégia desse tipo existe como plano A do golpista e da alcateia que o cerca. Parece, ao contrário, ser um modo de ambos os partidos se sentirem material e politicamente fortes para se afastarem de Bolsonaro. Ao mesmo tempo, DEM e PSL freiam o ímpeto de um concorrente de peso – o PSD de Gilberto Kassab – que vinha nadando de braçada, a oferecer boias e botes a náufragos da canoa governista. Nesse mar de águas turvas chega agora um navio de resgate maior. É previsível que o PSD coopere.

A operação, se de fato for consumada, mudará muita coisa (além do que a simples hipótese da fusão já muda) não apenas no palácio ou nas piscinas que o circundam, mas também em todos os campos e quadrantes partidários da política. São muitas - senão todas, exceto as duas nubentes – as forças que torcem ou operam para que a ideia malogre. É previsível que não só o governo, mas interesses distintos joguem firme, oferecendo vantagens, em alianças estaduais, à reeleição de deputados e senadores para atrapalhar a fusão e, se isso não for possível - como parece não ser - para reverter, ou ao menos reduzir, seus efeitos.

O diagnóstico e um dos prognósticos do ex-prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, em entrevista a “O Globo”, são precisos: “DEM migrou para a direita e fusão com PSL será confusa”.  Bom de análise, como de hábito, o Maia original não tenta matar o mensageiro da má (para ele) notícia e faz várias observações perspicazes e realistas sobre possíveis percalços da fusão, sem deixar de admitir, porém, chances de êxito e relevância dos efeitos. Apenas deixou de completar seu raciocínio, por compreensíveis razões políticas que não desqualificam em nada a sua análise. É fato, sim, que o DEM desistiu de ter, ao menos nesse momento, o centro como aliança prioritária (até porque o tipo de reação do outro Maia, o Rodrigo, à sua sucessão na Câmara, tornou mais difícil esse caminho, que já era problemático) e resolveu olhar para a direita. A fusão com o PSL expressa essa escolha. Mas para o raciocínio analítico se completar é preciso ver que esse olhar para a direita, por mais confusões que haja a resolver na sequência, está sendo mais eficaz para tirar o DEM da órbita de Bolsonaro. Tudo bem, é pedir demais a Cesar Maia que, além de bom analista ele seja um político desprendido (contradição em termos) e um pai insolidário.

Quem quer realmente uma dita terceira via tem de saber que o relógio está contra ela e que não dá para perder tempo reclamando da fusão de um partido médio da centro-direita com uma direita mais explícita. Se a agregação não ocorrer pelo centro, tende a ocorrer mesmo pela direita. Será um desfecho sub ótimo, do ponto de vista do centro, que não tem sentido demonizar, a não ser que o sentido seja não o de agregar, mas o de concorrer com a centro-direita. Ademais, o DEM não está queimando seus navios ao se distanciar do centro. O aval à circulação do nome de Luiz Mandetta é demonstração disso. Mas as tranças que Rapunzel joga, ainda que como seu plano B, cairão no vazio se o centro democrático não for capaz de provar que agrega mais do que a direita.  Se não for capaz precisará considerar, com realismo, que essa agregação que a fusão e suas implicações conservadoras insinuam é, ainda assim, um desfecho mais interessante para si e para a democracia do que a guerra de fim do mundo do virtual segundo turno revanche de 2018 e melhor mesmo que o cenário, menos regressivo, de Lula vencendo no primeiro turno, tal como aparece nas fotos do momento. Há três coisas mais importantes hoje do que tentar imaginar agora quem, afinal, vencerá ou perderá as eleições. São elas a garantia de que as eleições aconteçam dentro das regras, a possibilidade de que aconteçam de modo civilizado, com o país já livre do espectro da reeleição de Bolsonaro e a inclusão, desde já, na agenda política, do debate da pauta do país, enfim, do que se quererá no pós-Bolsonaro.

Para quem não possui ânimo nem conexão governista e também está fora da órbita petista, assim desejando continuar, não existe outra opção além da de persistir fazendo política em dois planos. Um é o da frente democrática ampla, para defender, ao lado da esquerda, a democracia e o processo eleitoral dos perigos - não mais eleitorais, mas ainda institucionais – de desestabilização que o bolsonarismo, mesmo politicamente batido, pode causar através do fomento a um caos social e/ou à violência política. Outro é o da articulação e mobilização pré-eleitoral com foco na maior agregação possível do centro com a centro-direita, através de uma candidatura e de um programa capazes de dialogar também com forças de direita, de centro-esquerda, com pragmatismos do tipo centrão e, principalmente, com os eleitorados dos respectivos campos onde se situam essas forças.

Como já disse e nem precisava dizer, é um roteiro de duvidoso êxito. Acrescento que de complexa execução também e por esses dois motivos, é legitimo considerá-lo improvável. Mas mesmo que os vaticínios se confirmem, há aquela hipótese de agregação desse campo a partir de uma força de gravidade vinda, não dele mesmo, mas de uma estratégia de uma direita de vocação governista ainda não inteiramente desprendida de Bolsonaro, mas em trânsito a uma posição de centro direita, justamente para se desvencilhar dele. Em torno desse script do conservadorismo democrático circula a hipótese, por exemplo, da candidatura de Rodrigo Pacheco. A seu favor, a maleabilidade requerida em operações políticas delicadas, a postura não doutrinária em economia, além do discurso irretocável, tendo em vista os cânones do constitucionalismo liberal. Contra ele, a escassa penetração do seu nome em áreas populares e a percepção desfavorável da sociedade em relação ao Parlamento e a parlamentares em geral, variáveis cuja incidência só seria neutralizada pelo impacto de seu envolvimento positivo num fato ou processo politicamente decisivo.  Isso dá lugar a afinidades eletivas (embora não a nexos necessários) entre a ideia de sua candidatura e a hipótese de um impeachment com caráter e dimensões de processo cívico. Mas se o Senado seria o lócus decisivo desse eventual processo, é preciso que sua deflagração seja combinada com Artur Lira e “sua” Câmara. Nesse ponto a incerteza reina.

Independentemente do que cada eleitor, ou grupo de interesse, decida a respeito do seu voto ou apoio, uma via como essa (que não seria mais terceira, mas substituta da primeira via) pode ser vista também como boa notícia para o país, ainda que tenda a estar aquém da plataforma reformadora de cunho social-democrático, que a situação crítica da maioria dos brasileiros requer. Mas isso seria questão a debater e decidir na urna, possibilidade que é horizonte benigno em si, depois de tantos sustos tomados e tantos riscos corridos. Quem leu entrevista recente do ex-ministro Tasso Genro constatará que uma reflexão como essa não pode ser cancelada, simploriamente, como anti-lulismo. É uma reflexão orientada, ao mesmo tempo, por fatos e pelo compromisso com a democracia.

Mas costuma ser mais efetiva na esquerda uma atitude anti-liberal que vincula, tensa e pragmaticamente, o chamado lulo-petismo ao PSOL e a políticos como Guilherme Boulos, a partidos e quadros de organizações de esquerda sem expressão eleitoral, a ativistas de movimentos identitários e a analistas militantes do esquerdismo acadêmico. Trata-se de um maciço ideológico empenhado em não admitir que o "capitalismo" se saia bem da crise provocada por seus contrastes e potencializada pela emergência da extrema-direita global. Crise que é vista, por esses olhos gauche, em chave chinesa, como risco e oportunidade. Por essa ótica Biden pode ter sido aliado tático, mas já é e sempre será adversário estratégico, contra o qual vale até (para alguns mais ousados) ver algum sentido de libertação na luta do Talibã. Nisso acaba dando o fato da 'esquerda ocidental" - especialmente a dos campi universitários e a do hemisfério sul – ter, aos poucos, trocado o Manifesto Comunista (um texto que não xingava e sim analisava criticamente o capitalismo do seu tempo) pela atemporalidade, ou temporalidade recorrente, em aspiral, do I Ching. Filosoficamente, a escolha é livre e nela nada há de ruim. Politicamente, é apenas péssima.

*Cientista político e professor da UFBa.

Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2021/09/paulo-fabio-dantas-neto-baile-de.html


João Gabriel de Lima: O réveillon da discórdia e o jogo na retranca

Bolsonaro fica na retranca, cultivando e eletrizando sua base de eleitores fiéis

João Gabriel de Lima / O Estado de S. Paulo

Era uma vez uma turma de jovens liberais que admiravam Ronald Reagan e Margaret Thatcher. No limiar do século 21, passaram um réveillon juntos. Foram dormir acreditando no “fim da História” – um mundo cada vez mais capitalista, democrático e globalizado. A ressaca veio 20 anos depois. Metade dos convivas não fala com a outra metade. Abriu-se entre eles um fosso com nome e sobrenome: Donald Trump.

A história é contada por Anne Applebaum,

pena mais inquieta da direita liberal americana, em O Crepúsculo da Democracia. O livro é um dos melhores lançamentos do ano da editora Record – que, sob a batuta de Rodrigo Lacerda, ex-colunista do Estadão, vem se concentrando em autores relevantes, como Applebaum, e descartando os irrelevantes, como Olavo de Carvalho. “Muitos de meus amigos chegam a trocar de calçada quando me veem”, disse-me Applebaum quando do lançamento do livro. Ela permaneceu do lado liberal – portanto, radicalmente anti-trump.

Um hipotético réveillon em 2018 poderia ter reunido, em torno da mesma garrafa de champanhe, João Amoêdo, João Doria, Kim Kataguiri e Sérgio Moro, junto com Jair Bolsonaro e os bolsonaristas. Em 2021, uma festa assim não seria mais possível. Moro saiu do governo atirando – e Kataguiri, Amoêdo e Doria, simpáticos a Bolsonaro em 2018, hoje namoram a tese do impeachment.

“A direita liberal que estava com Bolsonaro por causa do antipetismo se descolou”, diz o cientista político Carlos Melo, professor do Insper e entrevistado do minipodcast da semana. O tabuleiro de 2022 será marcado pela divisão das direitas e mais dois fatores: a rejeição a Bolsonaro e sua estratégia eleitoral.

A popularidade do presidente está em queda desde fevereiro. Nesse período, cresceu em 14% o número de eleitores que consideram seu governo “ruim” ou “péssimo”. Nesta semana, o índice chegou a 53%, configurando pela primeira vez a rejeição da maioria absoluta. Os números são do Ipec.

Diante desse quadro, Bolsonaro “joga por uma bola”. Em vez de se lançar ao ataque, tentando reconquistar a direita liberal que “se descolou”, o presidente fica na retranca, cultivando e eletrizando sua base de eleitores fiéis. Considera que isso é suficiente para levar o jogo para a prorrogação – o segundo turno. Sua esperança é que as direitas se unam em torno de seu nome para derrotar o PT.

O discurso do dia 21 na ONU segue esse esquema tático. De olho em sua base (e para vergonha dos demais brasileiros), Bolsonaro descreveu um país de fantasia onde não há corrupção, desmatamento ou instabilidade política. Um vídeo-exaltação circulou nos grupos bolsonaristas de Whatsapp. Ele mostra o presidente brasileiro sendo supostamente ovacionado num aeroporto em

Nova York. A imagem, na verdade, é de 2018, e em outro aeroporto – o de Natal, no Rio Grande do Norte.

O jogo na retranca tem seus riscos. Como mostrou o Ipec, Bolsonaro é hoje mais rejeitado que a esquerda. Não à toa, o PT faz corpo mole quando se fala em impeachment. Apoiadores propagam que Lula deseja ardentemente enfrentar Bolsonaro no segundo turno. O impeachment é um bom negócio para os que buscam a “terceira via”, não para o PT.

O cenário lembra o dos Estados Unidos em 2020. A queda de popularidade de Donald Trump impulsionou a vitória de Joe Biden – com o voto de liberais como Anne Applebaum. Se os números do Ipec se mantiverem, a rejeição crescente a Bolsonaro pode eleger Lula.

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-reveillon-da-discordia-e-o-jogo-na-retranca,70003850103


Bolívar Lamounier: O poder da decadência

Poder político brasileiro é pateticamente débil, e nada autoriza a crer que logo seremos um colosso

Bolívar Lamounier / O Estado de S. Paulo

Centenas de pessoas não perdem uma chance de cobrar “realismo” dos jornalistas e analistas políticos, como se a realidade política fosse uma coisa unidimensional, percebida sempre da mesma forma por toda a sociedade, hoje, amanhã e sempre.

Poucos se dão conta de que a “realidade” de hoje pode não ser a de amanhã, que por sua vez poderá diferir bastante da que teremos na próxima década. Esta observação seria inútil, se tivéssemos como superar as crises e acertar os rumos do País sem um grau razoável de convergência em nossas percepções. Sem esquecer que nossas preferências também divergem: alguns querem a democracia, outros anseiam por alguma forma de ditadura. Isso posto, peço licença para hoje escrever sobre uma realidade um tanto indefinida, que combina elementos de hoje com alguns de nosso passado histórico e outros situados no futuro, sendo que, sobre estes, é pouco o que nos é dado conhecer.

Ainda assim, atrevo-me a antecipar que o poder político brasileiro – vale dizer, nosso Estado – é pateticamente débil, uma decantação hoje virtualmente petrificada de muitos fracassos, e que nada nos autoriza a crer que logo seremos um colosso. Em 1958, Celso Furtado explorou esse tema pelo lado da história econômica, com o objetivo de demonstrar que os grandes ciclos econômicos que vivemos (cana-de-açúcar no Nordeste, mineração de ouro e diamantes em Minas e, finalmente, o café em São Paulo) não deixaram uma base sólida para um processo sustentável de industrialização, sem o qual não teríamos desenvolvimento, bem-estar e autonomia nacional. Examinando o mesmo fato pelo lado político, vemos que os resultados logrados foram ruins para a industrialização e desastrosos para a construção do Estado, uma vez que abriram espaços para um contínuo relançamento do patrimonialismo – a apropriação do poder político por setores empresariais decadentes, que se especializaram em concentrar os ganhos e socializar as perdas. Duas exceções permitem amenizar em certa medida esse argumento. A exaustão do ouro deixou alguns núcleos favoráveis à pecuária bovina; nessa área, o empresariado do Triângulo Mineiro, lixando-se para o governo federal, desencadeou um poderoso crescimento a partir da importação e aclimatação das raças zebuínas da Índia. O café, cujo legado foi mais importante, a começar pela passagem do trabalho escravo para o assalariado, não diferiu totalmente da cana-de-açúcar, uma vez que, forçado pela superprodução, teve de recorrer à generosidade estatal, trocando sua altivez política pelas mesmas bênçãos do Estado, que atuou como intermediário em mais uma reedição da “socialização das perdas”.

Essa, em grandes linhas, é a história de nosso mastodôntico Estado, cuja congênita inviabilidade se evidenciou com o experimento da industrialização em “marcha forçada” deslanchado pelo governo do general Ernesto Geisel. A “realidade” com que hoje nos deparamos é, pois, uma estrutura de poder incapaz de promover o crescimento num ritmo compatível com o aumento da população, com a superior organização de nossos competidores internacionais e com nossa dramática anemia educacional, científica e tecnológica.

Esta é a base sine qua non que precisamos levar em conta para delinear futuras realidades que podem estar à nossa espreita logo ali, ou um pouco à frente. O Brasil vive hoje uma polarização política infantil e estéril, contrapondo dois líderes populistas que bem fariam em se aposentar, dado já terem feito tudo o que ninguém os julgava capazes de fazer pelo Brasil – para o bem e para o mal. Lula, aos 77 anos, já bateu no teto, e o mesmo acontece com Bolsonaro, na pujança de seus (presumíveis) 15 anos. Sabemos todos que o clima de radicalização e turbulência é música para os ouvidos de Bolsonaro, reforçando a condutibilidade atmosférica que lhe facilita mobilizar seus fanáticos. Dá-se, no entanto, que este clima mantém o dólar valorizado e empurra a inflação para cima, a última crueldade que nossa medíocre politicagem pode perpetrar contra os 46 milhões de indivíduos que vivem em lares com zero reais de renda mensal.

Eu, com certeza, serei acoimado de irrealista se disser que ambos, Lula e Bolsonaro, poderiam fazer-nos o favor de ir para casa, para que o Brasil possa voltar à sua precária normalidade e retomar o processo de crescimento econômico. Realistas são os que tentam ver Lula não só como o imbatível antibolsonaro, mas também como o grande estadista-pacificador que ele nunca foi e não tem condições de ser. Com lápis e papel à mão, os que insistem em enxergar a realidade por esse prisma já podem, então, pôr mãos à obra, rascunhando seu cenário para daqui a dez anos. No centro de seu idílico desenho estará – Deus seja louvado – nossa política, finalmente renovada pelo Centrão. Os 46 milhões sem renda terão subido um nível, compartilhando a felicidade dos que auferem ao menos até um salário mínimo de renda mensal. Entre os Três Poderes, reinarão a harmonia e a independência que a Constituição tão sabiamente prescreve.

*Membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, seu mais recente livro é ‘Antes que me esqueça’ (Editora Desconcertos)

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-poder-da-decadencia,70003849682


Cristina Serra: Sobre médicos e monstros na Prevent Senior

É preciso fortalecer o SUS e aumentar os investimentos no sistema

Cristina Serra / Folha de S. Paulo

São estarrecedoras, mas não exatamente surpreendentes, as denúncias envolvendo a operadora de planos de saúde Prevent Senior. A suspeita de que há algo de podre na rede de hospitais da empresa abriu nova e necessária frente de investigação na CPI da Covid.

Entre as irregularidades, estariam a prescrição abusiva de medicamentos e tratamentos ineficazes, sem que os pacientes e seus parentes tivessem sido consultados. As ilicitudes apontadas incluem ainda ameaçar os médicos de demissão para que receitassem esses remédios e também fraude de suposta pesquisa científica, prontuários e atestados de óbito, o que resultaria em subnotificação de casos de Covid.

Tudo isso é grave, criminoso e cruel, mas se encaixa na lógica do modelo de negócio dos planos de saúde. Para capturar incautos, prometem mundos e fundos. Na prática, dificultam o acesso aos serviços, sobretudo se o paciente precisar de uma internação, um dos itens mais caros do setor.

Mal ou bem, é assim que funciona. Mais mal do que bem, tanto que os consumidores frequentemente têm que recorrer à Justiça para que muitas dessas arapucas cumpram o que já está nos contratos. Aí vem uma pandemia e o tal modelo de negócio implode porque, de uma hora para outra, milhares de clientes precisam dos leitos mais caros, em UTIs, e por muito tempo.

No caso da Prevent Senior, voltada ao público idoso, o mais afetado nos primeiros meses da pandemia, não é difícil imaginar o estrago na margem de lucro. Daí para empurrar cloroquina goela abaixo dos pacientes e vender a ilusão de que eles poderiam se tratar em casa é um pulo.

Esse caso nos faz refletir sobre médicos e monstros e nos mostra que saúde não pode ser tratada como negócio. A alternativa nós já temos. É preciso fortalecer e aumentar o investimento no Sistema Único de Saúde, o nosso SUS, porque saúde é direito humano e coletivo.

Dou umas férias aos prezados leitores. Volto em 23 de outubro.

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cristina-serra/2021/09/sobre-medicos-e-monstros-na-prevent-senior.shtml


Pablo Ortellado: O bolsonarismo interpreta 2013

Protestos contra Dilma, a crise do governo Temer e a eleição de Bolsonaro seriam a expressão da outra metade das reivindicações

Pablo Ortellado / O Globo

Estreou em São Paulo o filme “Nem tudo se desfaz”, de Josias Teófilo. É uma leitura equivocada, porém muito interessante e reveladora, da história brasileira recente, ligando os protestos de junho de 2013, o impeachment de Dilma Rousseff, a crise do governo Temer e a eleição de Jair Bolsonaro.

Em 1985, Luc Ferry e Alain Renaut publicaram “O pensamento 1968”, que apresentava os protestos de maio de 1968 na França como um avanço do individualismo e as obras de Foucault, Derrida, Bourdieu e Lacan como expressão desse movimento. O filósofo Cornelius Castoriadis, que participou dos protestos, se indignou com a “ligação falaciosa” entre as manifestações e as obras de autores que “lhes eram completamente estrangeiras” e se surpreendeu como, passados poucos anos, com os protagonistas ainda vivos, um evento político de grande magnitude podia ser apresentado como seu oposto.

Algo assim aconteceu também com junho de 2013. Não deveria haver controvérsia sobre o que pediam os protestos. Diferentes pesquisas de opinião investigaram os manifestantes e encontraram sempre dois conjuntos de reivindicações simultâneas: de um lado, reivindicações sociais — transporte, educação e saúde; de outro, o combate à corrupção.

No filme, pouco se diz sobre as demandas sociais. Quando aparecem, são tratadas como uma ilusão, uma expectativa ingênua de que se cumprissem promessas vazias dos constituintes de 1988 — como se o SUS e a universalização da educação básica não tivessem sido implementados após 1988 e como se a cidadania não pudesse aspirar a direitos sociais ainda mais amplos.

Os protestos contra Dilma, a crise do governo Temer e a eleição de Bolsonaro seriam a expressão da outra metade das reivindicações, que o filme apresenta como as reivindicações que tiveram consequências reais, se esquecendo da redução das tarifas de transporte, das greves de 2013-2014 e das ocupações de escolas de 2015-2016.

Na verdade, ao olhar apenas para metade do conteúdo reivindicativo de junho de 2013, o filme reproduz a dinâmica da polarização que consistiu em os estratos de esquerda e de direita da classe política subordinarem o levante selvagem da sociedade civil, dividindo as demandas, jogando uma contra a outra, como se, para ser anticorrupção, fosse necessário ser contra as pautas sociais na figura de um Estado grande e, para defender a ampliação de direitos sociais, fosse necessário ser contra o combate à corrupção. A potente mobilização de uma sociedade civil contra a classe política se transforma assim no conflito fratricida entre lulistas e bolsonaristas.

Apesar de fazer uma leitura bolsonarista, que liga sem mediações adequadas junho de 2013 às eleições de 2018, o filme joga muita luz sobre a ascensão de Bolsonaro.

Seus momentos mais reveladores são quando apresenta as guerras culturais como uma luta populista contra o elitismo dos progressistas, quando mostra o caráter contracultural do politicamente incorreto e quando apresenta a centralidade da comunicação digital para a ascensão da nova direita. Por esses motivos, é um filme que merece ser visto.

Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/o-bolsonarismo-interpreta-2013.html


Ascânio Seleme: Casa dos horrores

No Brasil, Prevent Senior parece apenas mais um caso dos muitos que já foram banalizados pelo dia a dia de uma terra sem lei

Ascanio Seleme / O Globo

Coma exceção do Afeganistão e talvez da Síria, que têm problemas mais urgentes e tenebrosos, todos os países do mundo tratariam como escândalo espantoso um episódio como o da Prevent Senior. Não apenas porque a prestadora de serviços de saúde ministrou remédios sem eficácia a seus pacientes, mas porque usou parte da sua clientela, velha e indefesa, para fazer testes e experiências que resultaram na morte de pessoas. No Brasil, parece apenas mais um caso dos muitos que já foram banalizados pelo dia a dia de uma terra sem lei.

Os dados até aqui revelados pelos repórteres Ana Clara Costa e Guilherme Balza não deixam margem para dúvida, a Prevent Senior agiu deliberadamente de maneira criminosa e odienta. Desrespeitou o direito dos pacientes e seus familiares, não cumpriu com o seu dever profissional, moral e ético, omitiu ou fraudou informações e mentiu. O pacote de absurdos praticados por orientação expressa dos dirigentes da empresa, que alguns médicos se recusaram a obedecer, precisa ser ainda esmiuçado e em seguida seus responsáveis punidos com toda a extensão e com o absoluto rigor da lei.

Além de matar pacientes, as orientações dadas aos funcionários da Prevent Senior serviriam também para esculachar os doentes com experimentos sem qualquer apoio científico e sem autorização formal de pacientes, famílias ou entidades que regulam o setor, como a Anvisa. A empresa diz que a orientação era dos médicos, não do seu corpo administrativo. Mentira. As reportagens mostram o contrário. Há casos, já fartamente documentados, de clientes da Prevent Senior que ligavam para a empresa para relatar casos de Covid e recebiam em casa horas depois, sem pedir, kits de cloroquina, ivermectina e outras drogas comprovadamente ineficientes no combate à doença.

O Hospital Sancta Maggiore, da Prevent Senior, em São Paulo, virou uma casa de horrores. Pacientes, todos idosos, porque a empresa como o nome diz trata exclusivamente de seniores, foram tratados até a eclosão do escândalo como cobaias de experiências macabras. Se fosse um filme, você diria que o roteirista exagerou. Exagerou tanto que colocou dentro do hospital três personagens que se somaram ao esforço do gabinete paralelo do presidente Jair Bolsonaro para enfrentar a Covid por meios ineficazes. Estavam lá os médicos Nise Yamagushi e Anthony Wong e o empresário travestido de periquito Luciano Hang.

Nise, que se sentiu ofendida ao ser contestada na CPI da Covid, andou pelo Sancta Maggiore fazendo a interface do gabinete paralelo com a Prevent Senior. Wong, que como Nise pregava o tratamento precoce, morreu naquele hospital bombardeado pelo pacote completo de remédios ineficientes. Até ozônio pela via retal foi administrada em Wong enquanto ele estava desacordado num leito de UTI pouco antes de morrer. Hang levou para a casa de horrores a sua mãe, que obviamente morreu com tratamento inadequado.

O milionário, que poderia ter levado a genitora para se tratar no Einstein ou no Sírio Libanês, preferiu usar os serviços da Prevent Senior, possivelmente orientando por Nise ou outro membro do gabinete paralelo. Quando o caso se tornou público, Hang emitiu uma nota reclamando da “maldade humana” pelo que chamou de desrespeito com a sua mãe. Nenhuma palavra sobre a omissão da Covid no atestado de óbito da senhora que, como no de Wong, constavam diversas causas e nenhuma menção ao que a levou a ser internada.

Hang também nada disse sobre a continuada exploração do cadáver da mãe por ele próprio, que fez um vídeo para tratar disso e afirmou que ela poderia ter sobrevivido se tivesse tido “tratamento precoce”, levantando um cartaz com esses dizeres. Pior é que a pobre senhora foi submetida a toda a bateria de remédios do kit Covid da Prevent Senior. Até ozônio foi ministrado a ela. O empresário lamenta que não foi preventivo e não conseguiu salvar a vida da mãe. Mas, como disse o presidente que ele tanto mitifica numa entrevista a ativistas alemães de extrema-direita, a maior parte dos óbitos foi de pessoas com comorbidade que “apenas tiveram suas vidas encurtadas em alguns dias ou semanas”.

De volta em 2026

O maior equívoco da vida pública nacional pode dizer adeus temporariamente à política no ano que vem? Muita gente que circunda Jair Bolsonaro tem dito que ele pode não se candidatar à reeleição em 2022. O quadro ainda está sendo desenhado, mas a hipótese é bem concreta caso se confirme a inviabilidade da sua candidatura, já detectada por pesquisas. Neste caso, ele poderia dizer estar apenas cumprindo promessa de campanha. O Centrão até já se posicionou, sugerindo que poderia blindar a ele e seus filhos no Congresso para não serem punidos pelos crimes que cometeram. Como pacote adicional, Bolsonaro encaminharia ao Congresso uma PEC acabando com o instituto da reeleição. Neste caso, poderia voltar em 2026 sem ter de enfrentar um presidente no cargo.

Basta?

A saída do cenário de Bolsonaro bastaria? Não, não bastaria. Ele precisa ser julgado e condenado pelos inúmeros crimes que já cometeu e pelos que ainda vai cometer até deixar o Palácio do Planalto. Nem o impeachment sozinho seria suficiente para que o Brasil mostre ao mundo, depois da passagem grosseira do presidente Sujismundo e de sua comitiva por Nova York, que o seu maior dano histórico foi reparado.

Senado progressista

O Senado sempre foi a casa conservadora do Congresso Nacional, cabendo à Câmara um perfil um pouco mais (não muito) progressista. Esses papéis se inverteram desde a posse de Arthur Lira e a implantação da sua pauta para lá de heterodoxa. A Câmara virou um feudo do que há de mais retrógrado na política e o Senado passou a exercer a função de reparador de estragos produzidos pelos deputados. Foi o que aconteceu com a PEC da reforma política, com a revogação da permissão dada pela Câmara para as coligações em eleições legislativas. Por isso, aliás, Rodrigo Pacheco é pré-candidato a presidente. Já Lira...

Uma vez fantasma...

Como revelou o repórter Felipe Bachtold, a mulher do presidente da Câmara, Arthur Lira, denunciada como funcionária fantasma quando era empregada da Assembleia Legislativa de Alagoas, foi nomeada em julho secretária-adjunta da representação estadual do governo de Roraima em Brasília. No escritório, ninguém sabe dizer se aex-fantasma Angela Lira tem aparecido para trabalhar. Nem porque uma alagoana que mal conhece Roraima virou representante do estado na capital federal.

O que é pior?

O que parece mais patético: o deputado zerinho dizer que o prefeito de Nova York é marxista e os EUA podem se tornar uma grande Venezuela ou o apresentador Tucker Carlson, da Fox News, fazer ar sério e assustado como se estivesse ouvindo uma revelação?

Melhor calar

Não havia hora melhor para ficar calado, mas o vice Hamilton Mourão é daqueles que não pode ver uma geladeira aberta, acha que é flash de TV e começa a falar. Ao defender o machismo de Wagner do Rosário, dizendo ser normal as pessoas eventualmente darem uma aloprada, Mourão mostrou o que mesmo velhos oficiais aprendem na caserna.

Medalhas

Depois que a Assembleia Legislativa de São Paulo resolveu criar a medalha Erasmo Dias de Segurança Pública, vale avaliar se não cabem também a medalha Brilhante Ustra de Interrogatório Policial e a medalha Newton Cruz de Pacificação das Vias Públicas. Da mesma forma, pode-se pensar na medalha Jair Bolsonaro de Respeito aos Valores Democráticos.

Fenaj X Google

A presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Maria José Braga, a Zequinha, quer criar uma taxa progressiva a ser cobrada de plataformas digitais como Google, Facebook e Amazon para formar um fundo que promoveria o “jornalismo de qualidade” no Brasil.

Ir à igreja

Pesquisa da Bateiah Estratégia e Reputação revela que as pessoas estão ansiosas para a pandemia passar para poder, veja só, ir à igreja. A sondagem, que ouviu 1.455 pessoas em todo o país, mostra que 26,2% pretendem prioritariamente voltar aos seus templos quando a pandemia cessar. Outros 17,8% querem fazer turismo, enquanto 14,5% estão loucos para voltar a bater perna nos centros populares de comércio; 11,1% querem ir a restaurantes; 9,5% sonham em voltar para as academias de ginástica; e 8,7% querem retomar sua agenda cultural indo a teatros e a shows.

Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/casa-dos-horrores-25212355