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Antonio Risério: Lugar de fala é instrumento para fascismo identitário

Conceito traz consigo a ânsia autoritária de calar a diferença

Minha intenção, aqui, é colocar o tal do lugar de fala no seu devido lugar. Mas, antes disso, me sinto na obrigação de fazer umas observações preliminares.

De uns tempos para cá, temos visto uma onda de violência se encorpando assustadoramente em todo o país. São calúnias, linchamentos verbais, agressões físicas. Partindo tanto do segmento atualmente mais barulhento da esquerda, cristalizado nos movimentos identitários e suas milícias (eufemisticamente tratadas como “coletivos”), quanto da extrema direita, com sua ponta de lança na boçalidade bolsonarista.

Recentemente, intelectuais de esquerda, a exemplo de Renato Janine Ribeiro, vêm falando sobre o assunto. Denunciando, por exemplo, ações para impedir que críticos do atual governo se manifestem em festas ou feiras literárias que, como a de Paraty, se converteram em arraiais juninos do identitarismo. Mas a crítica esquerdista a uma ascensão do fascismo entre nós tem sido feita de maneira estranha e sintomaticamente seletiva.

O que vemos são ataques ao fascismo de direita —e silêncio sobre o fascismo de esquerda. Como no dito popular, os macacos se negam a olhar o próprio rabo. E isso embora, em nossa conjuntura recente, o fascismo de esquerda tenha saltado na frente, como vimos em 2013, numa feira literária em Cachoeira do Paraguaçu, no Recôncavo Baiano, quando extremistas identitários impediram o geógrafo Demétrio Magnoli de falar e praticamente o expulsaram da cidade.

Antes que algum esquerdista proteste, aviso que uso a palavra “fascismo” a propósito de qualquer iniciativa que vise a exercer controle ditatorial sobre postura e pensamento dos outros, a fim de impedir que estes questionem dogmas de determinado grupo que se considera portador da verdade e do destino histórico da coletividade.

Digo isso porque, muito curiosamente, ainda existe quem pense que a esquerda —apesar das atrocidades protagonizadas por Stálin, Mao Tsé-tung, Pol Pot, Fidel Castro etc.— é imune ao fascismo.

Bem, o fascismo identitário corre solto, com sua pitoresca mescla de revolucionarismo fraseológico e conservadorismo ideológico (afinal, ninguém mais fala em transformação global da sociedade e instauração de um novo mundo; antes, luta-se por maior participação e mais oportunidades no interior da sociedade que aí está— batalha por empregos, salários etc., com todos ansiando fazer parte do “mainstream”, o que não tem nada de errado, mas também nada tem a ver com subversão e muito menos com socialismo) e seu típico pessimismo programático com relação às sociedades ocidentais modernas, mas com o neofeminismo fechando os olhos para a opressão masculina entre muçulmanos e o racialismo neonegro fingindo não ver a exploração do negro pelo negro em Angola ou na Nigéria, por exemplo.

E aqui, finalmente, chego ao ponto que anunciei. É o tal do lugar de fala, que defino como expediente fascista típico do identitarismo, em sua ânsia de calar a diferença, silenciar a outridade. Mas, como tem gente que acha que esse lugar de fala é fundamental, avanço então para dar a minha visão (mesmo resumida) de tal procedimento supostamente democrático, mas, na realidade, perversamente ditatorial e excludente.

Sim: “lugar de fala” é uma perversão ideológica doentia de um antigo truísmo sociológico. No caso, a banalidade sociológica foi distorcida em guilhotina ideológica, destinada a cortar cabeças genital ou cromaticamente diferentes ou política e ideologicamente discordantes. Um instrumento ou mecanismo fascista feito sob medida para eliminar dissidências.

Aprendemos há muito, com a sociologia, a fazer a leitura de qualquer discurso em conexão com a “posição de classe”, com o lugar do discursante na estrutura da sociedade e em sua hierarquia sociocultural. É o beabá da sociologia, embora sua aplicação nem sempre seja fácil e imediata (pode ser altamente complexa, se tomarmos como objeto de análise, por exemplo, o discurso de Karl Marx ou o do nosso Joaquim Nabuco), a menos que cedamos à tentação emburrecedora do chamado marxismo vulgar, que acaba não dizendo nada sobre nada.

Mas vejamos em plano geral. O que a filosofia e a sociologia ensinam, pelo menos da passagem do século 18 para o 19 e até aos dias de hoje, é que as ideias (os discursos, na gíria mais moderna) têm sua origem em alguma base fundamental, ou em algum espaço basilar, que é exterior ao mundo das próprias ideias. Vale dizer: as ideias se configuram num espaço, base ou recanto extraideacional.

Já se pensava assim quando Destutt de Tracy publicou seus “Eléments d’Idéologie” em 1801. O sociólogo berlinense Reinhard Bendix sintetiza: “As ideias derivam exclusivamente de percepções sensoriais, acreditava ele. A inteligência humana é um aspecto da vida animal e ‘ideologia’ [na acepção de ciência das ideias] é, portanto, parte da zoologia. Tracy e seus colegas achavam que, através dessa análise reducionista, no sentido de atividades mentais serem atribuídas a causas fisiológicas subjacentes, haviam chegado à verdade científica”.

Já o marxismo clássico reza que cada classe social gera uma certa consciência da vida e do mundo. De Destutt de Tracy a Marx, no entanto, o pressuposto é o mesmo: o significado último das ideias deve ser buscado não nelas mesmas, mas no que está por trás delas, sejam constrangimentos físicos, sejam condicionamentos sociais.

Aí estão balizamentos teóricos do lugar de fala, na tradição do conhecimento filosófico e social. O que diferencia esse lugar de fala do lugar de fala do identitarismo? Simples. Mas antes façamos uma observação necessária. O lugar de fala identitário não deixa de ser um retrocesso a Destutt de Tracy, no sentido de que volta a tomar a realidade ou a situação física da pessoa (não se pensa mais em classe social, claro) como base e explicação de tudo.

O identitarismo representa assim um retorno epistemológico à configuração física do indivíduo. Especificamente, à organização genital da pessoa (não no sentido complexo da “Teoria Psicanalítica da Libido” de Karl Abraham, é claro, mas no do simplismo neofeminista, corpo marcado pela presença do célebre “penis erectus”, ou com a fenda subclitoridiana e seus lábios se abrindo sob pelos pubianos) ou à pigmentação da pele (a melanina da bioquímica) ou mesmo à negação metafísica da bipartição sexual objetiva da espécie humana (e não me lembro quem escreveu que toda negação se contém no espaço daquilo que nega). Ou seja: estamos nos reinos da vagina e da melanina.

Mas há uma diferença imensa, escandalosa mesmo, entre a disposição sociológica e a predisposição identitária. Para a sociologia, o que está em tela é uma constrição relativa à “posição de classe” do indivíduo. Um condicionamento (e não um determinante, por sinal) desenhado pelo lugar do indivíduo, do grupo ou da classe na estruturação hierárquica da sociedade.

Para a perversão identitária, a conversa é outra: essa posição na estrutura da sociedade, antes que ser tomada como realidade a ser imparcialmente reconhecida e examinada, assume um significado moral: é razão de condenação inapelável (se o sujeito se achar na posição de “opressor”) ou de celebração irrestrita, de canonização como fonte de legitimidade discursiva (se o sujeito se achar na posição de “oprimido”).

Vale dizer: para a sociologia, trata-se de compreender o fenômeno —para o identitarismo, trata-se de julgar. E quem por acaso se encontrar no lugar do “opressor” deve ter a voz cassada, deve ser calado, mesmo que à força, na base do grito e da porrada. Daí que, regra geral mesmo, tudo que o identitarismo define como “inclusivo”, a exemplo do seu “lugar de fala”, é coisa que circunscreve um agrupamento e implica a exclusão dos demais. E assim o que vemos, à nossa frente, é o paradoxo da inclusividade excludente.

Mas vamos finalizar. Não me lembro agora quem fez a distinção política precisa. Nestes últimos anos, a liberdade de expressão e o pensamento independente sofrem pressões e ameaças vindas de duas direções poderosas. No espaço geral da sociedade, elas vêm basicamente da extrema direita. No espaço mais restrito do campo universitário e do mundo artístico-intelectual, vêm basicamente da esquerda identitária.

Plantado com clareza no campo da esquerda democrática, penso que temos de combater esses dois fascismos, na base do vigor, do rigor, da criatividade e da coragem. Combater “ambos os dois” —como diria o velho Luiz de Camões. Hoje, a liberdade, juntamente com a necessidade de redução das distâncias sociais, é questão essencial da vida brasileira.

*Antonio Risério, poeta, romancista e antropólogo, autor de "A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros" (ed. 34) e "Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária" (Topbooks)


Revista Política Democrática || Entrevista Especial - Antonio Risério: "A gente vive em uma sociedade bipolar"

Para o poeta e historiador Antonio Risério, o Brasil será modificado realmente quando os brasileiros aprenderem a dizer "nós fizemos isso" e pararem de falar na terceira pessoa: “Eles mataram os índios”, “Eles oprimem as mulheres”, “Eles são os culpados de tudo”, afirma

Por Caetano Araujo, com a colaboração de Ivan Alves Filho

Antropólogo, poeta, ensaísta e historiador brasileiro, Antonio Risério é o entrevistado especial da 13ª edição da Revista Política Democrática Online. Ele acredita que, hoje, muita gente do campo democrático anda preocupada em superar a atual polarização brasileira e encontrar um rumo para o País. "Eu me coloco claramente no campo da esquerda democrática e não tenho nenhum problema com isso. O que acho houve no país foi o seguinte. Ao se tornar independente e conquistar autonomia nacional, o Brasil teve de construir a imagem do que somos", diz Risério.

Antonio Risério nasceu na Bahia, em 1953. Fez política estudantil em 1968 e mergulhou na viagem da contracultura. Implantou a televisão educativa, as fundações Gregório de Mattos e Ondazul e o hospital Sarah Kubitschek, na Bahia. Fez o projeto para a implantação do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.Tem feito roteiros de cinema e televisão. Diversas composições suas foram gravadas por estrelas da música popular brasileira. Integrou os núcleos de estratégia e criação das duas campanhas de Lula à presidência da República.

Escreveu, entre outros, os livros Carnaval Ijexá (Corrupio, 1981), Caymmi: Uma Utopia de Lugar (Perspectiva, 1993), Textos e Tribos (Imago, 1993), Avant-Garde na Bahia (Instituto Pietro Bardi e Lina Bo, 1995), Oriki Orixá (Perspectiva, 1996), Ensaio sobre o Texto Poético em Contexto Digital (Fundação Casa de Jorge Amado, 1998) e Uma História da Cidade da Bahia (Versal, 2004).

O poeta e historiador aponta, ainda, que o Brasil tem, atualmente, a necessidade de repensar a sociedade e reinventar a nação. "Está faltando, portando, uma releitura crítica da sociedade que se torna brasileira. A gente não pode ficar fazendo como esses filmes Carlota Joaquina, como o desfile da Mangueira, que é totalmente dominado por essa nova ideologia dominante da história do país entre ricos e pobres", alerta.

Na entrevista especial concedida a Caetano Araujo, com a colaboração de Ivan Alves Filho, Antonio Risério destaca temas como a esquerda democrática brasileira, a história oficial brasileira e organização intelectual e ideológica da sociedade brasileira, entre outros.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Revista Política Democrática Online (RPD): O senhor acredita que o povo brasileiro ainda não superou sua baixa autoestima, padecendo do chamado complexo de vira-lata? 
Antonio Risério (AR): Pois eu acho o contrário. A gente vive em uma sociedade bipolar; vamos de um extremo a outro, da euforia à depressão (inint) [00:01:25]. Tem hora que nos vemos como os melhores do mundo; tem hora que o povo acha que o Brasil vai fazer merda. É uma certa dose de masoquismo nacional e, ao mesmo tempo, uma tentativa de fugir da responsabilidade. É muito comum as pessoas falarem no Brasil na terceira pessoa: “Eles mataram os índios”, “Eles oprimem as mulheres”, “Eles são os culpados de tudo”, mas nós não. A gente só vai modificar esse país quando aprender a dizer: “Nós fizemos isso”.

RPD: Por que razão a esquerda, se é que o senhor ainda se vale desse termo, perdeu de vista a ideia de que somos uma nação, com suas conquistas e também suas falhas, naturalmente? 
AR: Eu me coloco claramente no campo da esquerda democrática e não tenho nenhum problema com isso. O que acho houve no país foi o seguinte. Ao se tornar independente e conquistar autonomia nacional, o Brasil teve de construir a imagem do que somos. Daí a criação do Instituto Histórico Geográfico (IGH) e o trabalho pioneiro de Varnhagen, historiador francês, que nos descreveu em termos geográficos - cidades, rios, montanhas, Pico da Neblina etc – e, em termos históricos, o que éramos como personalidades e que feitos memoráveis definiam nossa identidade. Durante uns cem anos ou um pouco mais, o Instituto concentrou o estudo da história do Brasil.

Só muito recentemente é que vão surgir outros pólos de aspecto historiográfico, que irão proceder a uma releitura da visão tradicional cultivada do Brasil, que, na verdade, era uma celebração da colonização portuguesa e dos trópicos. Mas, em vez de reexaminar a experiência nacional brasileira, ela vai simplesmente inverter o sinal algébrico da velha história oficial e introduz a visão maniqueísta, de que a classe dominante é o mal e as classes dominadas, o bem. A classe dirigente vira alvo de ataque e, ao mesmo tempo, a classe dominada e as classes populares, objeto de celebração.

O que acontece, então? Passa-se a ter três figuras na nova história oficial do Brasil: o negro libertário, o índio ecofeliz e o português genocida. Cria-se uma mitificação do português genocida, considerando que a invasão portuguesa na Bahia é a quarta invasão que a gente tem documentada, bem como do índio libertário e do índio ecofeliz, já que a sociedade Tupinambá, por exemplo, era uma máquina de guerra implacável, que destruía outras sociedades indígenas, tomava suas, como tomou na Bahia. Não esquecer que os negros, identificados como libertários, nunca lutaram contra o sistema escravista enquanto sistema: lutaram contra a escravização de seus próprios grupos, mas aprendiam a escravizar os negros. Em resumo: ao se tentar reexaminar em profundidade a experiência, substituíram-se mentiras antigas por mentiras novas, na base de que “eles fizeram tudo” e “nós não fizemos nada”, isto é, os culpados são os outros, o culpado é o homem branco opressor.

RPD: Como poderíamos retomar o projeto Brasil como missão, tão caro à nossa intelectualidade desde a Conjuração Mineira? 
AR: Eu não sou tão fã da Conjuração Mineira. Aquilo foi uma rebelião senhorial, basicamente, a elite mineira querendo se livrar da exploração financeira do poder lisboeta. Daí todas as revoltas federalistas. Mas, para mim, revoluções separatistas são, por exemplo, a dos alfaiates na Bahia, que combina a luta contra o sistema escravista e contra a dominação colonial; são os alfaiates mulatos da Bahia que vão colocar isso.

Está faltando, portando, uma releitura crítica da sociedade que se torna brasileira. A gente não pode ficar fazendo como esses filmes Carlota Joaquina, como o desfile da Mangueira, que é totalmente dominado por essa nova ideologia dominante da história do país entre ricos e pobres. A maior contradição é celebrar os pretos e não o treze de maio, por um motivo muito simples: os negros eram escravistas, e o treze de maio é o dia que em que a gente oficializa. Assistindo a Carlota Joaquina e ao desfile da Mangueira, suprime-se a responsabilidade do Brasil. Não pode, é um absurdo dizer que não temos nada a ver com isso: “Eles fizeram isso”, fomos nós que fizemos. Como podemos assumir a grandeza nacional brasileira, dessa maneira? Ao longo de quinhentos anos de história, nós fizemos pelo menos duas grandes coisas: construímos um povo e uma nação. Eu não vou entregar isso.

RPD: O senhor acha que essa visão do eles dificulta uma organização intelectual e ideológica da sociedade brasileira? 
AR: Sim, totalmente. Marco Aurélio Nogueira resumiu muito bem essa questão, ao dizer em artigo recente: “É isso que está bloqueando mentalmente os democratas que ainda não se acham em condições sequer de defender seu legado”. É que tem coisas que a gente conquistou, o movimento abolicionista é uma pista central nisso. Entre os principais líderes do movimento abolicionista, havia três eram negros: André Rebouças, José do Patrocínio e Luiz Gama. Deram-se as mãos e acabaram com a escravidão. E tem gente que querer fazer charme com o movimento negro, ao dizer: “Aquilo foi um autógrafo da Princesa Isabel”, não foi isso. Aliás, o primeiro ato que visou realmente ao fim da escravidão no Brasil foi protagonizado pelas Forças Armadas, quando, depois de dominar o Paraguai, o Conde d'Eu, marido da Princesa Isabel e comandante das tropas brasileiras, decidiu abolir a escravidão no país vizinho. Por aqui, ainda não se podia agir assim, teria virado uma guerra civil barra pesada no país. Joaquim Nabuco fala isso muito bem, ao comentar que as lideranças nacionais conseguiram contornar o risco de uma guerra racial. A abolição só ocorreu ao cabo de vários acordos entre as elites brasileiras, envolvendo decisões do tipo reforma agrária, de tal forma que, até hoje, o treze de maio não é feriado, é o dia do zootecnista. Jogou-se nossa história na lata de lixo. E isso impede de fato a celebração e a defesa claras do legado da conquista democrática.

RPD: Segundo o senhor, construiu-se visão um pouco depreciativa de nossa história e de nossa identidade. O senhor você vê alguma relação entre esse movimento e o movimento oposto, que também foi muito frequente em nossa história, de exaltação ufanista de nossa história e de nossa identidade, tanto uma quanto outra postura presente desde o século dezenove? Existiria alguma relação necessária entre ambas ou se seria algo como um pêndulo, que vai certas vezes para um lado e, certas vezes, para o outro? 
AR: A gente tem de fato oscilado nessas coisas. Celebra a colonização portuguesa, condena a colonização portuguesa; celebra os índios, condena os índios; é o tempo inteiro nesse negócio inútil, fruto de uma ignorância generalizada sobre a história do país. A gente não conhece a história brasileira. É preciso conhecê-la para examiná-la. A história do futebol brasileiro é uma história vitoriosa do povo brasileiro. Mas, de resto, a gente acha que “Não, nós estamos fazendo a história. É o que a esquerda fica falando. É uma história populista, em que o porteiro do seu prédio é tão importante quanto os moradores. Tudo bem, temos de conhecer a mentalidade do porteiro do seu prédio, mas não foi ele que deu origem à história do país. Temos de ler a história do Brasil antropologicamente caso a caso, porque não é tão simples assim. Você vê, por exemplo, que muitos fazem isso, de uma ponta a outra do país, não existe um só orixá, não existe nenhuma empresa africana. O africano foi espiritualmente assassinado nos Estados Unidos. Mas, no Brasil, no país inteiro, você ouve falar de Iemanjá, nas comemorações do ano novo. O que houve aí? São processos, são realidades, são experiências nacionais distintas que a gente tem de conhecer, a gente tem de ter a coragem de reconhecer tudo que há de abominável, mas também a coragem de lembrar nossas conquistas. A gente vai entrar em parafuso vermelho, porque essa grandeza nacional é conquista nacional celebrada pela direita, que se veste de verde e amarelo. Eu também quero me vestir de verde e amarelo.

PRD: O senhor fala em revisão crítica, mas, ao mesmo tempo, em conhecimento da história, grande déficit da sociedade brasileira. A reinvenção da nação começa pelo conhecimento da história e com o que a gente poderá terminar com a polarização, a bipolaridade da sociedade brasileira? 
AR: Acho que ninguém tem de passar apenas pelo conhecimento, porque não adianta. Pega um livro do Francisco Bosco, um filósofo, que fala das mulheres negras que lutaram contra a dominação masculina no período colonial, mas não tem nenhuma informação segura sobre isso. Eu não conheço nada disso; conheço outra coisa. Temos uma história das mulheres da classe dirigente do Brasil que é completamente diferente das histórias das mulheres da classe dominada, porque as mulheres da classe dominada têm primazia, dominando, inclusive, o pequeno comércio no Brasil, nas vendas, porque eram mulheres da vida e da rua, ao passo que as sinhás e sinhazinhas ficavam enclausuradas em sobrados na casa grande. A gente tem de pegar cada ponto disso e discutir com conhecimento. Conhecimento acima de tudo, não adianta ficar só ideologizando; ideologizando a gente não vai para lugar nenhum. Repare que a história dos Estados Unidos é muito bem conhecida nos Estados Unidos; a história francesa também é muito bem conhecida na França; mas a história brasileira é muito mal conhecida no Brasil. Às vezes, as pessoas se surpreendem quando você fala que tinha escravos nos Palmares e se surpreendem quando você fala que os Tupinambás eram escravistas. A gente tem de conhecer, não pode ficar julgando. Uma frase que eu gosto muito que Freud estudava do Leonardo da Vinci: você não pode amar nem odiar nada se primeiro você não souber o que aquilo é, o que aquilo foi, como aconteceu e o que aquilo significa.

RPD: Qual sua opinião sobre as políticas educacionais e culturais, em cujo contexto já se fala inclusive de modelos militarizados das instituições de ensino?
AR: Eu vou lhe dizer uma coisa bem simples: eu estou a caminho dos meus setenta anos. Desde que eu me entendo por gente, o Brasil já acabou umas seis ou sete vezes, mas não acaba. É que os brasileiros são persistentes. Eu, por exemplo, não vou parar de trabalhar diariamente. Acho, portanto, que o Brasil sempre tem saída. Não vejo nada como catastrófico. Toda vez que eu discuto esses assuntos, a reação é, inicialmente, meio de surpresa e, depois, de concordância. De Marco Aurélio Nogueira a Caetano Veloso, a voz convergente é a de que “Eu tenho que fazer isso”, “Temos que fazer isso”. A gente não pode ficar restrito a esse filme em preto e branco, não. O Brasil é colorido.

 

 


IHU On-Line: Repensar o Brasil é uma tarefa fundamental, diz Antonio Risério

A tarefa mais urgente para nós, brasileiros, diante de uma das maiores crises políticas que o país enfrenta, é “repensar o Brasil”, diz o antropólogo Antonio Risério à IHU On-Line

Por: João Vitor Santos, do IHU On-Line

Isso significa, explica, “rever com serenidade e lucidez — com conhecimento, acima de tudo — a experiência nacional brasileira. Esta é uma tarefa básica, fundamental. Temos de nos conhecer, em vez de ficar repetindo clichês esquerdistas falsificadores de nossa trajetória no tempo”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Risério denuncia a substituição de uma historiografia nacional baseada em mitos e mistificações, que tentou definir uma “identidade nacional” a partir da colonização portuguesa, por uma nova historiografia encampada pela esquerda brasileira nos anos 1970, em que “o colonizador português era o mal — e o bem se encarnara, aqui, em pretos e índios”. Segundo ele, em sua revisão historiográfica, a esquerda brasileira “se empenhou mal” e “não tratou de realmente encarar, em toda a sua complexidade, a experiência nacional”. Ao contrário, afirma, ela “optou pelo maniqueísmo, pela visão do Brasil como um filme de bandido e mocinho. Então, repetiu a velha história oficial, só que invertendo tudo. Passamos a ter então, basicamente, as figuras do negro sempre luminosamente libertário, do índio ecofeliz e do português genocida”, afirma.

Nesta entrevista, o antropólogo também reflete sobre a crise política brasileira, que tem origem nos “partidocratas”, e assinala que ela é fortalecida pela “polarização extremista entre o autoritarismo de esquerda e o autoritarismo de direita, ambos populistas”. Na avaliação dele, a crise da representatividade política, denunciada pela sociedade nas manifestações de Junho de 2013, já se manifestava na reabertura democrática, porque “de Sarney aos governos petistas, a sociedade foi percebendo gradualmente que as eleições iam se convertendo num rito vazio e que ela, sociedade, não contava para nada na hora da formulação e execução das políticas públicas nacionais”.

Confira a entrevista:

IHU On-Line - O Brasil de hoje, especialmente o campo da esquerda, compreendeu as transformações que ocorreram desde 2013? Quais os desafios para apreender essas transformações em suas complexidades?
Antonio Risério - O problema inicial é que os políticos profissionais, partidocratas, parecem não entender ou não querer entender o próprio 2013. Tivemos uma coisa fundamental ali, que foi a exposição pública da crise da representação partidocrata. Na verdade, de Sarney aos governos petistas, a sociedade foi percebendo gradualmente que as eleições iam se convertendo num rito vazio e que ela, sociedade, não contava para nada na hora da formulação e execução das políticas públicas nacionais. Ou seja, o próprio sistema político se encarregou de corroer a representatividade e fragilizar a democracia. Isso foi escancarado na reeleição de Dilma Rousseff, que foi eleita dizendo uma coisa e, assim que recebeu o resultado das urnas, passou a fazer outra. A população viu então com clareza que o jogo era cínico, manipulador.
2013, ao colocar em questão o sistema político, com a sociedade afirmando que os partidos não a representavam, abriu a possibilidade de virar a página e de que a gente entrasse no capítulo inaugural de uma nova cultura política e um novo sistema de poder. Vale dizer, no capítulo inaugural da construção de uma nova democracia brasileira, coisa que não interessou a Fernando Henrique e a Lula, que tiveram a oportunidade histórica de dar o pontapé inicial nessa partida e não o fizeram. Isso foi sufocado por dois processos, que vieram com a irrupção da Lava Jato e as manobras para depor Dilma, uma trapalhona quase tão confusa quanto Bolsonaro. Com as atenções voltadas para os escândalos da corrupção e do “impeachment”, essa grande discussão política foi adiada.

Na campanha presidencial de 2014, todos os candidatos evitaram 2013. Mas parece difícil rasurar do mapa o que aflorou ali. Na época, Marco Aurélio Nogueira disse algo mais ou menos assim: estava em marcha uma espécie de revolução sem revolução, com a sociedade ultrapassando o sistema político e pondo em xeque o partidocratismo. O que ficou claro ali era que as pessoas não se contentariam com uma reforma política pontual, com cláusulas de barreira, listas fechadas, tipos de voto. O que esteve na origem das movimentações de 2013 foi coisa distinta. O que se defendeu, de modo breve, mas nem por isso irrelevante, foi a necessidade de configuração de uma nova cultura política brasileira. Uma política de militância cidadã, com a cidadania se constituindo como tendência à autorrepresentação, sem tomar conhecimento do partidocratismo profissional e seus expedientes surrados, apodrecidos. A mudança não aconteceu. Mas o que há é uma reivindicação adormecida, não extinta. Que, mais cedo ou mais tarde, promete voltar acesa ao centro do palco.

IHU On-Line - O senhor tem defendido que é necessário repensar a sociedade e reinventar a nação, mas por onde começar? O que é a sociedade brasileira hoje? Que conceito de nação deve ser forjado?
Antonio Risério - O que tenho dito é o seguinte. Nós tínhamos uma velha história oficial do país, gerada no tempo do império, com [Francisco Adolfo de] Varnhagen e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que respondia a demandas surgidas com a conquista da autonomia nacional em 1822. Essa história forjou um passado brasileiro, quase o criou, mas produzindo mitos e mistificações. Cerca de um século depois, a esquerda brasileira se empenhou numa revisão dessa história. Mas se empenhou mal. Não tratou de realmente encarar, em toda a sua complexidade, a experiência nacional brasileira. Não: optou pelo maniqueísmo, pela visão do Brasil como um filme de bandido e mocinho. Então, repetiu a velha história oficial, só que invertendo tudo. Passamos a ter então, basicamente, as figuras do negro sempre luminosamente libertário, do índio ecofeliz e do português genocida.

E isso, gravando-se nos parâmetros curriculares do ensino, no governo de Fernando Henrique, se converteu em práxis escolar, em bombardeio pedagógico, em ideologia historiográfica dominante. Configurou-se, assim, como a nova história oficial do Brasil. Acontece que essa nova história apenas substituiu mentiras antigas por mentiras novas. O negro luminosamente libertário, assim como o índio ecofeliz, são duas empulhações. Havia escravidão — e escravidão pesada, cruel — tanto na África quanto entre nossos índios. Os tupis eram escravistas. A sociedade tupinambá era uma máquina de guerra implacável, destruindo outras sociedades indígenas, tomando-lhes as terras etc. E foi deles que herdamos a agricultura de coivara, as queimadas destruindo o campo.

Palmares contava com escravos — e palmarinos sequestravam mulheres (negras ou brancas), sem perguntar se eram esposas ou mães, para servi-los em termos agrícolas e sexuais. Quanto ao português, não temos de celebrá-lo sem senso crítico, mas também não devemos tratá-lo apenas como um eterno e sistemático malfeitor, porque também isso é mentira.

Qualquer pessoa séria, que de fato conheça a história de nosso povo, sabe disso. Mas o que vingou, graças à ignorância generalizada, foi o panfletarismo rasteiro da nova história oficial. É por isso que temos hoje de repensar o Brasil, de rever com serenidade e lucidez — com conhecimento, acima de tudo — a experiência nacional brasileira. Esta é uma tarefa básica, fundamental. Temos de nos conhecer, em vez de ficar repetindo clichês esquerdistas falsificadores de nossa trajetória no tempo.

IHU On-Line - Depois de 2013, foi corrente a afirmação de que o país vivia uma crise política. Hoje, em 2019, essa crise foi superada ou apenas abafada? Por quê? E quais devem ser as consequências num curto e médio prazo?
Antonio Risério - De certa forma, respondi a isso antes. Penso que os dois temas mais importantes de 2013 continuam vivos: a crise representacional do partidocratismo e a reivindicação relativa ao direito à cidade, que então se expressou numa luta contra o aumento do preço da passagem no sistema público de transporte. As pessoas geralmente nem sabem, mas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, cerca de 38% da população brasileira andam a pé por não terem dinheiro para embarcar em nenhum veículo. Tem muito mais gente andando a pé do que em automóvel particular. Afora isso, todas as reclamações que emergiram ali ainda não tiveram resposta. Podemos continuar exigindo educação e saúde no “padrão FIFA”, como então se dizia. Nem Dilma, nem Temer, nem o aluado Bolsonaro alteraram qualquer coisa nesse quadro. Mas podemos acompanhar a incompreensão desde o início.

Exemplo vexaminoso disso foi o pronunciamento nacional de Dilma na noite de 21 de junho de 2013, desenhado e orientado da perspectiva do “marketing”. Acuada pelas manifestações, Dilma apelou para o seu marqueteiro, que alinhavou para ela uma fala a meio caminho entre o clichê e o disparate. É suficiente lembrar que ela acenou com coisas como um “plano nacional de mobilidade urbana” (tinha prometido isso na campanha eleitoral de 2010), com o qual nunca se preocupara nem viria a se preocupar. E prometeu uma reforma política estrita, totalmente dentro do padrão partidocrata, tema que as manifestações nem afloraram. Na boa observação de Eugênio Bucci, o pronunciamento “dava respostas contundentes a perguntas que ninguém tinha feito”. E ainda: “O que se deu naquele comunicado foi um dos mais desastrados lances de marketing da história recente do país”. Mas o sistema partidocrata preferiu mesmo fechar os olhos, fazer ouvido de mercador, como se não tivesse sido colocado em questão.

Temer e seu guru Moreira Franco tocaram o barco como se o MDB fosse legítimo representante da sociedade brasileira.

O PSDB, tendo à frente a toupeira do Alckmin, o burguesinho mimado do Aécio e um autodegradado Serra, ficou alheio a tudo (acho que só Fernando Henrique sacou o que estava rolando). E assim por diante. Tanto que, quando chegou a campanha presidencial de 2014, todos se comportaram como se 2013 não tivesse existido. E ele de fato ficou abafado pela polarização quase fratricida em torno do “impeachment”, que se acentuou com Bolsonaro. Interessa ao partidocratismo manter isso assim.

Nosso sistema político, nossos partidos e políticos profissionais, hoje, não têm o mínimo preparo para responder a um questionamento dessa natureza. Falar em crise do partidocratismo com Rodrigo Maia e quejandos é realmente falar grego. Mas a esquerda também não consegue ver nem ouvir isso. A primeira reação do PT, diante de 2013, como vimos num daqueles típicos ataques de sinceridade de Gilberto Carvalho, foi falar da “ingratidão” do povo, que recebeu tantos presentes do partido no governo e então, ingratamente, se rebelou.

Depois, o PT mudou o discurso. Passou a dizer que, sob Lula e Dilma, o Brasil tinha avançado tanto que passou a ficar mais exigente. Ou seja: 2013 passou a ser visto como um subproduto da boa governação petista, o que é o ridículo do ridículo. Só mais tarde o PT passou a execrar 2013 — o que é mais compreensível, porque aquelas movimentações não se moveram dentro da lógica binária do “nós x eles”, que orienta o pensamento petista. Mas também a Rede, Ciro Gomes etc., ninguém analisou o acontecido, nem tirou qualquer lição dali. A Rede, na verdade, parece querer flutuar acima das conjunturas, fazendo um discurso absolutamente genérico e universal, de modo que tende a se dissolver em pura ou mera fantasia filosófica.

Para a extrema direita e Bolsonaro, a coisa é mais simples: a crise do partidocratismo é resolvida pela implantação de uma nova ditadura no país. Mas nós temos a obrigação de pensar em outra direção: a crise do partidocratismo é uma exigência de aprofundamento da democracia, de superação da subdemocracia brasileira.

IHU On-Line - O que leva ao desvirtuamento do sistema político brasileiro? Como nasce a “partidocracia”?
Antonio Risério - Não é uma questão somente brasileira. Na verdade, passei a usar a expressão “partidocratismo” ali pelo final da década de 1970, depois que a li num texto ou num discurso de Pietro Ingrao, que foi dirigente do Partido Comunista Italiano e presidente da Câmara dos Deputados da Itália naquela mesma década de 1970. Não tenho certeza agora, mas acho que Ingrao partia de Gramsci, que falava do perigo de substituir o movimento real da vida social pelo movimento interno da vida partidária. E é isto o que acontece. E tem se acentuado no mundo inteiro. O slogam “não nos representam” apareceu em manifestações espanholas, por exemplo.

E foi um grito dos “indignados” no mundo inteiro, ali pela época da chamada primavera árabe. O militante partidário passa a achar que o partido é o centro do mundo, na melhor das hipóteses — e dá as costas à sociedade. Esta cegueira já recebeu até tratamento poético, louvada num texto — esteticamente, bom, mas, em termos políticos e intelectuais, completamente idiota — como “Wir Sind Sie” de Bertolt Brecht. O que podemos dizer é que vivemos uma crise política sem precedentes, no sentido de que ela atinge não um partido ou outro, mas coloca em xeque todo o sistema político estabelecido. Isso ficou arrefecido no Brasil, em função da polarização extremista entre o autoritarismo de esquerda e o autoritarismo de direita, ambos populistas. Mas não se pode ter dúvida de que vai voltar com tudo. É uma coisa que está latente, rolando como lava subterrânea de vulcão.

Analisando a situação brasileira, Fernando Henrique Cardoso está certíssimo quando diz que nossos partidos políticos se renderam à lógica do corporativismo: não representam os interesses da sociedade, mas apenas os seus próprios interesses. Basta dizer que, hoje, parte significativa do governo petista da Bahia fez aliança com Bolsonaro. Diante disso, a queixa não é apenas relativa à baixa qualidade de nossa atual representação política, que de fato é uma coisa entristecedora. É uma queixa mais fundamental, mais essencial, como recusa do “establishment” político-partidário, recusa do déficit de democracia que sentimos no país. Na verdade, bem vistas as coisas, nós não temos partidos políticos, temos partidos eleitorais — e só. Um sistema desses está historicamente condenado.

IHU On-Line - Quais são as maiores fragilidades dos partidos políticos de esquerda e centro-esquerda atualmente? Que fatores parecem os levar a um descolamento da realidade social, que culmina na falta de aderência da população aos seus programas?
Antonio Risério - A esquerda não está procurando saída alguma para a crise do partidocratismo, nem para a crise nacional em globo. O PT acha que encarna o interesse nacional e popular e, quem discorda disso, é automaticamente classificado como inimigo do povo e da nação. Ora, este é o caminho mais curto que existe para evitar a praga do pensamento. E este é o principal problema. A esquerda e a centro-esquerda brasileiras, hoje, parecem querer tudo, menos pensar. O pensamento — principalmente, o pensamento livre, nada dogmático, nada subserviente a dogmas e princípios apriorísticos — virou uma espécie de maldição e é estigmatizado. De outra parte, a esquerda se acha mais infalível do que o papa. Sob este aspecto, José Dirceu, Lula e Ciro, entre outros, estão muito mais próximos de Stálin do que do papa Francisco.

Falamos sempre que o PT nunca reconhece os erros, que dirá os crimes que cometeu! E é um partido que cometeu crimes gravíssimos contra a democracia e contra o povo brasileiro, daí que tenha sido eloquentemente rejeitado nas eleições de 2018. Mas também nunca ouvi uma autocrítica em profundidade do PSDB, cuja inflexão à direita começou em 2002, com a candidatura presidencial de Serra, acentuou-se com o “picolé de chuchu” e já ficou à vontade no campo da direita com Aécio Neves, que parece não ter entendido nem uma meia liçãozinha do avô Tancredo.

A Rede, por sua vez, paira acima dos mortais. Sugere uma espécie de nirvana dos ambientalistas, falando sobre coisas reais, mas numa linguagem que ninguém entende. Nenhum sinal de autocrítica, claro. Ciro, menos ainda. É uma pessoa interessante, mas um político fadado ao fracasso. Por fim, temos o narcisismo. A desconexão com a realidade, com as pessoas superestimando seu lugar, sua força etc., em detrimento de uma leitura clara do real histórico. Exemplifico. O ex-deputado Jean Wyllys (que hoje quer definir como “exílio” uma temporada voluntária que está passando no exterior, sempre caprichando no papel de vítima) disse que foi a homofobia brasileira que elegeu Bolsonaro. É ridículo. Presumo que esta homofobia que elegeu Bolsonaro seja a mesma homofobia que deu a Jean Wyllys prêmio milionário no “reality show” da Rede Globo e, ainda por cima, três mandatos de deputado federal. Aparece depois uma antropóloga para dizer que Bolsonaro foi eleito em consequência do avanço do feminismo. Não dá para acreditar. Falo disso em meu novo livro, “Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária”, que acaba de ser lançado pela editora Topbooks. Digo que, diante dessa dupla lunática, só falta aparecer um militante racialista neonegro para dizer que foi o racismo brasileiro que elegeu Bolsonaro — e um militante ambientalista para contestá-lo, argumentando que quem elegeu o porra-louca miliciano foram nossas conquistas ecológicas recentes...

Nessa baboseira, são todos “lacanianos”: o real não existe. É como se a eleição de Bolsonaro nada tivesse a ver com a recessão econômica, o desemprego, a crise na segurança pública etc. etc. Foi por esse caminho que a esquerda brasileira, como bem disse Giuseppe Cocco, se converteu em denunciante do óbvio. Hoje, tudo o que ela faz é repetir “ad nauseam” que Bolsonaro é Bolsonaro... Chegamos ao grau absoluto da redundância política. E não vamos sair disso se não rediscutirmos impiedosamente as idiotices que fizemos para alcançar tão nítido e espetacular fracasso.

IHU On-Line - De outro lado, os partidos de direita e extrema direita parecem ocupar os espaços deixados pela esquerda e centro-esquerda. Como isso se dá?
Antonio Risério - Porque hoje, como diz o povão, é cara de um, cu de outro. Não há nada mais parecido com Lula do que Bolsonaro. E vice-versa. Não nos esqueçamos de que Lula e o PT pensaram seriamente num “terceiro mandato”, na linha de Chávez e Evo Morales. O PT tolera a democracia, na medida em que o partido possa controlar o aparelho estatal e, a partir daí, fazer o que bem quiser com a sociedade, na base de um “populismo tecnocrático”, como diz Werneck Vianna, vale dizer, um populismo palaciano, populismo de gabinete, sem massas. E não é verdade que Dilma tenha lutado pela democracia no Brasil entre o AI-5 e os tempos de Médici. Ela jamais defendeu a democracia no Brasil. Conheço sua história política. Dilma criou uma fantasia deliriosa para consumo próprio, bem distante da realidade da esquerda militarista em que se enrascou. Porque ela veio jovem para a esfera de influência da organização “marxista-leninista” Política Operária (onde ficou um semestre na célula da Faculdade de Economia) — a Polop, que considerava imbecilidade essa conversa de “democracia”. Livro de cabeceira dos polopianos era Estado e Revolução, de Lênin, pregação acesa a favor da destruição do Estado representativo-parlamentar.

Para o Brasil, o programa era unívoco: derrubar a “ditadura dos patrões” para, em seu lugar, implantar a “ditadura do proletariado”. A democracia era olhada como manipulação alienante. Deveria ser combatida em nome da revolução socialista.

E Dilma, embora militante sem qualquer relevo (naquele arremedo de luta armada, nunca foi além da “intendência”), rezava por essa cartilha. Chegou à Polop no momento do racha da organização, optando então pela facção militarista, que se confinou no Colina – Comando de Libertação Nacional. Adiante, duas vertentes da esquerda armada, o Colina e a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), se fundiram na VAR (Vanguarda Armada Revolucionária)-Palmares. E em todos esses momentos e organizações, “democracia” era palavrão. Mistificação execrável para sustentar a dominação da classe burguesa. O projeto continuava o mesmo: substituir a ditadura militar da burguesia pela ditadura militar do proletariado.

Agora, por que Dilma esconde esses fatos e se dispõe a mentir para o conjunto da sociedade brasileira? Simples: porque hoje fica muito bem na foto quem diz que enfrentou heroicamente a ditadura em nome do princípio maior da democracia. Mas fica mal quem admite que, como os militares, também achava que a solução estava numa ditadura.

E Dilma prefere a morte a ficar mal na foto. O problema é que o autoritarismo populista de esquerda levou o Brasil à pior crise de sua história e o autoritarismo populista de direita prometeu a salvação nacional. Bem, se o autoritarismo de esquerda deixou a desejar, nada mais natural que a população procurar um novo abrigo no autoritarismo de direita. É isso.

IHU On-Line - No caso brasileiro, a vitória de Jair Bolsonaro é uma vitória dos partidos de direita e extrema direita ou apenas o fracasso da esquerda? Por quê?
Antonio Risério - Ambas as coisas. A vitória de uma se fez em cima do fracasso da outra. No segundo semestre de 2013, já víamos que o trem começava a descarrilhar. Era fácil perceber o desastre a caminho: o arrocho salarial já tinha começado, o desemprego crescia, a inflação era absurdamente controlada com preços artificiais, a classe média afundava, combinávamos atraso técnico, crescimento insignificante e inflação reprimida — mas com políticos e marqueteiros sobrepondo um mundo falso, ideológica e eletronicamente construído, a uma realidade que se desenhava em perspectiva catastrófica.

E essa gigantesca construção falaciosa seduziu e hipnotizou a maioria da população brasileira, produzindo a reeleição de Dilma, o quarto mandato do PT. Mas é claro que tal fantasia, totalmente descolada da realidade, não teria como se sustentar. No entanto, nas eleições, a grande mentira triunfou — e deu no que deu. A realidade aparecia clara e escandalosamente na frente de nossas caras.

A direita e a extrema direita navegaram em cima disso. Somaram, a um discurso de redenção econômica nacionalista e restabelecimento de um clima de segurança pública, todo um conservadorismo represado. Um conservadorismo que, aliás, o grande eleitorado petista não tinha deixado para trás.

IHU On-Line - O que a crise do presidente Jair Bolsonaro com o seu partido, o PSL — que surgiu e cresceu estrondosamente na última eleição —, revela sobre o sistema político brasileiro?
Antonio Risério - O que já dissemos: estas coisas estão caindo de podres... Vou ter de repetir o que disse: não temos partidos políticos, mas partidos eleitorais. Além disso, nossos partidos são agências e cabides de emprego. Espaços por excelência para o livre comércio de falcatruas. O que o PSDB tem a ver hoje com qualquer resquício do projeto de construção de uma social-democracia brasileira? Nada.

O PT cresceu combatendo agressivamente a confusão ou simbiose entre o público e o privado que reinava soberanamente na política nacional. Chegou ao poder e o que aconteceu? O mensalão e o petrolão, organizados pelo PT em nome do interesse nacional-popular, se revelaram os exemplos extremos e mais escandalosos da promiscuidade entre o público e o privado. Ética? Nem pensar. O suposto partido da ética abandonou esta senhora antes mesmo do resultado das eleições de 2002. Bolsonaro, por sua vez, já nasceu na escola da podridão política. Do troca-troca do baixo clero legislativo, que é corrupto até à medula. Não tem um pingo da dignidade nacional que ainda é possível encontrar em nossas forças armadas.

Não é só que ele seja mentalmente raquítico. Certo que é um ignorantão, incapaz de distinguir entre país, Estado e nação, por exemplo. Mas é também um padroeiro corrupto do clientelismo, de modo até escancarado. Se o “seu” partido não se mostra tão “seu” assim, irá à busca de outro. E isso vai a um ponto tão escandaloso que não duvido que tramas e tramoias se encarreguem um dia de derrubá-lo.

IHU On-Line - O que é e como se dá o que o senhor chama de “processo de avacalhação da História do Brasil”?
Antonio Risério - O binarismo e o maniqueísmo são coisas perfeitas para quem não gosta de pensar. E nossa esquerda foi criada nisso, no cultivo do maniqueísmo, identificando o opressor (a burguesia, a classe dominante) ao mal e o oprimido (o proletariado) ao bem. E foi assim que partiu para revirar pelo avesso a historiografia tradicional do país.

Tudo começa com a formação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, durante um século o nosso único centro de estudos históricos. A missão do Instituto, sob a liderança de Varnhagen, um protegido de Pedro II, era dizer quem nós éramos. Em termos geográficos, balizando o espaço nacional, situando rios e cidades etc. E em termos históricos, definindo um elenco de feitos e personalidades memoráveis, casos exemplares que definiriam a identidade nacional.

Foi assim que se forjou a primeira história oficial do Brasil, celebrando a colonização portuguesa dos trópicos. E isso vigorou por um século, ao menos. Até que, na década de 1970, historiadores (e jornalistas) de esquerda resolveram virar a mesa. Mas, em vez de realmente reexaminar a experiência nacional brasileira, eles optaram pela pura e simples inversão da velha história e pela instauração de um padrão fundado no maniqueísmo: o colonizador português era o mal — e o bem se encarnara, aqui, em pretos e índios.

Assim, bem nos termos da velha retórica marxista, a classe dominante-dirigente foi acusada de tudo e as classes ou os povos dominados passaram a ser celebrados irrestritamente. Não era preciso pensar: bastava denunciar o mal e celebrar o bem. Daí, todas as conquistas nacionais passaram a ser objeto de negação, de ataque e mesmo de deboche.

Nada era relativizável, nada era complexo. Então, da década de 1970 para cá, a experiência nacional brasileira foi submetida a um processo de avacalhação sistemática, configurando-se como a ideologia historiográfica hoje dominante, a nova história oficial do país. Mas não é só. Dividiram o país em um “nós” e um “eles”, ambos míticos. “Nós” teríamos sofrido tudo, “eles” teriam sido os culpados de tudo. Então, todos passaram a dizer: “eles” mataram índios, “eles” humilharam mulheres, “eles” depredaram o meio ambiente etc. Ou seja: “nós” não temos culpa alguma no cartório. Isso é terrível: a gente passa a tratar as coisas na terceira pessoa. Nos demitimos da responsabilidade diante de tudo que fizemos, como se tal demissão fosse possível. Se realmente quisermos levar o Brasil a sério, nos interpretando em profunda profundidade, temos de aprender a dizer nós.

IHU On-Line - Quais os maiores equívocos da “contra-história do Brasil”, tecida desde aqueles que reagem à chamada ‘História tradicional’? E como esse movimento vai “vitaminar” uma virada conservadora?
Antonio Risério - Essa contra-história, que é a nova história oficial brasileira, nasce do casamento da ignorância histórica com o masoquismo nacional, no espaço de uma sociedade bipolar, que vai da euforia à depressão em questão de minutos. Entre seus grandes equívocos, está o de celebrar irrestritamente o experimento escravista de Palmares, por exemplo, ou o de falsificar a história com conversas do tipo “genocídio dos índios”, quando a política lusitana sempre foi a de assimilar os índios, transformá-los em súditos, em brasileiros, ao contrário do que ocorreu com a colonização norte-americana, que via os grupos indígenas como nações inimigas a serem exterminadas.

É possível criticar em profundidade a relação da colonização portuguesa com os índios, mas não acionar o clichê do genocídio, porque não houve isso. Genocídio é guerra de limpeza étnica, projeto de banir um povo da face da terra. Mas como dizer isso, com Thomé de Sousa e Mem de Sá distribuindo terras entre os índios aliados? Como dizer isso com o marquês de Pombal premiando portugueses que se casassem com índias? Não faz sentido. Quem conquistou e colonizou o atual nordeste brasileiro foi a Casa da Torre — e a Casa da Torre era luso-indígena desde sua origem: Garcia d’Ávila casou com uma índia canibal e daí vieram seus filhos e descendentes que avançaram da Bahia ao Maranhão...

Mas a postura historiográfica da esquerda não foi a de analisar, mas a de esculhambar tudo, inclusive o movimento abolicionista e aquela que é ainda hoje a nossa maior revolução social, acontecida em 1888. É como se só os reacionários pudessem se orgulhar de nossa experiência como povo e nação.

Marco Aurélio Nogueira viu bem, comentando meu artigo no Estadão, que provocou também esta nossa conversa aqui. Ele escreveu no “facebook”, dizendo o seguinte: “O texto é precioso pelo estilo, pelo conteúdo e especialmente pela coragem de dizer o que precisa ser incluído em uma agenda estratégica de pesquisa, coisa que ninguém leva muito a sério. Risério denuncia a ‘avacalhação’ a que está sendo submetida a história brasileira, com reflexos dramáticos na cultura, na política, na vida cotidiana. Os efeitos disso têm gerado uma espécie de bloqueio mental dos democratas, que não conseguem nem sequer defender o que seria seu legado. O país vai ficando assim largado pela estrada, para que o primeiro aventureiro dele lance mão, como ocorreu em 2018”. Não por acaso a direita se veste de verde e amarelo. E só ela pode assumir qualquer grandeza que porventura o Brasil tiver? Temos, pelo menos, duas: em meio milênio de história, construímos um povo — e uma nação.

IHU On-Line - Podemos inserir essa “contra-história do Brasil” no bojo dos movimentos globais da historiografia que tentam mudar o centro gravitacional para o que chamam de história dos vencidos? Quais os limites dessa história dos vencidos?
Antonio Risério - Li a matriz francesa e as filiais brasileiras. É a historiografia populista, de que fala Marshall Sahlins em Ilhas de História. Historiografia populista encarnada na (e defendida pela) “nouvelle histoire” francesa, com Jacques Le Goff e seus discípulos, numa leitura empobrecedora de Marc Bloch e Braudel, que se vai desdobrar futuramente, não importa se de forma imprevisível, nas mais variadas ginásticas do identitarismo, em discursos veementes e falsificadores sobre mulheres, pretos, veados, índios etc.

Toda essa gente é muito simpática, mas é incompetente — como diria Caetano Veloso. Na prática escritural-analítica, se comporta como se o porteiro do seu prédio fosse tão ou mais importante, para a história nacional, quanto ou do que Pedro II, Joaquim Nabuco, Getúlio Vargas ou João Goulart. É claro que é importante conhecer a mentalidade do porteiro do seu prédio. Mas não foi ele quem decidiu implantar a Universidade de Brasília, nem tentar levar à prática as chamadas “reformas de base”, que foram o modelo do reformismo social brasileiro. Não foi o porteiro do seu prédio quem implantou a CLT ou decidiu que o Brasil tinha de se engajar na II Guerra Mundial. É preciso aprender a fazer essas distinções elementares.

Além disso, há uma pergunta: quem são os vencidos? Se alguém me diz que são os negros, por exemplo, respondo que, na história cultural do Brasil, na dimensão simbólica de nossa vida social, o candomblé foi vitorioso. Então, tudo isso é muito arbitrário, ideologizado demais. A história do futebol brasileiro é uma história vitoriosa de nosso povo.

Não dá para compartimentar tudo. É preciso examinar caso a caso, repito. No caso da adoção da “nouvelle histoire”, de resto, é muito mais rico e enriquecedor alimentar uma compreensão antropológica da história brasileira. Ter uma visão histórico-antropológica do país, analisando cada período, cada conjuntura, em termos diacrônicos e no horizonte interno de suas significações. O problema é que quase todo mundo adora esquematismos, binarismos etc. A complexidade afugenta. Jornalistas a detestam, mas o mundo acadêmico também.

IHU On-Line - Como fazer a crítica dessa perspectiva da contra-história do Brasil, sem rasgar e demonizar todo um passado, mas também reconhecendo passagens abomináveis de nossa história?
Antonio Risério - Seguindo o ensinamento bíblico — separando o joio do trigo. Para dar um exemplo, você não pode celebrar os malês e condenar o 13 de Maio. Por um motivo simples: os malês eram escravistas e o 13 de Maio foi o dia da oficialização do fim da escravidão no país.

Outra estupidez é condenar o 13 de Maio, que tentou realizar um grande avanço democrático, celebrando Zumbi dos Palmares, líder de uma liga escravista. Aliás, as leituras políticas do mito de Zumbi variam muito. Na época do Estado Novo, a Frente Negra Brasileira se derramava em elogios ao nazismo e tratava Zumbi — vejam só — como o führer de ébano. Dessa perspectiva negra, ele seria uma espécie de Hitler quilombola. Na verdade, um quilombo como Cidade Maravilha foi muito mais importante do que Palmares, sob todos os pontos de vista. E aqui podemos tocar numa questão histórica da maior relevância. Os negros que fizeram quilombos, levantes etc., lutavam contra a sua escravização, em particular, não contra a escravização em geral. Não só os palmarinos foram escravistas, os malês também. Em 1835, o projeto dos malês era fuzilar os brancos, escravizar os mulatos e implantar um “estado islâmico” na Bahia. Muito democrático, não?

Mas, ainda aqui, no terreno da história negra no Brasil, temos uma coisa extraordinária, uma vitória cultural espetacular, com os nagôs criando seus terreiros de candomblé, impondo nacionalmente o respeito aos orixás, que hoje o Brasil inteiro celebra em Iemanjá, na virada do Ano Novo. Temos de condenar o sadismo senhorial reinante no sistema escravista e, ao mesmo tempo, saber reconhecer que negros, brancos e mulatos se deram as mãos, numa extraordinária coalizão democrática de classes e cores, para abolir a escravidão no país. E a luta não foi nada fácil, implicando movimentações de massa e operações armadas. Os pretos estiveram na linha de frente disso: dos cinco principais líderes abolicionistas, três eram pretos: Luiz Gama, André Rebouças e José do Patrocínio.

É estranho ver hoje os negros, adotando o padrão ideológico estabelecido pela Fundação Ford e a CIA (e aqui defendido por Florestan Fernandes), jogarem no lixo a bela história de seus ancestrais. Não: temos de rever tudo isso — e caso a caso. A preguiça, a ignorância e a trambicagem ideológica não podem nos impor a leitura que querem, fraudando e defraudando a experiência nacional brasileira. Além disso, podemos ser um pouco marxistas e um pouco freudianos, analisando a conjuntura em que esta contra-história ou nova história oficial do país nasceu. Ela foi gerada por uma esquerda nocauteada em 1968. Foi gerada por gente que direta ou indiretamente amargou a prisão, o exílio, a tortura, o fuzilamento.

Uma gente derrotada na década de 1970, sob a ditadura de Médici. E essa gente escreveu uma contra-história celebrando os derrotados e execrando todas as vitórias do povo brasileiro e da nação brasileira ao longo de seus 500 anos de história.

*Antonio Risério é poeta, ensaísta e escritor. Cursou mestrado em Sociologia com especialização em Antropologia na Universidade Federal da Bahia - UFBA. É autor de, entre outras obras, A casa no Brasil (Rio de Janeiro: Topbooks, 2019), A Cidade no Brasil (São Paulo: Editora 34, 2012), A utopia brasileira e os movimentos negros (São Paulo: Editora 34, 2007), Adorável comunista (Rio de Janeiro: Versal, 2002) e O poético e o político e outros escritos (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988).