PD #49 -Claudia Maria de Freitas Chagas: O acesso à informação e à intimidade

A Lei de Acesso à Informação (LAI), Lei no 12.527, de 18 de novembro de 2011, que entrou em vigor em 16 de maio de 2012,  tem  inegável  importância  para  a  consolidação  do regime democrático, a efetivação do direito à informação e a transi- ção de uma cultura do sigilo para a transparência e a publicidade.
Foto: Reprodução/Google
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A Lei de Acesso à Informação (LAI), Lei no 12.527, de 18 de novembro de 2011, que entrou em vigor em 16 de maio de 2012,  tem  inegável  importância  para  a  consolidação  do regime democrático, a efetivação do direito à informação e a transição de uma cultura do sigilo para a transparência e a publicidade.

Mais de duas décadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988, os dispositivos constitucionais que já garantiam o acesso às informações que se encontram sob a custódia  do  poder público foram regulamentados. A lei estabelece, como regra geral, o acesso pleno, imediato e gratuito, passando o sigilo a ser  a exceção. Dirige-se a todos os órgãos públicos integrantes dos Três Poderes, ao Ministério Público, às autarquias, às empresas públicas, às sociedades de economia mista e a outras entidades, inclusive privadas, desde que recebam recursos públicos. Cria procedimentos e prazos, impedindo negativas sem fundamento legal e dificultando atos protelatórios.

Em uma primeira análise, vê-se duas grandes vertentes na utilização dos instrumentos trazidos pela lei: a recuperação de fatos históricos e o controle social.

O Brasil, especialmente durante os anos em que foi submetido à ditadura militar, experimentou a total ausência de transparência, não só dos arquivos públicos, como também de quaisquer informações que se referiam ao governo. O sigilo protegeu os governantes de críticas, impediu o conhecimento de ilegalidades e a comprovação de violações aos direitos humanos, sem que o cidadão tivesse meios para reagir. A LAI é, portanto, apesar do decurso do tempo, ferramenta relevante na reconstituição de fatos passados e na busca da verdade e da reparação.

O segundo aspecto igualmente importante é a possibilidade do controle social, indissociável da ideia de democracia. A nova lei permite ao cidadão, sem necessidade de justificativa específica, conhecer informações que se encontram em órgãos ou entidades públicas, formar sua opinião, criticar, fazer escolhas e participar de diversas formas. Impõe ao poder público, ainda, uma conduta proativa na direção da transparência, produzindo e disponibilizando dados. É, portanto, essencial à prevenção e ao enfrentamento da corrupção.

Neste contexto, de afirmação da garantia do direito à informação e da necessidade da concretização da transparência pública em um Estado democrático de direito, há também um outro lado que merece profunda reflexão. Trata-se da compatibilização do direito à informação com o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, também expresso na Constituição Federal, no rol dos direitos fundamentais.

O acesso público às informações, além de desejável, é hoje a regra geral. Apesar disso, a identificação de  seus  limites, diante de outros direitos constatados em casos concretos, é necessária. Trata-se de tarefa complexa, tendo em vista que documentos custodiados pelo Estado, aparentemente de interesse geral, muitas vezes contêm informações pessoais, que atingem esferas íntimas, cuja exposição pode gerar constrangimento ou sofrimento.

A LAI prevê a hipótese de restrição de acesso às informações pessoais, assim como às informações consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado. Apesar disso, estabelece que, em algumas situações, a privacidade deve ceder ao interesse público ou à recuperação de fatos históricos de maior relevância. Acrescenta, ainda, que a proteção da vida privada, da honra e da imagem não pode ser invocada para prejudicar processo de apura- ção de irregularidades em que o titular estiver envolvido.

Não há, contudo, uma resposta genérica e prévia, aplicável a tais situações, que possa auxiliar o agente público incumbido de decidir sobre a publicidade de documento que se encontra sob a sua guarda. Estamos lidando, nessa seara, com princípios constitucionais, com conceitos abertos e concepções morais divergentes. A fixação do conteúdo de tais direitos só pode se dar a partir de uma narrativa; no contexto de uma época delimitada, perante uma sociedade identificada, ou seja, considerando-se os fatos e todas as suas circunstâncias, inclusive de tempo e lugar.

Devem ser atribuídos pesos e importância aos princípios constitucionais envolvidos, de forma a conciliá-los, o que se dá no momento da aplicação das normas e não no âmbito da sua validade.

O dilema entre o direito à informação e o direito à intimidade gera uma tensão permanente, que deve ser avaliada com cautela, caso a caso, de forma a evitar abusos. Seja criando um constrangimento  inútil  e  impactando  negativamente  a  vida  de um indivíduo, seja acobertando sigilos desnecessariamente e impedindo o conhecimento de fatos históricos e o controle social.

É de se lembrar sempre que a concretização do direito à informação, tão alijada nos Estados autoritários, é de extrema relevância para a democracia, por permitir o conhecimento dos atos governamentais e a livre circulação de ideias no espaço público. Apesar disso e da grande expectativa de que a Lei de Acesso à Informação brasileira venha a alterar a cultura do sigilo, sua aplicação jamais poderá descuidar da garantia da inviolabilidade da intimidade, igualmente prevista na Constituição Federal.

* Claudia Maria de Freitas Chagas é promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e ex-Secretária Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, é autora do livro O dilema entre o acesso à informação e a intimidade.

 

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