FAP Entrevista: Ivanir dos Santos

O racismo no Brasil é a base da estruturação das nossas relações políticas e sociais, avalia Ivanir do Santos.
Foto: Fotonotícia
Foto: Fotonotícia

O racismo no Brasil é a base da estruturação das nossas relações políticas e sociais, avalia Ivanir do Santos

Por Germano Martiniano

O Brasil é mundialmente conhecido como um país multicultural, miscigenado e que transparece ser um lugar onde as diferenças sociais são bem aceitas. Ainda que, o multiculturalismo seja um fato, em terras brasileiras o racismo, o machismo, a homofobia e outras formas de preconceito são bem presentes no convívio social. É o que afirma o Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ivanir dos Santos. “No Brasil o racismo é sutil e, muitas vezes, camuflado como ‘opinião pessoal’. Aqui o racismo é a base da estruturação das nossas relações políticas e sociais”, disse o historiador.

Ivanir que também é babalawô, guia espiritual do candomblé de Keto e militante político, salienta que o Brasil foi o último país que erradicou o trabalho escravo e que não foi capaz de criar políticas inclusivas para negros e negras recém-libertos. “O sistema de cotas, por exemplo, faz parte das políticas de reparação às minorias representativas da nossa sociedade e que tem como alicerce as políticas de ações afirmativas inclusivas fomentadas pelos movimentos negros brasileiros”, avalia.

Temas como a situação dos negros no país, eleições 2018 e questão da intolerância religiosa foram alguns dos assuntos tratados com Ivanir, o entrevistado da semana pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP). A entrevista faz parte da série publicada aos domingos pela FAP com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

FAP Entrevista – Como o senhor se sente depois que teve sua candidatura para o senado barrada?
Ivanir dos Santos – Particularmente me sinto muito tranquilo. Claro que obviamente tínhamos uma grande expectativa quanto a possibilidade da minha candidatura! Pois ela foi construída sobre um movimento orgânico popular de massa, por pessoas que verdadeiramente se envolveram e se sentiram representadas pelo projeto que estávamos desenhando a várias mãos. Prova disso, foi que recebi muitas manifestações de carinho, apoio e solidariedade depois que tornou público que a nossa candidatura não foi registrada. Isso mostra que o nosso projeto além de ser suprapartidário teve uma grande mobilização dos setores sociais. Por isso, o não registro da candidatura barra todos os anseios que tínhamos em prol da construção de um projeto que pudesse “dar vozes” às minorias marginalizadas em âmbito social e político. E essa não é a primeira candidatura negra que é descartada, pois nem todos os partidos têm o “interesse” em investir nas candidaturas negras. E por isso precisamos pensar e conversar sobre a possibilidade de candidaturas independentes sem a chancela partidária. Pois a própria idéia de partido político nasce na reforma eleitoral promovida na Inglaterra em 1832, e hoje nada melhor do que Gramsci para nos ajudar a compreender como esses organismos políticos funcionam sobre as questões macro e micro sociais.

Quais são seus objetivos a partir de agora para continuar atuando em suas causas?
Sim, claro! Até porque as minhas atuações frente as ‘causas’ que escolhi lutar são suprapartidárias. Estou a mais de 40 anos essa jornada. Sou ex-interno na FUNAEM, fui tirado dos braços da minha mãe aos seis anos de idade. Passei por todas as adversidades possíveis até chegar aqui hoje, recém-titulado como Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. As bandeiras que trago e as que fui levando e encontrando durante as minhas construções são pautas sociais, em grande medida pautas da “gente comum”, que nem sempre tem reverberações dentro dos nichos “das grandes políticas”. Continuaremos firmes no combate à intolerância religiosa, na luta antirracismo e em prol das diversidades, pluralidades e liberdades.

O Brasil é um país conhecido por seu multiculturalismo, pela miscigenação, entre outros. Mas, o Brasil é um país racista?
Sim, sem sombra de dúvidas. Mas, ao contrario de países como os Estados Unidos em que o racismo é uma forma de demarcação social segregacionista, política e religiosa, no Brasil o racismo é sutil e muitas vezes camuflado como “opinião pessoal”. Aqui o racismo é a base da estruturação das nossas relações políticas e sociais. Ora, o racismo é real, é latente e serviu de justificativa para o tráfico de milhares de homens e mulheres negros africanos na condição de escravos para as Américas e principalmente para o Brasil.

Como o senhor avalia as cotas para negros nas universidades, assim como outras medidas que tentam atenuar a desigualdade de oportunidades existentes?
Longe de ser um privilégio, precisamos refletir que a Lei de Cotas é fruto dos processos de resistências e lutas dos movimentos negros em busca de equidade e igualdade na sociedade brasileira. Ingressar em uma universidade pública gratuita, para muitos alunos negros, indígenas e/ou de redes públicas de ensino é um grande sonho. Mas, diante das configurações sociais, em que muitos desses alunos são arrimos de família e dividem suas horas de estudos com intensas jornadas de trabalho, esse sonho pode ficar no meio do caminho. Caminho esse construído com dificuldades num país que foi o último a erradicar o trabalho escravo e que não foi capaz de fomentar política inclusiva para negros e negras recém-libertos. Assim, precisamos compreender que o sistema de cotas, somado à lei 11.645, que institui a obrigatoriedade do ensino das histórias e das culturas africanas, indígenas e afro-brasileiras, contribuindo para visibilidade histórica das populações marginalizadas, faz parte das políticas de reparação às minorias representativas da nossa sociedade e que tem como alicerce as políticas de ações afirmativas inclusivas fomentadas pelos movimentos negros brasileiros.

O senhor é uma referência na luta pela liberdade religiosa. Este é um tema pouco falado. Se ouve muito sobre racismo, machismo e homofobia, por exemplo. Como é a intolerância religiosa no Brasil?
Bom, primeiramente precisamos pontuar que as manifestações contra o racismo, o machismo, a homofobia, a xenofobia etc… são verdadeiramente legítimas e estão em sintonias com as lutas e manifestações contra a intolerância religiosa. Prova disso é que a Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, que anualmente acontece no terceiro domingo do mês de setembro na cidade do Rio de Janeiro, vem se colocando como uma grande manifestação social contra todos os tipos de intolerâncias que pairam sobre a sociedade brasileira. Em síntese, a bandeira das intolerâncias “unificou” todas as lutas contra os retrocessos e cerceamentos imputados à sociedade civil. Um breve panorama histórico, sobre as tramas de construção dos Estados, nos mostra que a intolerância religiosa foi durante a Idade Média um dos motivos de Caça às Bruxas, na Era Moderna e Contemporânea um dos motivos de perseguições aos judeus, muçulmanos, cristãos ortodoxos, grupos Ciganos e grupos religiosos afro-brasileiros etc. Entretanto, decorre o fato que no Brasil há um íntimo namoro, regado pelas pétalas do preconceito, entre intolerância religiosa e racismo, o machismo, a xenofobia etc.

A bancada evangélica no Congresso Nacional cresce a cada eleição e, normalmente, está ao lado de pautas conservadoras. Como o senhor analisa esse processo e qual sua opinião sobre o Estado laico brasileiro?
Primeiramente precisamos compreender que o Estado é laico, mas as pessoas que compõe o Estado não são. E não são porque imputam sobre a “administração” do Estado as suas experiências religiosas. Recentemente tive o prazer de ler o livro “Nós somos a mudança que buscamos”, que reúne 27 discursos do Barak Obama, ex-presidente dos Estados Unidos, e o tema sobre a laicidade do Estado também é uma pauta de discussão mesmo em países que aparentemente parece não discutir sobre religião e política de forma direta. É fundamental ponderarmos que o Estado pode ser laico e religioso desde que respeite as liberdades e diversidades religiosas.

Mark Lilla, cientista político norte-americano, apontou que Hillary Clinton perdeu as eleições para Trump por focar o discurso nas questões minoritárias. Em sua visão, falta na esquerda brasileira um projeto de poder macro?
Li o artigo do Mark Lilla no ano passado para dar uma palestra, e achei muito interessante porque a análise feita pelo cientista político sobre os ditos grupos de esquerda se encaixa também para outros grupos. Mas preciso pontuar que é uma observação feita sobre a sociedade norte americana que acabou de passar pela experiência de ter um homem negro sentado por oito anos na cadeira de chefe de Estado.  O Brasil é o segundo país com o maior número de homens e mulheres negros fora do continente africano e é o país que menos investe em representações negras na política. Dados recentes publicados do site do Estadão nos mostram que “candidatos negros arrecadaram um total de R$ 55 milhões, com investimento de R$ 78 mil por candidatura”. Enquanto isso, um candidato branco recebeu em média mais de três vezes o valor que um político negro dispôs em 2014. E a mesma pesquisa nos revela que são os partidos de esquerda, atuais como PSOL, PCdoB e o PT são os quem mais elegem e investem em representantes negros na política, enquanto partido de direita como o PMDB elegem apenas com 1,6% de representantes negros. Então o foco da pauta identitária ainda se faz necessário no Brasil a partir do momento em que constatamos que existe um “problema” social (o racismo estrutural, a homofobia, a transfobia, o machismo, a xenofobia) e que é relegado como problema de segunda ou terceira instância.

O que o senhor espera do novo presidente do Brasil?
Não vou dizer que espero, mas sim que desejo que o novo ou a nova representante possa estar mais em sintonia com as demandas sociais e não com questões que são construídas como “causas” sociais. Desejo que possamos juntos construir e desenvolver projetos em que as liberdades, diversidades e pluralidades possam, realmente, ser evidenciadas e valorizadas. E quero ir um pouco mais além e pontuar que precisamos colocar e evidenciar os desafios que precisam ser ultrapassados, tais como o racismo e todas as formas de preconceitos e intolerâncias.

 

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