Luiz Paulo Vellozo Lucas: Para pensar uma Política Industrial contemporânea

A maioria dos economistas liberais ilustrados que tornaram-se hegemônicos no Brasil, principalmente depois do sucesso do Plano Real, considera que não deve haver uma politica industrial.  A ideia de uma política de governo voltada para produzir crescimento econômico orientando e incentivando  setores e produtos que devem ser produzidos internamente no país é percebida como sendo equivocada.
Foto: Agência Brasil
Foto: Agência Brasil

A maioria dos economistas liberais ilustrados(1) que tornaram-se hegemônicos no Brasil, principalmente depois do sucesso do Plano Real, considera que não deve haver uma politica industrial.  A ideia de uma política de governo voltada para produzir crescimento econômico orientando e incentivando  setores e produtos que devem ser produzidos internamente no país é percebida como sendo equivocada. Apenas políticas econômicas transversais, que atuem sobre toda a estrutura produtiva são recomendadas. Segundo essa visão, as vantagens competitivas do ambiente econômico, a competição internacional e a competência empresarial  determinam o resultado final em relação aos produtos e serviços que o país consegue produzir competitivamente. Pretender alterar este resultado por ação do estado seria voluntarismo governamental definido pela expressão “pick the winner”, traduzida livremente como sendo a estratégia dos “campeões nacionais” usada para desqualificar liminarmente qualquer tipo de politica industrial.

A origem desta controvérsia remonta ao final da segunda guerra mundial com   a polêmica entre Roberto Simonsen e Eugenio Gudin(2) . A vitória do projeto nacional desenvolvimentista consagrou a política industrial de substituição de importações que orientou a  economia brasileira por mais de seis décadas. Foi ideia força principal em particular no segundo governo Vargas e nos governos Kubitschek e Geisel. O nacional desenvolvimentismo e a política de substituição de importações foi uma verdadeira estratégia nacional durante todo o pós guerra(3).

A vitória do nacional desenvolvimentismo aconteceu em grande parte em função da restrição cambial oriunda da baixa capacidade de importar da economia primário exportadora. O café só deixou de ser o principal produto de exportação do Brasil em 1984 e assim a balança comercial, dependente da importação de petróleo e bens industrializados, era estruturalmente deficitária da mesma maneira que a balança de serviços. Na medida em que o investimento direto estrangeiro era  virtualmente inexistente, a conta de capital era incapaz de equilibrar os déficits acumulados nas balanças comercial e de serviços. Assim a politica industrial substitutiva de importações era útil na prevenção e no enfrentamento de crises cambiais e para o equilíbrio do balanço de pagamentos. Perseguir metas de geração de superávits comerciais era um objetivo macroeconômico, particularmente na eminencia de crises de balanço de pagamentos reforçando o argumento dos beneficiários de proteção e subsídios, ajudando-os a serem vistos como patriotas defensores do interesse nacional.

Além disso ,  no receituário macroeconômico de Gudin o combate a inflação era peça central. Sabe-se hoje que a contração monetária e creditícia por ele defendida e executada  quando no comando da área econômica era derivada da teoria quantitativa da moeda que foi abandonada em todo o mundo e sua aplicação  em economias como a brasileira tornava-se  mais veneno do que remédio.(4) O efeito recessivo e contracionista da politica antiinflacionária reforçava o argumento nacional desenvolvimentista e ajudava a consolidar a opção pela politica industrial de substituição de importações.

Na esteira do golpe de 1964 e reagindo ao quadro de desordem macroeconômica herdado do governo João Goulart, o primeiro general presidente Castelo Branco adotou o PAEG(5)  sob a coordenação de Roberto Campos e Otavio G. de Bulhões, discípulos de Gudin. O plano concentrou-se em reformas institucionais que desenharam o arcabouço regulatório da economia brasileira moderna e um novo sistema financeiro. A abertura da economia , as privatizações e o Plano Real, nos governos Collor, Itamar Franco e FHC(6) avançaram na direção de politicas transversais e desmontaram os principais instrumentos de intervenção governamental criados para induzir a substituição de importações. A estratégia da Integração Competitiva lançada pelo BNDES em 1986(7) e a PICE(8) lançada no governo Collor em 1990 tiveram alcance limitado com avanços pontuais importantes como o inicio das privatizações, o fim da reserva de mercado na informática e a abertura comercial mas não lograram seu intento de fazer uma “nova politica industrial” capaz de ser articuladora de um ativismo governamental sem o voluntarismo e o intervencionismo extensivo das épocas áureas da  substituição de importações.

Tratava-se agora de perseguir um novo objetivo: o crescimento econômico pela conquista de competitividade no mercado global entendida como sendo a capacidade de produzir produtos e serviços com padrões internacionais de preço e qualidade. A criação do Ministério do Desenvolvimento no segundo governo FHC , tendo Luiz Carlos Mendonça de Barros como ministro foi outra tentativa de organizar um ativismo governamental  moderno, que fosse desenvolvimentista mas sem ter a substituição de importações como estratégia nem o voluntarismo estatal como método. Sua atuação foi periférica e a saída do ministro foi vista como um funeral da politica industrial, sempre tratada com muita desconfiança pela equipe econômica completamente dedicada `a estabilização da moeda que claramente ainda não estava consolidada.

O Programa Nacional de Desestatização PND foi a iniciativa mais abrangente em termos de decisões de governo com impacto estrutural na economia. Iniciado no governo Collor teve continuidade com Itamar Franco e FHC, inclusive com a manutenção de seu coordenador, o presidente do BNDES Eduardo Modiano. Foram privatizadas 256 empresas entre 1990 e 2002. O PND evitou fazer escolhas e formular estratégias setoriais para orientar as privatizações preferindo contratar um estudo por licitação pública. Este modelo era conhecido como a privatização da privatização, uma recusa explicita em se fazer algum tipo de política industrial.

Quando o setor petróleo entrou na pauta o caminho escolhido foi outro. A quebra do  monopólio da Petrobras necessitava de emenda constitucional e para aprova-la assim como uma lei que regulamentasse o modelo concorrencial aberto seria preciso um amplo debate e um processo de convencimento publico. A Lei 9478/97  relatada pelo então deputado Alberto Goldman foi uma reforma estrutural completa. Uma verdadeira estratégia de politica industrial. Seus resultados extraordinários em 10 anos culminaram na descoberta do pré sal em 2007 no inicio do segundo governo Lula despertando a cobiça populista do governo. Destruir o modelo concorrencial exitoso foi o marco zero da recaída nacional desenvolvimentista em sua marcha batida para o desastre.(9)

Michael E. Porter em seu livro “A vantagem competitiva das Nações” publicado em 1990 já continha os fundamentos do que deveria ser uma revisão estrutural da politica industrial brasileira em direção a objetivos de aumento da produtividade visando ganhos crescentes de competitividade. Novos e modernos instrumentos deveriam entrar no lugar do intervencionismo grosseiro que marcou o período anterior, compatíveis com uma economia de mercado integrada a economia mundial. Como sabemos, a luta contra a hiperinflação era mais urgente e foi ela que dominou a agenda econômica do Brasil.

Nas décadas onde prevaleceu o nacional desenvolvimentismo produziu-se  um sem numero de normas e criaram-se instituições com pouco ou mesmo nenhum efeito na geração de capacidade produtiva. Quase sempre o principal efeito foi o aumento dos custos de transação e redução da competitividade.  O corporativismo e o voluntarismo estatal foram postos a serviço de incontáveis interesses econômicos localizados com baixa ou nenhuma funcionalidade, mesmo  considerando-se  os objetivos autárquicos da substituição de importações. Ineficiências estruturais de grandes dimensões na estrutura produtiva  e o aparato regulatório herdado da substituição de importações  colocaram a necessidade de reformas e reestruturação institucional  como uma espécie de agenda antecedente de uma nova politica industrial.

A recaída nacional desenvolvimentista a partir do segundo governo Lula não teve a motivação macroeconômica da crise de balanço de pagamentos e por isso foi muito diferente dos ciclos anteriores. Sua motivação foi essencialmente de natureza política vinculada ao objetivo de perenizar o projeto de poder lulo-petista. O oportunismo populista ressuscitou  o modelo “pai dos pobres e mãe dos ricos” na forma de um desconjuntado portfolio de ações supostamente promotoras de crescimento econômico iniciado com o PAC em 2007. Seguiu-se a hipertrofia do BNDES com recursos do Tesouro Nacional, a mudança do marco regulatório do petróleo depois da descoberta do pré sal em 2007, a MP 259 do setor elétrico e a chamada nova matriz econômica. O resultado é trágico e feio como uma colisão frontal entre dois trens de passageiros. O  desastre econômico, social e político do projeto Lulo-petista deu perda total, provocou o impeachment de Dilma Roussef e nos legou a maior recessão da história, a maior destruição de valor já registrada, crise fiscal e desequilíbrio macroeconômico, além de desconfiança generalizada e desmoralização progressiva das instituições.

(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Reestruturação competitiva e reformas

Uma politica industrial para o século XXI possui necessariamente duas dimensões sendo a primeira voltada para uma agenda de reformas institucionais, transversais na estrutura produtiva, com destaque absoluto para a reforma tributária. Inclui também  a revisão de marcos regulatórios obsoletos e disfuncionais muitas vezes chamada de agenda de reformas microeconômicas. Novos arranjos regulatórios que assegurem segurança jurídica para empreendedores e investidores privados e também para os governos subnacionais apequenados pelo federalismo de subserviência que amedronta e inibe o poder local impedindo a reinvenção modernizante do  estado brasileiro e o próprio desenvolvimento.

Naturalmente os desafios relacionados com a superação da crise fiscal estarão presentes e se articulam com a reestruturação competitiva já iniciada no governo Temer no setor de petróleo e energia. A reforma do sistema financeiro, dos bancos e fundos públicos e o fortalecimento do mercado de capitais também devem ser tratados tanto para dar sustentabilidade fiscal ao equilíbrio macroeconômico quanto para viabilizar a poupança interna e o investimento produtivo.  A financeirização(11) e a globalização são características do mundo dos negócios no século XXI e uma nova política industrial não pode ser mercantilista nem autárquica.

O Brasil não se beneficiou da expansão de cadeias globais de valor como os países em desenvolvimento que forçaram sua integração nos últimos anos e passaram a se apropriar de uma parcela maior da renda mundial. Como é sabido a recaída nacional desenvolvimentista promovida nos governos Lula-Dilma, fez o contrário, incentivou substituição de importações e o adensamento das cadeias de fornecedores. A reestruturação competitiva tem que desfazer-se do entulho institucional do passado ainda existente além  de remover os escombros do desastre petista  para ser possível empreender um novo ativismo em direção `as oportunidades e desafios do mundo contemporâneo.

A reestruturação competitiva é a primeira dimensão de uma nova politica industrial mesmo sabendo que a agenda de  reformas é usualmente vista apenas por sua importância na defesa do equilíbrio fiscal e da estabilidade macroeconômica. As politicas de curto prazo em situações de crise nem sempre se articulam de forma saudável com a estratégia de longo prazo orientada para empreender transformações  estruturais. No pós guerra elas coincidiram. Hoje também existe  convergência entre os objetivos conjunturais vinculados ao equilíbrio macroeconômico do país  e a agenda da reestruturação competitiva.

Integração Competitiva

A integração da estrutura produtiva brasileira `as cadeias internacionais de agregação de valor é o objetivo principal que preside a segunda dimensão da política industrial brasileira para o século XXI.(10) velocidade com que as inovações tecnológicas criam e destroem mercados e competências adquiridas fazem com que a certeza da mudança seja a única coisa realmente previsível. A materialização desta integração acontece quando novos contratos acontecem. Contratos de compra e venda de mercadorias e serviços nos mercados “spot”; contratos de compra e venda de m&s com garantia firme de suprimento em “suply chains” e contratos de capital em “joint ventures”, fusões, aquisições e participações minoritárias. A presença e o investimento de empresas brasileiras em outros mercados é fundamental para que as oportunidades surjam e se concretizem em novos contratos.

Fundos de investimento desempenham um papel fundamental nos negócios internacionais e seus gestores são hoje os principais atores do mercado internacional. Os executivos das empresas que são “global players”, CEO`s, CFO`s , conselheiros, consultores e gerentes trabalham em regimes rigorosos de metas de desempenho sempre com remuneração variável em função do resultado e possuem uma rotatividade muito maior do que nas empresas produtivas  do passado. Os fundos participam temporariamente de inúmeras operações (empresas) buscando sempre melhorar sua performance em termos de retorno dos investidores.

Os governos também mudaram sua maneira de intervir e incentivar o que interessa aos seus países. Fóruns multilaterais, diplomacia comercial e acordos bilaterais são decisivos e ocupam os agentes governamentais que precisam ser preparados para estas tarefas. A relação de parceria e cumplicidade entre o interesse do país e o mundo dos negócios não pode se degenerar em tenebrosas transações mafiosas nem ser transformada, relações de compadrio nem a politica industrial deve institucionalizar o capitalismo de laços. Bancos de investimento e de comercio exterior estatais também desempenham um papel relevante no processo de integração e na concretização de novos negócios.

O livro “Porque as nações fracassam” de Daron Acemoglu e James Robinson, já é um novo clássico. Sua receita para o sucesso é a adoção de  instituições econômicas e políticas includentes, que são capazes de reconhecer, incentivar e premiar comportamentos inovadores que agregam valor e também  coibir praticas predatórias “extrativistas” que capturam renda da sociedade  por mecanismos espúrios . Uma politica industrial que articule agentes públicos e privados para objetivos comuns de integração competitiva e desenvolvimento sem promiscuidade precisa funcionar e ser reconhecida como sendo  uma instituição includente, capaz de angariar o respeito e a confiança da sociedade e dos mercados.

A boa governança nos mercados privados, na gestão das empresas, nos negócios velozes e inovadores do século XXI significa antes de tudo o reconhecimento de que é a confiança(11) que assegura e garante a expectativa de valorização dos ativos. Mais do que nunca no mundo moderno a riqueza é lastreada fundamentalmente em confiança. Os governos e as politicas publicas, particularmente a politica industrial precisa ter governança transparente e “acountability”, procedimentos e normas aceitas por todos os atores públicos e privados, compromisso com padrões de conformidade para que possa inspirar confiança e exercer um ativismo governamental saudável , reconhecido  como “fair trade” no contexto das relações internacionais.

 

Notas 

  • André Lara Resende se refere `a “tecnocracia liberal ilustrada” e a Gudin como seu primeiro expoente para designar os economistas que estiveram, como ele, na linha de frente do Plano Real em Juros Moeda e Ortodoxia, Portfolio-Penguin 2017.
  • André Lara Resende: Linhas mestras Gudin e Simonson em Juros Moeda e Ortodoxia, Portfolio-Penguin 2017
  • Sergio Besserman Vianna e André Villela: O pós-Guerra (1945-1955) em Economia Brasileira Conteporânea. Organizado por Fabio Giambiagi, André Villela, Lavínia Barros de Castro e Jennifer Hermann. Campus Elsevier 2004.
  • André Lara Resende. Juros e conservadorismo intelectual. Artigo para Valor Econômico em janeiro de 2017.
  • Jennifer Hermann. Reformas, endividamento externo e o “Milagre” econômico. Em Economia Brasileira Conteporânea. Organizado por Fabio Giambiagi, André Villela, Lavínia Barros de Castro e Jennifer Hermann. Campus Elsevier 2004.
  • Edmar Bacha. Década de 1990. Em Economia Brasileira: Notas breves sobre as décadas de 1960 a 2020. Livro comemorativo dos 60 anos da Itaú Asset Management.
  • Júlio Olimpio Fusaro Mourão. Integração Competitiva e o Planejamento Estratégico do BNDES. Em Revista do BNDES dezembro de 1994.
  • Diretrizes Gerais de Politica Industrial e de Comercio Exterior. Portaria MEFP Nº 365, De 26 De Junho de 1990. DOU 27/06/1990.
  • Luiz Paulo Vellozo Lucas. A derrota de um modelo de sucesso. Em Petróleo: Reforma e contra reforma do setor petrolífero brasileiro. Organizado por Fábio Giambiagi e Luiz Paulo Vellozo Lucas. Campus Elsevier 2012.
  • Ricardo Tavares: Trazer a política industrial para o século XXI. Em FAP Fundação Astrogildo Pereira
  • Gustavo H.B.Franco. A construção da moeda fiduciária é a historia da confiança, base do sistema financeiro. Em A Moeda e a Lei. Uma história monetária brasileira 1933-2013. Zahar 2017. 

 

 

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