César Felício: Bolsonaro se traduz

Paletó bem ajustado, nó da gravata no lugar certo, ladeado pelo ministro do GSI e pelo porta-voz, ambos generais de reserva, o presidente Jair Bolsonaro está trabalhando. Não há espaço em sua 'live' no Facebook para chinelos Ryder, pão com leite condensado e outras informalidades. O presidente está contido. No vídeo de 20 minutos, Bolsonaro promete que toda quinta-feira, às 18h30, será assim.
Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Corrêa/PR

Miscelânea presidencial forma um conjunto

Paletó bem ajustado, nó da gravata no lugar certo, ladeado pelo ministro do GSI e pelo porta-voz, ambos generais de reserva, o presidente Jair Bolsonaro está trabalhando. Não há espaço em sua ‘live’ no Facebook para chinelos Ryder, pão com leite condensado e outras informalidades. O presidente está contido. No vídeo de 20 minutos, Bolsonaro promete que toda quinta-feira, às 18h30, será assim.

Ainda administrando os efeitos da divulgação que fez de um ato obsceno no Carnaval, o presidente sugere que a sua estratégia de comunicação ganhou um outro formato. A conferir se a ‘live’ no Facebook, concentrada em um dia da semana, irá frear a sua atuação no Twitter, ambiente onde vigora a lei da selva na internet.

A conferir também se o Facebook servirá de antídoto para danos colaterais da palavra do próprio presidente. Bolsonaro discursou para militares no Rio de Janeiro, pela manhã, e de tarde estava na rede para dizer que foi mal compreendido, “para variar”. A comunicação presidencial adotou uma linha: o presidente solta algo insólito, seja uma concessão na reforma da Previdência ou um elogio a um ditador paraguaio de má fama e em seguida busca ser seu próprio tradutor.

Na aparência, a moderna versão da “Conversa ao Pé do Rádio” é um minestrone, um siri catado, onde pode entrar de tudo. Bolsonaro acena para o mercado, em uma rara intervenção a favor da votação da reforma “que está aí, se bem que o Parlamento é soberano para fazer qualquer possível alteração, só esperamos que ela não seja muito desidratada”.

Para o resto, a “boa notícia” é o fim da lombada eletrônica e o aumento da validade da carteira de motorista. O presidente aconselhou até a aprovados em um concurso do Banco do Brasil a entrarem na justiça contra duas exigências do edital, o de cursos de diversidade e de prevenção ao assédio moral e sexual.

Também sugeriu aos pais de menores de 9 a 16 anos que rasguem as últimas páginas das cadernetas de vacinação distribuídas durante a era Dilma. Ele não deixa claro, mas provavelmente se referia ao conteúdo que vai da página 31 até a 44 da cartilha, que trata de assuntos como desenvolvimento da genitália na puberdade e uso de preservativos.

A miscelânea, na aparência caótica, forma um conjunto. Eis aí um presidente atento a tudo, a cada detalhe do cotidiano, que propõe como contraponto ao remédio amargo da economia a diminuição da presença do Estado na mediação de relações sociais, seja no trânsito, no ambiente de trabalho ou na educação dos filhos.

Carnaval
“Do Oiapoque ao Chuí, até o sertão distante/o progresso foi se alastrando neste país gigante/no céu azul de anil, orgulho do Brasil/nossos pássaros de aço deixam o povo feliz/ninguém segura mais este país”. É provável que o então adolescente Jair Bolsonaro não tenha tomado conhecimento do samba da Mangueira no carnaval de 1971, que tinha o título “Modernos Bandeirantes” e homenageava a Força Aérea.

Parece seguro, entretanto, afirmar que o garoto Jair compartilhava de um espírito da época que tornava cabível um enredo como aquele. Para a imensa massa da população, 1971 era um tempo de conformismo na Política e expansão forte na Economia. Em um quadro de censura à imprensa e violência extrema contra os oposicionistas, não havia barreiras para o ufanismo exacerbado.

Politização no carnaval sempre houve, e nas escolas de samba são muito mais abundantes os exemplos de exaltação do discurso oficial do que o oposto, como observa o historiador Luiz Antonio Simas, um dos colaboradores do carnavalesco Leandro Vieira, responsável pelo desfile vencedor deste ano, da mesma Mangueira chapa-branca de 1971, com o enredo “história para ninar gente grande”.

A Mangueira em 2019 desfilou pela avenida toda uma narrativa histórica que os defensores do projeto “Escola Sem Partido” só podem abominar. Logo no começo, um carro alegórico mostrava o monumento aos bandeirantes, em uma cena demoníaca, com um Anhanguera de chifres, sangue jorrando e caveiras para todo o lado. O símbolo da invasão, genocídio e escravização de negros e índios. No fim do desfile, outro carro, com o cartaz “ditadura assassina”, mostrava o padre Anchieta, a princesa Isabel, o Duque de Caxias e o Marechal Floriano como vilões. Os dois últimos pisavam sobre cadáveres. Para finalizar, uma grande bandeira com a efígie da vereadora Marielle Franco, a última mártir da sequência apresentada pela escola.

Para Simas, mudou menos a Mangueira do que as circunstâncias. A crise econômica fez secar um expediente muito usual nas escolas de samba, o de vender o enredo para patrocinadores, seja um fabricante de iogurte (Porto da Pedra, 2012) ou o ditador da Guiné Equatorial (Beija-Flor, 2015). Imersa em disputas internas e acossada pela Justiça e pela concorrência com outros tipos de criminalidade, a contravenção perdeu o controle absoluto que tinha e abriu a brecha para um desfile mais autoral.

Simas não cita este exemplo, mas secou até o dinheiro de esquemas de corrupção entranhados no governo do Rio, que segundo delatores da Operação “Furna da Onça” teriam ajudado a financiar o desfile da Mangueira de 2014, que homenageou os festejos populares.

Neste contexto as escolas de samba buscam se manter, atentas ao vento que sopra fora. O clima na sociedade é de polarização e há fatores para desgaste do governo Bolsonaro particularmente no Rio de Janeiro, mesmo levando em conta a tranquila vitória do atual presidente na Mangueira, espelho do que aconteceu em todas as zonas eleitorais da cidade. O esquerdismo do desfile de agora pode ser sucedido por uma exaltação de valores conservadores em 2020 sem que isso seja motivo para surpresas.

Não se pode dizer o mesmo em relação ao carnaval de rua, em particular no caso do Rio de Janeiro e de Olinda. A juventude das classes médias alinhadas com a esquerda há mais de três décadas usa a folia para mandar seus recados, sobretudo quando a esquerda está na oposição. É uma tradição que surgiu no crepúsculo do regime militar, entre o fim dos anos 70 e o início dos anos 80.

“Este ano teve uma clivagem mais forte. Além da questão político-partidária, houve nos blocos a bandeira de questões de comportamento. Tudo foi 50 tons acima do normal”, diz a jornalista Rita Fernandes, presidente da Associação de Blocos de Rua do Rio. Bolsonaro na presidência era um alvo óbvio.
Postado por Gilvan Cavalcanti de Melo

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