Carol Pires: A divisão entre democratas e as lições para a esquerda brasileira

Quem defende um país mais plural e igualitário deve começar fazendo o dever de casa.
Foto: The National
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Quem defende um país mais plural e igualitário deve começar fazendo o dever de casa

Na quarta-feira passada, durante a reunião semanal da bancada democrata, a presidente da Câmara norte-americana, Nancy Pelosi, disse aos correligionários: “alguns de vocês estão aqui para fazer um lindo patê, mas estão produzindo salsicha na maior parte do tempo”. Dando voltas, a presidente da Câmara quis dizer, essencialmente, que os representantes mais ideológicos do partido estavam dificultando a vida de democratas mais moderados. Para Pelosi, além de forçá-los a se posicionar a cada nova polêmica, o que poderia prejudicá-los na eleição de 2020, o partido estava perdendo o foco, que era tentar aprovar a melhor versão possível de projetos num governo republicano.

O recado era para quatro novatas: Alexandria Ocasio-Cortez (Nova York), Ilhan Omar (Minnesota), Rashida Tlaib (Michigan) e Ayanna Pressley (Massachusetts). Elas representam a ponta esquerda dos democratas e tem sido chamadas de “the squad” , o esquadrão.

Pelosi e Alexandia Ocasio-Cortez, a cara mais visível do esquadrão, tinham entrado em conflito aberto depois da votação que aprovou ajuda emergencial de 4,6 bilhões de dólares para resolver o problema de superlotação — e até falta de comida e água — nos centros de detenção de imigrantes na fronteira com o México. Os democratas se dividiram. Temiam que Trump usasse o dinheiro em suas aventuras de construir um muro na fronteira. Enquanto Ocasio-Cortez viu na votação a oportunidade de criticar toda a política imigratória de Donald Trump, Pelosi acreditava ser importante não deixar de aprovar a ajuda humanitária.

O projeto voltou do Senado com emendas que desagradaram ainda mais o esquadrão, priorizando militarização sobre o social. Foi quando dedos começaram a ser apontados. Pelosi disse publicamente que a jovem democrata podia fazer barulho nas redes sociais, mas não tinha apoio no parlamento. Já Ocasio-Cortez chegou a comparar os democratas moderados a segregacionistas. Foi quando Pelosi reuniu a bancada e pediu que deixassem de “produzir salsicha”.

Mas a essa altura a divisão da bancada democrata já tinha chamado a atenção de Donald Trump. No Twitter, ele mandou as parlamentares do esquadrão voltarem para seus países: “É tão interessante ver mulheres democratas progressistas no Congresso, que vieram originalmente de países cujos governos são uma catástrofe total e completa, os piores, mais corruptos e ineptos em qualquer lugar do mundo (se é que já tiveram um governo em funcionamento), dizendo agora alto e cruelmente ao povo dos EUA, a maior e mais poderosa nação da Terra, como nosso governo deve ser administrado”. “Por que eles não voltam e ajudam a consertar os lugares totalmente quebrados e infestados de crime de onde vieram?”, completou. Trump ainda sugeriu que Nancy Pelosi ficaria muito feliz em organizar as viagens de graça.

Entre as quatro, apenas Omar nasceu fora dos Estados Unidos, na Somália, mas é naturalizada norte-americana há duas décadas. Ocasio-Cortez é filha de porto-riquenhos. Pressley é a primeira negra eleita por Massachusetts. Tlaib é da palestina. Ela e Omar são as primeiras muçulmanas eleitas para o Congresso.

O comentário, violento e preconceituoso, ressoa entre as bases fiéis de Trump. Ontem, num comício na Carolina do Norte, o público lhe fez coro gritando “send her back”.

Além de comunicar com seus devotos, Trump também joga luz sobre a divisão no partido adversário para que eleitores – sejam republicanos ou democratas moderados – pensem no esquadrão ao pensar no partido Democrata. Com a eleição de 2020 virando a esquina, Trump espera que a onda conservadora que o elegeu consiga mudar o voto de eleitores moderados que se assustam com propostas muito progressistas do esquadrão.

A estratégia não é nova. Aqui, ela tem sido usada de forma ainda mais extrema por bolsonaristas, que divulgaram mensagens de pessoas nuas e urinando na ruas como se tivessem sido a norma nos protestos do #Elenão ou quando o próprio presidente postou em seu Twitter um vídeo pornográfico dizendo que o Carnaval havia se transformado em manifestações como aquela.

Nos Estados Unidos, depois que o esquadrão respondeu Trump chamando-o de racista, ele voltou a atirar nas redes sociais dizendo que “se você não ama os Estados Unidos você pode ir embora”. “Eles não fazem nada além de nos criticar todo o tempo – você vê essas pessoas menosprezando, criticando os Estados Unidos”. Lá como cá, o presidente tenta confundir crítica e fiscalização com “torcer contra o país”.

Mas, neste caso, os ataques de Trump reuniram o partido Democrata. A líder Pelosi disse que Trump reafirmava que seu plano de fazer a América grande outra vez (‘Make America Great Again’) sempre foi sobre fazer “a América branca outra vez”. Nesta terça, a Câmara aprovou uma moção de repúdio ao presidente por seus comentários.

O reagrupamento dos democratas fica de lição para o campo de centro-esquerda e esquerda no Brasil. Aqui, com muito mais que dois partidos (são 26 agremiações representadas no nosso Congresso), o jogo tem sido tocado entre o centro e a direita e o fundamentalismo de alguns à esquerda os deixa fora do tabuleiro. Mantém-se a ideologia mas perde-se a partida.

Exemplar e absurdo é o caso da deputada Tabata Amaral, do PDT, escrachada por ter votado a favor da reforma da previdência. Aqui, a história corre com os sinais trocados. Tabata seria a “moderada” – entendeu que a atual previdência “aumenta a desigualdade do Brasil em um quinto e é impasse para o desenvolvimento do País” – enquanto os mais ideológicos à esquerda muitas vezes negam completamente a necessidade de uma reforma. “Ser de esquerda não pode significar ser contra um projeto que, de fato, pode tornar o Brasil mais desenvolvido e mais inclusivo”, disse a deputada.

Ambas mulheres jovens, Tabata Amaral (25 anos) e Alexandria Ocasio-Cortez (29 anos) têm trajetórias muito diferentes. A americana era garçonete antes de se eleger em sua primeira campanha, e se politizou depois de trabalhar na campanha de Bernie Sanders em 2016. Já Amaral é formada em Harvard, ex-aluna de Steven Levitsky, autor de “Como as Democracias Morrem” – aliás, livro-bússola para navegar nos tempos atuais. Mas ambas representam um sopro de frescor na esquerda de seus países. Ocasio-Cortez, por fazer parte de um grupo que levou a cara das minorias para dentro do Congresso. No de Tabata, por tentar romper a polarização que tem ditado o tom da política nos últimos anos.

Em comum, Tábata Amaral e Ocasio-Cortez, as novas caras da oposição, apresentam um desafio dentro de seus campos. Estão certos os que querem manter a coesão ideológica, mas também é preciso entregar resultados práticos. Quem defende um país mais plural e igualitário deve começar fazendo o dever de casa.

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