pd #49

PD #49 - Ana Carla Fonseca: Economia criativa, cidades e o futuro do trabalho

A economia, decididamente, não é mais como era antigamente. Em meio a tantas adjetivações que buscam dar uma resposta a nosso desencanto com modelos excludentes e insustentáveis, uma delas chama a atenção: economia criativa. Para quem, nos últimos 20 anos, percorreu 180 cidades de 30 países lidando com o tema, não há dúvida: a economia criativa é o modelo econômico dos nossos tempos.

Tempos marcados, como toda fase econômica de envergadura histórica, por uma revolução tecnológica. Foi assim com a revolu- ção agrícola, com a industrial e, agora com a revolução das tecno- logias digitais, que tantos impactos trouxeram às nossas vidas. Impactos sociais (basta ver a avalanche de relacionamentos mediados pelo celular) e até mesmo físicos, como demonstra a neuroplasticidade de cérebros cada vez mais multitarefas e capa- zes de gerar conexões improváveis, mas com dificuldade crescente de seguir raciocínios lineares e aprofundar debates.

Na economia, os impactos também são evidentes. As tecnolo- gias digitais catapultaram a globalização a níveis jamais vistos. Produtos e serviços circulam em escala planetária e a uma velo- cidade inimaginável tempos atrás, fazendo com que o que hoje é lançado aqui ou acolá seja visível, quase de imediato, em outros cantos do mundo. Com isso, os produtos  e  serviços passaram a ter ciclos de vida cada vez mais curtos e a ser muito parecidos, em um processo de “commoditização” da economia.

A economia criativa atua na contramão deste processo. Ela professa que, quando ativos econômicos tradicionais –  como  capital e tecnologia – são tão facilmente transferíveis mundo afora, a criatividade se converte no ativo mais diferencial. Não por menos, economias de todos os perfis vêm reformulando suas estratégias econômicas, trazendo a economia criativa para seu centro.

Em Buenos Aires, onde os setores criativos (aqueles que têm na criatividade seu diferencial – das artes e cultura à ciência e tecnologia) representavam 9% da  população  economicamente  ativa  e  10% do PIB municipal, a meta é chegar a 20% em ambos os indicadores, até 2020. Na China, que, em seu plano quinquenal 2011-15, definiu estar na transição do Made in China para o Designed in China, a economia criativa perpassa todos os eixos estratégicos.

Na Colômbia, o Senado aprovou a Lei da Economia Laranja (o apelido dado à economia criativa no país) e, em Montreal, a prefeitura criou, há anos, o Escritório de Design, cujo objetivo máximo  é estimular todos os cidadãos a desenvolverem o olhar da inovação, recorrendo também ao espaço público e às fachadas de empreendimentos comerciais.

Afinal, não há economia criativa alheia a um espaço criativo. Quão mais propício à criatividade – efervescente de propostas e diversidade, de conectividade e abertura à ousadia  –  for  o  ambiente, mais nossas mentes terão acesso  a  ingredientes  diver-  sos para fazer novas receitas e vencer desafios complexos.

Paris que, em junho, inaugurou o maior campus de startups do mundo, a Station F, tem se valido à vontade da inteligência coletiva para reformular seu espaço físico e a dinâmica da cidade, sem perder de vista seu DNA cultural. Empresas também entram nessa lógica.

A Amazon, terceira marca mais valiosa do mundo, que recebeu, até meados de outubro, as candidaturas de cidades que queiram abrigar sua nova sede (e os 50 mil trabalhadores qualificados que nela atuarão), estabeleceu como um dos critérios de seleção a diversidade cultural, ao lado de questões de mobilidade, da modernidade de sua infraestrutura e de seu manancial de talentos e instituições de ensino.

Porque, afinal, se a economia não é mais como era antiga- mente, o futuro nem se sabe como será. As fontes mais abalizadas no assunto (Fórum Econômico Mundial, Economist Intelligence Unit e outras) estimam que metade das atividades profissionais será substituída pela inteligência artificial em 20 a 40 anos e que metade do que então existirá hoje ainda não se dá a ver.

Mas algo já sabemos: os dois perfis de trabalho mais cobiça- dos do futuro são os de talento criativo e de inteligência social. Excelentes bússolas para pautarmos nossa economia e transformarmos as cidades em espaços vibrantes de estímulos às habilidades do futuro. Porque, se o futuro a Deus pertence, ele ajuda a quem cedo madruga.

As origens

O conceito de economia criativa origina‐se do termo indústrias criativas, por sua vez inspirado no projeto Creative Nation, da Austrália, de 1994. Entre outros elementos, este defendia a impor- tância do trabalho criativo, sua contribuição para a economia do país e o papel das tecnologias como aliadas da política cultural, dando margem à posterior inserção de setores tecnológicos no rol das indústrias criativas.

Em 1997, o governo do então recém‐eleito Tony Blair, diante de uma competição econômica global crescentemente acirrada, moti- vou a formação de uma força tarefa multissetorial encarregada de analisar as contas nacionais do Reino Unido, as tendências de mercado e as vantagens competitivas nacionais.

O que se destaca, nessa iniciativa, é a) sua visão de parceria entre público e privado, de modo a desenhar um programa estratégico para o país, com benefícios e responsabilidades comparti- lhados; b) a articulação transversal, compreendendo de diferentes setores e pastas públicas, como cultura, desenvolvimento, turismo, educação, relações exteriores, entre outras.

Nesse exercício, foram identificados 13 setores de maior potencial, então nomeadas indústrias criativas. A partir disso, o conceito britânico, incluindo as indústrias selecionadas, foi replicado para países tão diversos como Cingapura, Líbano e Colômbia, independentemente das distinções de seu contexto e sem contemplar de chofre o potencial que essas indústrias espe- cíficas teriam (ou não) para equalizar polarizações socioeconô- micas nos distintos países.

Entretanto, o maior mérito do sucesso do programa britânico foi o de ter engendrado reflexões acerca de mudanças profundas e estruturais que se fazem necessárias no tecido socioeconômico global e nos embates culturais e políticos que ora enfrentamos. Não por menos a economia criativa tem suscitado discussões e estudos em áreas não puramente ligadas a uma política indus- trial ou econômica, mas tão vastas como atinentes à revisão do sistema educacional (questionando a adequação do perfil dos profissionais de hoje e anunciando a emergência de novas profissões), a novas propostas de requalificação urbana (gerando projetos de clusters criativos e o reposicionamento das chamadas cidades criativas), à valoração do intangível cultural por parte de instituições financeiras (clamando por modelos de mensuração inspirados nos setores de patentes e marcas), a um reposiciona- mento do papel da cultura na estratégia socioeconômica (lidando paralelamente com conteúdos simbólicos e econômicos) e até mesmo à revisão da estrutura econômica, de cadeias setoriais  para redes de valor, incluindo novos modelos de negócio (graças às novas tecnologias e à emergência de criações colaborativas).

De fato, a economia criativa parece tomar de outros conceitos traços que se fundem, adicionando‐lhes um toque próprio. Da chamada economia da experiência reconhece o valor da origina- lidade, dos processos colaborativos e a prevalência de aspectos intangíveis na geração de valor, fortemente ancorada na cultura  e em sua diversidade. Da economia do conhecimento, toma a ênfase no trinômio tecnologia, mão de obra capacitada e geração de direitos de propriedade intelectual, explicando porque para alguns estudiosos os setores da economia criativa integram a economia do conhecimento, muito embora esta não dê à  cultura a ênfase que a economia criativa lhe confere. Da economia da cultura propõe a valorização da autenticidade e do intangível cultural único e inimitável, abrindo as comportas das aspirações dos países em desenvolvimento de ter um recurso abundante em suas mãos.

De forma geral, é possível ressaltar ao menos quatro abordagens do conceito de economia criativa.

  1. Indústrias criativas, entendidas como um conjunto de seto- res econômicos específicos, cuja seleção é variável segundo a região ou país, conforme seu impacto econômico potencial na geração de riqueza, trabalho, arrecadação tributária e divisas de exportações.
  2. Economia criativa, que abrange, além das indústrias criativas, o impacto de seus bens e serviços em outros setores e processos da economia e as conexões que se estabelecem entre eles, provocando e incorporando‐se a profundas mudanças sociais, organizacionais, políticas, educacionais e econômicas. As indústrias criativas são, portanto, não apenas economica- mente valiosas por si mesmas, mas funcionam como catalisadoras e fornecedoras de valores intangíveis a outras formas de organização de processos, relações e dinâmicas econômicas de setores diversos, do desenho de cosméticos que utilizam saberes locais a equipamentos e artigos esportivos que comunicam a marca de um país. Na economia criativa, indústria e serviços fundem‐se cada vez mais.
  3. Cidades e espaços criativos, por sua vez vistos sob distintas óticas: de combate às desigualdades e violência e de atração de talentos e investimentos para revitalizar áreas degradadas de promoção de clusters criativos, a exemplo do distrito cultural do vinho na França, o cluster multimídia de Montreal, os parques criativos de xangai e o polo de novas mídias de Pequim, de trans- formação das cidades em polos criativos mundiais, não raro de maneira articulada com a política do turismo e atração de trabalhadores criativos que, quando não conduzido, pode incrementar polarizações sociais e, na ausência do envolvimento comunitário, promover um esfacelamento das relações locais e a exclusão de pequenos empreendimentos criativos e da diversidade. E também volta‐se à reestruturação do tecido socioeconômico urbano, baseado nas especificidades locais, como é o caso de Guarami- ranga, no Ceará, com seu Festival de Jazz e Blues, e de Paraty, no Rio de Janeiro, tendo por bandeira a Flip. Nesse sentido, é curioso que nenhuma cidade do Brasil tenha se candidatado a compor a Rede de Cidades Criativas da Unesco, que reúne hoje mais de 15 cidades de todo o mundo.
  4. Economia criativa como estratégia de desenvolvimento, desmembrando‐se em    duas     abordagens.  A primeira tem por base o reconhecimento da criatividade, portanto do capital humano, para o fomento de  uma integração de objetivos sociais, culturais e econômicos, diante de um modelo de desenvolvimento global pós‐industrial excludente, portanto insustentável. Nesse antigo paradigma, a diversidade  cultural e  as culturas em geral podem ser vistas como obstáculos ao desenvolvimento, em vez de nutrientes de criatividade e de resolução dos entraves sociais e econômicos.

Vemos assim que a economia criativa ou, de forma mais focada em cultura, a economia da cultura, não é política cultural, não se propõe a definir os rumos da política cultural e tampouco defende que a cultura deve se curvar à economia ou – como às vezes se acredita, de maneira muito equivocada – ao mercado.  Ao  contrário, a economia da cultura ou economia criativa oferece todo o aprendizado  e  o  instrumental  da  lógica  e  das  relações econômicas – da visão de fluxos e trocas; das relações entre criação, produção, distribuição e demanda; das diferenças entre valor e preço;  do reconhecimento do capital humano; dos mecanismos mais variados de incentivos, subsídios, fomento, intervenção e regulação; e de muito mais – em favor da política pública não só  de  cultura, como de desenvolvimento.

O que se depreende disso, portanto?

Primeiro, que pouco adianta defender o reconhecimento do potencial econômico da cultura, se um passo ainda mais funda- mental não tiver sido dado antes: o desenho de uma política pública clara, com base no contexto local. Em outras palavras, conforme o ditado que se costuma atribuir ao pensador grego Sêneca, “Se você não sabe para que porto está velejando, nenhum vento é bom”. Esta é uma questão de singular importância em um país como o Brasil, no qual dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1 atestam que, em 2006, não menos de 42,1% dos municí- pios não tinham política municipal de cultura.

Segundo, que economia é muito mais do que mercado. O que nos remete, afinal, a entender o que é economia. Etimologicamente, vem da junção de duas palavras gregas: oikos (casa) e nomos (costumes, hábitos, leis). “Administração da casa“, “administração do lar”, “administração do local onde vivemos”, como já aparecia em algumas das preocupações de Aristóteles, sob uma ótica muito ligada à questão da filosofia política. A economia tem em seu epicentro, portanto, a sociedade e as pessoas. Ela deita raízes na filosofia moral, daí o porquê de muitos escritos econômicos dedicarem‐se ao debate sobre a ética. E aqui surge um dilema interessante: o que é mais importante, a justiça distributiva ou a eficiência alocativa? Em outras palavras, é melhor utilizar os recursos da forma mais eficiente possível ou fazê‐lo da forma mais justa possível? E é aí, mais uma vez, que se vê a importância de  ter uma política cultural com objetivos claramente definidos.

 

1 “Perfil das Informações Básicas Municipais”, base 5.561 municípios.


PD #49 - Eduardo Rocha - A Quarta Revolução Industrial e o futuro do trabalho: a caminho de uma nova civilização

Se cada instrumento pudesse executar  por  si  mesmo  a  vontade  ou a intenção do agente ( . . .), se a  lançadeira  tecesse  sozinha  a tela, se o arco tirasse sozinho de uma cítara o som desejado, os arquitetos não  mais  precisariam  de  operários,  nem  os  mestres de escravos1 (Aristóteles)

I  O papel histórico do trabalho

No capítulo V (Processo de Trabalho e Processo de Produzir Mais-Valia), § 1 (O Processo de Trabalho ou  o  Processo de  Produ- zir Valores-de-Uso), do Livro 1 de O Capital, Marx define o conceito de trabalho “primitivo” [ER] e assinala  o  papel  fundamental  que ele desempenhou inicialmente  na  separação  do  fundante  ser  social humano do reino pura e naturalmente animal.

Nos primórdios da humanidade, o manuseio pelos primeiros hominídeos dos objetos naturais, ofertados pela natureza (não produzidos, portanto, pela cognição, concepção intervenção, criação e obra humanas) foi utilizado para a satisfação de sua necessidade imediata de sobrevivência. “A princípio, o homem apode- rava-se dos produtos, que a natureza lhe oferecia. Este processo prolongou-se durante várias dezenas e centenas de milhares de anos. Com o decorrer do tempo, o homem foi aprendendo a utilizar os componentes naturais simples e acessíveis, como a madeira, pedras etc. para a produção dos bens necessários”.2

  • Aristóteles. Política. Livro I,  capítulo II,  Do  Senhor e  do  Coleção A obra-prima de cada autor. Ed. Martim Claret, p. 13.

Esta é uma forma embrionária, pouco desenvolvida, do traba- lho, que sofrerá transformações fantásticas, ao longo de milênios. Descrevendo os degraus inferiores e primitivos do trabalho, afirma Marx: “Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio mate- rial com a natureza. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. (...) Pressupomos o trabalho como forma exclusivamente humana. (...) Desse modo, faz de uma coisa da natureza órgão de sua própria atividade, um órgão que acrescenta a seus próprios órgãos corporais, aumento seu próprio corpo natural, apesar da Bíblia”.3

Passaram-se milhares de anos para que o  trabalho  executado por ferramentas produzidas pela intervenção humana consciente fosse uma realidade e desse, por  conseguinte,  um  salto  qualita-  tivo no desenvolvimento do trabalho.  Os  instrumentos  de  traba-  lho – concebidos e produzidos pelo cérebro e corpo humanos atra-  vés da transformação da natureza – aumentam a força física  da  força de trabalho humana e lhes permite superar os obstáculos produtivos que não poderiam ser vencidos com a mera e simples ajuda de suas mãos.4

Niésturj destaca que a vida do homem primitivo estava sujeita ao perigo, à doença e à privação e resgata a seguinte passagem lenineana sobre aquela longínqua época em que se formava a humanidade: “Que esse homem primitivo obteve o que é necessá- rio para a sua subsistência como um presente gratuito da natu- reza é uma estúpida fábula. Atrás de nós não houve  qualquer Idade de Ouro, e o homem primitivo ficou totalmente sobrecarre- gado com o peso de existência, devido às dificuldades da luta contra a natureza. (V.I. Lênin, ‘Obras’, 4. ed., T. V, p. 95)”.5

  • SÁVTCHENKO, P. O que é o Trabalho? Tradução de I. Chaláguina. Coleção ABC dos Conhecimentos Sociais e Políticos. Edições Progresso, 1987, Impresso na URSS, p. 7-8.
  • MARx, Karl. O Capital . Livro 1, V.1 . 8 ed. Trad. Reginaldo Santana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1980, p.
  • NIÉSTURJ. F. El Origem del Hombre. 3. ed. Mir. Moscu. 1984, p. 143.
  • Ibidem, p.

“O meio de trabalho [instrumento de trabalho, ER] é uma coisa ou um complexo de coisas que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho [matéria que se será transformada, ER] e  lhe serve para dirigir a atividade sobre este objeto. (...) O processo de trabalho, ao atingir certo nível de desenvolvimento, exige meios de trabalho já elaborados. Nas cavernas mais antigas habitadas pelos homens, encontramos instrumentos e armas de pedra. No começo da história humana, desempenham a principal função de meios de trabalho os animais domesticados (...), ao lado de pedras, madeiras, ossos e conchas trabalhados. O uso e a fabricação de meios de trabalho, embora em germe em certas espécies animais, caracterizam o processo especificamente humano de trabalho e Franklin define o homem como o ‘toolmaking animal’, um animal que faz instrumentos de trabalho”.6

Constitui, portanto, um salto qualitativo significativo  na  evolução humana o trabalho – destinado a criar valores de uso à necessidade  humana  –  executado  com  ferramentas  produzidas por seres humanos, o que eleva o trabalho a uma forma cognitiva

-material social mais desenvolvida do  que  a  sua  predecessora  forma natural – apropriar-se  o  trabalho  (ser  humano/natureza)  dos frutos da natureza na sua fase mais primitiva.

“O processo de trabalho, que descrevemos em seus elementos simples e abstratos, é atividade dirigida com o fim de criar valo- res-de-uso, de apropriar os elementos naturais às necessidades humanas; é condição necessária do intercâmbio material entre o homem e a natureza; é condição eterna da vida humana”.7

Do uso inicial das ferramentas simples até o surgimento e desenvolvimento da manufatura artesanal e a transição qualitativa desta para a maquinaria e a grande indústria, as forças produtivas (força de trabalho humana mais instrumentos de trabalho/produção) produziram e sofreram um desenvolvimento que abalaram todas as formações econômico-sociais existentes, como abalam a atual também.

O que emerge com a Quarta Revolução Industrial (uma manifestação concreta e real e significativa da cognição humana construída ao longo de milhares de anos de sofrimento, privação, criação, superação e produção) confirma a previsão de Marx: a força de trabalho tende a tornar-se supérflua.

  • MARx, Karl, op. cit., p.
  • Ibidem, p. 208

 

II  A Indústria 4.0: a quarta revolução industrial

Segundo vários estudos, há uma quarta revolução industrial8 sacudindo o mundo e novamente revolucionando “os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, portanto as relações sociais todas” .Desde pelo  menos  2011,  a  partir   dos  centros industriais alemães, mais especificamente a partir da realização  da famosa Feira de Hanover, onde os alemães apresentaram fantásticas  inovações  feitas  pelos   seus   intelectuais-científicos, vem ganhando ampla divulgação e  aceitação  mundial  o  fato  de  que os sistemas produtivos industriais  e  de  serviços  (cada  vez  mais inteligentes, digitais e autônomos da presença física humana, tonando-se autômatos) mais avançados e localizados nos países capitalistas mais desenvolvidos estariam sendo radicalmente revolucionados através do que se passou a chamar de quarta revolução industrial. Inicialmente, os alemães batizaram de Indústria 4.0 para qualificar esse processo que, segundo  várias vozes, enterrarão a velha indústria 3.0 e o velho mundo – tal como   os conhecemos hoje – e dará vida a algo nunca visto e experimentado pela humanidade.

  • A Primeira Revolução Industrial ocorreu na Inglaterra, no século xVIII (1780- 1830) e foi marcada pela emergência do setor têxtil dinamizado pela máquina de fiar, o tear mecânico, a siderurgia, a máquina a vapor originada da combustão do carvão (a forma de energia principal desse período técnico), a mecanização do trabalho via máquina-ferramentas, a ferrovia, além da navegação marítima, também movida à energia do vapor do carvão. Deu-se ai o início da produção mecanizada. Já a Segunda Revolução Industrial começou por volta de 1870 e se estendeu até o início do século xx. Ao contrário da primeira fase, países como Alemanha, França, Rússia e Itália também se industrializaram. O emprego do aço, a utilização da energia elétrica e dos combustíveis derivados do petróleo, a invenção do motor a explosão, da locomotiva a vapor e o desenvolvimento     de produtos químicos foram as principais inovações desse período. A indústria automobilística assume grande importância nesse período. O trabalhador típico desse período é o metalúrgico. O sistema de técnica e de trabalho desse período é o fordista, termo que se refere ao empresário Ford, criador, na sua indústria de automóvel em Detroit, Estados Unidos, do sistema que se tornou o paradigma de regulação técnica e do trabalho conhecido em todo o mundo industrial. Ele nutria tantos amores a seus operários, que os submetiam às formas cruéis de trabalho. A forma mais característica de automação é a linha de montagem, criada por Ford (1920), com a qual introduz na indústria a produção padroni- zada, em série e em massa, em detrimento da força de Com o fordismo, surge um trabalhador desqualificado, que desenvolve uma função mecânica, praticamente anti-cognição crítica, extenuante e para a qual não precisa pensar o trabalhador. Pensar, para o capital, é a função de um especialista, de um engenheiro, que planeja para o conjunto dos trabalhadores dentro do sistema  da fábrica. Mas este modo de produção capitalista ampliava o número de traba- lhadores assalariados dentro do modo de produção capitalista. No taylorismo-fordismo, a força de trabalho é elevada a mais alta ignorância, não apenas  como força de trabalho, mas como ser humano. A tecnologia característica desse período é, portanto, o aço, a metalurgia, a eletricidade, a eletromecânica, o petróleo, o motor a explosão e a petroquímica. Ela incorpora, devido aos padrões técnicos e científicos de sua própria época – radicalmente diferente das nossas em forma e conteúdo –, as conquistas da humanidade daquele momento histórico. A eletricidade e o petróleo são as principais formas de energia que inauguram, no princípio do século XX, uma revolução. Por fim, a Terceira Revolução Industrial tem início em fim dos anos 1960 e início da década de 1970, tendo por base         a alta tecnologia, a tecnologia de ponta (HIGH-TECH). A tecnologia caracterís- tica desse período técnico é a microeletrônica, a informática, a máquina CNC (Comando Numérico Computadorizado), o robô, o sistema integrado à telemática (telecomunicações informatizadas), a biotecnologia. Sua base mistura, à Física e à Química, a Engenharia Genética, Biologia Molecular. Sem falar ainda na nano- tecnologia, os novos materiais e a indústria aeroespacial. Ver: Castells, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. V. 1.
  • MARx, Karl; ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. São Paulo: Novos Rumos, 1986, p. 84

 

 

Mas quais seriam as suas características desta quarta revolu- ção industrial que está a revolucionar os processos de produção e trabalho nos países capitalistas mais desenvolvidos?

O economista alemão Klaus Schwab dá algumas respostas e levanta tantas outras questões cruciais que modificarão a forma- ção econômico-social presente e futura e adverte que não estão claros todos os desdobramentos econômicos, sociais, trabalhis- tas, culturais e políticas decorrentes de tais modificações tecnoló- gicas. Ele é o criador e presidente do Fórum Econômico Mundial   e coordenou uma ampla rede de especialistas das mais diferen- ciadas áreas do conhecimento humano e de todas as partes do mundo e o resultado foi a produção em 2016 do livro A Quarta Revolução Industrial .10

Considero esta obra a mais enciclopédica descrição das inova- ções científico-tecnológicas que já existem e as que estão em vias de existir, com base nos levantamentos feitos em todos os oligopó- lios e monopólios capitalistas integrados numa rede mundial de cientistas, produtores, fornecedores, e consumidores finais. A obra procura indicar possibilidades, limites, crises e oportunidades à sociedade, em particular aos capitalistas e aos trabalhadores.

Para Schwab, a quarta revolução industrial “teve início na virada do século (20) e baseia-se na revolução digital. É caracte- rizada por uma internet mais ubíqua e móvel, por sensores meno- res e mais poderosos que se tornaram mais baratos e pela inteligência artificial e aprendizagem automática (ou aprendizado da máquina).(...) As tecnologias digitais, fundamentadas no compu- tador, software e redes, não são novas, mas estão causando rupturas à terceira revolução industrial; estão se tornando mais sofisticadas e integradas e, consequentemente, transformando a sociedade e a economia global. (...) Ao permitir ‘fábricas inteligen- tes’, a quarta revolução industrial cria um mundo onde os siste- mas físicos e virtuais de fabricação cooperam de forma global e flexível (...) A quarta revolução industrial, no entanto, não diz respeito apenas a sistemas e máquinas inteligentes e conectadas. Seu escopo é muito mais amplo. Ondas de novas descobertas ocorrem simultaneamente em áreas que vão desde o sequencia- mento genético até a nanotecnologia, das energias renováveis à computação quântica. O que torna a quarta revolução industrial fundamentalmente diferente das anteriores é a fusão dessas tecnologias e a interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos. Nessa revolução, as tecnologias emergentes e as inova- ções generalizadas são difundidas muito mais rápida e ampla- mente do que nas anteriores, as quais continuam a desdobrar-se em algumas partes do mundo. A segunda revolução industrial precisa ainda ser vivia plenamente por 17% da população mundial, pois quase 1,3 bilhão de pessoas ainda não têm acesso à eletrici- dade. Isso também é válido para a terceira revolução industrial, já que mais da metade da população mundial, 4 bilhões de pessoas, vive em países em desenvolvimento sem acesso à internet. O tear mecanizado (a marca da primeira revolução industrial) levou quase 120 anos para se espalhar fora da Europa. Em contraste, a internet espalhou-se pelo globo em menos de uma década”.11

 

  • SCHWAB, A Quarta Revolução Industrial. Trad. Daniel Moreira Moranda. São Paulo: Edipro, 2016.

 

Uma das expressões da implacável, vertiginosa e veloz revolução científico-tecnológica, que dá a luz à quarta revolução industrial, que está em seus estágios iniciais e localizada majoritariamente em pouquíssimos e ricos países,12 abarca e se manifesta em várias áreas através de numerosos elementos: inteligência artificial, robótica, a internet das coisas (máquina se comunicando com máquina sem a presença humana), tecnologia de sensores, veículos autômatos, armazenamento de energia, novos materiais, nanotecnologia, engenharia genética,13 impressão 3D (ou manufatura aditiva), computação quântica etc.

  • SCHWAB, Klaus, op. cit., p. 16-17
  • Diferentemente da I, II e III revoluções industriais, a IV já chegou ao Brasil e tende a se espalhar mais rapidamente. “Sete tecnologias já têm impactos dis- ruptivos (inovação que suplanta tecnologias existentes) em sistemas produtivos estratégicos da indústria brasileira: inteligência artificial, internet das coisas (IoT), produção inteligente e conectada, materiais avançados, nanotecnologia, biotecnologia e armazenamento de energia. Essas fontes de inovações vêm pro- vocando mudanças significativas em modelos de negócio, padrões de concor- rência e em estruturas de mercado para setores como agroindústria, química, petróleo e gás, bens de capital, automotivo, aeroespacial e defesa, tecnologia da informação e comunicação, bens de consumo e farmacêutico”. Ver: Machado,

 

No entanto, os quatro componentes-chave para a formação da Indústria 4.0 e que revolucionam o modo capitalista de produção de mercadorias, segundo Hermann, Pentek & Otto (2015), são:

  1. Cyber Physical Systems – CPS São sistemas que permitem a conexão de operações reais com infraestruturas de computação e comunicação
  2. Internet das Coisas (Internet of Things – IoT). É a rede de objetos físicos, sistemas, plataformas e aplicativos com tecnologia embarcada para comunicar, sentir ou interagir com ambientes internos e externos.

 

Ana Paula. “Estudo mapeia sete tecnologias que já mudam a indústria no país”.

<https://oglobo.globo.com/economia/sete-novas-tecnologias-ja-mudam-modo--de-producao-industrial-no-pais-21952865>. Acesso em: 26/11/2017.

  • A inteligência humana deve defender e prolongar o bem estar da vida. A enge- nharia genética, como tudo o que existe, tem sua própria contradição interna. Defenda-se, portanto, a civilização e não a barbárie ou o bizarro. “Nesse con- texto, a manipulação genética envolve riscos e uma série afronta à dignidade humana (Constituição da República, art. 1º, III), que podem levar a humani- dade a percorrer um caminho sem retorno, por trazer a possibilidade de: a) obtenção, por meio da clonagem, da partenogênese ou da fissão gemelar de uma pessoa geneticamente idêntica a outra; b) produção de quimeras, pela fusão de embriões, ou, ainda, de seres híbridos mediante utilização de material genético de espécies diferentes, ou seja, de homens e de outros animais, formando, por exemplo, centauros, e minotauros, tornando as ficções da mitologia grega uma realidade, pois já se conseguiu camundongos com orelhas humanas; c) seleção de caracteres de um indivíduo por nascer, definindo-lhe o sexo, a cor dos olhos, a contextura física etc.; d) criação de bancos de óvulos, sêmens, embriões ou conglomerados de tecidos vivos destinados servir como eventuais bancos de órgãos, geneticamente idênticos ao patrimônio celular do doador do esquema cromossômico a clonar; e) produção de substancia embrionária para fins de experimentação; f) transferência de substancia embrionária animal ao  útero da mulher e vice-versa para efetuar experiências; g) implantação de embrião manipulado geneticamente no útero de uma mulher, sem qualquer objetivo terapêutico; h) criação de seres transgênicos, ou seja, de animais cujo DNA contenha genes humanos, para que possam produzir hormônios ou proteínas humanas a serem utilizadas como remédio para certas moléstias; i) introdução de informação genética animal para tornar a pessoa mais resistente aos rigores climáticos; j) produção e armazenamento de armas bacteriológicas etc.”. Ver: Carneiro, Cláudia Aparecida Engenharia genética frente ao princípio da dignidade da pessoa humana e suas implicações ético-jurídicas . <http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=15894>. Acesso em: 26/11/2017

 

  • Internet of Services (IoS). Quando a rede da IoT funciona perfeitamente, os dados processados e analisados em conjunto fornecerão um novo patamar de agregação de
  1. Fábricas Inteligentes (Smart Factories) Nas fábricas inteli- gentes, os CPS serão empregados nos sistemas produtivos gerando significativos ganhos de eficiência, tempo, recursos e custos, se comparado às fábricas 14

À primeira vista, conclui-se, com base nesses dados, que a relação produção social, trabalho social, distribuição social, consumo social nunca mais será a mesma. Um novo paradigma científico-social se impôs a alterar a sociabilidade humana.

Promove não só um conjunto de mudanças nos processos de manufatura, design, produto, operações e sistemas relacionados à produção, aumentando o valor na cadeia organizacional integrada e conectada, mas ao se fundirem, via internet, tecnologias dos mundos físico, digital e biológico, criando como que uma conexão universal nunca vista, impulsionam e realizam grandes e radicais transformações na economia, na produção, no comércio, nos servi- ços, nas finanças, na concorrência internacional, na sociedade, no Estado, no mundo do trabalho, na produção do valor, na cultura, nos sujeitos sociopolíticos, na comunicação, na informação, no modos, costumes, hábitos e estilos de vida, nas divisões internacio- nais do trabalho, do saber e da riqueza mundial.

A cada vez mais difundida e aceita a expressão quarta revo- lução industrial imprime, assim, os traços determinantes das inovações científico-tecnológicas que representam um processo objetivo, complexo, multifacetado, integracionista,  potencial- mente irreversível, progressista, universalista, mas ao mesmo tempo contraditório, destrutivo e criativo, inclusivo e excludente, desigual, decorrente da fantástica e permanente revolução cien- tífico-tecnológica que vivemos há décadas e do processo de globalização – que encontra agora, e com mais força, adversários desde a extrema-esquerda, passando pela extrema-direita e  até pela extrema-burrice.

 

  • Ver: Panorama da inovação: indústria 4 .0 . Publicações Firjan: cadernos Senai de inovação. <file:///C:/Users/Eduardo/Downloads/sistema-firjan-indus- tria-4.0-2016.pdf>. Acesso em: 26/11/2017.

 

Se uma propriedade decisiva da Indústria 3.0 (Terceira Revo- lução Industrial) é ou foi a automação através da microeletrônica, robótica e programação, a Quarta é um salto qualitativo: combina tudo isso com a Inteligência Artificial.

“A Indústria 4.0 é a transformação completa de toda a esfera da produção industrial através da fusão da tecnologia digital e da internet com a indústria convencional.” afirmou Angela Merkel,15   a chanceler da Alemanha, país que, em 2011, durante a Feira de Hannover (Alemanha), criou um novo conceito da estratégia do governo alemão para o desenvolvimento de alta tecnologia para a manufatura do país: nasceu assim o termo Indústria 4.0, do alemão   Industrie  4 .0,   já   chamada   por   muitos   analistas   como quarta revolução industrial.

Se na natureza do átomo às estrelas tudo se liga, o progres- sista, revolucionário, integracionista e globalizante binômio chip-internet unificou boa parte dos países de médio e alto desenvolvi- mento. A combinação chip-internet-algoritmo gera a Inteligência Artificial e eleva as forças produtivas a patamares mais altos.

 

3. O trabalho vivo e a inteligência artificial: o que vem por aí

As recentes conquistas revelam mais uma vez que as forças produtivas nunca permanecem invariáveis, estão sempre em processo de transformação. Diante disso, estaríamos diante daquilo que Marx vislumbrou como a superação total, cruel, radi- cal e lógica da presença do ser humano como integrante do processo de trabalho, que, na produção de valores de uso, passa- ria a ser tão somente supérfluo no processo de produção? Melhor dizendo, o processo de produção deixaria de ser um processo de trabalho vivo?

Se já em 1857-58, em os Grundrisse, Marx vislumbrara que a força humana de trabalho vivo direta seria suplantada, substi- tuída, trocada, eliminada pela maquinaria (que ainda não dispu- nha nem de internet nem de Inteligência Artificial), devido à progressiva aplicação da ciência e da técnica à produção e, porque não dizer, aos serviços, agora, com a combinação chip-internet-in- teligência artificial a produção de mercadorias radicaliza o processo que vai tornando cada vez o trabalho vivo em um compo-

  • Panorama da inovação: indústria 4 .0. Publicações Firjan: Cadernos Senai de ino- vação.

 

nente supérfluo no processo de produção/serviços de mercado- rias, que passam a ser produzidas pelo trabalho humano objeti- vado na automação/robotização dotados de inteligência artificial. O robô ou toda expressão de automação, informação, cognição artificial, formas superiores do chip e dos softwares, criações humanas, conhecimento humano acumulado ao longo de pelo menos dez mil anos, por mais sofisticados que sejam, não nascem, primariamente, em árvores, cachoeiras mágicas, alienígenas,  nem brotam do solo da terra e nem caem dos céus. “A natureza não constrói máquinas nem locomotivas, ferrovias, telégrafos elétricos, máquinas de fiar automáticas etc. Elas são produtos da indústria humana; material natural transformado em órgãos da vontade humana sobre a natureza ou de sua atividade na natu- reza. Elas são órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força do saber objetivada”.16

“Assim como com o desenvolvimento  da  grande  indústria  a  base sobre a qual esta se funda – a apropriação do  tempo  de  trabalho alheio – deixa de constituir ou criar a riqueza, do mesmo modo o trabalho imediato cessa, com aquela, de ser, enquanto tal, base da produção, por um lado porque se transforma em uma atividade mais vigilante e reguladora, mas também porque o  produto deixa de ser produto do trabalho  imediato,  isolado,  e  é  bem mais a combinação da atividade social a  que  se  apresenta  como a produtora”.17 O processo  produtivo  deixa de  ser  um  processo de trabalho cujo elemento dominante é a força  de  traba- lho vivo. O que há de estudar? A transferência de valor

A revolução científico-tecnológica é global, ou seja, abarca todas as áreas.

A chamada Inteligência Artificial (IA) já vive em diversos (não totais) setores, não apenas manual, mas intelectual, dos siste- mas produtivos e de serviços e revoluciona a sociedade. Mas coloca ao capitalismo, que ele próprio gerou, o seu limite orgâ- nico: a sua própria superação. Sem força de trabalho como se gera a valorização do capital?

Pode-se, claro, defender que a ciência é a objetivação do conhecimento  humano  no  ser  concreto científico-técnico-material que realiza maravilhas e tragédias humanas. Se para um torneiro mecânico da Panex (produtora de panelas em São Bernardo do Campo, que fechou suas portas neste ano de 2017), vê a sua transição de um assalariado metalúrgico a uma situação socioeconômica-familiar-existencial desassalariada  e  supérflua  e  –  vendo sua vida tornar-se dramática e desesperadora para si e para sua família – vendo arrebatadoramente a tendência de que as panelas  sejam feitas por robôs, como ele e sua família viverão? O  capita- lismo dá resposta a este fenômeno? O Estado de Bem-Estar Social, combatido pelo capital, terá uma correlação de forças favorável a prover os desprovidos? São questões em aberto.

  • MARx, Karl. Grundrisse: lineamientos fundamentales para la crítica de la eco- nomia política (1857-1858) . 2. Carlos Marx & Federico Engels. Obras Funda- mentales. Trad. Wenceslao Roces. 1. ed. México: Fondo de La Cultura Econó- mica. 1985, p. 115.
  • Ibidem, p.

 

Vale assinalar que tal processo de transição,  contradição, entre inteligência artificial e inteligência humana envolve profis- sões também da chamada força de trabalho intelectual e manual. Muitas profissões manuais e intelectuais desparecerão. Estamos diante de uma fabulosa revolução que não se restringe à produ- ção, aos serviços, ao trabalho, mas impacta toda a civilização.

Será este o tema que será trabalhado na segunda parte desta reflexão.

* Eduardo Rocha é economista pela Universidade Mackenzie, pós-graduado em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp e economista da União Geral dos Trabalhadores (UGT)


PD #49 - Marcos Cintra: Ajuste fiscal e disputa orçamentária

A literatura econômica comprova que ajustes fiscais duradouros e de boa qualidade são os que cortam gastos sem aumentar impostos. Se bem executada, esta política possui nítidas vantagens: corta gorduras e ineficiências, combate os rent seekers (agentes que tentam obter renda manipulando o ambiente político), reduz a corrupção, diminui a demanda do setor público por poupança privada e preserva a capacidade de investimento das empresas. Já os ajustes que aumentam tributos não apresentam as mesmas qualidades.

Nesse sentido, o governo acertou ao colocar a ênfase inicial  de seu esforço fiscal nos cortes de gastos e na aprovação da Lei  do Teto. Contudo, a gestão de gastos tem se mostrado incapaz de cortar despesas para atingir as metas de déficit primário. Além disso, vem impondo restrições orçamentárias de forma indiscriminada, sem critérios claros e racionais. Em parte, a estratégia do governo enfrenta dificuldades por repetir o erro cometido em 2015 pelo então ministro Joaquim Levy, que, em vez de fazer o ajuste fiscal de forma concentrada em medidas estruturais fortes e definitivas, optou por uma estratégia fragmentada com cortes de gastos pulverizados e sem avaliação objetiva de impactos e resultados de suas ações.

São notórias as dificuldades de cortar gastos públicos em sociedades como a brasileira, onde imperam o clientelismo e o corporativismo. A fragmentação das restrições orçamentárias em inúmeras pequenas ações amplia os focos de resistência e estimula a formação de frentes amplas contrárias aos cortes de  gastos. O resultado é previsível: o governo foi forçado a ampliar a meta de déficit primário e, ao mesmo tempo, aumentar a carga tributária, uma tóxica combinação de políticas econômicas se se pretende recuperar a economia.

A questão que surge, portanto, é como promover ajustes fiscais sem aumentos de tributos e, ao mesmo tempo, cortar despesas minimizando seus impactos negativos na retomada da economia. A necessária determinação de cortar gastos vem sendo executada pelo governo de forma canhestra ao impor cortes indiscriminados aproximadamente lineares na lista de rubricas orça- mentárias. Não cumpre, assim, o compromisso de implementar o orçamento base zero, proposta que constava no plano de governo do PMDB, a Ponte para o Futuro, que visava introduzir mais racionalidade no processo orçamentário.

O orçamento público brasileiro é incremental. As propostas de alocação de recursos para exercícios futuros tomam como baselines os projetos e programas em execução no exercício em curso. Essa prática adota como premissa que os gastos e ações em execução são justificáveis pelo simples fato de já existirem, cabendo aos que elaboram, aprovam e executam os orçamentos públicos interferirem apenas em decisões marginais de acréscimos ou de reduções incrementais.

Planos, programas, ações e atividades, uma vez incluídos no orçamento público, não são avaliados mais à frente para justificar sua continuidade, ou eventual eliminação. Dessa forma, os orça- mentos tornam-se rígidos e, com o passar do tempo, carregados de vinculações legais. Muitos se tornam obrigatórios e, portanto, inflexíveis para baixo.

O orçamento base zero inverte a lógica atual e tem a grande qualidade de partir periodicamente de uma página em branco e, assim, requerer permanente acompanhamento e avaliação de resultados das atividades públicas. Cada projeto, novo ou preexis- tente, deve passar por rígida avaliação custo-benefício antes de  ser mantido, redimensionado ou, o que é raro no Brasil, eliminado da peça orçamentária anual para abrir espaço aos  programas com retorno social.

Com o orçamento base zero, até o conceito de divisão de gastos públicos em obrigatórios e discricionários perde sentido, subme- tendo-os unicamente à lógica da eficiência. O ajuste fiscal em andamento, que recai exclusivamente sobre a pequena parcela discricionária (cerca de 4% do total dos gastos), é perverso, pois não adota critérios claros e racionais para determinar os bloqueios de recursos entre as áreas orçamentárias.

Não há ações claramente visíveis no sentido de cortar ineficiências e privilégios, que deveriam ser totalmente eliminados para garantir a continuidade de programas com altas taxas de retorno social, como educação, saúde e ciência e tecnologia. Com  a utilização do orçamento base zero, a área de ciência, tecnologia   e inovação, por exemplo, jamais teria redução em sua dotação, como vem ocorrendo hoje. Pelo contrário: não só manteria os recursos, como ainda poderia receber aportes adicionais originá- rios de unidades orçamentárias que pouco agregam à sociedade.


PD #49 - Demétrio Carneiro: Uma discussão sobre um futuro nem tão distante

Difícil achar quem pense, com um pouco de seriedade, sobre o momento atual e não esteja preocupado com as mudanças que poderão ou não acontecer a partir das eleições de 2018. Normalmente, os processos eleitorais, especialmente numa data tão antecipada como esta em que escrevemos, não são muito fáceis de escrutinar, mas este em especial acumula um grande número de elementos.

O governo Temer

O governo Temer veio ao mundo, a partir de uma ampla coalizão de oposicionistas em que todos sabiam de duas coisas: 1) Dilma não reunia mais as condições necessárias para permanecer no posto; 2) A crise das Finanças Públicas estava instalada e gerava um quadro de quebra de confiança que estava travando a economia, impedindo qualquer chance de retomada.

Contudo, essa coalizão vencedora não durou o  necessário  para um mínimo de estabilidade. Logo, o enfrentamento da questão patrimonialista colocaria no centro do palco o próprio presidente Michel Temer e seus assessores mais próximos, iniciando um novo ciclo de instabilidade.

A coalizão vencedora se desfez. Já sabemos que, quando se trata de defenestração, abandonar grandes coalizões tem custo baixo para quem o faz. Mas houve um custo para a retomada da economia, se olharmos para a necessidade de apresentar uma solução para o segundo motivo da criação dessa coalizão vence- dora: a crise das Finanças Públicas.

Apesar da permanência, sob outro formato, da crise política, desta vez pela ruptura da Coalizão Vencedora, os agentes econômicos, ao ser estabelecido um mínimo de confiabilidade, sentiram haver condições para a retomada dos negócios, e a economia vem se movimentando em parâmetros mínimos. O processo recessivo, iniciado no segundo trimestre de 2014, mas cuja origem está em 2008/2009, aparenta ter finalizado com uma sucessão de trimestres de PIB positivo.

Certamente, o fôlego desta pequena retomada vai estar na manutenção da confiabilidade dos agentes e vinculada a alguma proposta mais sólida e estruturada de solução da crise das Finan- ças Públicas. E é aí que nossos problemas começam, pois o debate da crise tem tudo a ver com o que se espera do Estado e isso implica em escolhas que são reflexo de posições históricas no cenário político brasileiro.

O grupo dissidente que se retirou da Coalizão Vencedora, por sua vez, também se fragmentou e foi incapaz de apresentar propostas concretas que não fossem apenas um discurso de oposição paralelo ao discurso dos derrotados: Temer não serve! Uma parte deste grupo, por questões ideológico-políticas, está sendo incapaz de aceitar alterações de políticas públicas focadas na solução da crise das Finanças Públicas, mas que tem tudo a   ver com o papel do Estado, e pratica uma política ativa de enfren- tamento e negação. Outra parte caminha sobre a corda bamba e   é, na prática, incapaz de se definir com clareza nesse tema, que rejeita toda e qualquer ambiguidade.

A dissolução do formato original da Coalizão Vencedora enfraqueceu a capacidade de negociação do governo Temer e o que se instala, nestes momentos, é o tradicional troca-troca desse presi- dencialismo que necessita de uma maioria incerta para passar seus projetos. O processo de troca não apenas obriga o governo a direcionar novos recursos para o chamado Centrão, mas também enfraquece as metas fiscais. Mesmo que imaginemos que muitos bodes foram postos na sala, o fato é que a incapacidade de definir, com mais objetividade, o tamanho da atual coalizão acaba fazendo com que as corporações ganhem fôlego e tenham maior capacidade de intervenção. É o que estamos vendo no debate da Reforma Previdenciária. É claro que a soma de todas as demandas das corporações nos coloca nessa situação  de  insustentabilidade fiscal, mas toda corporação vai sempre achar que seu público em especial tem mais direitos que o público em geral ou o público das outras corporações.

Acabaremos descobrindo até que ponto é possível esticar esta corda das soluções fiscais, embora já se fale em transferir o problema para o próximo governo. Até que ponto esse clima afetará o comportamento dos agentes econômicos, também ainda veremos. O que é certo é que colocar as soluções no colo do próximo governo pode não ser uma solução, a depender do eleito  e de sua capacidade de formar alianças.

Esta esperança de um novo governo capaz de enfrentar, de forma definitiva, todo o conjunto de reformas e mudanças institu- cionais necessárias, é falsa e já não deu certo no passado. Basta   ver como os sucessivos governos acabaram fugindo do debate previdenciário de fundo e preferiram soluções mais fáceis. Invaria- velmente todos se depararam com a necessidade de formar maio- rias e todos tiveram que negociar e reduzir demandas de mudança.

O Estado

A questão do Estado e seu papel continuam sendo o tema principal. Para 2018 não será diferente. O que chamamos de crise das Finanças Públicas pode ser bem simplificado numa pequena frase: “gastamos mais do  que  temos  capacidade  de  arrecadar”. A questão imediata é “onde gastamos?” e “onde iremos buscar recursos para cobrir o que gastamos?”. Para responder às duas perguntas, precisamos definir o que queremos do Estado.

O que a sociedade espera do Estado está inscrito na nossa Constituição Federal e tem a ver com qualidade de vida. Constitu- cionalmente, a sociedade elege o Estado como um instrumento de entrega de qualidade de vida. O problema é se há meios de garan- tir qualidade de vida para todas e todos. Alguns acham que sim, outros que a obrigação do Estado é garantir a qualidade de vida dos mais pobres. O Estado caminha sobre esse fio de navalha da necessidade de entregar bens e serviços, qualidade de vida, que atendam ao conjunto, mas ao mesmo tempo precisa ter  meios para dar atenção aos mais pobres.

Como o cobertor é um só, algumas questões vão aparecendo...

Para cada real entregue ao Estado, quanto chega à ponta final em forma de produto ou serviço? Desse real quanto é apropriado pelo patrimonialismo? Quanto a ineficiência gera de perdas pelo meio do caminho? Se não houver recursos tributários, vamos recorrer ao aumento da dívida pública? Não havendo recursos para todos, nosso foco serão os mais pobres e os outros terão que, mesmo pagando tributos, recorrer aos bens e serviços privados? Para equilibrar a Previdência, e ainda assim garantir recursos para os mais pobres, cortamos recursos para os outros, sob a forma de limitação de teto, ampliação da idade de aposentadoria etc.?

Como se pode constatar, a discussão sobre o cobertor vai envol- vendo um grande número de questões crescentemente complexas. Todas falam do papel do Estado e de escolhas que a sociedade deve querer fazer. Contudo, são escolhas que não devem, de princípio, como se diz “matar a galinha dos ovos de ouro”. Um Estado falido, quebrado, não interessa a nenhum dos atores, mesmo que alguns destes atores façam de conta que o problema não existe.

O teto de crescimento
Pode parecer simples, mas não é assim... Após 15 trimestres a FBCF (Formação Bruta de Capital Fixo), que é o número que indica os investimentos, voltou  a  apresentar  um  crescimento  positivo. A recessão somada à falta de investimentos acaba criando um limite de crescimento a partir do qual mudanças institucionais tornam-se necessárias, especialmente sob o risco de intensificação do processo inflacionário e limites físicos, até mesmo logísticos.

A questão do teto de crescimento e seu vínculo com mudanças institucionais também é um assunto para 2018.

A rede das redes nas eleições de 2018
Há muito se discutia que a pós-modernidade havia fracionado as agendas, mas agora é que esses efeitos começam a ficar mais claros. Esta ruptura de agendas acaba criando diferentes grupos compostos pelas mesmas pessoas ou por pessoas focadas apenas num tema e desinteressadas nos outros. A rede de internet é facilitadora desses movimentos de formações pontuais e instantâneas de grupos de interesse específico.

Para o mundo da política, o problema é que partidos se movimentam em agendas orientadas e que envolvem um certo grau de coerência entre os diversos temas. A questão dos partidos passa a ser quando seus filiados se comportam como nas redes, e determinadas escolhas colidem com a agenda partidária. Pode ocorrer um agrupamento dedicado à questão da pessoa com deficiência alinhado com a agenda de apoio a esse tipo de minoria e pode haver, naquele agrupamento, pessoas a favor da redução da maioridade penal, postura desalinhada com a agenda partidária. Em certo sentido, a ausência de debates é facilitadora da acomodação dessas contradições que acabam eclodindo apenas em situações muito específicas.

Se realmente o partido é o meio intermediário entre a cidadania e o Estado, isto é, leva para a gestão pública as demandas da sociedade em forma de novas leis e o não cumprimento das atuais, a dúvida é como acomodar esta contradição de forma democrática. Enfim, é possível acomodá-la, a contradição, talvez reproduzindo o formato das redes numa agenda multifacetada e em permanente modificação, nesse sentido numa não agenda?

As crises simultâneas
As eleições de 2018 apresentam um quadro bem peculiar. No primeiro plano, uma forte crise institucional que atinge as três estruturas de poder republicano: Executivo, Legislativo e Judiciário. Há um forte esgarçamento da tessitura institucional. As instituições são criadas pela sociedade como elementos de geração de estabilidade, focadas na cooperação, como forma de superar os conflitos. Elas fornecem regras e previsibilidade. Se considerarmos essa afirmativa como correta, fica mais fácil entender o atual ambiente.

Contudo, este esgarçamento não tem origem apenas no desencanto, consequência da exposição à luz do dia da estrutura patrimonialista que atinge não só os três poderes republicanos, mas também os três níveis federativos. Para onde se olhe com mais detalhes a ação do Estado, a ação patrimonialista fica evidenciada. Não necessariamente por corrupção passiva ou ativa, mas por diversos outros comportamentos (empregos cruzados para parentes e associados, alocação de cabos eleitorais, direcionamento favorecido na aplicação de recursos, sobre preços nas aquisições, uso do poder corporativo na geração de benefícios e rendimentos indevidos), comportamentos que acabam por ser, de fato, apropriação privada de recursos que deveriam ser utilizados em favor de todas e de todos. A Rede Neopatrimonialista é transversal à estrutura do Estado e conecta os diversos níveis e camadas, em inúmeros centros de poder que vão do local ao nacional.

O desencanto também pode ser considerado como resultante de duas crises que ocorrem simultaneamente no Brasil e, simul- tânea ou isoladamente, em muitos outros países: a crise das democracias representativas e participativas; e a crise do apare- lho do Estado. A soma de todos estes elementos desagua na Agenda Negativa que, tudo indica, poderá ser um forte compo- nente a ser considerado nas eleições de 2018.

Talvez a possibilidade de entregar esperança de mudanças e produzir confiabilidade nunca tenham sido tão importantes quanto no processo que se aproxima.

A crise das democracias representativas e participativas

Instituições formais ou informais dependem de confiabilidade. No caso da democracia representativa, a confiança dos eleitores está em queda. Mesmo que não seja um fenômeno apenas nosso, local ou nacional, a queda da confiança pode afetar o comportamento do eleitor, tanto pela via da abstenção  quanto pela via das soluções radicais.

Menos debatida ainda temos a considerar que a democracia participativa também está em crise. Já houve um momento em que se considerou que o aprofundamento do processo de demo- cratização na sociedade brasileira se daria pela via da interconexão entre ambas as formas de democracia. Não foi o que o mundo real nos trouxe. Mesmo que, a partir da Carta Magna de 1988, tenhamos vivido um surto formal de participação da sociedade civil na gestão do Estado e na ação das diversas entidades do movimento social, esse surto acabou por se consolidar mais no aspecto da formalidade legal com a criação de dezenas de conselhos paritários nos diversos níveis federativos. Conselhos Paritários e Entidades Sociais são fortes dependentes da cidadania e o que presenciamos, mesmo com momentos como o de 2013, é um forte embotamento da cidadania. Conselhos Paritários acabam manipulados pelo Poder vigente e entidades sociais acabam por ser estatais dependentes e, portanto, também manipuladas pelo Poder vigente. Restaria considerar o papel da rede das redes, mas isso trataremos em outro momento.

O debate sobre democracia representativa e democracia participativa não é abstrato e tem tudo a ver com a gestão pública e o papel que o Estado deve e precisa exercer na entrega da qualidade de vida às famílias. Este é o problema atual. Eleitores e seus familiares tendem a considerar que a escolha de representantes pelo voto ou a participação em conselhos paritários ou a atuação no movimento social não produzem o resultado esperado. Enfim, não entregam mais qualidade de vida.

para qual lado vai esse trem?

Há um alto risco em escrever qualquer coisa sobe o que vem    à frente em momentos de tanta volatilidade como o atual, mas vamos ver como leremos o que aí foi escrito dentro de noventa ou cento e vinte dias...

O subtítulo escolhido nos dá uma certa comodidade. Afinal, na Estação e com o Trem a nossa frente, ele só pode ir para a esquerda ou para a direita. Acho que é assim que boa parte dos que se atrevem a analisar o que vem nos próximos meses ou anos costuma se imaginar. Esquerda ou direita, sem se preocuparem com as ramificações que estarão mais à frente e que, de alguma forma, poderão levar esse Trem, que ia para a esquerda, seguir para a direita e, quem sabe, fazer o círculo completo e voltar ao mesmo lugar da partida. À Estação Lugar Algum, ou Lugar Nenhum, se assim preferirem...

“Trem” aqui também pode ter outro significado. De trem difí- cil de carregar. De um momento em que tudo leva a um efeito de arrastro que nos imobiliza, cansa, satura...

Finalmente, estas coisas podem se cruzar, pois afinal o Trem arrastado, ainda assim, precisa ir para algum lugar, pois lugar nenhum não é um bom lugar para se estar.

* Demétrio Carneiro é economista, especialista e pesquisador em políticas públicas


PD #49 - Roberto Bocaccio Piscitelli: Governabilidade e controles

"Governabilidade e controles” é o título de um artigo clássico – porque talvez mais atual do que à época em que foi publicado (1988) –, do sociólogo Carlos Estevam Martins, falecido em 2009, e que deveria ser lido e relido pelas velhas e novas gerações. Ouvimos dizer diariamente que o Brasil é uma democracia plena, que aqui as instituições funcionam plenamente.

Pois nada me parece mais falso: vivemos um dramático processo que eu ousaria caracterizar como de desinstitucionalização.

Dizia aquele eminente professor que a descoberta do ponto de equilíbrio ideal para cada situação é de fundamental importância  para manter em harmonia a convivência entre liberdade e controle.   O objetivo do controle não é o de diminuir a liberdade, mas apenas o de fazer valer os limites dentro dos quais cada um exerce a liberdade de que desfruta. O equilíbrio estaria na  sutil  equidistância  entre o excesso e a falta de controles, cuja forma mais simples é a reciprocidade (A e B se controlam reciprocamente) e a mais apurada  é a circularidade (A controla B, que controla C, que controla A).

Considerando Estado e sociedade, podemos imaginar quatro grandes categorias de controle: os exercidos pela  sociedade  –  sobre si mesma e sobre o Estado; e os exercidos  pelo  Estado  –  sobre a sociedade e sobre si mesmo. Em rápida abordagem sobre estas diferentes combinações em nosso país, poderemos identifi- car,  com facilidade, o  quanto estes controles estão destroçados e     o grau de ruptura das relações entre a sociedade  e  o  Estado, consigo mesmas e entre si.  Permitam-me  interpretar  e  extrapo- lar a ideia do mestre.

O controle da sociedade sobre si mesma denota o nosso comportamento coletivo, cujas referências são supostamente compartilhadas e reconhecidas, não deveriam depender de coerção formal, mas revelar espontaneidade, o retrato da própria cultura de um povo. A nossa tolerância em relação à ilicitude e à indiferença em relação aos direitos dos outros revelam, de modo geral, profundo desprezo pelos mais elementares valores éticos.

O próximo está sempre muito distante, e a solidariedade é apenas adereço linguístico.

O controle da sociedade sobre o Estado se expressa pela exis- tência e efetividade de instituições e mecanismos característicos da vida republicana que estabeleçam limites às autoridades e coloquem à disposição das pessoas instrumentos adequados ao controle do poder político e administrativo. É bem evidente que se trata de um produto raro entre nós. É fácil constatar que, por  mais impopular e ilegítimo que seja, um governo é capaz de impor a sua vontade, aprovando medidas contrárias ao interesse da grande maioria da população, afastada e alienada das decisões.

O controle do Estado sobre a sociedade é essencial para arbitrar os conflitos, e constitui instrumento para promover a maior equalização possível entre os cidadãos. Para tanto, precisa dispor de uma legislação perene e compreensível, que valha indistintamente e cuja aplicação esteja sob a responsabilidade de magistrados justos e equilibrados. É despiciendo dizer que, entre nós, leis não “pegam”, dependem de quem e a quem se aplicam, e há sempre um jeitinho para tudo.

Por fim, o controle do Estado sobre o Estado só é possível quando cada Poder e cada órgão tem uma função definida, atua em harmonia com os demais (respeitando os respectivos limites) e está sujeito a apropriado controle social, não estritamente corporativo ou meramente interno. Não é preciso muito esforço para perceber a desordem administrativa e institucional reinante no país, a ação descoordenada controlada dos Poderes e órgãos, e a atuação voluntarista, saliente e até arbitrária de vários entes e agentes públicos, exercendo suas atividades como se fossem verdadeiras ilhas sem freios e contrapesos, indispensáveis em  uma democracia.

Como mencionei no início, o passado e o futuro parecem estar fundidos no Brasil.

 


PD #49 -Claudia Maria de Freitas Chagas: O acesso à informação e à intimidade

A Lei de Acesso à Informação (LAI), Lei no 12.527, de 18 de novembro de 2011, que entrou em vigor em 16 de maio de 2012,  tem  inegável  importância  para  a  consolidação  do regime democrático, a efetivação do direito à informação e a transição de uma cultura do sigilo para a transparência e a publicidade.

Mais de duas décadas após a promulgação da Constituição Federal de 1988, os dispositivos constitucionais que já garantiam o acesso às informações que se encontram sob a custódia  do  poder público foram regulamentados. A lei estabelece, como regra geral, o acesso pleno, imediato e gratuito, passando o sigilo a ser  a exceção. Dirige-se a todos os órgãos públicos integrantes dos Três Poderes, ao Ministério Público, às autarquias, às empresas públicas, às sociedades de economia mista e a outras entidades, inclusive privadas, desde que recebam recursos públicos. Cria procedimentos e prazos, impedindo negativas sem fundamento legal e dificultando atos protelatórios.

Em uma primeira análise, vê-se duas grandes vertentes na utilização dos instrumentos trazidos pela lei: a recuperação de fatos históricos e o controle social.

O Brasil, especialmente durante os anos em que foi submetido à ditadura militar, experimentou a total ausência de transparência, não só dos arquivos públicos, como também de quaisquer informações que se referiam ao governo. O sigilo protegeu os governantes de críticas, impediu o conhecimento de ilegalidades e a comprovação de violações aos direitos humanos, sem que o cidadão tivesse meios para reagir. A LAI é, portanto, apesar do decurso do tempo, ferramenta relevante na reconstituição de fatos passados e na busca da verdade e da reparação.

O segundo aspecto igualmente importante é a possibilidade do controle social, indissociável da ideia de democracia. A nova lei permite ao cidadão, sem necessidade de justificativa específica, conhecer informações que se encontram em órgãos ou entidades públicas, formar sua opinião, criticar, fazer escolhas e participar de diversas formas. Impõe ao poder público, ainda, uma conduta proativa na direção da transparência, produzindo e disponibilizando dados. É, portanto, essencial à prevenção e ao enfrentamento da corrupção.

Neste contexto, de afirmação da garantia do direito à informação e da necessidade da concretização da transparência pública em um Estado democrático de direito, há também um outro lado que merece profunda reflexão. Trata-se da compatibilização do direito à informação com o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, também expresso na Constituição Federal, no rol dos direitos fundamentais.

O acesso público às informações, além de desejável, é hoje a regra geral. Apesar disso, a identificação de  seus  limites, diante de outros direitos constatados em casos concretos, é necessária. Trata-se de tarefa complexa, tendo em vista que documentos custodiados pelo Estado, aparentemente de interesse geral, muitas vezes contêm informações pessoais, que atingem esferas íntimas, cuja exposição pode gerar constrangimento ou sofrimento.

A LAI prevê a hipótese de restrição de acesso às informações pessoais, assim como às informações consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado. Apesar disso, estabelece que, em algumas situações, a privacidade deve ceder ao interesse público ou à recuperação de fatos históricos de maior relevância. Acrescenta, ainda, que a proteção da vida privada, da honra e da imagem não pode ser invocada para prejudicar processo de apura- ção de irregularidades em que o titular estiver envolvido.

Não há, contudo, uma resposta genérica e prévia, aplicável a tais situações, que possa auxiliar o agente público incumbido de decidir sobre a publicidade de documento que se encontra sob a sua guarda. Estamos lidando, nessa seara, com princípios constitucionais, com conceitos abertos e concepções morais divergentes. A fixação do conteúdo de tais direitos só pode se dar a partir de uma narrativa; no contexto de uma época delimitada, perante uma sociedade identificada, ou seja, considerando-se os fatos e todas as suas circunstâncias, inclusive de tempo e lugar.

Devem ser atribuídos pesos e importância aos princípios constitucionais envolvidos, de forma a conciliá-los, o que se dá no momento da aplicação das normas e não no âmbito da sua validade.

O dilema entre o direito à informação e o direito à intimidade gera uma tensão permanente, que deve ser avaliada com cautela, caso a caso, de forma a evitar abusos. Seja criando um constrangimento  inútil  e  impactando  negativamente  a  vida  de um indivíduo, seja acobertando sigilos desnecessariamente e impedindo o conhecimento de fatos históricos e o controle social.

É de se lembrar sempre que a concretização do direito à informação, tão alijada nos Estados autoritários, é de extrema relevância para a democracia, por permitir o conhecimento dos atos governamentais e a livre circulação de ideias no espaço público. Apesar disso e da grande expectativa de que a Lei de Acesso à Informação brasileira venha a alterar a cultura do sigilo, sua aplicação jamais poderá descuidar da garantia da inviolabilidade da intimidade, igualmente prevista na Constituição Federal.

* Claudia Maria de Freitas Chagas é promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e ex-Secretária Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, é autora do livro O dilema entre o acesso à informação e a intimidade.

 


PD #49 - Arildo Salles Dória: Sobre a corrupção

Uma concepção de Estado – minimalista, mas, não de todo, seguramente, inexata – está em considerá-lo como síndico do condomínio social. E, daí em diante, obrigado a agir segundo a convenção elaborada em conjunto pelos próprios condôminos.

E vai por aí na vida das nações. Nós, cidadãos, elegemos um Parlamento que se encarrega de elaborar uma Constituição (ou seja, a convenção do condomínio), além de uma série de códigos destina- dos a reger nosso pacto social, além de uma pletora de leis ordiná- rias capazes de criar, regulamentar, ampliar direitos e deveres.

Com isto posto – e especialmente nos dias de agora –, vamo-   nos deparar com uma sequência de anomalias que  nos  dificultam até mesmo definir qual a mais grave. Antes de mais nada, porque esses nossos representantes, por nós eleitos,  vieram  a  subverter  todo o conceito básico da ética, que é o bem,  substituindo-o pelo bom. E isso, filosoficamente, se define como cinismo.

E nem precisamos esticar muito o assunto. Dia após dia, os jornais nos mostram o que ocorre nas prefeituras mais distantes, assim como nas cidades mais modernas nos estados mais ricos e, mesmo,  naqueles  onde  as  desigualdades  sociais  se  fazem   mais evidentes.

Vamos mais adiante. O chefe do Poder Executivo, ou seja, o maior responsável por que sejam as leis cumpridas, veio a ser acusado, entre outros crimes, o de chefiar uma organização crimi- nosa para, com ela, assaltar os cofres públicos.

Não foi uma acusação formulada por um desafeto político. Nada disso. A Polícia Federal, diante o destaque daquela evidência, colocou seus profissionais altamente especializados a investigar a matéria. O resultado dessas investigações foi encaminhado, como de praxe, por tratar-se de quem se tratava, à Procuradoria Geral da República. E esta entendeu haver ali material suficiente para denunciar Temer como real dirigente de uma facção criminosa.

E, aí. Como se comportaram nossos parlamentares? Simplesmente impediram que a ação judicial prosperasse e se chegasse   ao fim do julgamento. Com isso, diferente do que se divulgou amplamente, os senhores deputados não decidiram se Temer é ou não inocente, mas simplesmente permitiram que, não sendo julgado, prosseguisse como alvo de uma denúncia formal.

E é o que ocorre: a Presidência da República segue ocupada  por um réu de um crime ainda não exatamente definido, mas que, seja como for, fragiliza em muito o que deveria ser a respeitável figura do chefe de nosso Poder Executivo.

E é o exato instante em que somos afrontados precisamente  por aqueles legisladores que nós mesmos escolhemos e que, em  vez de levar adiante a solução do problema, buscam, ao contrário, todo tipo de blindagem capaz de impedir ou, pelo menos, de procrastinar punições. Tudo, em suma, para comprovar seu comprometimento com essa mazorca.

Mas é a outro ponto que queremos chegar. Porque, em momentos assim, surgem vozes aparentemente descompromissadas, a anunciar, na forma usual, que tudo é assim mesmo, porque afinal a corrupção, no Brasil, já nos chegou com a frota de Cabral, sugerindo, com isso, mais a conformação que a revolta.

Só que não foi simples assim. Que houve e segue havendo corruptos e corruptores não nos deixa qualquer dúvida, mas esquecem de dizer que também sempre houve quem  procurou agir em sentido contrário,

É o que queremos mostrar que houve.

Nosso Brasil foi descoberto no século 16. Pois, no século 17, o padre Antônio Vieira, com sua oratória inflamada e magnífica, já subia ao púlpito, na catedral maranhense, para deblaterar contra os desmandos das autoridades encasteladas no poder colonial. Segue seus passos, no 18, o incansável Gregório Matos, já com o apelido de Boca-do-Inferno. E, a seguir Castro Alves valeu-se de sua poesia condoreira para condenar o escravagismo e os desmandos dos escravocratas.

E óbvio que citamos os que mais se destacaram, mas, segura- mente, não foram os únicos. Assim, e para não mais nos alongar, saltemos aos dias de agora.

No ainda popular governo Lula, o escândalo do Mensalão agrediu a face democrática e republicana da nação. Mas o castigo, ainda que incompleto, veio a galope, instante em que ganha realce a figura do ministro Joaquim Barbosa, que, nos estritos  termos  da lei, puniu seus maiores responsáveis, todos de dentro das entranhas do poder.

E o quadro se agrava com a ação denodada, entre outros, do juiz Sérgio Moro, com decisões que já puniram altos dignitários da República e alguns dos maiores empresários do país.

Isto vem demonstrar que a vontade, expressada ou não, pelo povo, acaba por prevalecer. Devemos abandonar ao lixo da Histó- ria expressões como aquela de um líder político da época, para quem o povo assistiu passivamente à proclamação da República. Certo, não foi um instante apoteótico, mas efetivo e é isso o que interessa. Mas não foi passivamente que se criaram partidos republicanos em diversas províncias do Império, cabendo, ainda, destacar a vibrante convenção republicana em Itu, São Paulo. São fatos que, na prática, desmentem aquela passividade.

Este tipo de análise, digamos, epidérmica, não é incomum. Há exemplos os mais diversos. Temos visto, nestes dias, as comemora- ções dos 500 anos da reforma que Lutero impôs à Igreja. Mas ao meio de tantas homenagens ninguém se lembrou de destacar que, 200 anos antes, ainda que de forma mais humilde, Francisco de Assis já havia tentado algo semelhante. E que a luta de Lutero teve prosseguimento, tanto que, 200 anos depois dele, o nosso Castro Alves já se valia, no mesmo sentido destes brilhantes versos:

Quebre-se o cetro do Papa Faça-se dele uma cruz

Que a púrpura sirva ao povo Pra cobrir os ombros nus .

Em suma, o povo, protagonista maior da História, não deve ser alijado de qualquer importante decisão no bojo dessa mesma História,  porque,  afinal,  lenta  ou  aceleradamente,  ele  retoma o timão de seu barco e o faz não apenas seguir adiante, mas, sobre- tudo, no rumo certo. É quando, para terminar, nos valemos do já citado Castro Alves para deixar esta advertência final:

Libertai tribunas,  prelos, São fracos, mesquinhos elos,

– Não calqueis o povo rei,

Que esse mar de almas e peitos, Com a força de seus direitos, Virá partir-vos a lei.


PD #49 - João Rego: Lições de democracia

Tenho encontrado, nas redes sociais e no círculo de amigos  e parentes, pessoas indignadas com o caótico processo político  que  se  instalou  no  país  desde  que,  com  a Operação Lava-Jato, os escândalos de corrupção se foram sucedendo, destruindo mitos e desnudando lideranças que antes eram refe- renciais de moralidade para seus eleitores.

Não nego que estamos passando por um momento de grande desafio político, como também não deixo  de  ver  por  trás  dessa  ação da Justiça – mesmo que com alguns excessos –  um  impor- tante momento de fortalecimento da nossa democracia,  posto  que, no âmbito da política, novos padrões de comportamento  se  impo- rão por força de lei – com mais transparência e ética.

Alguns, aturdidos, veem nos extremos do espectro ideológico a solução para o país sair da crise. De um lado, os eleitores de Lula, em sua grande maioria os beneficiados pelas políticas sociais que mudaram suas vidas, mesmo que seu partido, comprovadamente, tenha se imiscuído, assim como os outros, nas práticas de corrup- ção; do outro, os que veem em Bolsonaro, com seu discurso de direita radical, uma solução para “tudo que está aí”– um perigoso e simplista desejo de resolver na base da força, onde a intolerância e a violência são seus principais combustíveis ideológicos.

No centro do espectro ideológico paira sobre nós  um  enigmático vazio.

O que apresentarei a seguir, embora o título possa parecer pretensioso, são breves reflexões sobre democracia, fruto de minhas observações pessoais, as quais compartilho com você, leitor, com a intenção de ajudá-lo a entender, e talvez a posicionar-se como cidadão diante do que estamos enfrentando.

1 - A democracia se impôs, no século 20, como o principal valor universal de modelo de governo em uma Embora prática de governo criada embrionariamente pelos gregos, no século V a.C, ela toma corpo de um sistema estruturalmente consolidado  –  ou  seja, uma consolidação dinâmica,  capaz  de  se  autorregular  para  dar conta das idiossincrasias do homem em sociedade e de seu indispensável exercício de poder, bem mais recentemente

2 - As chamadas Democracias Ocidentais, incluindo Estados Unidos, Japão, Austrália e Europa, são exemplos de experiências consolidadas, arduamente construídas ao longo de várias guer- ras, internas e externas, sendo as mais significativas a Primeira Guerra Mundial, de 1914-1918, com 10 milhões de mortos e 20 milhões de feridos, e a Segunda Guerra Mundial, de 1939-1945, com mais de 50 milhões de mortos.

3 - Democracia não é algo que se alcança e para, como uma visão idealizada de paraíso. Pelo contrário, é uma prática de permanente aperfeiçoamento, pois o desafio, para qualquer socie- dade, é fazer migrar suas práticas políticas para o patamar mais elevado possível de tolerância à diversidade, transparência no uso dos recursos públicos e participação do cidadão nos destinos da nação. Muitas são as forças inerciais que limitarão a nação para atingir esta meta. Aí estão envolvidos os interesses daqueles que detêm e controlam grande parte do poder político e a produção e distribuição da riqueza, a história particular de como se deu a formação econômica e social de um país, seus valores éticos e morais, sua cultura e seu grau de intolerância com relação à diversidade humana e de classe.

4 - Democracia é assim o mais alto grau de civilidade conquistado pela humanidade, após vários milênios de História. Entenda- se aqui o conceito de civilização como tudo aquilo que nos  distingue dos animais, e com que, ao longo da nossa história, vimos tentando dominar nossas pulsões primitivas de agressividade e destruição do outro. As artes e as leis são expressões dessa civilização; a guerra talvez seja o principal exemplo da anticivilização, posto que, destrutivamente irracional, movida pela ambição de conquista, dominação ou destruição do outro – nos aproxima dos animais e seus instintos.

5 - Como cada sujeito é um universo único e distinto, formamos, quando em sociedade,  uma  complexa  e  quase  infinita  miríade de combinações de pensamentos, desejos e ações, que inevitavelmente irão conflitar com o outro – entenda-se outro aqui como todo aquele ser humano que não sou eu. É com o exercício  da tolerância à diversidade, sob o domínio da lei, que se nutre e se fortalece uma sociedade democrática. É desafio de várias gerações construir padrões razoáveis de tolerância à diversidade ideológica, religiosa, racial e de gênero.

6 - São as leis que regulam nossas vidas em sociedade, fundam e garantem a manutenção do Estado, que delegamos, por meio do voto, a uma elite política que irá nos representar na gestão do Estado e no atendimento das demandas sociais fundamentais, bem como regular a forma como a economia produzirá riquezas e as distribuirá.

7 - Sem uma ação política permanente e articulada da sociedade sobre a elite política corre-se o risco de termos leis que preservem privilégios para poucos, em detrimento da grande maioria da população – mantendo inaceitáveis níveis de exclusão Eis aí uma outra vertente  fundamental  para  uma  sociedade democrática: o exercício da cidadania. No caso do Brasil, estamos acostumados a  eleger  nossos  representantes  algumas  vezes com paixão, outras  por  pura  e  entediante  obrigação,  mas  são raros os eleitores que, nesse  ato,  são  movidos  por  um sentido de responsabilidade cidadã – implicando aí uma forte vigilância sobre seu representante, que vai muito além do voto.

8 - Diante de tudo isso, quando olhamos para o caso do Brasil, assim como para os países da América Latina, percebe-se a enorme distância dos valores e práticas democráticas, se comparados às consolidadas democracias ocidentais. Estamos aprisionados na armadilha histórica de uma sociedade radicalmente dividida pela pobreza, e carente de um recurso fundamental para romper os grilhões que aprisionam milhões de brasileiros. Eis aí o terceiro vetor fundamental para uma nação democrática: a educação.

9 - Como todo sistema humano, a democracia tem seu calcanhar de Aquiles ou falha estrutural. As conquistas já consolida- das podem sofrer regressões ou, o que é pior, a democracia pode ser corroída por dentro, dependendo de como os eleitores definem suas lideranças, e sobre elas depositam excessiva confiança. São vários exemplos, como a Alemanha nazista e, mais recentemente, a Venezuela com seu bolivarianismo A consolidação estrutural da democracia não é algo linear e irreversível, ao longo do tempo. Ao contrário, é um processo árduo e cheio de incertezas e desafios, que se conquista e se passa de geração para geração, como um valioso legado civilizatório. É prática política em estado vivo, que pode transformar a sociedade e nossas vidas. Todos somos sujeitos e objetos dessa transformação. Todos somos desa- fiados a agir na construção do nosso destino.

10 - A personalidade democrática, para não sofisticar muito usando o conceito de sujeito da filosofia ou da psicanálise, é necessariamente aberta a conviver com as incertezas, quer sejam ideológicas ou Uma abertura ao outro em nome da tolerância. Aí reside um grande impasse, uma vez que o sujeito diante das suas fragilidades se apega, como forma de dar suporte à sua existência, às certezas da fé e das ideologias. É a certeza cega das minhas convicções que me impede de ver meus defeitos ou aceitar a necessária crítica do outro que pensa e vê o mundo diferente de mim. Considerando que a instância celular de uma nação é o cidadão e sua prática política, podemos dimensionar o enorme desafio que o Brasil tem pela frente.

11 - Uma última reflexão é sobre o questionamento que alguns cientistas políticos vêm fazendo, se as nossas instituições estão funcionando normalmente, ou seja, suspeitando que a nossa democracia é ainda uma Ora, essa é uma pergunta inadequada. Pois, como processo e não como um fim em si mesmo, um Estado democrático é algo em permanente evolução dinâmica, podendo até mesmo involuir, dependendo das ameaças internas e externas, bastando-nos compreender que, sim, vivemos um ambiente democrático, desde o fim da transição do regime autoritário de 1964, porém um processo democrático possível, dadas as nossas variáveis históricas e de cultura política. O mais estranho, e aí me volto para o cidadão aturdido com o desnudamento de uma prática atávica de corrupção da nossa elite política e econômica com a Operação Lava-Jato e outras, é que, ao invés de ver nisso um passo importante de depuração do processo político rumo a uma nação democrática moderna e eficaz, busque-se, numa relação infantilizada entre eleitor e representantes políticos, líderes de pés-de-barro, com pouca consistência programá- tica, mas com histéricos discursos manipuladores.

Para Vinicius Rego, meu neto de 18 anos


PD #49 - Raimundo Santos: Desenvolvimento e democracia no discurso de FHC

Nesta hora, às vésperas da eleição de 2018,  é útil lembrar  não só o pleito de 1989 pela grande dispersão das correntes políticas que levou à vitória de um presidente messiânico, mas também as eleições de 1994 que consolidaram um momento democrático-construtivo que vinha se desenvolvendo a partir do impeachment de Collor. Este pleito, como dizia o presidente eleito, Fernando Henrique Cardoso, no seu discurso de despedida do Senado, proferido em 14 de dezembro de 1994, abria o caminho para se evitar o pior dos cenários que era o marasmo de uma democracia representativa formal, esvaziada de conteúdo econômico e social pelas pragas do elitismo, do fisiologismo e do corporativismo.

Então, ele seguia dizendo que o Brasil vivia não apenas um somatório de crises conjunturais, mas o fim de um ciclo de desenvolvimento, pois a manutenção dos padrões de protecionismo e intervencionismo sufocava a concorrência necessária à eficiência econômica e distanciava cada vez mais o Brasil do fluxo das inovações tecnológicas e gerenciais que revolucionava a economia mundial. Fernando Henrique divisava na circunstância da globalização da época a oportunidade para um novo ciclo de desenvolvi- mento, desde que aqui se levassem adiante reformas reestruturantes da economia, num amplo contexto de desestatização da vida nacional, mobilizando a política e a sociedade civil pluralista que se dinamizara com a conquista das liberdades democráticas.

As diretrizes de governo, apresentadas naquele discurso, se opunham  às   experiências  autoritárias  do   passado,  particularmente ao modelo de modernização econômica e de organização da sociedade que se consolidara na Era Vargas, em moldes de uma revolução nacional-popular por meio da expansão das funções administrativas para estruturar de cima para baixo várias esferas da vida nacional, como ocorreu na economia, nos sindicatos, nos meios de comunicação e na cultura.

Em primeiro lugar, Fernando Henrique se propunha aprofundar o processo de estabilização macroeconômica iniciado no governo pluripartidário de Itamar Franco, do qual fora ministro da Fazenda, não como um fim em si mesmo, mas como condição para o crescimento sustentado da economia e para o resgate da dívida social. Defendia medidas que rompiam com o desenvolvimentismo à moda antiga baseado na pesada intervenção estatal, seja através da despesa, seja através dos regulamentos cartoriais.

O objetivo do seu governo era aumentar as taxas de investi- mento, cujos pilares justamente radicavam na confiança na estabilidade econômica do país e na construção de um marco institucional que permitisse à iniciativa privada exercer “na plenitude o seu talento criador”. Instaurar “uma verdadeira democracia econômica e social”, como ele chamava, requeria que a ação do Estado se voltasse para as maiorias menos organizadas ou inorganizáveis: os consumidores, os contribuintes, os pobres e os excluídos. Para isso, continuava o presidente eleito o seu discurso, seria preciso resgatar o Estado da pilhagem dos “interesses estratégicos”, das “conquistas sociais” exclusivistas, do corporativismo, em suma, dos privilégios que distorciam a distribuição de renda.

O segundo ponto do programa de governo de Fernando Henrique se voltava para a abertura da economia ao mercado mundial daqueles anos 1990. Na contramão da grande maioria das correntes de esquerda, ele via a integração do país à globa- lização como um processo progressista e incontornável, sendo necessário superar o modelo da  industrialização  substitutiva das importações oriundo da Era Vargas. Fernando Henrique conferia à política de “Exportar para importar” um sentido estra- tégico, argumentando que se devia importar equipamentos e insumos para acelerar a modernização e a expansão da indús- tria, da agricultura e dos serviços domésticos. E importar bens de consumo, mantendo uma proteção tarifária moderada para que os preços internos se aproximassem dos preços internacio- nais, e os ganhos de produtividade já ocorridos e por ocorrer se transferissem para o conjunto da sociedade.

Esse era o caminho que lhe apontava a experiência das economias capitalistas maduras para combinar crescimento e distribuição de renda. Ele também propunha ações para impulsionar o desenvolvimento tecnológico das indústrias (“e para seu financia- mento a juros aproximados das taxas internacionais”). Manter e aumentar a competitividade das exportações não significava a volta do protecionismo. Esperava que as medidas  permitissem, por um lado, novos ganhos de produtividade às empresas e, por outro lado, aumentassem a eficiência sistêmica da economia, reduzindo o chamado “custo Brasil”. Fernando Henrique se referia a variadas providências que iam desde a eliminação de impostos sobre as exportações até a melhoria das estradas e dos portos cujo mau uso encarecia a produção nacional.

A terceira diretriz do discurso de 1994 redefinia a questão da relação entre o Estado e o mercado buscando que o eixo do novo ciclo econômico passasse da atividade produtora do setor estatal para o setor privado. O Estado tinha presença-chave no desenvolvimento, desempenhando função regulatória, não no sentido de espalhar regras e favores a “torto e a direito”, como ele dizia, mas de criar um marco institucional que assegurasse “plena eficácia ao sistema de preços relativos”, incentivando os investimentos privados na atividade produtiva. O princípio geral da regulação visava à eficiência do mercado, oferecendo à indústria brasileira condições semelhantes às dos concorrentes externos. Fernando Henrique tocava num outro tema arraigado na cultura empresarial brasi- leira, inclusive na própria atividade política, quando mencionava a necessidade de se desmontar as antigas regulamentações que davam proteção cartorial a determinados setores. Ele sublinhava que o objetivo da ação reguladora se centrava na reafirmação da vocação industrial da economia brasileira e de sua base tecnológica, sendo imprescindível não perder de vista a meta de conferir- lhe dinamismo e competitividade no tempo da globalização.

A quarta diretriz das reformas propostas objetivava dar sustentabilidade ao processo de desenvolvimento, constituindo uma moderna infraestrutura econômica e social por meio de novas formas de parceria entre o Estado, a empresa e a comunidade.   O presidente eleito fazia referência a medidas destinadas aos setores de energia, transportes e telecomunicações; e ao chamado (“impropriamente”) “capital humano”. Em relação à primeira infraestrutura, dizia ser fundamental ampliar o conceito de privatização com vistas a aumentar a eficiência geral da economia desde que se fizesse acompanhar do fortalecimento da “autoridade pública” (“agências controladoras”). Na sua visão, a parceria com a empresa privada na infraestrutura econômica abria espaço para que o Estado investisse mais em saúde, em educação, em cultura, em segurança; investisse mais no essencial, no seu povo (“o maior ativo estratégico de um país”). Essa tarefa, frisava ele, vinha junto com o “imperativo ético” de incorporar ao processo de desenvolvi- mento os milhões de excluídos pela miséria, observando ser necessário superar a “zona cinzenta do clientelismo e da corrupção”.

Para o êxito das políticas sociais, Fernando Henrique atribuía grande protagonismo à comunidade, realçando o papel das ONGs (que preferia chamar de “organizações neogovernamentais”), entendendo-as como formas inovadoras de articulação da sociedade civil com o Estado; por isso igualmente “sujeitas à prestação de contas e ao escrutínio público”. Nesse campo da infraestrutura social, a descentralização e a parceria com a comunidade passavam a ser as linhas mestras das ações do seu futuro governo, cumprindo papel chave para universalizar o acesso aos serviços de saúde e “a um ensino fundamental de boa qualidade”.

Às vésperas de assumir a Presidência da República, ele se propunha discutir com o mundo político as medidas legislativas para dar curso às reformas. Mencionava uma agenda constitucional, que já estava posta na cena pública, para remover da Carta de 1988 os “nós que atam o Estado brasileiro à herança do velho modelo, e algumas impropriedades que, assim recordava o presidente eleito, “nós, constituintes, acrescentamos para nossa conta”. Ele aludia às revisões constitucionais sugeridas por Itamar Franco e a outras que tramitavam no Congresso (o “solucionador de impas- ses”), citando as reformas fiscal, tributária, previdenciária, orça- mentária; e também as medidas sobre o capital estrangeiro, monopólios estatais etc. Além dessas reformas no plano econômico, Fernando Henrique se referia a diversos temas constitucionais que precisavam ser redimensionados, dentre os quais os direitos e obrigações dos servidores públicos, as relações de trabalho, a organização sindical e a organização do Poder Judiciário. Incluía a reforma política, especialmente o sistema eleitoral, defendendo o sistema distrital misto alemão. Observava ainda que o detalhismo da Constituição de 1988 provocara o efeito indesejado de despolitizar e tribunalizar decisões, dizendo que matérias mais próprias de lei ordinária ou de programa de governo, “uma vez congeladas na Constituição, ficam excluídas do processo político normal”.

Lembrar o discurso de Fernando Henrique, proferido em 1994, avulta o contraste entre o caráter construtivo dos seus governos e a Era Lula. Durante os seus dois mandatos, as diretrizes então anunciadas ensejaram transformações em diversos setores da economia, nas políticas públicas e na própria estrutura do Estado. A partir de 2003, muitas  dessas  mudanças foram mantidas, mas perderam nas ações dos governos de  Lula  e Dilma o nexo que ligava o Estado, a economia e a sociedade como esferas diferenciadas da formulação originária de 1994, cujo foco era o desenvolvimento econômico sustentável na circunstância da globalização visando assegurar uma sociedade aberta e de cultura política liberal-democrática.

Ao contrário, na visão que hegemonizará as atuações dos governos petistas vai predominar a questão da posse do aparelho do  governo  como  base  para  um  regime  social  de  outro  tipo.  A participação do PT, inclusive dos movimentos sociais, nas estruturas estatais passará a ser mobilizada em termos de uma ocupação de mais e mais áreas do Estado. Para isso concorria o fato de seus principais protagonistas não terem compromisso com a democracia política, pois sempre desconheceram a questão demo- crática posta na esquerda brasileira, há muitos anos atrás.

Chama atenção o traço – próprio do populismo – de os governos de Lula e Dilma não darem valor fundamental às transformações da esfera propriamente produtiva que era o cerne do programa de Fernando Henrique de 1994. O desinteresse por este tipo de reestruturação de sentido construtivo é o que,  além  das  vicissitudes que advêm da crise da economia internacional, sobretudo no governo de Dilma, leva, afinal, à desorganização da economia e de outras áreas da vida nacional ao fim da Era Lula.

Também são expressivos daquela visão de poder o apelo do “nós e eles” com que Lula e o PT, ao longo do tempo, procuraram polarizar a vida social e política do país, e o fato de o segundo governo de Dilma, isolado politicamente em 2016, recorrer à mobilização das suas próprias forças para dentro de si como forma de luta contra os que considerava seus inimigos externos. As avaliações oficiais do PT, feitas logo após o impeachment da presidente Dilma, lamentando não ter radicalizado aquela estratégia de poder, revelaram que o esgotamento da Era Lula foi o fracasso de uma experiência assemelhável a uma revolução nacional-popular.

* Raimundo Santos é autor do ensaio introdutório ao livro O marxismo político de Armênio Guedes, FAP/Contraponto, Brasília/Rio de Janeiro, 2012