Carlos Blanco de Morais: Redes sociais vs. media profissional – “Vídeo, mentiras e hate speech”

Se o trollismo retira qualidade à democracia, a censura por interposta pessoa asfixia-a de morte lenta.
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Se o trollismo retira qualidade à democracia, a censura por interposta pessoa asfixia-a de morte lenta 

Na última década criou-se o mito de que a chamada “democracia digital”, tecida pelas redes sociais, iria oxigenar uma democracia representativa em crise. Com as redes teria nascido um universo de opinião influente, novos controlos difusos ao poder político e um diálogo direto entre governantes e governados (Saskia Sassen). A “democracia digital” modernizaria a “democracia deliberativa” de Habermas, legitimando decisão política pelo debate.

No pico de um ciclo de entusiasmo, em que alguém defendeu que o Twitter deveria receber o Nobel, alguns céticos como Evgeny Morozov alertaram para a manipulação das redes por ditaduras ou serviços secretos de grandes potências. Outros, como Vallespin, observaram que sendo numerosas as informações falsas, muitos cidadãos conviveriam bem com essa falsidade para fulminar adversários. Na verdade, a “democracia digital” pouco teria de democrático, sendo antes uma manifestação do pluralismo social e político ampliada por uma tecnologia neutra, sendo possível usar o ciberespaço, tanto para derrubar ditaduras como para permitir a estas perseguir adversários; tanto para denunciar a corrupção como para dessacralizar o poder; e tanto para defender as liberdades como para violar o direito à privacidade.

Em 2016, tudo mudou na “lua de mel” do establishment político e dos media com as redes sociais quando estas migraram das primaveras árabes ou do movimento “Occupy” para a direita populista. Com o impacto das redes no triunfo do “Brexit”, de Trump, de Putin, dos partidos populistas europeus e agora com Bolsonaro no Brasil, deflagrou a pandemia do trollismo (inspirado no troll, um mostrengo das lendas célticas), e que consistiria na queda das redes sociais nas mãos dos que postam notícias falsas e discursos de ódio. Ora a associação do trollismo à direita populista foi feita pelos media do mainstream depois do êxito de Trump e Bolsonaro que, frente a uma media hostil, usaram as redes para comunicarem com os eleitores, sem filtragem jornalística.

O trollismo no ciberespaço ameaça a democracia? Para os media profissionais, o trollismo ameaçaria a democracia porque as redes seriam manipuladas por forças ultraconservadoras para difundir fake news e hate speech (discurso de ódio), substituindo uma comunicação social isenta por uma informação alienante do eleitor. Embora acompanhemos Morozov no seu ceticismo sobre as virtudes das redes, entendemos que o trollismo não tem um único viés ideológico.

As campanhas norte americana e brasileira demonstram que as fake news proliferaram à esquerda e à direita. Se na eleição de 2016 nos EUA eram falsas as notícias sobre a doença grave de Hillary Clinton e a sua substituição por um duplo, também foi falsa a notícia de que apoiantes de Trump teriam gritado num comício “odiamos muçulmanos, odiamos negros, queremos o nosso País de volta em 2018”. Também no Brasil, não havendo dúvida que a direita lançou uma campanha violenta contra o PT nas redes, não é menos verdade que foram desmontadas como falsas as notícias de que partidários de Bolsonaro teriam assassinado um conhecido capoeirista da Baía e gravado uma suástica na pele de uma jovem. Fake news e hate speech não têm marca ideológica exclusiva.

Tão pouco o trollismo põe em causa a democracia. A censura ameaça a democracia porque impede a liberdade de expressão e o acesso à informação, em tempo eleitoral. O trollismo é, ao invés, um abuso censurável dessa liberdade de expressão, que se contraria através da sua denúncia nas redes, nos media e em observatórios e se pune nos tribunais quando incita ao crime. É certo que afeta a qualidade da democracia quando condiciona uma fatia elevada do eleitorado, se bem que tal suceda também com as sondagens eleitorais falhas ou manipuladas (que ninguém põe em xeque já que são usadas pelos media).

Redes vs. imprensa profissional. Os media profissionais generalistas, sem prejuízo de criarem jornais digitais que interagem com redes sociais, contrapõem a estas os seus pergaminhos de liberdade, rigor e isenção. E é um facto que uma sociedade livre supõe uma imprensa profissional, pois esta tem uma maior exigência na filtragem de notícias, na acuidade dos conteúdos e na sua controlabilidade. Mas seria uma fábula erigi-la a guardiã sacra da verdade e da privacidade e isentá-la do pecado do hate speech.

A violação da privacidade e do bom nome é feita quotidianamente em media prestigiados, como a CNN, que dedicou um painel de discussão sobre as partes íntimas de Trump. Isenção, equidistância e rejeição do “discurso de ódio” é algo que também faltou quando a maioria dos media americanos ergueu uma “firewall” contra Trump em plena campanha eleitoral; quando na CNN o Presidente é chamado de racista, animal ou nazi; ou quando o editor do Die Zeit alemão escreveu que para se evitar a catástrofe populista se imporia um assassinato na Casa Branca.

No Brasil, os media largaram uma maré de notícias falsas ou não comprovadas, como as de que Bolsonaro teria ameaçado de morte a ex-mulher; que teria votado no Congresso contra deficientes; e que haveria financiamento ilegal da sua campanha com propaganda massiva, robotizada no WhatsApp.

Há muito que os media profissionais formam consciências. Hoje, são forçados a sobreviver com encargos salariais, oscilações de tiragem ou audiências, concorrendo com as redes, que são veículos informativos incontroláveis e de baixo custo onde muitos cidadãos, bem ou mal, fazem, com um clique, uma escolha da informação do seu agrado, a partir do Facebook ou do WhatsApp. A vitória, para muitos imerecida, de populistas, operada pela comunicação em rede, foi inesperada e amarga, pois significou não apenas a derrota do establishment político, mas também a da media profissional que tenazmente se lhes opôs.

Hoje, os temores reais dos partidos tradicionais e dos media, ante o provável avanço populista nas eleições europeias de 2019, criaram a tentação de restringir a liberdade de expressão nas redes. Só que, em democracia, cada pessoa é livre de aceder às notícias que deseja e no formato que entenda, tanto as fidedignas como as radicalizadas e até disparatadas que os algoritmos indicam ser da sua preferência. Essa liberdade, mesmo que menos esclarecida, não pode ser suprida por um Big Brother, pois terminou o tempo em que os media proclamam: “nós decidimos o conteúdo e vocês lêem.”

É certo que o ciberespaço, pelo seu relevo político e securitário, não pode ser uma “terra sem lei”, devendo haver regulação. Só que é duvidoso que a mesma possa ter como paradigma a Lei Alemã (NetzDG de junho de 2017), que tornou as firmas gestoras das redes, sob pena de pesadas multas, responsáveis pela remoção de conteúdos “ilícitos”, como fake news e hate speech (que passou a ser entendido num sentido perigosamente lato), gerando um sistema de censura indireta, como é o caso do Facebook que contratou um exército de “moderadores”. Ora, se o trollismo retira qualidade à democracia, a censura por interposta pessoa asfixia-a de morte lenta.

 

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