Dorrit Harazim: A união instável de Harry, Trump e Obama

O ex e o atual ocupante da Casa Branca não cabem num mesmo evento, sobretudo se transmitido ao vivo para todo o planeta.
Foto: PBS
Foto: PBS

O ex e o atual ocupante da Casa Branca não cabem num mesmo evento, sobretudo se transmitido ao vivo para todo o planeta

Anotem na agenda de 2018: o sábado 19 de maio tem tudo para nos transformar em aldeia global. Súditos da rainha, viciados em celebridades, saudosistas do Império Britânico, fashionistas, consumidores de contos de fadas, analistas diplomáticos, seguidores de “The Crown” e público em geral tem encontro marcado na cerimônia de casamento do príncipe Harry, da Casa de Windsor, com a atriz americana multirracial Meghan Markle.

Para 99,99% dos bípedes, esse encontro será virtual — via TV ou internet —, com interpretações simultâneas jorrando nas redes sociais. Para o seleto grupo de candidatos a um convite presencial, a agonia da incerteza está apenas começando.

No caso do triângulo Barack Obama/noivo/Donald Trump, essa questão não é trivial, pois envolve questões de Estado e a histórica relação entre Inglaterra e Estados Unidos. Também contém riscos políticos e gera alertas diplomáticos, sem falar da ameaça de protestos nas ruas londrinas em plena festança.

O motivo é um só: o ex e o atual ocupante da Casa Branca simplesmente não cabem num mesmo evento, sobretudo quando ele é transmitido ao vivo para o planeta todo. No atual clima de polarização e toxicidade social alimentado por Donald Trump, Harry terá de fazer uma escolha difícil.

Com Barack Obama o neto caçula de Elizabeth II parece ter uma química natural, espontânea, de admiração mútua. Foi para Harry que o ex-presidente americano deu, dias atrás, a primeira entrevista desde sua aposentadoria da Casa Branca em janeiro último. O príncipe havia sido convidado pela rádio BB4 para atuar como entrevistador do programa natalino da emissora. Saiu-se surpreendentemente bem, por sinal, melhor do que muitos jornalistas profissionais.

Obama, por sua vez, estava ciente de que cada palavra sua seria dissecada na Casa Branca. Não achou necessário citar nominalmente Trump, o sujeito oculto de algumas de suas respostas:

“Um dos perigos da internet é permitir que pessoas tenham percepções inteiramente diferentes da realidade… O risco de permanecer em bolhas de informação que apenas reforçam nossos preconceitos… A questão é saber como tirar proveito da tecnologia sem que a multiplicidade de vozes e pontos de vista leve à balcanização da sociedade”.

O ex-presidente definiu seu lugar na história como “o piscar de um só olho” e mostrou-se afiado fora do poder. Segundo qualquer critério afetivo, ele e Michelle, que já haviam conquistado as graças da rainha na visita de Estado a Londres em 2011, compõem o seleto grupo de convidados dos noivos.

Já com o sucessor de Obama o príncipe Harry não tem relação alguma. Contudo, segundo os mandamentos básicos da diplomacia, do protocolo da Casa de Windsor e por razões de Estado, o casal Donald e Melania deveriam encabeçar a lista de convidados oficiais.

Contudo, a presença de Donald Trump em solo britânico, com ou sem Obama na área, é bastante espinhosa. Em julho último, quando participou pela primeira vez de uma reunião do G-20 na cidade alemã de Hamburgo, o presidente americano cogitou passar alguns dias no seu resort de golfe em Turnberry, Escócia. Aproveitaria para fazer uma visita à primeira-ministra Teresa May em Londres, com menos de 24 horas de divulgação prévia por questões de segurança.

Não conseguiu. Ou melhor, desistiu a tempo. May fora a primeira líder de país aliado a visitar Trump poucos dias após sua instalação na Casa Branca. Estendera-lhe o tapete vermelho de um convite de visita de Estado, com direito a recepção real no Buckingham Palace.

Este tipo de visita tem pedigree muito maior do que uma mera visita política entre líderes. Trump estava no comando do país há menos de um mês, e suas credenciais para tal regalia eram ralas. Pior, o que ele já demonstrara soava inquietante do outro lado do Atlântico: protecionismo radical, fazer da mídia independente um inimigo público, tentar banir a imigração de alguns países de maioria muçulmana.

Para contextualizar a enormidade do convite o “The Guardian” lembra que John J. Kennedy, Richard Nixon e George Bush pai jamais foram recebidos em visita de Estado pela rainha, Obama teve de esperar dois anos e meio, e George W. Bush, três.

De lá para cá as coisas só pioraram. Uma petição assinada por mais de dois milhões de britânicos exige a retirada do convite a um presidente que já ofendeu gratuitamente o prefeito de Londres, Sadiq Khan, no dia seguinte ao atentado terrorista na London Bridge. Os ingleses também não perdoam Trump por ele ter implodido o Acordo Climático de Paris, de grande aceitação no país, e detestam seu estilo grosseiro de escavadeira. Até mesmo o chanceler Boris Johnson, pouco afeito a protocolos, manifesta desprezo pela “assombrosa ignorância” do personagem. “Mentiroso”, “covarde”, “cascudo” são alguns dos adjetivos usados em editorial pelo “Observer” para definir Trump.

Por enquanto a visita não tem data marcada. Com esse pano de fundo não foi de todo inesperada a mobilização popular à tentativa presidencial de visitar seu campo de golfe e dar uma esticada até 10 Downing Street. Caso ele pisasse em solo britânico, as redes sociais seriam acionadas e protestos de rua brotariam em cascata.

Por mais que um casamento real seja uma festa nacional e os convidados à cerimônia não estão em visita oficial ao país, é difícil prever como Trump será recepcionado caso compareça.

Não comparecer, se convidado, significará admitir a rejeição. Não convidá-lo equivalerá a uma afronta explícita por parte de Harry, cuja noiva, vale frisar, é americana.

Por outro lado, não convidar Barack Obama seria uma decepção para os admiradores do ex-presidentes e para a geração com a agenda social de Harry.

Nesse imbróglio todo quem tem a carta maior em mãos é Obama, se for convidado. Ele pode declinar , o que poderá ser interpretado como elegante gesto para não ofuscar Trump — ou para deixar que o sucessor se enforque sozinho em Londres.

Mas, se comparecer, a audiência global no dia 19 de maio de 2018 tem tudo para ser histórica. Oba.

 

 

Privacy Preference Center