2021

Adriana Fernandes: A corrida política pelo auxílio

Congresso precisa retomar os trabalhos. A agenda do País é urgente demais para esperar

Cacique do MDB, o senador Renan Calheiros chamou pelas redes sociais de “pasmaceira que não resolve nada” o quadro atual em que problemas pendentes se acumulam exigindo resposta do Congresso para o plano de vacinação contra a covid-19, o auxílio emergencial e o Orçamento deste ano. 

A cobrança do senador e de um número cada vez maior de parlamentares é pelo fim do recesso parlamentar para o enfrentamento da situação de calamidade que passa o País e que não terminou com a virada de 2020 para 2021. Já há requerimento para uma convocação extraordinária do Congresso para discutir um novo decreto de calamidade e a prorrogação do auxílio.

Era de se esperar que isso de fato fosse acontecer para o Congresso acompanhar de perto e pressionar o governo a correr com as medidas necessárias nesse janeiro tenebroso.

Vamos lembrar que no início da pandemia o Congresso teve papel fundamental na aceleração da ação do governo Bolsonaro para a adoção das medidas que impediram um desastre ainda maior. Mais uma vez, porém, uma eleição está no caminho das decisões urgentes. 

Como aconteceu, no ano passado, na campanha eleitoral municipal, a eleição do Congresso empurra com a barriga os problemas. É por isso que o ano entrou sem uma solução para o fim do auxílio. O mês de fevereiro virou o novo mote da salvação. Mas é para depois da eleição, viu leitor!

De um lado, Renan, o presidente Rodrigo Maia, o candidato Baleia Rossi e tantos outros parlamentares da Câmara e do Senado que têm o interesse de acabar com recesso parlamentar por estratégia eleitoral para seus candidatos.  

Candidato à presidência da Câmara, Baleia Rossi já defendeu a prorrogação do auxílio emergencial e a convocação do Congresso para a aprovação das medidas.

Do outro lado, Jair BolsonaroDavi Alcolumbre, lideranças governistas, o candidato Arthur Lira e aliados não querem dar palco para os opositores.  Mas e daí? 

Daí que o presidente Bolsonaro já editou uma Medida Provisória que traz medidas excepcionais relativas à compra de vacinas, insumos, bens e serviços de logística e que trata do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação. Outras MPs podem ser adotadas e têm vigência imediata.

O governo federal também tenta impedir ações de combate à pandemia pelos Estados e municípios, como a de requisitar seringas e agulhas compradas pelo governo João Doria, destinadas à execução do plano estadual de imunização, o que já foi impedido pelo ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), que está de plantão e deferiu medida cautelar solicitada pelo Estado de São Paulo.  

O cálculo político do primeiro grupo é o de que na data da eleição, no início de fevereiro, a pandemia estará mais forte e com a vacinação (na melhor das hipóteses) apenas começando. Essa piora da pandemia terá impacto na eleição.

No governo, a expectativa é que o seu candidato ganhe as eleições e lidere essa agenda. Por isso, prefere esperar para agir depois do resultado da eleição, no início de fevereiro.  

Baleia Rossi acenou com a prorrogação do auxílio. E Arthur Lira falou, logo em seguida, que é preciso cuidar dos mais pobres reorganizando os programas de renda mínima, “mas sem abrir mão da austeridade fiscal e do teto de gastos”.  

Lira disse que a “demagogia fiscal sempre custa caro para o País e em especial para os mais pobres”. O mais provável, porém, é que o discurso fiscalista de agora caia por terra daqui a pouco com os números do avanço da pandemia. Não vai demorar muito porque a pressão dos parlamentares e governadores é crescente também para o seu lado. 

Como na disputa política entre o presidente Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria, pela vacina, a corrida pela prorrogação do auxílio e medidas urgentes para a vacinação vão dar o tom da campanha. Não tem como ser diferente. 

O mercado financeiro tem reagido às declarações de apoio à prorrogação do auxílio como um risco fiscal que piora os indicadores econômicos. A fala de Baleia em apoio ao benefício esta semana, no dia da formalização da sua candidatura à sucessão de Maia, causou apreensão. Fato comemorado pelo governo. Baleia, inclusive, já teve que fazer ajustes no seu discurso ao pregar também responsabilidade fiscal. Estranhamente houve uma inversão de papéis.

Não deve adiantar, porém, a reação do mercado. Chega uma hora que não dá para brigar com os acontecimentos.  É o mesmo script do início da pandemia. O auxílio deverá ser prorrogado e decretada nova calamidade. A questão agora é saber quem vai comandar essa agenda, controlar o seu alcance e timing: antes ou depois das eleições.

Independentemente dos interesses que cercam as eleições do Congresso, é preciso prontidão máxima que o controle da doença exige neste momento. Não só pelo auxílio, mas, sobretudo, pela vacinação dos brasileiros o mais rápido possível. O Congresso precisa retomar os trabalhos. Esse recesso é totalmente despropositado. A agenda é urgente demais pra esperar. O uso político que se pode fazer de uma convocação desse tipo é efeito colateral. Não se pode deixar de fazer a coisa certa por receio do efeito colateral. Porque aí significa o rabo abanando o cachorro.


Luiz Carlos Trabuco Cappi: Um ‘gambito’ para 2021

País começará o ano herdando um tabuleiro marcado por lances já realizados

A estratégia desenhada para enfrentar os desafios de 2021 exigirá empenho, soma de esforços e agilidade. O cronômetro do jogo cobra ações imediatas. Neste começo de ano, um tempo de esperança e afeto, compartilho uma ideia. Pense no tabuleiro de xadrez, um jogo que tem muito a nos ensinar. O desenvolvimento cognitivo que ele favorece, assim como os valores que propõe, podem mudar, para melhor, nossa maneira de ver as coisas. 

O xadrez vive um novo momento de glória com a popularidade da série O Gambito da Rainha. Nela, a protagonista Elisabeth Harmon é tida, desde a infância, como um prodígio dos tabuleiros. A jovem passa os episódios enfrentando grandes mestres e vencendo quase todos – superando barreiras e preconceitos que a tornam uma figura emblemática da falta de inclusão e diversidade no esporte que também é uma profissão. Uma das falas mais interessantes da personagem, num episódio marcante, é que “o xadrez nem sempre é competitivo; ele pode ser simplesmente lindo”.

Nesse jogo, toda informação que precisamos está plenamente disposta no tabuleiro. O resultado da partida dependerá única e exclusivamente da habilidade de cada um. Não existe o “contar com a sorte”. O que há como diferencial é a preparação, o estudo, o conhecimento.

O xadrez começa sempre polarizado: brancas e pretas caminhando em direção ao centro. A jogada chamada gambito da rainha (ou estratégia da dama) consiste em oferecer um sacrifício que envolve a peça de maior mobilidade dentro do tabuleiro, para se ganhar uma vantagem posicional efetiva. Esse movimento pode ser aceito ou recusado pelo adversário, decisão que definirá o rumo da partida. Curiosamente, os sacrifícios em favor de continuar seguindo em frente foram uma constante ao longo de 2020, tanto na esfera pública quanto na privada.

Sempre existiram muitas associações entre as instituições modernas e o papel que caberia a elas no tabuleiro de xadrez. Os reis certamente seriam os governos; as poderosas rainhas, talvez as grandes corporações; os bispos, a mídia que, mais do que nunca, inspira veneração; o cavalo e a torre seriam os exércitos e as forças de segurança; e, evidentemente, os peões representariam os cidadãos comuns.

Não se pode nunca desfazer um movimento no xadrez, mas é possível se recuperar e fazer com que os próximos lances sejam bem melhores. Em 2021, o País começará o ano herdando um tabuleiro marcado por lances já realizados, como o decreto de calamidade pública e a provisão de créditos extraordinários, entre outros. Assim como pelo recuo em alguns quadrantes importantes, como os das reformas tributária e administrativa.

Um bom estrategista no xadrez da economia consideraria imutáveis algumas regras do jogo, como o respeito à meta fiscal, à regra de ouro e ao teto de gastos. Provavelmente movido por um sentimento experimentado pelos melhores enxadristas de que, “se um jogador acredita em milagres, às vezes ele pode operá-los!”.

O jogo de xadrez celebra a importância da ponderação, da engenhosidade e do estudo de jogadas já realizadas, para que não se repitam no presente os mesmos erros cometidos antes. Igualmente, premia a ação executada dentro de um timing específico. A série valoriza, ainda, a importância de despir-se de vaidade. A certa altura, o personagem Harry Beltik, que fora um adversário vencido por Elisabeth quando ela ainda era criança, torna-se seu mentor. E ao vê-la cheia de vícios na vida adulta, trilhando caminhos errados, sentencia: “É tolice correr o risco de ficar louco por vaidade”. E assim, movido por um bem maior, empenha-se em trazê-la de volta à realidade e dar novo rumo à partida. Sempre em nome da beleza do jogo.

São esses valores que merecem uma reflexão cuidadosa para enfrentarmos os próximos lances de 2021. E, como diria a protagonista, ao final do último episódio: “Let’s play!”.

*PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DO BRADESCO. ESCREVE A CADA DUAS SEMANAS


Cacá Diegues: A vida ao vivo

Este ano não vai conseguir ser pior do que o que foi embora

Joca, meu amigo que mora nos altos do Rio, numa casa cercada por trecho preservado da Mata Atlântica, me telefonou outro dia. Me preparei para aceitar mais um convite para fim de semana no meio do mato, almoçando o que ele mesmo cozinha (Joca é especialista em peixe). Mas havia na voz de meu amigo um certo pânico, vi logo que não se tratava de nada divertido.

Com estardalhaço e a certeza de que estava sendo injustamente prejudicado, Joca desabafou, antes mesmo de um boa-noite regulamentar: ele havia assistido a um programa culto da televisão em que se dizia que o macaco-prego tinha o hábito de devorar o caule das palmas. E Joca sabia, por informação de um desses ecologistas palpiteiros que o frequentavam, que era justamente pelo caule que as palmas se multiplicavam. Como o que mais havia no mato em torno de sua casa eram macacos daquela família, tão numerosos quanto vorazes, Joca entrara em pânico. Se a notícia se confirmasse, a casa, passado algum tempo, poderia se tornar uma ilha de barro cercada de mato seco sem graça, por terrenos baldios sem verde algum.

Eu ia lhe dizer que, mesmo que por absurdo viesse a perder para sempre as palmas da vizinhança, lhe sobrariam folhas e flores, plantas e árvores, verdes infindáveis no entorno da propriedade. Não lhe faltariam mato e bichos de toda espécie para viver nele. Mas, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, Joca adivinhou a direção de meu discurso em construção e berrou que ia ler em voz alta, no seu celular, cópia do que eu havia escrito há umas semanas na coluna, depois de um almoço ao ar livre em sua casa.

Tratava-se de um elogio generoso a aves e animais que da mata nos observavam a devorar a peixada que nosso anfitrião nos havia preparado. Entre tucanos e estranhas borboletas, maracanãs e maritacas, eu destacava os encantadores macaquinhos, bravos e simpáticos, moradores da floresta. Alguns até traziam às costas membros de sua prole que assim aprendiam o caminho das palmas, uma cena tornada inesquecível por minha filha Flora, apaixonada pelo lugar. E, com malícia, Joca se dirigia a mim como se eu fosse, em qualquer circunstância, um aliado daqueles animais. Como quem já sabia que, por velha amizade e parceria, eu ia defender os bichinhos gulosos e irresponsáveis, mesmo que estivessem acabando com o planeta.

Fora de si, Joca me anunciou que ia ler o final de meu artigo. Ele aumentou o volume da voz e leu sem respirar, sem respeitar pontos e vírgulas: “Os bichos andam sempre em grupos homogêneos sem a participação indesejável dos que são diferentes. Foi o ser humano que inventou a solidariedade e somente nós a praticamos sobre a face da Terra. Se não a praticássemos, a natureza se reduziria a uma constante guerra entre todos, pelo melhor abrigo e alimento”. Joca suspirou e completou a leitura: “Por que temos que nos submeter ao mal natural, se podemos inventar outro mundo, a partir de um pensamento solidário?”.

Pensei na utopia que a frase propunha, mas fiz silêncio e nem me ocorreu argumentar que todo macaco era um ser irracional, sendo aquele um pensamento muito sofisticado para um ser irracional. Joca também fez silêncio do outro lado, mas ainda suspirava, parecendo extenuado por tão pouco. Depois de algum tempo sem que nenhum dos dois dissesse qualquer coisa, ele mudou de tom e me convidou para dar um pulo com Renata em sua casa para tomar um vinho. Fui. Quase que como se a rápida conversa no telefone me impedisse de não ir.

A caminho de sua casa, meu celular tocou e Renata atendeu. Era ele. Depois de ouvi-lo, Renata, divertindo-se muito, ligou o viva-voz para que eu também ouvisse o que ele dissera: “Diga a ele para não se esquecer de trazer o raio X, que é pra gente ver o calo ósseo”. Eu ainda ria de seu inesperado humor negro, quando Joca retomou o tom anterior da conversa. “Que sujeitinho, né não? Esse cara não consegue dizer nada que seja construtivo, nada que nos ajude a viver”. Imediata e peremptoriamente, Renata respondeu por mim e por ela: “É isso aí, Joca. É isso mesmo”.

Não sei por quê, me vieram ao coração as dores de 2020, com a certeza de que este ano não vai conseguir ser pior do que o que foi embora. Há meses que não vejo meus amigos em pessoa. Estou de saco cheio de lives e encontros virtuais, agradeço o esforço que a ciência contemporânea faz para que não percamos o sinal dos outros, mas quero vê-los ao vivo, a elogiar a vida mesmo que eventualmente infelizes. Quero sobretudo abraçá-los muito nessa entrada de 2021.


Vinicius Torres Freire: Brasil ainda pode ter sucesso com a vacina e alta do PIB com mais miséria em 2021

Como será possível vacinar contra Covid e gripe ao mesmo tempo?

É fácil fazer previsão. Difícil é acertar. Desde o começo do século, dois terços das previsões de crescimento da economia feitas em dezembro (para o ano seguinte) estavam muito erradas: não ficaram nem dentro do intervalo das estimativas mínima e máxima de “o mercado”.

Talvez seja útil mencionar obviedades importantes para o que vai ser de 2021. O óbvio não tem charme, mas quebramos a cara quando não nos damos conta de que ele é o muro adiante das nossas fuças.

VACINAS. O Brasil pode vacinar 1,5 milhão de pessoas por dia ou mais, em esforço de guerra (se não precisar usar essas supergeladeiras para vacinas modernas). Em tese, daria para vacinar todo o mundo com mais de 18 anos em quatro meses.

Butantan e Fiocruz dizem que podem produzir 1,3 milhão de doses por dia a partir de fevereiro (menos que isso em janeiro, mas mais no segundo semestre), bastantes para vacinar 650 mil pessoas por dia.

Desde que a eficácia e/ou efetividade dessas vacinas não seja uma porcaria e os crimes de Jair Bolsonaro não atrapalhem muito, lá por outubro daria para ter acabado o serviço. Bem antes, haveria grande alívio: daria para quase acabar com o morticínio de idosos, liberar os hospitais, reduzir custos do combate à doença, animar a economia etc. Problema de que pouco se fala: como será possível vacinar contra Covid e gripe ao mesmo tempo?

MISÉRIA. O número de novos miseráveis pode aumentar de 10 milhões a 20 milhões (sem auxílio e sem trabalho). Parece que o país se esqueceu dessa tragédia que começa já neste mês.

INFLAÇÃO: chegará a 6% ao ano em junho. Por mês, deve crescer mais devagar agora, mas o estrago acumulado em 12 meses chegará a isso. É uma dentada na renda real, na capacidade de consumo, da metade mais pobre do país em particular.

TETO. Essa inflação vai permitir um aumento considerável de gasto federal em 2022 (6%). Vai ser difícil manter o teto em 2021 (mas haverá gambiarras). Em 2022, o teto pode se manter graças à contribuição imprevista da inflação. Vantagem para Bolsonaro.

PIB PARA RICOS. Se governo e Congresso não arrumarem confusão maior com o teto, é possível que a economia cresça uns 4% em 2021, dados os juros baixos, os preços de commodities em alta, o dólar menos caro e o crescimento menor do que o previsto da dívida pública, afora acidentes.

Não se quer dizer que o teto seja intocável, mas é grande a chance de, agora, a emenda ser pior do que o soneto. De resto, 4% de crescimento nem repõe o que se perdeu em 2020. Mas pode ser o bastante para remediar a vida de metade da população.

É para pensar: o prestígio de Bolsonaro pode se manter perto de onde está, a depender do sucesso da vacinação, que ele pode faturar sem ter feito nada, e dos miseráveis (vão morrer de fome quietos?).

ELEIÇÃO NA CÂMARA. Desde meados do ano, era óbvio que a disputa pelo comando da Câmara dos Deputados seria crucial e emperraria o Congresso. Se a turba de Bolsonaro vencer, facilita o projeto autoritário. A depender de quem ganhar, vai haver mais ou menos “reformas”, que não serão grande coisa.

REFORMAS. Alguém acha que o Congresso vai arrochar os servidores? Esse é o núcleo da PEC “emergencial”, o arremedo de plano fiscal do governo. Alguém acha que o Congresso vá aprovar reforma tributária “profunda” (que provocaria crise com setores como serviços, entre outros conflitos)? Se eu fosse jogar na “Mega das Reformas”, apostaria no seis por meia dúzia, reforminhas.

Este jornalista prevê também que volte de férias em fevereiro.


Eliane Cantanhêde: Saúde, vacina, agulha e amor!

O ano de 2020 já vai tarde. Que venha um 2021 muito, muito, muito melhor

A primeira coluna de um novo ano é sempre otimista, cheia de esperança e bons votos, mas como fingir que 2020 não foi o que foi, nada está acontecendo e reproduzir a animação de sempre neste início de 2021? Desculpem, mas está difícil. Assim, desejo saúde, vacina, seringa, agulha, emprego e capacidade de ver a realidade e entender o perigo do negacionismo regado a um populismo desbragado que tanto mal já causou à Humanidade.

Que o novo ano seja muito, muito, muito melhor do que 2020, que já vai tarde, com muito choro e muita vela, deixando para trás quase 200 mil vidas engolidas pelo coronavírus, enquanto o presidente fazia campanha eleitoral e trabalhava contra o isolamento social, as máscaras. Sem empatia com as famílias das vítimas, virou garoto propaganda de um remédio inútil para a pandemia e agora guerreia contra a própria vacina.

Que as pessoas se cuidem, confiem na ciência e nas várias vacinas descobertas e testadas por grandes cientistas e laboratórios do planeta. Vacinas que salvam a sua vida e interrompem o ciclo macabro da contaminação que adoece, deixa sequelas e mata. Não ouçam negacionistas que se movem por ideologia. Ouçam e ajam de acordo com cientistas, médicos, entidades nacionais e internacionais de saúde.

Que, antes de ser demitido e virar bode expiatório dos tremendos erros “de quem manda”, o general ministro da Saúde tente recuperar a fama de bom em logística para ampliar o raio de fornecedores de vacinas, encomendar mais do que míseros 2,7% das seringas necessárias, deixar alguma providência pronta para quando vacinas, sabe-se lá quando, forem autorizadas pela Anvisa.

Que Natal e Ano Novo, aglomerações em praias, jogos de futebol e abraços sem máscara, como estimula o presidente, baladas de jovens de todas as classes sociais e badalações de ídolos como Neymar ou de famosos como Elba Ramalho não deixem de presente para 2021 uma explosão de mortos. No apagar de 2020, passaram de mil as famílias enlutadas pela Covid-19...

Que o fim da ajuda emergencial para os 48 milhões de brasileiros que não têm outra fonte de renda seja compensado de alguma forma pelo Estado, que, por pressão do Congresso e ação do Ministério da Economia, corretamente deixou de lado a prioridade fiscal para focar nas pessoas em 2020. Até o dia 31 de dezembro, silêncio. A partir de hoje, somos todos ouvidos.

Que, em 2021, as promessas de campanha de 2018 sejam levadas a sério e venham as reformas administrativa e tributária e as privatizações necessárias para modernizar a economia, melhorar a gestão, os serviços e os empregos. Até agora, a queda de braço entre Planalto e Economia imobilizou os avanços. Em 2021, o ministro Paulo Guedes não tem alternativa: ou perde ou ganha; ou fica e faz ou vai para casa.

Que também as promessas de campanha dos prefeitos que tomam posse nesta sexta-feira, 1º, sejam cumpridas e eles tenham responsabilidade, prudência, cuidado com a coisa pública, respeito ao cidadão e um olhar generoso e estratégico para suas cidades. É nelas, afinal, que tudo acontece. Onde tudo desaba.

E que a Amazônia, o cerrado e os nossos biomas sobrevivam, a Educação ande para a frente, não para trás, a cultura não seja demolida, a política externa entre no eixo do pragmatismo e do interesse nacional, na onda benfazeja que a vitória de Joe Biden trouxe ao mundo. Não é pedir muito, mas é difícil acreditar que vá prevalecer...

Enfim, um “muito obrigada” e um voto especial para os nossos valorosos profissionais da saúde e para você, que nos lê, ora concorda, ora discorda, mas está atento e forte para proteger o nosso Brasil, os nossos brasileiros, os nossos avanços civilizatórios. Saúde, vacina, emprego, paz, felicidade e democracia, o nosso bem maior!


Janio de Freitas: 'Feliz Ano-Novo', que perigo

Há um esboço de novidades saudáveis, esse gênero que passou de escasso a extinto

Na passagem do mal vivido para o vamos ver, o Brasil recomenda aos seus filhos muito bom senso ao desejar feliz Ano-Novo. Seja qual for sua sinceridade, convém que esses votos sejam certeiros na destinação. Não só para evitar desperdício. Os votos tradicionais, extensivos e indiscriminados, estão perigosos. Podem ser até suicidas.

Não, nada a ver com a Covid-19. Mais um ano feliz para os 37% que aprovam o governo resultaria da permanência de toda a alucinação e destrutividade, desprezo pela vida das pessoas e pelo futuro do país, predominantes nestes dois anos. Seria a continuidade de um ano que 63% dos brasileiros sentiram entre reprovável e sufocante. Sim, resgatar o Brasil e retomar o passo da democracia depende de que os felizes com os dois anos passados sejam os infelizes do próximo ano. E o sejam tanto e tão cedo quanto possível.

Nesse sentido, há um esboço de novidades saudáveis, esse gênero que passou de escasso a extinto. Uma delas é a incipiente aliança de MDB, DEM, PDT, Cidadania e PT com o objetivo de fazer o futuro presidente da Câmara.

Um feito devido, sobretudo, à hábil confiança conquistada por Rodrigo Maia e a uma reconsideração experimental do PT em vista das circunstâncias.

Há reações no petismo. O candidato próprio é uma ideia com longo predomínio no partido. No caso atual, como em tantas ocasiões, candidato à derrota, apenas para marcar posição e mobilizar em torno da militância. Nessa altura, não chegaria a uma coisa nem outra. Agora se trata de defender a democracia, por mais exígua que viesse sendo.Eduardo Cunha proporcionou uma exibição completa, como nunca se vira, do que é possível fazer com o domínio da presidência da Câmara: vai da mais variada corrupção ao golpe de Estado parlamentar.E nem o mínimo de lucidez permite duvidar do que a tropa do governo fará se conquistar também esse poder.

A novidade não pretende ser uma frente, com projeto comum mais longo. É uma aliança tática, portanto efêmera, para finalidade delimitada —o que a faz viável.

Outra novidade induzida pelas circunstâncias é a decisão de quatro ministros do Supremo de trabalhar durante suas férias de verão. A atitude de Lewandowski, Marco Aurélio, Moraes e Gilmar está interpretada, sem confirmação, à defesa da criação de juízes das garantias. Sozinho, Fux ficaria com a palavra decisiva sobre essa inovação importante, contra a qual já se manifestou.

Se isso moveu os quatro, não foi só isso. Cármen Lúcia não abandonará o processo que questiona a política antiambiental. E os processos criminais que assustam os Bolsonaros seguem, no STF, sem manobras salvadoras.

É pouco, por certo, diante das circunstâncias. Mas, em um país que passou dois anos sem ver nem sequer uma instituição, ou seus integrantes, mover-se contra o assalto à Constituição, à democracia e aos bens e interesses maiores do país, chega a parecer verdadeira a tão repetida sentença: “As instituições estão funcionando”.


George Gurgel: Entre os desejos e as realidades, 2021 está chegando

Na chegada de um novo ano, em qualquer Sociedade, são anunciados os melhores desejos para os que estão próximos e aos que não estão tão próximos assim: na verdade, queremos o melhor para toda a humanidade, considerando as nossas distintas realidades e as nossas próprias expectativas em relação ao ano que se aproxima. 

Assim, a Humanidade se desenvolveu e chegou ao ano de 2020. Foi e vai sendo moldada pelos valores culturais, econômicos, sociais hegemônicos, em tempos de guerras e de paz.  Lembrando, que só no século XX, fomos capazes de fazer duas guerras mundiais:  com bombas atômicas jogadas, em tempos distintos, em Hiroshima e Nagazaki. Portanto, o nosso desafio principal continua sendo a construção de uma cultura da Paz, a ser defendida e conquistada, permanentemente.

Esta tem sido a nossa caminhada como Humanidade. Vamos nos transformando e transformando a natureza, da qual somos parte integrante.

A pandemia em curso durante o ano de 2020, e a proximidade de 2021, é mais uma oportunidade de nos admirarmos e nos questionarmos sobre o que estamos fazendo com as nossas vidas, como nos relacionamos e, quais são os nossos valores e a nossa práxis no caminho da construção de um novo humanismo, respeitando a diversidade cultural, espiritual, étnica da Humanidade, colocando o imperativo categórico de uma mudança urgente das nossas relações insustentáveis que estabelecemos entre nós e com a própria natureza.

O que podemos fazer?

O que temos a dizer como Humanidade em relação às questões antes destacadas?

O que estamos herdando de 2020, ano inicial da pandemia da covid-19?

O que queremos e podemos fazer neste ano de 2021 que se aproxima?

No ano de 2020, a pandemia chegou e deu uma maior visibilidade à nossa tragédia política, econômica e social. Acelerou algumas mudanças, desnudou e modificou comportamentos, impactou o nosso cotidiano, a nossa maneira de viver em sociedade.

Os resultados recentes da pesquisa da OCDE em relação à economia mundial, particularmente a situação do G 20 -  grupo de 19 países mais a União Europeia, apontam para o crescimento de 8,1 % da economia brasileira no terceiro trimestre deste ano, após queda sem precedentes do PIB brasileiro na primeira metade de 2020, quando as economias brasileira e mundial foram impactadas pela pandemia. 

O Brasil ficou e continua abaixo da média de recuperação da economia dos países da OCDE, crescendo apenas 7,7%.  O PIB da Índia foi o que mais se recuperou no período, com 21,9%, após uma queda de 25,2% no trimestre anterior, a maior retração já alcançada entre as economias do G20.

Os dados divulgados pela OCDE evidenciam que as nossas relações políticas, econômicas e sociais estabelecidas e reafirmadas durante a pandemia continuam insustentáveis e não atendem às expectativas da maioria da Sociedade.

Portanto, frente a essa realidade, continuamos a ser desafiados, em 2021, a construir e defender valores que nos coloquem no caminho da sustentabilidade política, econômica, social e ambiental.  Devemos persistir e continuar a trabalhar para superar a triste e desoladora realidade social de uma parcela majoritária da população mundial, desrespeitada nos seus direitos básicos, consolidados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a saber: de ir e vir, moradia, educação, saúde, trabalho e renda, além de uma agenda primordial, a ser conquistada.

 Nós, como humanidade, devemos continuar comprometidos com o enfrentamento sistemático dos graves problemas sociais, econômicos e ambientais vividos no cotidiano das nossas vidas, agravados com a pandemia neste ano de 2020.

Ainda, as relações internacionais continuam desafiadas, como nunca, ao exercício do multilateralismo e ao fortalecimento da Cultura da Paz. O conteúdo das mudanças em curso e das que devem ser realizadas, durante a pandemia e o futuro imediato, deve ser pauta permanente da ONU, FMI, OIT, OMS, União Europeia, MERCOSUL, entre outras Organizações Internacionais, nesse processo de tomada de consciência para as mudanças urgentes a serem realizadas nos planos internacional e nacional, voltadas para uma maior inclusão social, construção de uma nova economia de baixo carbono, atenção às mudanças climáticas e à preservação dos ecossistemas do Planeta.

Assim, a Sociedade no ano de 2021, que se aproxima, estaria sendo contemporânea dos desafios atuais e do futuro, na busca da superação dos conflitos e contradições estabelecidos e construídos historicamente e, atualmente, pela Humanidade.

Algumas dessas transformações já estão acontecendo. São processos em curso. Novas relações estão sendo construídas, a partir das mudanças técnicas em andamento e de novas relações políticas e sociais em construção nas redes, nas ruas, no mundo do trabalho e da cultura, impactados pela pandemia.

As Organizações Governamentais, Não Governamentais e a Cidadania devem persistir e trazer para suas pautas as distintas realidades políticas, econômicas e sociais, identificando as contradições e os conflitos da sociedade, de maneira geral, com especificidades e particularidades, em função da realidade política, econômica e social.

Quais as questões estruturantes a serem consideradas neste contexto frente à realidade internacional e brasileira?

No Brasil, a qualidade das políticas públicas atuais e as que devem ser construídas levariam às mudanças políticas, econômicas e sociais, na medida em que sejam construídos novos conteúdos e pactos entre os diversos atores políticos, econômicos e sociais.

A ampliação da Democracia e a consequente participação da Cidadania são instrumentos fundamentais no caminho desta sustentabilidade econômica, social e ambiental desejadas.

Enfim, a Sociedade em geral está convocada a ter uma efetiva participação na construção e na implementação dessas políticas públicas no caminho da sustentabilidade econômica, social e ambiental, respeitando as especificidades nacionais.

A insustentabilidade política, econômica e social, em que vivemos, reflete as disfuncionalidades e limites das atuais estruturas políticas, econômicas e sociais responsáveis pela formulação e implementação dessas políticas nacionais e internacionais. 

A autonomia da Sociedade, em relação ao corporativismo do Estado e do Mercado, é um dos principais desafios da Governança Democrática Nacional e Internacional.

Portanto, a eficiência de uma Governança Democrática está relacionada com os meios, os modos de construção, de implementação das políticas nacionais e regionais, em cooperação com as Organizações Multilaterais Internacionais e Nacionais.

Os avanços da Democracia, com conquistas efetivas de toda a Sociedade, aconteceram naqueles países em que foi possível a construção de pactos políticos, econômicos e sociais que garantiram e continuam garantindo políticas públicas democráticas, inclusivas, para a maioria da Sociedade.    

É importante ainda destacar, nesse contexto, os limites do próprio Estado Nacional, em uma Sociedade cada vez mais mundial, ampliados com as crises política, econômica, social e de valores que estamos enfrentando nesses tempos de pandemia, evidenciando de maneira evidente a interdependência e a complementariedade entre o nacional e o internacional.

Em relação ao Brasil, no ano que se avizinha, o campo democrático continua sendo desafiado a entender a gravidade e a complexidade do momento político em que vivemos.  Há que haver uma maior articulação entre os discursos e as ações dessas forças democráticas no Congresso Nacional e na Sociedade em geral, no caminho de uma alternativa democrática para a superação da crise política, econômica, social e de valores que estamos vivendo. 

Finalmente, continuamos desafiados(as), em 2021, a um maior protagonismo da Sociedade brasileira e mundial, buscando o fortalecimento da Sociedade Civil, com o exercício pleno da Cidadania.

Estes são alguns dilemas de uma Governança Democrática Mundial e Nacional, durante o ano de 2021: a necessidade de ampliação e fortalecimento da Democracia, através da construção de pactos entre os diversos atores políticos, econômicos e sociais nacionais e internacionais, no caminho de uma Governança Democrática Mundial, considerando as especificidades nacionais.

Que seja bem vindo, ano de 2021!

*George Gurgel, Universidade Federal da Bahia, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade


João Gabriel de Lima: Palavras que queremos ouvir em 2021

 ‘Moral money’, ‘ESG’, ‘impacto’, vocábulos, siglas e expressões que prometem irromper o ano

Uma boa forma de fazer a retrospectiva do ano é lembrar das palavras que se tornaram correntes em 2020. Algumas são novas, que incorporamos ao vocabulário. Outras são ressuscitadas de épocas passadas. Em 2020 tiramos do baú palavras tristes como “pandemia”, “isolamento”, “máscara” – e outra mais esperançosa, “vacina”. Há motivo para otimismo, no entanto, quando se olha para alguns dos vocábulos, siglas e expressões com os quais nos acostumamos ao longo de 2020: “moral money”, “ESG”, “impacto”. Com sorte, essas palavras boas serão muito usadas ao longo de 2021.

Na Inglaterra, a expressão “moral money” se popularizou como título de uma das seções do Financial Times, um dos mais importantes jornais de economia do mundo. No cabeçalho, o diário londrino explica que “moral money” trata de negócios socialmente responsáveis, finanças sustentáveis, investimentos de impacto e ESG (“environmental, social and corporate governance”) – sigla que, de certa forma, engloba tudo isso.

Tais palavras prometem irromper em 2021 cavalgando números impressionantes. US$ 45 trilhões estão aplicados atualmente em fundos que utilizam estratégias sustentáveis, segundo estimativa do banco Morgan Stanley. Isso significa metade dos investimentos mundiais no mercado financeiro. Há dois anos, data do último levantamento, eram US$ 31 trilhões – número, por sua vez, 34% maior que o de 2016.

Existe a possibilidade de que parte desses números seja “para inglês ver” – dinheiro aplicado em ações de empresas que se declaram sustentáveis sem cumprir os requisitos mínimos. Pois são justamente os britânicos, líderes tradicionais na área financeira, que irão pagar para ver. No Reino Unido, uma aliança entre o governo e o setor privado fará um mapeamento de tais fundos, com o objetivo de classificá-los. O líder da força-tarefa é o português Rodrigo Tavares, personagem do mini-podcast da semana. Professor de finanças sustentáveis na Nova School of Business and Economics, ele é um dos maiores especialistas mundiais no assunto.

Os trabalhos para a confecção deste ISO das finanças começam já em janeiro, e seguirão ao longo de 2021, ano em que o assunto “moral money” estará crescentemente em pauta. No Brasil, “moral money” será o tema recorrente dos cursos e seminários da Associação Brasileira de Jornalismo Empresarial, a Aberje – que importará a discussão que explode na Europa. Trata-se daquilo que os alemães chamam de “zeitgeist”, espírito do tempo.

Faz parte desse espírito a decisão de grandes empresas de varejo, como Nestlé, Walmart e Tesco, de não comprar mais grãos de produtores associados ao desmatamento do cerrado brasileiro. O fato, anunciado na semana passada, foi lembrado em análise feita pelo site Virtù, editado pelo cientista político Luiz Felipe D’Avila e referência na área de políticas públicas. O texto aponta uma queda das vendas do agronegócio brasileiro para o Velho Continente, pondera que os números brasileiros de desmatamento não permitem acusar os europeus de protecionismo, e atribui a catástrofe ao “Brasil arcaico que, infelizmente, possui representantes em Brasília”. 

“Desmatamento”, “queimadas”, “Brasil arcaico” – eis outras palavras tristemente recorrentes neste ano. Devemos deixá-las em 2020. O melhor que se pode desejar para 2021 é que, ao final do próximo ano, seja possível encher o espaço desta coluna apenas com palavras boas.


Elio Gaspari: 2021 com militares no quartel

Pode-se esperar que eles não se metam nas confusões que vêm por aí, nem que sejam instrumentalizados para agravá-las

Salvo a vacina, o que é muita coisa, pouco se pode esperar de 2021. Bolsonaro não vai mudar, as investigações das rachadinhas e das notícias falsas continuarão a assombrá-lo. As reformas de Paulo Guedes continuarão como promessas de campanha. O ministro da Educação continuará sem saber de onde saiu o edital do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação que pretendia torrar R$ 3 bilhões comprando computadores para escolas públicas, inclusive 230 mil laptops para os 255 alunos de um colégio mineiro. Pode-se contudo esperar que os militares não se metam nas confusões que vêm por aí, nem que sejam instrumentalizados para agravá-las.

Felizmente, os oficiais da ativa estão calados. Uns poucos, da reserva, fazem-se ouvir, sempre com alguma estridência. Há dois tipos de oficiais da reserva falando. Alguns, como o general Santos Cruz, foram para o governo de Jair Bolsonaro e viram-se excluídos. Suas falas são o jogo jogado. Outros, simplesmente estão na reserva, e falam como cidadãos. Quase todos achavam que o capitão no Planalto era uma boa ideia.

Militares falantes são heróis para as vivandeiras que rondam os bivaques dos granadeiros. Quem definiu esses personagens, há tempo, foi o marechal Castello Branco. Existem vivandeiras de todos os matizes políticos. Acabam todas mal. Em alguns casos, vão para a cadeia, como sucedeu à maior delas, Carlos Lacerda. O general De Gaulle chamou-o de “demolidor de presidentes”. Acabou proscrito pelos generais e preso no jirau de um quartel da Polícia Militar.

Bolsonaro e seu pelotão de palacianos já fizeram um estrago na imagem das Forças Armadas, mas não conseguiram envolvê-las em aventuras. Sempre existirão civis querendo levar a política para os quartéis em nome de uma purpurina da notoriedade.

Os oficiais que se sentem atraídos pelo ativismo político por alguma questão de coerência deveriam olhar para trás. Lá está o coronel Francisco Boaventura, que poderia ser o patrono dessa arma invisível.

Nos anos 50 do século passado, era um capitão e estava na diretoria do Clube Militar quando sua revista publicou um artigo meio de esquerda. Demitiu-se, junto com o major Euler Bentes. Treze anos depois o pelotão de palacianos do governo de João Goulart teve a ideia de usá-lo num sequestro de Carlos Lacerda, então governador do Rio. Quando veio a ordem, verbal, recusou-se a cumpri-la.

Pouco depois, com Jango no exílio e o pelotão palaciano fora das fardas, estava no Gabinete Militar, no palácio do Planalto. Escreveu um texto criticando o presidente da República e foi defenestrado. Era visto como um dos coronéis da linha dura.

Em 1968, percebeu que o pelotão palaciano do marechal Costa e Silva tramava um golpe e ficou contra. Veio o Ato Institucional nº 5 e o general-comandante do pelotão fabricou sua cassação com justificativas desabonadoras. O irmão de Boaventura era ministro do Interior. Fora da farda, ele nunca vestiu o uniforme de coitadinho profissional. Falando dos bastidores desse episódio, o general Sylvio Frota, ex-ministro do Exército, demitido em 1977, escreveu: “sempre tive náuseas ao ouvir falar desse caso”.

O coronel Francisco Boaventura teria sido um destacado general se não tivesse se metido com as vivandeiras.


Pedro Fernando Nery: Frente ampla

2021 pode registrar maior nível de desigualdade de renda vivido sob atual Constituição

Completaram 18 anos da aprovação, no Senado, do projeto de renda básica de Eduardo Suplicy. A versão aprovada foi na verdade um substitutivo de um senador do DEM – ainda PFL. É um dos casos pouco conhecidos da atuação do partido na política social, cujo resgate é interessante à medida que o partido ganha protagonismo e a natureza de sua plataforma é mais debatida. 

O DEM foi o partido que mais conquistou prefeituras nas eleições municipais que acabam de se encerrar, e na semana passada ajudou a consolidar um esforço de frente ampla reunindo diversos partidos de esquerda. Ao Estadão neste mês, o prefeito eleito Eduardo Paes – no DEM – argumentou que o espectro do partido seria bem amplo, se colocando como alguém mais à esquerda do que o seu conjunto.

No parecer do ex-senador Francelino Pereira favorável à renda básica, argumentou-se que o crescimento econômico sozinho é um caminho lento para a superação da miséria no Brasil. A pobreza seria mais sensível à desigualdade do que ao PIB. A nova transferência de renda iria ao encontro do propósito de que nenhum brasileiro tivesse vergonha de aparecer em público, parafraseando uma definição da Adam Smith sobre privação em A Riqueza das Nações.

Outra proposta do antigo PFL naqueles tempos era a de inserir na Constituição um fundo para a erradicação da pobreza, financiado por um imposto sobre grandes fortunas. De autoria de Antonio Carlos Magalhães, veio a se tornar a Emenda Constitucional nº 31, de 2000. O fundo chegou a ser utilizado, mas o imposto que seria a principal fonte de recursos nunca foi instituído. 

A proposta original previa ainda uma nova contribuição social progressiva e aumentos de impostos sobre bens e serviços de luxo: “A desigualdade na distribuição de renda no Brasil é a matriz dos problemas que assolam nossa sociedade” justificou ACM. Havia provavelmente um componente regional nas iniciativas: nessa legislatura do fundo baseado em grandes fortunas e da renda básica o PFL tinha 15 senadores apenas do Nordeste e do Norte.

Antes, em 98, no documento “Uma Política Social para o Brasil: A Proposta Liberal”, o Partido defendera que a criação de um programa de renda mínima deveria ser prioridade do governo. Naquele ano eleitoral, Eliane Cantanhêde registrou a competição entre PT e PFL pela paternidade das ideias que seriam precursores do Bolsa Escola (2001) e do Bolsa Família (2004). O PT operava nos anos 90 o Bolsa-Escola do Distrito Federal, e o PFL o Bolsa-Cidadã da Bahia (menos abrangente e com foco em crianças em áreas de sisal).

Ainda naqueles anos antes do governo Lula, conforme lembra o cientista político Murilo Medeiros, parlamentares do antigo DEM relataram a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas, que implementa o Benefício de Prestação Continuada (BPC), para idosos e pessoas com deficiência na pobreza) e o Fundef (o antecessor do Fundeb). 

Mais recentemente, o novo Fundeb, deste ano, foi relatado por uma deputada demista. Em 2019, parlamentares do partido voltaram ao tema da renda básica, propondo benefícios universais a crianças (benefício universal infantil) ou a idosos e portadores de doenças graves (RBU) – durante a tramitação da reforma da Previdência. 

No final do ano passado, esta coluna se chamou Natal na miséria: contrastava o otimismo que havia para 2020 com os parcos ganhos econômicos para os mais pobres nos anos recentes. O ano foi virado de cabeça pra baixo: a economia em recessão pela covid e a pobreza em queda pelo auxílio emergencial. Com o seu fim em 31 de dezembro, a mesma preocupação da coluna do último Natal permanece e se acentua: o Bolsa Família só não é suficiente.

Dados compilados por Rozane Siqueira (UFPE), veiculados recentemente por Armínio Fraga, mostram tanto que o desafio brasileiro não é tão diferente do de outros países como que melhorar é possível. Diversos países europeus, incluindo até Alemanha e Finlândia, teriam uma desigualdade de renda quase brasileira não fosse a atuação do Estado tributando e distribuindo. O Brasil se distingue não só pelos níveis mais altos de desigualdade, mas por pouco mudar quando o Estado entra na jogada – se comparado ao que acontece nesses países.

O fim do auxílio e a continuada propagação do vírus podem nos levar em 2021 ao maior nível de desigualdade de renda vivido sob a atual Constituição. Uma frente ampla para aprofundar aquele pacto de 88 será bem-vinda e é esperançoso perceber que nas últimas décadas ideias para combater a desigualdade e reformar o Estado vieram da esquerda e da direita. Vale toda torcida.

* Doutor em Economia 


Paulo Fábio Dantas Neto: Congresso Nacional 2021 - Manter sempre teso o arco da promessa

A notícia da incorporação, ontem, dia 18.12, de cinco partidos de esquerda (PT, PDT, PSB, REDE, PCdoB) à frente, já anteriormente formada pelo chamado “Centro Democrático” (DEM, MDB, PSDB, Cidadania, PSL, PV), que o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, articula para disputar sua sucessão, marca uma aliança política de grande significado. Independente dessa aliança levar ou não a uma candidatura única, importa que se torna bem mais robusto um movimento de amplas dimensões pela independência daquela casa legislativa e de reação à tentativa do Poder Executivo de instrumentalizar o seu comando. Nesse momento o deputado Artur Lira, candidato apoiado pelo Planalto, passa, em tese, à condição de candidato minoritário, se somados como seus adversários os deputados integrantes das bancadas daqueles onze partidos.

Vários tópicos entram em pauta para se analisar as implicações desse fato político. Dentre eles é possível citar o grau de correspondência efetiva que haverá entre as decisões das direções partidárias e o comportamento das bancadas, as repercussões, nas bancadas dos partidos do bloco “centro democrático”, especialmente o PSL e o DEM, dessa aliança com a esquerda, PT incluído e a nova relação que se poderá estabelecer entre as eleições na Câmara e no Senado, por vezes vistas como partes de uma “operação casada”.  Cedo para compreender tudo isso. Mais produtivo analisar o contexto mais geral dos processos sucessórios nas duas casas do Congresso, ao qual o fato de ontem se incorpora.  Parto da premissa de que o referido processo teve sua dinâmica afetada pelo timing de uma decisão judicial provocada por adversários do movimento unitário que se robustece na Câmara.

Judicialização como refração de um processo político

Como sabido e já bastante comentado, as urnas de 2020 trouxeram más notícias aos bolsonarismo e ao lavajatismo, os grandes vencedores de 2018. É menos evidente, devendo ser salientado, que essas duas faces da direita negativa não metabolizaram a nova disposição do eleitorado, que valorizou a eficácia da política na gestão de municípios e deu sinal verde a políticas de frente democrática de um centro moderado. Poucos dias após a apuração dos votos, juntaram-se para tentar armar a mão do STF contra esse impulso agregador. Tiverem êxito, ainda que por apertada maioria. O tribunal interceptou o processo político que se esboçava nas duas casas do Congresso para a renovação de suas mesas diretoras. Processo que mal começara a entrar em sua fase mais importante, a fixação de candidaturas expressivas de um realinhamento de forças no Legislativo, que só poderia mesmo avançar a partir do resultado eleitoral, como se requer numa democracia.

É bom lembrar que o STF foi formalmente provocado à judicialização preventiva do processo pelo PTB, partido da base governista, que assim fez o primeiro movimento de revide ao veredicto das urnas. Na sequência, uma bem articulada ameaça de “cancelamento” via redes sociais recorreu a palavras chave do dicionário político das eleições de 2016 e 2018 para emparedar o tribunal. Embora usando outro palavreado, não foi diferente a posição da mídia tradicional. Armou-se o raciocínio de que o STF prevaricaria se permitisse a continuidade do jogo político no Legislativo. Conforme esse raciocínio, “os políticos”, fatalmente, rasgariam a Constituição. Logo, caberia ao tribunal antecipar-se, mesmo na ausência de fato concreto, para pôr ordem na “bagunça”.  Preconceito antipolítico travestido de prevenção, pois, se é verdade que havia sinais de que um ator importante, o presidente do Senado, movia-se em direção a uma transgressão, sinais opostos partiam de articulações do Presidente da Câmara. E, para além disso, o processo envolvia um conjunto de partidos e lideranças que, por dever de oficio e instinto de sobrevivência política, tenderiam a ser afetados pelo espirito das urnas. Tinha horizonte, ao menos na Câmara, a articulação de uma ampla candidatura comprometida a conservar a independência da Casa frente ao Executivo e o padrão de decisões colegiadas que ali se verificaram nos últimos anos.  E se, no caso no Senado, seu presidente passasse da intenção ao gesto para viabilizar sua reeleição, com aparente cobertura de um plano B do Governo aí, sim, o STF seria chamado a se pronunciar perante um fato concreto.

Para não raciocinar sobre hipóteses, o STF poderia ter simplesmente desconhecido a ADIN do PTB.  Aliás, se não fosse o preconceito que ali também há contra a lógica do Parlamento, essa poderia ter sido a posição preliminar do presidente do tribunal. Feito relator, o ministro Gilmar Mendes também poderia, como Pilatos, ter ido nessa direção. Não o fez, mas também não foi na linha da interferência no jogo político. Ao contrário, apontou que era assunto do Legislativo, o que lhe rendeu críticas. Se houvesse lavado as mãos seria criticado do mesmo modo, por não ter interferido a tempo para impedir a "bandalheira".  Por outro lado, o fechamento prévio da porta à estratégia de Rodrigo Maia (que acabou ocorrendo, contra o voto de Gilmar) pode ter aberto a porta da Câmara dos Deputados a Bolsonaro. O tamanho desse perigo só sabia quem tinha informação sobre a correlação de forças real. Deve ter sido o caso de Mendes, dotando seu voto de razões próprias de um cálculo político. Um pecado? Quem disso escapa, na posição em que ele está? Gilmar foi minimalista e propôs deixar à liderança do outro Poder a decisão sobre os custos políticos comparativos da derrota de um candidato de continuidade que não fosse o próprio Maia e os das implicações de marcar um gol em impedimento. Gol que no fim das contas não valeria, já que habemus STF. Logo, o voto minimalista foi condicional e não rasgou a Carta. Na contra mão de um senso comum que acha realista prejulgar políticos, penso que faria mais bem à saúde das instituições brasileiras se a maioria do STF tivesse seguido o voto de Gilmar Mendes e dado a Rodrigo Maia o benefício da dúvida, mantendo a condicional.

Por que não o fez? Difícil aceitar a hipótese de que tenha sido por razões doutrinárias. Como observou um aluno perspicaz, é curioso que a letra da Carta tenha sido defendida pelos partidários do “direito criativo” e o “jeitinho”, proposto pelos garantistas.  Do paradoxo só escapou o ministro Marco Aurélio. Afora ele, parece que gregos e troianos votaram com a lógica da política. O voto de Gilmar tem afinidades eletivas com a política dos políticos. Já a posição da maioria expressa quanto o impacto da ética faxineira da Lava Jato ainda afeta a conduta de parte da cúpula do Judiciário. Alguém me dirá que depois da desmoralização de Moro, essa hipótese é enxergar vida no velhinho que morreu ontem.

Sergio Moro e sua turma entraram em decomposição. O lavajatismo, penso que não. É força latente, atuante na subjetividade de larga faixa da sociedade, mesmo que momentaneamente esteja na penumbra, pela prioridade objetiva da pandemia sobre a corrupção. Vejo-o como um sentimento público em busca de novo intérprete após o fracasso político de Moro. João Dória é um óbvio candidato a esse legado, daí sua dificuldade e sua indisponibilidade para interagir com tudo que cheire a esquerda. Mas Bolsonaro não renunciará ao mesmo legado, daí a guerra sem quartel entre ambos. Bolsonaro, ou a política palaciana, já trabalha para reconectar o legado lavajatista ao seu eclético repertório eleitoral, usando o aparato da segurança pública, sua influência em áreas do MP e as brechas que vai abrindo no Judiciário, prisma sob o qual se deve analisar, a meu ver, a coalizão de veto que aconteceu no STF no julgamento da ADIN do PTB.

Efeitos politicamente regressivos da judicialização

Salta aos olhos que uma frente ampla contra a bolsonarização da Câmara até a npte de ontem ainda não pudera passar de palavra a ato. O jogo político exige harmonização de discursos e de interesses complexos. É preciso gerenciar compromissos político-partidários, distribuir recursos e espaços políticos entre os aliados, no Congresso e fora dele e sintonizar as alianças nesse episódio particular com as que têm 2022 no horizonte e com as ainda mais gerais e permanentes, que importam na defesa das instituições. O encurtamento do prazo para fazer tudo isso teve graves implicações. Admito não ter tido, prospectivamente, no momento em que o STF julgava, a clareza que penso ter disso hoje, após o leite derramado.  O candidato fisiológico passou a operar na Câmara com desembaraço bem maior. E mesmo que não seja bem sucedido, que perca a eleição ou mesmo desista dela, a solução alternativa vencedora deverá estar mais distante de ter um perfil político contraposto ao dele. Bolsonaro pode não ganhar a Câmara do jeito que quer, nem controlar o Senado.  Mas tampouco será fácil isolá-lo, a não ser que ele deseje.

Por outro lado, foi um teste e tanto para a possibilidade de uma frente política futura que tenha no DEM um eixo de articulação. As tensões no partido acentuaram-se na razão direta da redução do espaço de manobra de Rodrigo Maia. A costura nos bastidores do nome da ministra Teresa Cristina para a cadeira que hoje ele ocupa é um recado claro de que o partido já age para enquadrar o seu personagem até aqui mais destacado. E não é realista esperar que partidos aliados ajudem a dissipar essas tensões. O MDB enxerga a possibilidade de retomar o controle do Congresso. Tucanos, sempre no limiar do discurso hegemônico, têm essa tendência reforçada pelo comando de João Dória. Quanto à esquerda, notou-se, após o julgamento do STF, movimentos erráticos que vão desde alimentar candidatura própria a negociar no varejo turvo de Artur Lira. O gesto político de ontem sinaliza a reversão do segundo tipo de movimento, mas a ideia de candidatura de esquerda à presidência da Câmara não se afastou da boca da presidente nacional do PT.

Existe a possibilidade do passo agregador dessa sexta-feira reverter um perigo que se insinuava no centro político da Câmara dos Deputados e em suas conexões à esquerda, aquele pathos centrífugo que acometeu, a partir de 2017, a coalizão que sustentara o impeachment de Dilma Rousseff e levara Michel Temer à Presidência. A centrifugação da amplíssima articulação do presidente começou quando Rodrigo Janot produziu um artefato midiático com o caso Joesley Batista. A centrifugação do arco de Rodrigo Maia tornou-se possível desde que o STF, também diante de um artefato de apelo midiático, aceitou fazer da sucessão das mesas do Congresso um parto prematuro. 

Tirado de tempo, Maia tentou a autoconvocação do Congresso, que suspenderia o recesso parlamentar para não deixar o governo agir solto no breu das tocas. A PEC emergencial não foi pauta capaz de fazer os partidos de centro se moverem e fez a esquerda roer a corda com receio das reformas.  Pela enésima vez não confiou no caminho da negociação política, preferindo a comodidade do status quo. O relator governista da PEC não apresentou, é claro, seu relatório e assim sepultou a ideia da convocação extraordinária, cuja serventia iria além da PEC e se estenderia a dois problemas cruciais para o País, no momento, para cuja solução se requer unidade e moderação, logo, vigilância do Congresso. Além das sucessões no próprio Congresso, o da vacinação, interesse público número um, de que tratarei na próxima semana pois não se pode tratá-lo a não ser como foco central.

Com tempo ruim todo mundo também dá bom dia

Em meio a tantos percalços e com o Congresso fechado em janeiro, o campo estará, em tese, livre para o governo operar nas sombras e tentar impor seus candidatos. Mas quem der como certo que o Parlamento foi neutralizado e que aceitará ser humilhado pela leviandade contumaz do Presidente da República pode ter surpresas.  Situação oposta ficou patente, também nessa sexta-feira, 18, na tribuna da Câmara dos Deputados. O presidente da Casa reagiu de modo contundente a uma acusação de Bolsonaro ao Legislativo, qualificando-a de mentirosa e tendo sua narrativa dos fatos, pela qual restabeleceu a verdade, confirmada pelo próprio líder do governo. Fora do plenário, no manifesto que anunciou a ampliação do “Centro Democrático” lê-se que “Os radicalismos se retroalimentam e são fundamentais para explicar a nossa união. Enquanto alguns buscam corroer nossas instituições, nós aqui lutamos para valorizá-las”.

Esses sinais de contraponto à ingerência espúria de outro Poder nas decisões do Legislativo animam, mas não devem iludir quanto a dificuldades de um processo em que a assimetria de recursos de cooptação e de chantagem joga contra a autonomia da instituição e cujo desfecho se dará numa votação secreta. Mas um discurso político forte pela independência da Câmara tem apelo pragmático também. Deputados e senadores, de um modo geral, têm noção do poder de barganha que perdem se elegerem presidentes que se dobrem a um Executivo comandado por um candidato a ditador. Tendem a preferir alguém com moderação no trato com o governo, mas firmeza na defesa do Poder e que cumpra acordos internos. Esse foi o roteiro de construção da liderança de Rodrigo Maia. 

Nomes assim não podem ser encontrados se o roteiro para tratar desse problema for o confronto personalizado com Bolsonaro.  A resiliência de sua popularidade seduz os mais pragmáticos, porém, seu efeito mais corrosivo é irritar os adversários impacientes, fomentando a dispersão e jogadas para a plateia. Santos guerreiros são ineptos para lidar com o tipo de maldade que o presidente encarna. Provam-no os sucessivos momentos em que foi desafiado nesses termos e, das urnas ou pesquisas, emergiram efeitos perversos. Foi assim no segundo turno de 2018, com o “elle Não!” puxado por um lulo-petismo ferido; foi assim em maio desse ano, quando o mito começou a ressurgir, ainda antes do auxilio emergencial, logo após Sergio Moro supor que o foguetório de artificio de seu rompimento seria um tiro de misericórdia sobre um presidente até então isolado por se opor à política pública do moderado ministro Mandetta; está sendo assim agora quando, uma semana depois de fortes embates com o governador de São Paulo em torno da vacina, pesquisa Datafolha informa que Bolsonaro é bem avaliado por 37% dos entrevistados e que para 52% ele não tem nenhuma culpa pelo total de mortos pela covid no Brasil.

Na esteira dessas lições o discurso político firme e unitário precisará, nesses pouco mais de trinta dias, ser combinado com a abertura de novas frentes de entendimento com áreas próximas à candidatura de Lira na Câmara e com a bancada governista no Senado. Preparar-se para vencer um embate em condições adversas é um empreendimento em que, afinal, um acordo pode também se tornar razoável. E ele também é possível, se o adversário tiver igualmente juízo atento ao preço pago por Dilma Rousseff por imaginar que poderia politizar plebiscitariamente uma eleição no interior do Legislativo.

Num cenário como esse, estará em posição privilegiada quem, a essa altura, ainda puder intermediar, com êxito, uma negociação do centro democrático do Congresso com as bases parlamentares governistas nas duas casas, em torno de possíveis nomes de consenso. A posição discreta que o ex-presidente Temer ocupa na geografia política do país faz dele alguém que poderia obter um “nada a opor” do governo a tal entendimento sem, necessariamente, precisar de um “tá ok” de Bolsonaro. Até porque não se pode escrever o que o ex-capitão diz. As chances de êxito dessa interlocução provem dela poder se dar, simultaneamente, com o centro e o centrão e favorecer um entendimento autônomo, no Legislativo, para manter teso, numa conjuntura social e sanitária crítica, o arco da promessa de governabilidade com preservação da democracia que exerceu em 2019-2020.

Na falta de um horizonte límpido, a experiência de dois anos de labuta com o fator Bolsonaro traz bons conselhos. Olhar para os resultados das eleições e para frentes políticas que se formaram e venceram. Lembrar dos trinta primeiros dias de enfrentamento articulado da pandemia no Brasil; de cooperações entre governos estaduais e municipais adversários; do auxílio emergencial, do auxílio aos Estados, da votação do Fundeb. Nesses momentos Bolsonaro se isolou e perdeu espaço. Ao inverso, recupera-se sempre que se perde o foco nesse processo plural e incremental. Sei que o que estou dizendo não responde a certas urgências e convicções, mas o que responde?

Peço, a quem o desfecho dessa coluna decepcionar, que me conceda o benefício de esperar a da próxima semana. Talvez tratando de outro tema crucial, eu possa argumentar melhor pelo bem público que faria um grande acordo político que evitasse a disputa dilacerante que se anuncia pelo controle das mesas diretoras do Congresso. Daqui a 30 dias o país agradeceria se sobre ambas reinasse, soberano, em vez da sucessão, o tema da vacinação. Sem prejuízo de que a frente democrática que se desenhou hoje na Câmara tenha longa vida e ganhe muita força no parlamento e na sociedade. Aliás, um acordo nacional para vencer a crise com aval do Legislativo é uma promessa que depende da solidez do arco.

* Cientista político e professor da UFBa.