Ameaça de golpe

TSE desmente Bolsonaro e diz que PF 'nunca' comunicou fraude nas eleições

Presidente disse em programa de rádio que relatório da instituição levantava suspeita de invasão das urnas eletrônicas

Monica Bergamo / Folha de S. Paulo

O Tribunal Superior Eleitoral voltou a contestar, na madrugada desta quinta (5), declarações feitas por Jair Bolsonaro sobre a vulnerabilidade do sistema eleitoral.

presidente afirmou, em um programa da rádio Jovem Pan, que o próprio TSE teria reconhecido que um hacker invadiu seu sistema interno. A admissão teria sido feita em um inquérito da Polícia Federal
De acordo com Bolsonaro e o deputado, isso mostraria a fragilidade das urnas eletrônicas.

O inquérito, no entanto, não conclui que houve fraude no sistema eleitoral em 2018 ou que poderia ter havido adulteração dos resultados, ao contrário do que disse o mandatário.

De acordo com a Corte, "o próprio TSE encaminhou à Polícia Federal as informações necessárias à apuração dos fatos e prestou as informações disponíveis. A investigação corre de forma sigilosa e nunca se comunicou ao TSE qualquer elemento indicativo de fraude".

Em uma nota, o tribunal afirma que o episódio, que ocorreu em 2018, ​"foi divulgado à época em veículos de comunicação diversos. Embora objeto de inquérito sigiloso, não se trata de informação nova".

Segundo o tribunal, "o acesso indevido, objeto de investigação, não representou qualquer risco à integridade das eleições de 2018. Isso porque o código-fonte dos programas utilizados passa por sucessivas verificações e testes, aptos a identificar qualquer alteração ou manipulação. Nada de anormal ocorreu".

Cabe ainda acrescentar, diz a nota divulgada pelo TSE, "que o código-fonte é acessível, a todo o tempo, aos partidos políticos, à OAB, à Polícia Federal e a outras entidades que participam do processo. Uma vez assinado digitalmente e lacrado, não existe a possibilidade de adulteração. O programa simplesmente não roda se vier a ser modificado".

O tribunal volta a reiterar "que as urnas eletrônicas jamais entram em rede. Por não serem conectadas à internet, não são passíveis de acesso remoto, o que impede qualquer tipo de interferência externa no processo de votação e de apuração".

E é taxativo: "Por essa razão, é possível afirmar, com margem de certeza, que a invasão investigada não teve qualquer impacto sobre o resultado das eleições".

Em sua participação no programa da rádio, Bolsonaro reagiu ao fato de ser agora investigado no Supremo Tribunal Federal (STF) e no TSE por 11 crimes e chegou a afirmar: "Olha, eu jogo dentro das quatro linhas da Constituição. E jogo, se preciso for, com as armas do outro lado".

Leia a íntegra da nota divulgada pelo TSE:

"Em referência ao inquérito da Polícia Federal que apura ataque ao seu sistema interno, ocorrido em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral esclarece que:

1. O episódio de 2018 foi divulgado à época em veículos de comunicação diversos. Embora objeto de inquérito sigiloso, não se trata de informação nova.

2. O acesso indevido, objeto de investigação, não representou qualquer risco à integridade das eleições de 2018. Isso porque o código-fonte dos programas utilizados passa por sucessivas verificações e testes, aptos a identificar qualquer alteração ou manipulação. Nada de anormal ocorreu.

3. Cabe acrescentar que o código-fonte é acessível, a todo o tempo, aos partidos políticos, à OAB, à Polícia Federal e a outras entidades que participam do processo. Uma vez assinado digitalmente e lacrado, não existe a possibilidade de adulteração. O programa simplesmente não roda se vier a ser modificado.

4. Cabe reiterar que as urnas eletrônicas jamais entram em rede. Por não serem conectadas à internet, não são passíveis de acesso remoto, o que impede qualquer tipo de interferência externa no processo de votação e de apuração. Por essa razão, é possível afirmar, com margem de certeza, que a invasão investigada não teve qualquer impacto sobre o resultado das eleições.

5. O próprio TSE encaminhou à Polícia Federal as informações necessárias à apuração dos fatos e prestou as informações disponíveis. A investigação corre de forma sigilosa e nunca se comunicou ao TSE qualquer elemento indicativo de fraude.

6. De 2018 para cá, o cenário mundial de cybersegurança se alterou, sendo que novos cuidados e camadas de proteção foram introduzidos para aumentar a segurança de todos os sistemas informatizados."


Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2021/08/tse-desmente-bolsonaro-e-diz-que-pf-nunca-comunicou-fraude-nas-eleicoes.shtml


Luiz Carlos Azedo: A marcha inglória

Bolsonaro está pedindo para ser impedido de disputar as eleições ou mesmo ser afastado do cargo, por atitudes que atentam contra o Estado de direito democrático

Talvez o título mais adequado da coluna fosse A marcha da insensatez, inspirado no livro quase homônimo da escritora Barbara W. Tuchman sobre decisões erradas dos governantes, contra seus próprios interesses, pelos mais diversos motivos, como na Guerra de Troia, na reforma protestante, na independência dos Estados Unidos e na Guerra do Vietnã. Sempre houve momentos em que a razão foi impotente diante da ideologia e dos interesses mais mesquinhos. Parece ser o que está acontecendo no país, sob o protagonismo do presidente Jair Bolsonaro, que tenta impor sua vontade ao Congresso e ao Judiciário, ou apenas criar um pretexto para lançar o país num abismo político-institucional.

Em razão de seus sucessivos ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF), com acusações sem provas contra o sistema de votação em urna eletrônica, o que já havia provocado uma dura reação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Alexandre de Moraes acolheu notícia-crime encaminhada por unanimidade por aquela Corte ao Supremo Tribunal Federal (STF), e decidiu incluir o presidente Jair Bolsonaro no chamado inquérito das fake news. A apuração levará em conta os ataques feitos pelo presidente às urnas eletrônicas e ao sistema eleitoral do país. O inquérito foi aberto em março de 2019, pelo então presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, para investigar notícias fraudulentas, ofensas e ameaças aos integrantes da mais alta magistratura do país.

Nas suas lives, entrevistas e postagens nas redes sociais, segundo a decisão de Moraes, Bolsonaro pode ter cometido um rosário de crimes: calúnia (art. 138 do Código Penal); difamação (art. 139); injúria (art. 140); incitação ao crime (art. 286); apologia ao crime ou criminoso (art. 287); associação criminosa (art. 288); denunciação caluniosa (art. 339); tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito (art. 17 da Lei de Segurança Nacional); fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social (art.22,I, da Lei de Segurança Nacional);incitar à subversão da ordem política ou social (art. 23, I, da Lei de Segurança Nacional); dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, de investigação administrativa, de inquérito civil ou ação de improbidade administrativa, atribuindo a alguém a prática de crime ou ato infracional de que o sabe inocente, com finalidade eleitoral (art. 326-A do Código Eleitoral).

O ministro Moraes presidirá o TSE nas eleições. O presidente da República está pedindo para ser impedido de disputar as eleições de 2022 ou mesmo ser afastado do cargo, por atitudes que atentam contra o Estado de direito democrático, ao desafiar à legislação vigente e aos ministros do Supremo. Não se sabe se o presidente da República vive uma crise de ansiedade, por causa do peso das suas responsabilidades, do mau desempenho do governo e da perda de popularidade, o que pode levar a um surto psicótico, ou se faz um audacioso cálculo político, para precipitar uma grave crise institucional antes das eleições, diante da ameaça de derrota eleitoral cada vez mais iminente, isto é, uma virada de mesa.

Conjuntura
Diante de tanta subjetividade envolvida nas atitudes do presidente da República, o melhor a fazer é examinar os cenários e a correlação de forças que podem nos conduzir ao desfecho dessa crise entre Bolsonaro e a maioria dos integrantes do Supremo. Como na Teoria da Relatividade, porém, o tempo da Justiça não é o mesmo da política e da economia. O ambiente internacional não é favorável a um golpe de Estado no Brasil, principalmente durante o governo do presidente Joe Biden, nos Estados Unidos, país com o qual temos relações amplas, históricas e multifacetadas. Há sim, no mundo, uma onda autoritária, mas somos um país do Ocidente. Bolsonaro vive às turras com os chineses; a Rússia não é uma parceira privilegiada do governo brasileiro, embora o presidente da República tenha certa simetria política com o líder russo Vladimir Putin.

No plano interno, Bolsonaro perde o apoio do stablishment econômico e institucional, que também não está interessado no “quanto pior, melhor”. Sua política econômica garroteia as possibilidades de recuperação eleitoral, porque o cobertor está curto: a atividade econômica se recupera, mas a inflação provoca elevação de juros e freia a geração de empregos; o governo tenta implementar uma política de compensação social, mas sacrifica os contratos, pedalando os precatórios, o que cria insegurança jurídica e reduz investimentos privados. No plano político, tornou-se prisioneiro do Centrão, que vai apoiar o governo até as eleições; o projeto de reeleição, não necessariamente, depende da situação eleitoral de cada estado.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-marcha-ingloria

Rolf Kuntz: Ameaça é crime, no Código Penal. Ameaça de golpe também é?

Trump fracassou, no golpe, mas convém tomar cuidado com seus imitadores

Vitória de Bolsonaro: o Brasil superou a marca de 200 mil mortes pela covid, resultado favorecido por seu negacionismo, por seu desleixo em relação à máscara, por sua presença em aglomerações e pela recusa a coordenar o combate à pandemia. Exemplos indignos de um governante foram acompanhados de manifestações de desprezo à vida alheia, sintetizadas em duas palavras famosas: e daí?

Foi uma grande semana para o chefe do desgoverno brasileiro. Seu guia intelectual, moral e político, Donald Trump, atiçou um assalto ao Congresso, tentou impedir a certificação da vitória de Joe Biden e estimulou Mike Pence, vice-presidente da República e presidente do Senado, a inverter o resultado da eleição. Pence recusou-se a cumprir a calhordice. Nos Estados Unidos a tentativa de golpe fracassou, mas sobrou a inspiração. Lá pode ter falhado, mas falhará no Brasil?

Algo “pior” poderá ocorrer por aqui, avisou Bolsonaro, se ainda houver voto eletrônico em 2022, isto é, se a sua vontade for descumprida. “Se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que o dos Estados Unidos”, disse ele àquele auditório disposto a aplaudir qualquer barbaridade pronunciada por seu líder.

Mais que um aviso, foi uma evidente ameaça. Assim o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, interpretou – corretamente – a fala de Bolsonaro. Afinal, que rebanho golpista ousará atacar o Congresso Nacional, e talvez o Supremo Tribunal Federal, sem a liderança de um candidato a tiranete, saudoso da ditadura militar e defensor da tortura?

Pelo Código Penal, ameaça é punível com detenção, de um a seis meses, ou multa. O crime é caracterizado no artigo 147: “Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”. Qual o freio aplicável a quem anuncia algo “pior” que os eventos de quarta-feira em Washington – invasão e depredação do Congresso e tentativa de mudar, num golpe, o resultado da eleição?

Não há como desconhecer ou menosprezar o risco. O autor da ameaça já compareceu a manifestações golpistas, discursou diante de quem defendia o fechamento do Legislativo e do Judiciário e tentou envolver as Forças Armadas em suas manobras autoritárias. Mais de uma vez elogiou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado judicialmente como torturador, e o descreveu como herói nacional. Há poucos dias fez piada sobre a tortura sofrida na juventude por Dilma Rousseff, futura presidente do Brasil. A reação indignada uniu ex-presidentes, políticos e cidadãos de diferentes ideologias.

Há quem tente minimizar as barbaridades bolsonarianas como se fossem palavras e gestos sem consequência, reflexos de um estilo pessoal e de “um jeito de falar”. Mas nada disso é mera questão de jeito, de informalidade excessiva ou mesmo de uma rudeza franca e inocente.

Em Bolsonaro, a indisfarçável grosseria aparece misturada com o obscurantismo, o preconceito, o culto da brutalidade e a tendência autoritária. Quando ele manifesta, como em 23 de agosto, o desejo de “encher na porrada” a boca de um repórter, depois de uma pergunta incômoda, todas essas características se manifestam. São marcas de um caráter, mas são também – e isto é o mais importante, politicamente – mais um alerta para quem deseja a preservação e o aperfeiçoamento da democracia.

A relação sempre difícil de Bolsonaro com a imprensa é mais que a expressão de uma dificuldade pessoal. É a comprovação de seu horror a um componente essencial da liberdade política. Incapaz de se relacionar democraticamente com a imprensa, ele prefere comunicar-se de forma unilateral, por meio de lives e de manifestações diante de um cercadinho de apoiadores embasbacados.

Diante desses admiradores ele exorciza a própria incompetência, inocentando-se de suas omissões e de seus erros. Se deixou de mexer na tabela do Imposto de Renda, foi porque o País está quebrado, afetado por um vírus “potencializado pela mídia que nós temos, essa mídia sem caráter”.

Além de lançar a fantástica tese de um vírus potencializado pela mídia, Bolsonaro expôs o Tesouro Nacional – e, de fato, a economia brasileira – aos efeitos de uma declaração de quebra, isto é, de insolvência. Ninguém o levou a sério, naturalmente. O Brasil continua solvente, apesar do enorme custo fiscal das ações emergenciais de 2020. Mas há sinais de susto, no mercado, diante das barbaridades e irresponsabilidades de um presidente inepto para governar, ignorante de suas funções e concentrado em objetivos pessoais, como a reeleição e a defesa de filhos suspeitos de rachadinhas e lavagem de dinheiro.

Incapaz de entender a Presidência e seus limites, Bolsonaro vive em conflito com a ordem democrática. Confunde governar com mandar, insiste em moldar as instituições segundo seus objetivos pessoais e familiares e aposta no apoio de milhões de desinformados manipuláveis por meio de redes sociais. Seria enorme erro menosprezar suas ameaças. Trump fracassou ao tentar o golpe, mas o exemplo e a tentação permanecem.