Marcos Sorrilha Pinheiro: Liberalismo identitário e as ciladas da diferença

Uma das grandes bandeiras de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais foi o combate daquilo que se convencionou chamar de "políticas identitárias", com enfoque na questão de gênero, tanto com ataques aos grupos feministas e Lgbt+, quanto à educação sexual nas escolas.
Foto: José Cruz/Agência Brasil
Foto: José Cruz/Agência Brasil

Uma das grandes bandeiras de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais foi o combate daquilo que se convencionou chamar de “políticas identitárias”, com enfoque na questão de gênero, tanto com ataques aos grupos feministas e Lgbt+, quanto à educação sexual nas escolas.

É inegável que na última década, não apenas no Brasil, os movimentos identitários ganharam espaço na luta ao combate à desigualdade e ao preconceito de classe, etnia ou gênero. Em geral são grupos progressistas ligados aos direitos de minorias e que defendem a diversidade como um valor a ser respeitado. Em suma: advogam pelo direito a ser diferente dos “padrões estipulados pela sociedade” sem que se sofra sanções legais ou sociais por isso.

Durante esse tempo, algumas pautas extrapolaram as barreiras dos grupos identificados com a causa e ganharam amplo destaque na mídia e na opinião pública, com proeminência àquelas defendidas pelo Black Live Matters e ao #MeToo, ambos em território estadunidense.

De fato, várias conquistas se deram por conta da pressão exercida por esse ativismo, desencadeando um amplo debate em torno da relação entre o racismo e a violência policial ou sobre o abuso sexual e machismo dentro do mundo do entretenimento naquele país. Como consequência de toda essa manifestação, campanhas publicitárias, programas televisivos, filmes, séries, desenvolvimento de produtos, entre outros, passaram a ter uma preocupação em promover maior inclusão desses segmentos à sua estrutura.

Para além do mundo privado, este assunto também refletiu nas políticas governamentais com a elaboração de ações inclusivas de minorias ao corpo do Estado e na ressignificação do próprio imaginário público sobre o seu passado e sua história. Aqui no Brasil, a inclusão do feriado da Consciência Negra no calendário nacional (ainda que de acordo com a decisão dos municípios) e a ampliação dos programas de cotas raciais apontam para vitórias nesse caminho.

Evidentemente que tais lutas não começaram na última década e remontam a uma origem muito mais antiga, para além de meados do século XIX, mas que ganhou uma importância midiática mais contundente a partir da década de 1960, com especial destaque para a campanha dos Direitos Civis no EUA.

Porém, assim como naquela época, o que se viu foi uma forte reação a esses movimentos, primeiramente junto aos grupos conservadores da sociedade, mas que, a partir de 2016, começou a ecoar em setores mais amplos da comunidade civil ao ponto de se converter em plataforma de campanha do candidato eleito à presidência no Brasil.

De maneira apressada, pode-se buscar entender tal fenômeno por meio do crescimento de uma onda conservadora (termo do qual discordo) que se converteu em um verdadeiro tsunami eleitoral em vários países ao redor do mundo. No entanto, parece que a resposta não encontra morada apenas nessa direção.

Para Mark Lilla, historiador e cientista político norte-americano, o grande problema reside na incapacidade dos movimentos identitários em produzir uma pauta que seja articulável com a sociedade de maneira geral, mobilizando-a. Segundo ele, as reivindicações não apenas ficaram restritas aos grupos que as apresentam, mas apenas aqueles que pertencem aos mesmos podem se manifestar sobre elas. Por conta disso, defendem apenas os interesses de seus nichos, perdendo a dimensão do bem público, tornando-se incapazes de agir politicamente. Conforme afirmou: “Hoje, os jovens só se interessam pelo que os afeta pessoalmente e não enxergam a necessidade de se engajar numa luta comum com outras pessoas. São despolitizados no sentido de não saber como ganhar o poder político”.

A isto, Lilla deu o nome de Liberalismo Identitário(1). Tratar-se-ia, portanto, de uma espécie de narcisismo coletivo que não se contenta em buscar a construção de consenso junto à sociedade, mas, ao contrário, tentaria molda-la segundo a sua imagem e semelhança. “Isso jogou as pessoas umas contra as outras”, como disse o historiador e, na dimensão do político, acabou por dissolver os laços de solidariedade em prol de um projeto comum de sociedade.

Assim, por mais incrível que possa parecer, em um plano global, a bandeira da diversidade que tanto espaço deu à esquerda na última década, teria inviabilizado a criação de uma pauta que possuísse capilaridade eleitoral suficiente para mobilizar todos os setores da comunidade política. Além disso, teria imposto barreiras que impedem que alguns assuntos sérios, como a criminalidade, sejam tratados de maneira pragmática sem que esbarre nas aspirações idealistas de cada grupo.

Para Mark Lilla, isso ficaria mais evidente quando se compara o movimento das minorias da década de 1960 com o atual. Conforme aponta: “A primeira dizia ‘somos todos iguais e queremos ser tratados com igualdade’. Já essa segunda política identitária se baseia na afirmação da diferença e na exigência de respeito à singularidade. Ninguém pode falar em nome de ninguém”.

Este diagnóstico proferido pelo professor da Universidade de Columbia é bastante interessante, mas está longe de ser novo. De certa forma, ele corrobora algo que já havia sido dito pelo sociólogo brasileiro Antonio Flávio Pierucci em um artigo intitulado Ciladas da Diferença, em 1990. Um livro homônimo surgiria nove anos depois, dando ainda maiores argumentos à sua tese central, qual seja: a defesa da diferença é um valor inerente à direita.

Segundo Pierucci, a “nova esquerda”, como ele chamava os “movimentos de minorias”, cometia um erro gigantesco ao abandonar a igualdade como seu leitmotiv e abraçar a diferença enquanto um valor. É preciso esclarecer que o saudoso professor da USP não desconsiderava a existência da diversidade e a importância de seu debate, apenas entendia que no discurso político cotidiano (aquele feito no chão de fábrica, no ponto de ônibus ou no almoço dominical) ela apenas reforçava a ideia de que as pessoas eram, de fato, diferentes.

Neste ponto, limitava a capacidade de persuasão da esquerda, pois, tais argumentos poderiam ser facilmente capturados pelo seu adversário político. O discurso da diferença jamais poderia ser levado até o fim, afinal, seu destino era a comprovação de que a busca pela igualdade não passava de uma ficção. Assim, a mensagem final que restaria era a de que, numa sociedade marcada pela desigualdade, nada mais “natural” do que oferecer tratamentos diferentes para pessoas diferentes. Por diferentes, leia-se: mulheres, homossexuais, negros, indígenas, entre outros.

Do ponto de vista de Pierucci, portanto, poderíamos dizer que isto que vemos acontecer agora não é exatamente uma reação conservadora aos discursos identitários, mas o disparo de uma armadilha engatilhada ainda na década de 1990. Ao se apoderar do discurso de seu adversário (a defesa da diferença) a esquerda entrou em um campo minado cujo o resultado foi a implosão das bases de sua essência. Assim, ao lutar com as armas do outro, o simples uso das mesmas operou contra si e jogou em favor do adversário em um “efeito de retorsão”. Conforme vaticinou: “nas relações entre etnias, raças gêneros, nacionalidades, tradições culturais etc. a via da afirmação da diferença, comporta agora, mais do que nunca, o risco de o feitiço virar contra o feiticeiro”.

Ao recorrer à defesa da diferença como um valor, a esquerda tornaria seu discurso confuso e muito pouco palatável para setores mais amplos da sociedade. Enquanto isso, o conservadorismo apostaria em sua fórmula histórica de afirmar que as coisas são realmente aquilo que elas aparentam ser. Sabemos que isso não é bem verdade e que camadas de significados estão distribuídas de maneira bastante complexas entre a realidade e nossa capacidade de apreendê-la. Porém, será que é possível explicar isso sem se cair em contradição? Não seria melhor e mais eficiente defender que as pessoas merecem ser respeitadas em suas particularidades justamente porque são iguais e tem os mesmos direitos que os demais?

A defesa de valores elementares podem resultar em ganhos políticos mais eficientes. Uma demonstração disso pode ser visto no crescimento de outra força política que ganhou espaço nos últimos anos e roubou simpatizantes da esquerda, os liberais. Neste caso, os movimentos libertários apostam em uma fórmula histórica bastante eficiente na defesa da diversidade: a liberdade.

(1) Aqui o termo liberalismo é empregado em seu significado anglo saxão. Uma tradução mais precisa para o Brasil seria Progressismo Identitário.

 

 

*Marcos Sorrilha Pinheiro é autor de Lino Galindo e os Herdeiros do Trono do Sol. Professor de História — Unesp/Franca. Apreciador de um bom lúpulo e fanático pelo ludopédio mundial.

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