Sérgio Abranches: O impasse catalão e a grande transição global

A incerteza continua a assombrar a Catalunha. Ninguém é capaz de dizer como se desenrolará o confronto entre o governo conservador de Madrid, que deu uma resposta autoritária ao referendo, e a coalizão que liderou o referendo, considerado ilegal. A aliança que apoiou o referendo é, ela mesma, uma fonte de contradições. Reúne partidos conservadores e de esquerda autonomistas. Os que se puseram contra, são igualmente divididos entre social-democratas, liberais e conservadores.
Foto: Fotomovimiento
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A incerteza continua a assombrar a Catalunha. Ninguém é capaz de dizer como se desenrolará o confronto entre o governo conservador de Madrid, que deu uma resposta autoritária ao referendo, e a coalizão que liderou o referendo, considerado ilegal. A aliança que apoiou o referendo é, ela mesma, uma fonte de contradições. Reúne partidos conservadores e de esquerda autonomistas. Os que se puseram contra, são igualmente divididos entre social-democratas, liberais e conservadores. Em outras palavras, nenhuma das forças em confronto tem unidade suficiente para formar um governo de coalizão com plenas condições de governabilidade. As pesquisas eleitorais mostram que o lado autonomista tende a manter sua maioria e pode conquistar a maioria absoluta nas eleições, que Madrid fixou para 21 de dezembro. Rajoy não tem condições de impor sua visão centralista. Os “nacionalistas” catalães não têm condições de impor seu projeto de uma república independente.

A polarização se agravou com a reação conservadora de Rajoy e com a aprovação pelo parlamento catalão do processo constituinte da república independente. A única forma de Rajoy impor a dissolução do governo e do parlamento catalães usando, pela primeira vez na história, o duro artigo 155 da constituição, é com repressão. E a repressão apenas radicalizará a polarização e aumentará a convicção independentista. O artigo 155 é um resquício da Espanha autoritária para reprimir as tendêncas históricas pela autonomia. A resposta repressiva pode metamoforsear em independentistas pessoas que têm o sentimento predominante de pertencerem à Catalunha, de serem, portanto, antes de tudo catalãs, mas desejam continuar parte da Espanha. O poder que oprime e humilha perde o respeito e a legitimidade dos que sofrem suas ações. O ambiente social alimenta os impulsos conflituosos. O desemprego continua alto. O desalento da juventude continua a ser um elemento perturbador. A crise de 2008 ainda não foi totalmente superada.

O conflito autonomista que opõe a Catalunha ao poder central espanhol ainda não é intratável. Ou seja, não chegou ao ponto em que não há solução negociada possível. Mas pode virar, com respostas repressivas de Madrid e maior radicalização do sentimento nacionalista. Até agora, nenhuma voz surgiu com lucidez suficiente para propor saídas negociadas que contenham avanço e um compromisso pan-hispânico. Entre os intelectuais há os que condenam o referendo, inclusive à esquerda, e os que apóiam a independência, inclusive à direita.

A saída para o conflito catalão já estava na agenda política dos progressistas de centro e de esquerda. É a ampliação das autonomias para criar uma Espanha federativa, com maior autogoverno pelas regiões autônomas e menor intervenção do governo central, mais circunscrito às questões comuns e à interação harmônica entre as regiões. Uma microeuropa, se quiserem, apoiada em um pacto federativo, aperfeiçoado pelo exame das insuficiências institucionais da União Europeia.

Mas Rajoy e o PP sempre foram contra e sempre buscaram maior centralização, desde quando estavam na oposição. Rajoy e seu partido detestaram o Estatut, o estatuto de autonomia aprovado pelo parlamento catalão seguindo a previsão constitucional. Mas o Estatut cometera o pecado capital de tratar a Catalunha como nação. Rajoy, na oposição, pediu um referendo sobre o Estatut, em 2006. Em 2007, ele e o PP contestaram na corte constitucional numerosos artigos do Estatut, entre os quais dezenas idênticos a artigos do Estatuto da Andaluzia, que foi aprovado pelo Congresso e o PP não contestou. A “advocacia do estado” pediu ao Tribunal Constitucional que abrisse procedimento para que o PP explicasse a contradição, que mostrava um viés anti-catalão. Somente em 2010, o Tribunal Constitucional decidiu sobre o caso, derrubando 14 artigos mais autonomistas do Estatut e definindo como deveriam ser interpretados numerosos outros. No governo, Rajoy vinha — e continua — com uma atitude e decisões centralizadoras atiçando a ira dos independentistas. O Estatut tinha forte legitimidade na Catalunha e a decisão de 2010 claramente contribuiu para engrossar a revolta. Ela acabou explodindo no referendo.

O caso catalão não será o único mundo afora. Os arranjos existentes nos estados nacionais multiétnicos ou multiculturais são insatisfatórios e perderam a funcionalidade com o avanço da grande transição global. É tolice forçar a centralização do poder no estado nacional, neste estágio avança e irreversível da gobalização. A tendência dominante é de esvaziamento do estado nacional, ampliação da pauta global e de regulação multilateral, ainda que haja episódios de reconcentração e nacionalismo ao longo da grande transição. Neste processo de alargamento da pauta global e de sua gestão multilateral, ficará cada vez mais claro que a autonomia e a relevância das ações se realiza no plano local. Estamos entrando na era das cidades inteligentes, cada vez mais autossuficientes e, portanto, dispostas a mais autogoverno. Regiões mais autossuficientes e autogovernadas, compostas por uma rede de cidades inteligentes conurbadas, farão mais sentido do que governo centrado no estado nacional. É o estado-nação precisa encontrar seu papel de articulador dessas redes locais, cuidando da pauta “multilateral” interna de forma mais democrática e aberta. É sua única salvação. A mim, parece evidente que esse mundo de autonomias locais, reunido em uma espécie de pacto ou convenção multilateral para solução negociada de pautas comuns de sobrevivência e bem-estar faz mais sentido e pode ser muito mais democrático do que o mundo de estados-nação que experimentamos no século 20.

* Sérgio Abranches é cientista político, escritor e comentarista da CBN. É colaborador do blog com análises do cenário político internacional

 

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