Imprensa oficial da China tenta minimizar novo surto após abandono da Covid zero

Censura a meios bloqueia divulgação de números reais de infecções e mortes, que subiram dramaticamente com fim de restrições severas
Pacientes com Covid-19 em macas na ala de emergência do Primeiro Hospital Afiliado da Universidade de Medicina de Chongqing, no centro da China | Foto: Noel Celis / AFP
Pacientes com Covid-19 em macas na ala de emergência do Primeiro Hospital Afiliado da Universidade de Medicina de Chongqing, no centro da China | Foto: Noel Celis / AFP

O Globo*

A imprensa estatal chinesa está multiplicando seus esforços e a censura está trabalhando mais para formular uma história nova e coerente, após a súbita virada na política de Pequim contra a Covid-19.

Durante anos, a máquina de propaganda chinesa saudou a estratégia de Covid zero como prova da superioridade da liderança autoritária do Partido Comunista e do presidente Xi Jinping. Mas agora ela teve que apresentar a decisão de suspender restrições estritas de viagens, quarentenas e bloqueios como uma vitória, em meio a uma onda enorme de infecções que chega a milhões por dia, segundo relatos que transparecem de fontes oficiais locais.

— A mídia estatal não formulou uma grande narrativa para legitimar totalmente a mudança repentina — disse Kecheng Fang, professor de Jornalismo da Universidade Chinesa de Hong Kong. — Isso os pegou de surpresa.

As “mensagens inconsistentes” indicam que o aparelho de propaganda pode carecer de diretrizes adequadas do partido sobre como apresentar a situação, disse ele à AFP.

Alguns meios de comunicação insinuaram que nem tudo está bem. A agência estatal Xinhua e a rede CCTV publicaram esta semana relatórios pedindo à população que use medicamentos “racionalmente” para tratar a infecção e destacaram os esforços do governo para garantir sua disponibilidade.

Mas a mídia do governo evitou relatar o lado negativo da mudança de política, procurando, em vez disso, amenizar os temores sobre a doença, apresentando a reviravolta como uma retirada lógica, controlada e triunfante das medidas.

“Olhando para os últimos três anos, travamos uma intensa batalha contra a pandemia e enfrentamos um teste árduo e histórico”, publicou o Diário do Povo em um editorial.

A estratégia de Covid zero “demonstrou a superioridade do sistema socialista chinês”, disse, acrescentando que “otimizar” a política agora ajudará a adaptar-se a novas variantes, “pondo a vida e a saúde do povo e das massas em primeiro lugar”.

Na sexta-feira, um jornal do partido citou o secretário municipal de Saúde de Qingdao estimando que a cidade está registrando meio milhão de novas infecções por dia em “um período de rápida transmissão e se aproxima do pico”. Neste sábado, a história foi editada para remover o número, de acordo com uma revisão da AFP do artigo.

O presidente Xi não comentou publicamente o colapso do que até recentemente era uma política emblemática. Um sentimento semelhante de incerteza circulou nas mídias sociais chinesas, onde os serviços de censura geralmente removem conteúdo politicamente sensível.

Vários posts na plataforma Weibo (a versão chinesa do Twitter) sobre mortes por Covid-19 parecem ter sido censurados na sexta-feira, de acordo com uma revisão de jornalistas da AFP. Várias fotos aparentemente tiradas em crematórios foram suprimidas, bem como uma postagem de uma conta que pertenceria à mãe de uma menina de 2 anos que morreu após contrair o vírus.

Postagens sobre escassez de medicamentos e manipulação de preços também foram removidas, de acordo com o monitor de censura GreatFire.org.

Usuários de mídia social postaram comentários indignados ou sarcásticos sobre o tabu em torno das mortes relacionadas à covid. Muitos aludiram à mídia estatal, que informou que Wu Guanying, criador dos mascotes dos Jogos Olímpicos de Pequim 2008, morreu de um “resfriado severo” aos 67 anos.

Uma pessoa comparou a frase a algo típico da Coreia do Norte, enquanto outra perguntou se “agora vai ser proibido dizer Covid?”. Outras mensagens críticas ainda foram postadas na sexta-feira, algumas das quais questionando o governo por sua aparente falta de estratégia.

“Eles realmente pensaram que poderiam erradicar o vírus com bloqueios?”, questionou um dos internautas.

Apenas uma morte oficialmente

O professor Fang observou que as autoridades chinesas “encontrarão uma maneira de apresentar tudo como uma vitória, talvez depois que as infecções se estabilizarem”.

— A forma particular de contabilizar as mortes por Covid está servindo de base para isso — acrescentou, referindo-se a uma nova definição oficial de óbitos pelo vírus, que exclui muitas mortes antes contabilizadas.

Dados oficiais da Comissão Nacional de Saúde, divulgados este sábado, indicam que na véspera não houve uma única morte por Covid-19 na China e apenas 4.103 novos contágios. Há um contraste, porém, entre a versão oficial pública do governo central em Pequim e algumas autoridades locais, que deixam transparecer uma situação mais próxima da realidade, como em Qingdao.

A cidade industrial de Dongguan, no Sul, anunciou na sexta-feira que, segundo os dados recebidos, até 300 mil novas infecções estão sendo registradas a cada dia. Além disso, o ritmo “é cada vez mais rápido”.

“Muitos recursos e profissionais da saúde estão enfrentando desafios muito duros e uma pressão gigantesca, algo que não tem precedentes”, destacou a secretaria de Saúde da cidade de 10,5 milhões de habitantes, em comunicado.

Segundo a ata de uma reunião interna da Comissão Nacional de Saúde realizada na quarta-feira, relatada pela Bloomberg, o órgão estima que 248 milhões de pessoas, ou quase 18% da população chinesa, provavelmente contraíram o vírus nos primeiros 20 dias de dezembro.

*Texto publicado originalmente no portal O Globo.

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