ameaça

Recibo de estelionato

A ida de Ciro Nogueira para a Casa Civil muda o desenho dos negócios em Brasília. Até aqui, o Centrão se limitava a fazer escambo: alugava apoio parlamentar e sacava sua parte em cargos e benesses. Agora o bloco vai trocar o balcão pela gerência da loja. Passará a mandar sem intermediários.

O chefão do PP se reaproximou do poder em junho de 2020, quando Jair Bolsonaro começou a sentir o cheiro do impeachment. Para socorrê-lo, Nogueira exigiu o comando do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. A autarquia cuida de temas que não costumam emocionar os políticos, como a aquisição de livros didáticos e a organização do transporte escolar. Seu segredo está no orçamento, que ultrapassa os R$ 50 bilhões anuais.

Em fevereiro deste ano, Bolsonaro ajudou outro pepista, Arthur Lira, a se eleger presidente da Câmara. A ascensão do deputado aumentou o poder de barganha do Centrão. O grupo capturou o Ministério da Cidadania, abocanhou a Secretaria de Governo e agora assume a Casa Civil, coração da máquina federal.

No presidencialismo brasileiro, o chefe da Casa Civil acumula poderes próximos aos de um premiê. Coordena os ministérios, comanda investimentos em infraestrutura e filtra o que sai no Diário Oficial. É o cargo dos sonhos para quem gosta de políticas públicas e para quem busca outros tipos de recompensa do poder.

Para acomodar Nogueira, o capitão chutou mais um general: Luiz Eduardo Ramos será rebaixado a secretário-geral da Presidência. O militar se disse “atropelado por um trem”, mas não demorou a recuperar os sentidos. Horas depois da demissão, sorria ao lado do chefe num estádio de futebol.

O novo ministro é um bolsonarista tardio. Há três anos e meio, descrevia o capitão como “um fascista”. Seu modelo de estadista era Lula, “o melhor presidente da história deste país”. A seu favor, ele não é o único a mudar repentinamente de opinião.

Na campanha, Bolsonaro prometeu combater a “velha política” e definiu o Centrão como “a nata do que há de pior no Brasil”. Ontem ele escancarou que o personagem vendido em 2018 era pura ficção. “Eu sou do Centrão”, disse. “Eu nasci de lá.” Ao autografar a nomeação de Nogueira, o presidente assinará mais um recibo de estelionato eleitoral.


O preço e a saúde da democracia brasileira

O Centrão carrega na mão, sentindo-se à vontade para gastar o dinheiro público

Quando o Congresso aprovou uma verba de R$ 5,7 bilhões para o fundo eleitoral, muitos, como eu, protestaram. É o preço da democracia, falou-se em defesa do assalto ao Tesouro. De fato, as eleições têm um preço para todos, sobretudo depois que se decidiu transitar do financiamento privado para o público. Precisava ser um preço tão alto?

A ideia na transição era a de que os gastos excessivos, as campanhas rocambolescas dariam lugar a um processo de debates, e com custos mais modestos. Reconheço que a expressão custos mais modestos tem um valor subjetivo. No entanto, outro argumento se impõe: já que são gastos públicos, devem ser orçados com transparência.

Não foi o que aconteceu. A transparência desejada deu lugar a uma opacidade calculada. O fundo eleitoral deveria ser votado em destaque separado.

Nessa hipótese, os defensores da proposta deveriam explicar o sentido daquela soma de R$ 5,7 milhões. Por que esta soma e não outra, que cálculos os levaram a concluir por um volume de recursos quase três vezes superior ao que foi votado no passado recente?

Adianta pouco pessoas que conhecem a complexidade e os mistérios da política dizerem pura e simplesmente: o volume é esse e pronto, um custo democrático. O que se espera é uma discussão transparente e realista sobre os custos eleitorais, até porque podem ser feitos ainda num contexto de pandemia. Caem as internações, mas a variante delta avança no Brasil e já é a segunda encontrada entre as novas contaminações.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, argumentou numa entrevista que os gastos eram apenas um quarto dos custos totais das eleições. Mais uma razão para nos inquietarmos: se isso é verdadeiro, as eleições no Brasil custarão R$ 24 bilhões. As de 2018 teriam custado R$ 21,8 bilhões e não estávamos devastados pela pandemia. Não estou acrescentado a esse custo os R$ 2 bilhões necessários para implantar o voto impresso, uma bandeira de Bolsonaro que já está desbotando na Câmara, embora tenha sua votação apenas adiada.

Há algum tempo os especialistas consideram as eleições brasileiras as mais caras do mundo. Em 2006, o brasilianista David Samuels comparou as eleições brasileiras e americanas: as nossas custaram entre US$ 3,5 bilhões e US$ 4,5 bilhões, ante US$ 3 bilhões nos EUA. Os cálculos de Samuels não incluem o chamado horário eleitoral gratuito, que tem esse nome para atenuar seu impacto nas contas, mas representa custo real para o País.

O ato de orçar as eleições brasileiras não envolve, pois, apenas uma parte do preço da democracia, mas também uma porção considerável de sua saúde, expressa em legitimidade.

Dominado pelo Centrão, o Congresso sente-se forte ante um presidente acossado por mais de uma centena de pedidos de impeachment. E carrega na mão, sentindo-se à vontade para gastar dinheiro público.

Esse movimento perdulário não se esgota no fundo eleitoral. O próprio Estado denunciou uma espécie de orçamento secreto, em que as emendas parlamentares são destinadas sem transparência.

Esse processo foi introduzido por meio de um artifício que intitularam “emendas do relator”. Só neste ano Arthur Lira deverá dispor de R$ 11 bilhões para destinar a deputados e partidos fiéis, dentro dessa rubrica.

O chamado preço da democracia brasileira está influenciando a sua saúde. Todos os ressentimentos que já existem sobre a atuação do Congresso acabam ganhando dimensão maior quando se acrescentam essas variáveis financeiras.

Por essas razões foi necessário protestar contra o fundo eleitoral. Bolsonaro não pode simplesmente vetá-lo. Será necessário buscar uma saída conciliatória, pois não podemos voltar subitamente ao financiamento privado.

Aliás, a situação de Bolsonaro é muito cômoda. Ele é candidato e seus gastos de campanha até o momento não são computados como tal. Eles são bancados pelo governo federal, que financia seus deslocamentos no Brasil para passear de motocicleta e fazer discursos eleitorais, às vezes disfarçados, às vezes não. Os custos da campanha já em curso não se esgotam aí. Seu passeio no Rio custou ao Estado R$ 645 mil na montagem do esquema de segurança. Em São Paulo, esse custo praticamente dobrou e foi a R$ 1,2 milhão.

Bolsonaro venceu as eleições em 2018 surfando a onda da luta contra a corrupção e o desprezo do sistema político pelas preocupações das pessoas comuns. Alguns analistas acham que Bolsonaro venceu por causa de um moralismo primário dos eleitores e de alguns formadores de opinião. Essa acusação de moralismo se volta agora contra quem protesta pelo alto custo do fundo eleitoral. No entanto, nosso protesto pode resultar em economia concreta para os cofres públicos, sem prejuízo da disputa eleitoral.

Esses R$ 5,7 milhões serão de alguma forma reduzidos.

A análise do moralismo é precária se não leva em conta o fato de que o sistema político continua de costas para a sociedade e prepara reformas ainda mais escabrosas que o valor do fundo eleitoral.

O grande perigo para a democracia acontece quando o povo se volta contra ela. É o aprendizado que o processo de redemocratização tem de fazer, para evitar que aventuras autoritárias se tornem viáveis de novo.


Vera Magalhães: São todos cúmplices

Não resta espaço para dúvida de que o ministro da Defesa, general Braga Netto, mandou o recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ameaçando caso o voto impresso não fosse aprovado.

Lira trucou a ameaça e, como o governo Jair Bolsonaro tem DNA golpista, mas é eminentemente composto de pessoas despreparadas e algo covardes, o presidente e seu general recolheram as ameaças, ao menos por ora, e o resultado foi que o PP e o Centrão avançaram algumas casas para tomar conta de tudo — se apossando de novo até de espaços dos militares.

Foi o Centrão que tirou o general Eduardo Pazuello da Saúde. Mantendo Roberto Dias, o assessor que o general e seu sub, o coronel Elcio Franco, não conseguiram demitir.

Agora é de novo um alto expoente do PP, seu presidente, Ciro Nogueira, que faz outro general pegar o quepe. Luiz Ramos, assim como Pazuello, verga a espinha e aceita ir para um ministério de menor importância.

O mesmo faz Paulo Guedes, ao bater continência para o capitão e para a ala política que já comanda a maior parte do Orçamento e aceitar perder um naco de seu “superministério” para acomodar outro demitido de luxo.

Para onde esses arranjos por baixo da mesa levam o Brasil? Para a esculhambação institucional e política a cada dia mais absoluta e para a constatação óbvia de que não temos um governo, mas uma bodega tocada à base de muita fisiologia, nenhum trabalho, zero planejamento e uma única ideia fixa: a reeleição cada vez mais difícil de alguém que nunca poderia presidir qualquer país.

Quem ameaçou, Braga Netto, e o aliado de quem foi ameaçado, Ciro Nogueira, dividirão a mesa às reuniões ministeriais como se nada tivesse acontecido. O resto das autoridades, aquelas a quem sempre cobro neste espaço, seguirão fingindo acreditar nos desmentidos frouxos, sem se dar conta de que, de bravata em bravata, vai-se corroendo a democracia a partir de dentro.

Está claro que Braga Netto não fala em nome do conjunto das Forças Armadas. Mas também resta evidente que a quantidade de golpistas que ousam dizer suas ideias em voz alta é maior hoje no meio militar que em 2018. Isso já é altamente nocivo para o ambiente político e institucional brasileiro. E nos cobrará um preço enorme.

Também é evidente que Lira, Nogueira e os demais “progressistas” — ah, as ironias das siglas partidárias — não vão com Bolsonaro para uma tentativa canhestra de invasão do Congresso, à Trump. Mas também é cristalino quanto ganharam poder e dinheiro do Orçamento, em múltiplas frentes, só para blindar o presidente e tentar ajudá-lo a se livrar da CPI da Covid e a emplacar seus nomes no Senado.

Além dos bilhões das emendas do relator, nome oficial do orçamento secreto cujo tesoureiro é Lira, agora há o fundão multiplicado. Será que Bolsonaro, agora que o PP deixou vazar a ameaça de Braga Netto e que Ciro Nogueira está de mudança para o Planalto, vai mesmo vetar a farra? Ainda mais diante da possibilidade de fusão de PSL, PP e DEM, partido que pode ser seu próprio destino numa cara campanha eleitoral no ano que vem? Difícil de acreditar nisso, hein?

Não espanta que Bolsonaro, diante desse cenário, declare seu amor filial ao Centrão. Nem mesmo surpreende que os militares, tirados por ele da caserna, comecem a demonstrar nostalgia da ditadura.

Mas chama muito a atenção o silêncio covarde dos que se diziam democratas, iam às ruas pedir o fim da corrupção — e agora se calam diante da escalada diária de mortes, ruína social e econômica e autoritarismo.

São industriais, integrantes do mercado, profissionais liberais e outros que apertaram 17 e agora não têm a coragem de admitir que elegeram o pior presidente do Brasil. São tão cúmplices quanto os fardados e o Centrão.


Ascânio Seleme: O que Bolsonaro faria

Do Império à República: alguns capítulos da história sob a ótica do atual presidente

Num exercício livre de reflexão, comecei a imaginar como seriam contados alguns capítulos da História do Brasil se Jair Bolsonaro estivesse nos sapatos de outros líderes brasileiros desde o fim do Império. Acho que seria mais ou menos assim:

Pedro II - Se fosse Bolsonaro e não Dom Pedro II o último imperador do Brasil, a República poderia demorar um pouco mais a acontecer. Bozo I iria puxar tanto o saco dos militares que talvez conseguisse demover o marechal Deodoro da Fonseca de fazer a proclamação em 1889. Poderia, de outro lado, provocar uma guerra civil se ouvisse a princesa Isabel e o conde D’Eu, que pediam uma reação armada. Antes disso, vetaria a Lei Áurea.

Deodoro da Fonseca - Daria o golpe, claro. Derrubaria o Império e fundaria uma república militar, onde civil ficasse sempre do lado de fora.

Delfim Moreira - Ao contrário do velho presidente, Bolsonaro não levaria a sério a gripe espanhola. Demitiria Carlos Chagas do Serviço de Saúde Pública e nomearia um general para o seu lugar. Os 35 mil mortos feitos pela epidemia em 1918, subiriam para mais de 300 mil no ano seguinte.

Getulio Vargas - Seria um ditador muito mais violento que o velho caudilho. Da mesma forma que Getulio, teria seus guarda-costas e deixaria seus filhos e parentes à vontade perto dos cofres públicos. Na Segunda Guerra, apoiaria Hitler e acabaria sendo derrubado pelas Forças Armadas aliadas. Morreria na prisão, não sendo portanto, eleito anos depois para um mandato democraticamente adquirido, o que não era mesmo o seu forte.

Jânio Quadros - Seria igual ao maluco da vassoura. Mas não renunciaria, nem de mentirinha, em razão do perigo de seu blefe ser aceito e ele vir a ser substituído por um vice “comunista”. Como Jânio, nenhuma dúvida que o nosso parvo trocaria os pés pelas mãos.

Castelo Branco - Golpe é com ele mesmo. Diferentemente de Castelo, seria difícil retirar o capitão do cargo para iniciar o rodízio de generais.

Costa e Silva - Baixaria o AI-5 sem qualquer dúvida. Rindo. E nem se incomodaria em ter o aval do Ministério. Seria uma decisão que tomaria apenas com seus generais. Imaginem a farra que faria se tivesse tanto poder. Cassaria, prenderia e mandaria matar uns 30 mil. Despacharia de farda.

Emílio Médici - Se fosse Médici, Bolsonaro não apenas apoiaria a linha dura, seria membro efetivo do porão. Se pudesse, subiria até a “Casa da Morte”, em Petrópolis, para dar umas porradas naqueles comunistas safados, arrancar um par de unhas. Iria em carro aberto na companhia do coronel Brilhante Ustra, que seria o chefe da “sua” Polícia Federal.

Ernesto Geisel - No lugar de Geisel, jamais iniciaria a abertura, nem lenta, nem gradual, nem coisa nenhuma. Faria do general Sílvio Frota o seu sucessor para endurecer ainda mais o regime.

Tancredo Neves - Impossível fotografá-lo nos sapatos de Tancredo. Bolsonaro jamais conseguiria se adaptar ao papel democrático e tolerante do presidente que nunca assumiu o mandato. Mas, se estivesse no lugar do mineiro, manteria o colégio eleitoral para sempre.

Fernando Collor - Se tivesse um Paulo César Farias ao lado, cumpriria o mesmo roteiro de Collor. De caráter frágil e sem a transparência dos dias de hoje, Bolsonaro deixaria o PC roubar.

Fernando Henrique - Como o tucano, trabalharia por um segundo turno. E depois por um terceiro e quarto. Mas não seria no Congresso. Ao contrário do verdadeiro FH, jamais escreveria ou leria um livro.

Lula - Como Tancredo, é quase impossível pintar Bolsonaro nas cores do Lula. Talvez ele seguisse a política de cotas do PT, mas apenas pelo aspecto político-eleitoral. Ao contrário de Lula, sua preocupação com pobre e com quem tem fome é só da boca para fora.

A conclusão eu deixo para vocês. A mim coube apenas desenhar as hipotéticas situações acima elencadas. Se não foi útil, espero que pelo menos tenha sido curioso.

Como é?

Na sua primeira fala depois de indicado para o Ministério da Saúde, Marcelo Queiroga disse que a política da Saúde quem faz é o presidente, não o ministro. Que política, Queiroga? Falta quase tudo no governo de Bolsonaro, inclusive inteligência, discernimento, tolerância e capacidade de negociação. Mas, antes de qualquer coisa, falta-lhe política para a saúde pública em meio a uma epidemia que já fez 290 mil mortes. Por isso, aliás, o presidente negacionista agora é também chamado de genocida, e não só por Felipe Neto. Virou uma febre nas redes sociais. Ao assumir o ministério e entregar suas diretrizes ao chefe, Queiroga associa-se ao genocídio brasileiro.

De boas

A nomeação de Queiroga desagradou a quase todo mundo. Parlamentares, governadores, prefeitos e profissionais de Saúde reclamaram da indicação. Principalmente depois de ouvirem do próprio indicado que iria “dar continuidade” ao trabalho do incompetente general que deixou o cargo e que seguiria a política (?) de Bolsonaro. Até o Centrão fez cara feia. Somente o sogro do senador das rachadinhas, amigão do novo ministro, ficou feliz. Ponto para o zerinho, porque nunca é demais ficar de boas com o sogrão. E o Brasil? Bom, o Brasil a gente vê depois.

Reserva

Os generais do Alto Comando do Exército querem que Pazuello vá para a reserva, mesmo que não assuma nenhum cargo no governo. Não são bobos, esses generais.

Terra plana

Bem lembrado por Ancelmo Gois. Quinta-feira fez um ano que o deputado Osmar Terra disse que a Covid-19 mataria menos do que o H1N1. Um homem que abandonou a medicina nos anos 1980 para fazer política sindical e depois partidária, posou de entendido no início da pandemia. Queria ser ministro. Se deu mal o ex-médico. Bolsonaro encontrou outro mais “terraplanista” do que ele.

Morrem mais

Negacionistas morrem mais porque se expõem mais. Nenhuma novidade. Por que, então, o espanto com a morte por Covid-19 de John Magufuli, presidente da Tanzânia? O Bolsonaro tanzaniano cumpriu a jornada que lhe cabia.

Clube dos zerinhos

Por ora, apenas onde o capitão fraquejou não apareceram malfeitos, inquéritos, investigações policiais e indiciamentos. A turminha boa aprecia uma farra com dinheiro público ou desviado de terceiros, além, é claro, de adorar um traficozinho de influência. Os zeros bravateiros também gostam muito de agredir instituições, sobretudo as democráticas. Bem-vindo ao clube, Jairzinho.

Fome

As reportagens sobre a fome no Brasil publicadas nos diversos jornais da TV Globo e da GloboNews mostraram que são inúmeros os brasileiros solidários, que se esforçam além do limite para reduzir a dor alheia. Enquanto isso, governo e Congresso levaram três meses para retomar o auxílio emergencial para quem precisava dele com urgência. Em abril, aqueles que pararam de comer em janeiro, poderão voltar à mesa.

Pergunte a Jesus

Os cristãos de bom coração deveriam se perguntar como Jesus reagiria se soubesse que os senhores do templo podem embolsar integralmente o dinheiro dos fiéis, sem precisar devolver sequer parte dos valores arrecadados na forma de imposto. E o que ele diria se todas as multas por falcatruas aplicadas contra igrejas fossem extintas. Deveriam também se lembrar das imagens de Edir Macedo ensinando “bispos” novatos a extorquir os seus crentes e depois contando dinheiro de doações esparramado pelo chão. Ou daqueles sacos de dinheiro sendo embarcados num helicóptero para fora do templo.

Gravíssima

As tentativas de intimidação a Felipe Neto e aos manifestantes de Brasília que chamaram Bolsonaro de genocida valem tanto quanto um caroço de pequi roído. Nunca prosperarão. Grave, gravíssima, é a instrumentalização da Polícia Civil, que correu para atender o zerinho municipal contra o youtuber, em flagrante ilegalidade, e da PM, que despencou para obedecer comando do Planalto e enquadrar os que protestavam. Com a Polícia Federal já dominada, restam juízes, tribunais e a defensoria pública (obrigado) para conter autonomias indevidas e perigosas. Tirania nunca mais.


Foto: Beto Barata\PR

Eurípedes Alcântara: Vitória do tribalismo?

De todos os meus vícios mentais, o mais evidente é o otimismo. Vício, sim, pois o pessimista só tem boas notícias. De um amigo, poderosa antena assestada sobre os rumos do Brasil, recebi este comentário: “Não se iluda, se surgir uma nova liderança pregando um mínimo de união. Seja ela quem for, todas as ‘tribos’ repentinamente parariam de brigar para, atipicamente juntas, detratarem essa nova liderança e, na sequência, voltarem a guerrear”.

Parei para pensar e tentar refutar esse grave diagnóstico. Li as manchetes dos jornais e, nelas, não encontrei motivos para rebater meu amigo. Reli os artigos de opinião. Fui aos comentários dos leitores e, finalmente, às redes sociais. Nada. A sensação generalizada agora é muito parecida com aquela predominante no começo do século XX e que havia sido, meio sem querer, profetizada por Marx e Engels no Manifesto Comunista: “Tudo o que é sólido desmancha no ar”. Darwin demonstrara que somos macacos nus e não anjos decaídos. Freud nos tirava o comando do próprio destino entregando-o ao inconsciente, enquanto Einstein promovia a dessacralização das leis naturais.

O mundo pareceu a seus habitantes estar sendo virado de cabeça para baixo. A reação foi terrível. Um período arejado em que se podia viajar pelo mundo usando como passaporte documentos triviais, como uma carta de apresentação do prefeito da sua cidade, foi seguido de fechamento de fronteiras e da Primeira Guerra Mundial. Uma inédita cadeia global de tolerância foi rompida, e os países se fecharam em feudos. O medo e a desconfiança passaram a ser a tônica das relações.

É quase inacreditável, mas isso pode estar se repetindo agora e, pior, com a ajuda do fabuloso arranjo tecnológico a que chamamos internet. O neotribalismo é assustador por causa da internet. Nascida como Arpanet no Pentágono norte-americano, que buscava uma forma de comunicação descentralizada capaz de resistir a bombardeios nucleares estratégicos, a rede mundial de computadores foi cooptada por corações e mentes libertárias.

O físico britânico Tim Berners-Lee, inventor da World Wide Web, é o pioneiro da internet que melhor representa o roubo do fogo dos deuses, no melhor estilo “Prometeu acorrentado” da tragédia grega de Ésquilo, escrita quase 500 anos antes de Cristo. Berners-Lee imaginou a internet como um sistema complexo de pessoas interconectadas, capaz de unir a diversidade de pensamento com o objetivo de resolver os grandes desafios comuns da humanidade. Em parte, a previsão de Berners-Lee se realizou em projetos extraordinários de colaboração planetária, como o que levou à produção de vacinas eficazes contra a Covid-19 menos de um ano depois do sequenciamento genético do vírus.

Mas a internet está permitindo também boicotes ideológicos nada libertários aos centros tradicionais de autoridade que nos trouxeram até aqui — principalmente ofensivas bárbaras contra os métodos normativos de produção de conhecimento. É preciso lembrar que Darwin e Einstein revolucionaram a ciência, mas com obediência plena ao método científico. O que se vê agora são ataques a processos de tirar lições da experiência e de modificar os esquemas mentais, de modo que dialoguem racionalmente com a realidade — aquilo que o francês Edgar Morin chama de “oscilação constante entre o lógico e o empírico”.

O otimismo é fácil de explicar. O pessimismo exige mais das palavras, como você, caro leitor, testemunhou acima, espero que sem se decepcionar. Cutucado pela mensagem que abre a coluna, exasperei-me com o que parece ser o triunfo do tribalismo via internet, nos condenando ao “todos contra todos” hobbesiano em que, fechados em nossas cidadelas, estamos nos lixando para o resto.

O otimista em mim pode estar começando a ceder à realidade brasileira. Respondi ao amigo: “Muito boa análise. Triste conclusão, com a vitória do tribalismo sobre o bem comum”.


Pablo Ortellado: Outra vez o espectro do golpe

Mais uma vez, Bolsonaro invocou o espectro do golpe de Estado. Ele preparou um elaborado roteiro de ações e respostas que pode resultar em mais uma ameaça às instituições democráticas.

O roteiro tem seu primeiro ato na live do dia 11 de março. Nela Bolsonaro acusa governadores e prefeitos de tomarem “decisões absurdas” sobre o isolamento social, que equivaleriam a um estado de sítio, uma grave subtração do direito de ir e vir. Bolsonaro lembra em seguida que é a pessoa mais importante na cadeia de comando e avisa: “Não podemos deixar isso acontecer! Faço o que o povo quiser. Devo lealdade ao povo. Eu sou o chefe supremo das Forças Armadas!”.

Nos dias seguintes, meios bolsonaristas passam a divulgar vídeos com trechos da live dizendo que “Bolsonaro deu a senha”, que, se “o povo” pedir uma intervenção militar, Bolsonaro vai atender.

Manifestações são chamadas para o domingo (14) e a segunda (15), no centro das cidades e em frente aos quartéis, mas sem o apoio dos grandes canais e dos grandes influenciadores monitorados pela Polícia Federal no inquérito dos atos antidemocráticos.

As manifestações não são muito significativas, mas tampouco são inexpressivas.

No começo da semana, no cercadinho, questionado sobre o que tinha achado dos protestos, Bolsonaro diz que gostou muito, que “o povo está vivo”.

Na live da última quinta-feira (18), Bolsonaro enaltece a “manifestação espontânea” que “vem do coração do povo”. Em seguida, retoma a retórica da senha e diz que “o que o povo quer, a gente faz” e, depois, constata que “o povo disse nas ruas que quer trabalhar”.

Bolsonaro anuncia então duas medidas: uma ação de inconstitucionalidade no Supremo contra a imposição de medidas de restrição de mobilidade pelos governadores e um projeto de lei no Congresso estabelecendo toda forma de trabalho como essencial. Se Supremo e Congresso acatarem as medidas, diz Bolsonaro, se “restabelece a ordem no Brasil”.

Na sexta-feira (19), no cercadinho, Bolsonaro retoma a imagem de governadores decretando estado de sítio e alerta que chegará o momento de medidas “duras”, “para dar o direito do povo trabalhar”.

As duas medidas anunciadas na quinta, porém, estão fadadas ao fracasso. Não há a menor chance de o STF impedir governadores e prefeitos de decretar medidas de restrição à mobilidade no momento em que pandemia está tirando mais de 2 mil  vidas por dia. Não há tampouco qualquer chance de o Congresso desfazer a distinção entre trabalhadores essenciais e não essenciais, que permite que se paralisem as atividades econômicas seletivamente.

Bolsonaro não propôs essas medidas para que sejam aprovadas, mas para depois dizer que tentou a via institucional e foi deixado com as mãos amarradas, só lhe restando as “medidas duras”.

Mais uma vez, prepara a justificativa para uma eventual ruptura institucional. Mais uma vez, o pretexto é a preservação da democracia e das liberdades, com o respaldo do “povo” —ainda que se trate apenas de um punhado de militantes.


Oliver Stuenkel: Brasil fora da nova construção da ordem global pós-coronavírus

Visto como ameaça tanto no âmbito ambiental quanto no da saúde global, o país vive colapso inédito da sua reputação e influência

Cada geração vivencia momentos históricos que transformam a política global, fechando uma era ou abrindo um novo ciclo geopolítico. Eventos como o colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria, os atentados do 11 de setembro, a entrada da China na OMC e a crise financeira global de 2008 rearranjaram o tabuleiro global, tanto dando mais espaço a países que conseguiram, por inteligência estratégica ou mera sorte, se adaptar melhor à nova realidade, quanto reduzindo a influência daqueles que não souberam aproveitar o novo contexto. Em momentos nos quais o mundo está em transição, países com lideranças bem-preparadas podem aproveitar para galgar posições, enquanto outros correm o risco de perder relevância.

Com a pandemia do novo coronavírus não será diferente, e já se percebe que alguns países mostram-se mais ágeis e resilientes no combate à covid-19 do que outros. Enquanto Tailândia, Vietnã e Nova Zelândia conseguiram evitar elevadas taxas de infecção, outros, como China e Rússia, estão aumentando sua influência global por meio da “diplomacia da vacina”, oferecendo doses a países em desenvolvimento mesmo antes de completar a vacinação de suas próprias populações.

O Brasil, pelo que tudo indica, é um dos grandes perdedores geopolíticos do momento atual: não apenas saiu da lista das 10 maiores economias do mundo durante a pandemia, mas também vive um colapso inédito de sua imagem diante da estratégia negacionista de seu presidente, abalando a confiabilidade que o país tinha entre seus tradicionais aliados. A reputação brasileira de país com um dos maiores e melhores sistemas públicos de saúde no mundo em desenvolvimento, arduamente construída ao longo de anos, se desfez, ofuscada por um presidente que ocupa regularmente manchetes dos maiores jornais do planeta por seus ataques contra a ciência.

Ainda é cedo para se ter uma noção clara de todas as consequências geopolíticas da pandemia, mas algumas tendências já se destacam. Três questões merecem atenção.

Em primeiro lugar, não há dúvidas de que a saúde global se consolidará como um tema-chave no âmbito multilateral, seja pelo fortalecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS), seja pela criação de uma estrutura nova para monitorar o surgimento de futuras pandemias e o desenvolvimento e a distribuição de outras vacinas. Além de se buscar prevenir e combater o surgimento de um novo vírus, cresce a preocupação com as chamadas superbactérias, que resistem a antibióticos e poderiam, segundo estudo encomendado há alguns anos pelo governo britânico, matar milhões de pessoas e “levar a medicina à era das trevas”, como disse Jim O’Neill, coordenador da pesquisa e criador do termo BRICS. Tanto os principais fornecedores de vacinas quanto países que responderam melhor a pandemia devem liderar esse debate. O Brasil, que é visto como uma ameaça global e um possível celeiro de variantes por não controlar a transmissão do vírus, dificilmente terá voz.

Em segundo lugar, uma das tendências mais transformadoras da política global nos próximos anos será a influência do enfrentamento da mudança do clima na política externa das grandes potências —inclusive da China. O atual debate sobre o ecocídio ser ou não considerado um crime internacional, como é o caso do genocídio, é apenas o princípio de uma transformação que mudará a maneira como países pensam seus interesses nacionais e as principais ameaças que enfrentam. Enquanto lideranças políticas brasileiras e das Forças Armadas do Brasil se destacam pelo negacionismo, as Forças Armadas de outros países discutem o tema de maneira frequente há anos —inclusive porque o desmatamento pode aumentar o risco do surgimento de novas pandemias. Da mesma forma que no debate sobre saúde global, o Brasil corre o risco de ser visto como ameaça pela comunidade internacional, reduzindo a possibilidade de tornar-se interlocutor qualificado, consolidando, assim, seu papel de pária.

A terceira grande tendência política no mundo pós-covid-19 será a chegada da chamada guerra tecnológica —a competição tecnológica global entre EUA e China, que se tornou mais visível no Brasil depois de o Governo Bolsonaro sofrer pressão dos EUA para excluir a empresa chinesa Huawei entre as opções de fornecedores na construção da rede 5G. A pressão norte-americana foi seguida de alertas de Pequim, para a qual tal posição seria interpretada como um ato hostil ao governo chinês. Gerenciada de maneira perspicaz, a crescente atuação chinesa na América Latina poderia ajudar o Brasil na gestão da relação com os EUA e vice-versa. Afinal, sempre convém ter alternativas. Porém, como as tensões entre Pequim e Washington no âmbito tecnológico podem levar à criação de duas esferas tecnológicas, uma liderada pelos EUA e outra pela China, manter relações amistosas demandará sofisticação diplomática por parte do Brasil. O Governo Bolsonaro, no entanto, escolheu o pior dos mundos: depois de Bolsonaro se posicionar publicamente a favor dos EUA, viu-se obrigado a permitir, de última hora, a participação da Huawei na corrida pela rede 5G quando aumentou a pressão pública por ganhar acesso a vacinas chinesas contra a covid-19. Tanto em Washington quanto em Pequim, observadores ficaram com a impressão de que a atuação externa do governo Bolsonaro não se baseia em um planejamento estratégico, mas é curto-prazista e imprevisível. O presidente conseguiu a proeza de ter saído do episódio com a relação abalada tanto com Washington quanto com Pequim.

Em meio a essas transformações que moldarão os fundamentos da era pós-pandemia, está nascendo uma ordem global diferente, produto de decisões das principais lideranças da atualidade. Enquanto os EUA pagavam um preço desproporcional por ter uma liderança incapaz de gerenciar a pandemia até recentemente, a atual administração já está conseguindo conter os danos, implementando um dos melhores programas de vacinação do mundo. No caso brasileiro, a troca do atual presidente em 2022 seria o primeiro passo para começar a controlar o prejuízo e reverter o colapso inédito da reputação e influência brasileira no mundo.

Oliver Stuenkel é doutor em Ciências Política e professor de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel


Rolf Kuntz: Ameaça é crime, no Código Penal. Ameaça de golpe também é?

Trump fracassou, no golpe, mas convém tomar cuidado com seus imitadores

Vitória de Bolsonaro: o Brasil superou a marca de 200 mil mortes pela covid, resultado favorecido por seu negacionismo, por seu desleixo em relação à máscara, por sua presença em aglomerações e pela recusa a coordenar o combate à pandemia. Exemplos indignos de um governante foram acompanhados de manifestações de desprezo à vida alheia, sintetizadas em duas palavras famosas: e daí?

Foi uma grande semana para o chefe do desgoverno brasileiro. Seu guia intelectual, moral e político, Donald Trump, atiçou um assalto ao Congresso, tentou impedir a certificação da vitória de Joe Biden e estimulou Mike Pence, vice-presidente da República e presidente do Senado, a inverter o resultado da eleição. Pence recusou-se a cumprir a calhordice. Nos Estados Unidos a tentativa de golpe fracassou, mas sobrou a inspiração. Lá pode ter falhado, mas falhará no Brasil?

Algo “pior” poderá ocorrer por aqui, avisou Bolsonaro, se ainda houver voto eletrônico em 2022, isto é, se a sua vontade for descumprida. “Se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que o dos Estados Unidos”, disse ele àquele auditório disposto a aplaudir qualquer barbaridade pronunciada por seu líder.

Mais que um aviso, foi uma evidente ameaça. Assim o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, interpretou – corretamente – a fala de Bolsonaro. Afinal, que rebanho golpista ousará atacar o Congresso Nacional, e talvez o Supremo Tribunal Federal, sem a liderança de um candidato a tiranete, saudoso da ditadura militar e defensor da tortura?

Pelo Código Penal, ameaça é punível com detenção, de um a seis meses, ou multa. O crime é caracterizado no artigo 147: “Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”. Qual o freio aplicável a quem anuncia algo “pior” que os eventos de quarta-feira em Washington – invasão e depredação do Congresso e tentativa de mudar, num golpe, o resultado da eleição?

Não há como desconhecer ou menosprezar o risco. O autor da ameaça já compareceu a manifestações golpistas, discursou diante de quem defendia o fechamento do Legislativo e do Judiciário e tentou envolver as Forças Armadas em suas manobras autoritárias. Mais de uma vez elogiou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado judicialmente como torturador, e o descreveu como herói nacional. Há poucos dias fez piada sobre a tortura sofrida na juventude por Dilma Rousseff, futura presidente do Brasil. A reação indignada uniu ex-presidentes, políticos e cidadãos de diferentes ideologias.

Há quem tente minimizar as barbaridades bolsonarianas como se fossem palavras e gestos sem consequência, reflexos de um estilo pessoal e de “um jeito de falar”. Mas nada disso é mera questão de jeito, de informalidade excessiva ou mesmo de uma rudeza franca e inocente.

Em Bolsonaro, a indisfarçável grosseria aparece misturada com o obscurantismo, o preconceito, o culto da brutalidade e a tendência autoritária. Quando ele manifesta, como em 23 de agosto, o desejo de “encher na porrada” a boca de um repórter, depois de uma pergunta incômoda, todas essas características se manifestam. São marcas de um caráter, mas são também – e isto é o mais importante, politicamente – mais um alerta para quem deseja a preservação e o aperfeiçoamento da democracia.

A relação sempre difícil de Bolsonaro com a imprensa é mais que a expressão de uma dificuldade pessoal. É a comprovação de seu horror a um componente essencial da liberdade política. Incapaz de se relacionar democraticamente com a imprensa, ele prefere comunicar-se de forma unilateral, por meio de lives e de manifestações diante de um cercadinho de apoiadores embasbacados.

Diante desses admiradores ele exorciza a própria incompetência, inocentando-se de suas omissões e de seus erros. Se deixou de mexer na tabela do Imposto de Renda, foi porque o País está quebrado, afetado por um vírus “potencializado pela mídia que nós temos, essa mídia sem caráter”.

Além de lançar a fantástica tese de um vírus potencializado pela mídia, Bolsonaro expôs o Tesouro Nacional – e, de fato, a economia brasileira – aos efeitos de uma declaração de quebra, isto é, de insolvência. Ninguém o levou a sério, naturalmente. O Brasil continua solvente, apesar do enorme custo fiscal das ações emergenciais de 2020. Mas há sinais de susto, no mercado, diante das barbaridades e irresponsabilidades de um presidente inepto para governar, ignorante de suas funções e concentrado em objetivos pessoais, como a reeleição e a defesa de filhos suspeitos de rachadinhas e lavagem de dinheiro.

Incapaz de entender a Presidência e seus limites, Bolsonaro vive em conflito com a ordem democrática. Confunde governar com mandar, insiste em moldar as instituições segundo seus objetivos pessoais e familiares e aposta no apoio de milhões de desinformados manipuláveis por meio de redes sociais. Seria enorme erro menosprezar suas ameaças. Trump fracassou ao tentar o golpe, mas o exemplo e a tentação permanecem.


Marco Antonio Villa: Bolsonaro é a maior ameaça à democracia

Às Forças Armadas, o presidente fomenta a indisciplina dos oficiais com a intenção de ter apoio para uma aventura golpista

Jair Bolsonaro encerra politicamente o terrível ano de 2020 da mesma forma como iniciou. Conspirando diuturnamente contra o Estado Democrático de Direito. Se a prisão, em junho, de Fabrício Queiroz, interrompeu a marcha golpista, nos últimos dias de dezembro, Bolsonaro voltou à carga. Atacou a imprensa, ameaçou jornalistas, desqualificou a importância da informação livre e responsável, caluniou ministros do STF — como na sua live do dia 17, quando afirmou que o ex-ministro Celso de Mello é defensor da poligamia —, caluniou o deputado Rodrigo Maia imputando a ele uma suposta ação contra o décimo-terceiro pagamento do Bolsa-Família — acabou sendo desmentido não só pelo próprio presidente da Câmara dos Deputados, como também pelo ministro da Economia Paulo Guedes.

As agressões sistemáticas às instituições geralmente ocorreram em atos públicos — excetuando as lives, obviamente — onde encontrou plateias amestradas, inclusive em próprios da União, especialmente das Forças Armadas. Há uma clara estratégia de, ao mesmo tempo em que solapa os princípios da Constituição de 1988, buscar sempre um lócus adequado de onde pronuncia seus vitupérios. A escolha recai geralmente nas cerimônias das Forças Armadas. Lá fomenta a indisciplina dos oficiais e busca aparentar que detém apoio para uma aventura golpista. Já com os policiais militares insinua que podem se transformar em milícias auxiliares do seu projeto autoritário. Um exemplo: o violento ataque à imprensa e às instituições na cerimônia de formatura de soldados da PM fluminense, em 18 de dezembro.

Diferentemente dos atos antidemocráticos que promoveu no primeiro semestre — e que estão sendo investigados no STF —, desta vez há um agravante: não há como esconder o avanço da Covid-19, seus efeitos — mais de sete milhões de infectados e 190 mil óbitos —, a irresponsável conspiração contra a vacinação, isto em um cenário que aponta um rápido avanço da pandemia. Tudo caminha para uma confluência de crises: a institucional, a sanitária e a econômica. É uma tragédia anunciada. Bolsonaro necessita, para sobreviver politicamente e esconder o desastre do seu governo, confrontar e ameaçar as instituições, apontando até, no limite, para um golpe. A pandemia tende a ficar incontrolável no primeiro trimestre do próximo ano. E a economia caminha para uma recuperação tímida, muito abaixo do que seria necessário frente ao tombo de 2020. É o cenário perfeito para a explosão de uma crise social. Quem viver verá.