Carlos Pereira: O presidencialismo de coalizão voltou

Ter ignorado o presidencialismo de coalizão pode custar a sobrevivência do governo

As relações entre instituições políticas, regras do jogo, e escolhas/preferências individuais são muito complexas. Em muitas ocasiões, as regras existentes podem deixar de fazer sentido para algumas pessoas ou mesmo para a própria sociedade. Nessas ocasiões em que as regras em vigor não mais conseguem oferecer os resultados esperados, mudanças institucionais têm maiores chances de acontecer.

O presidente Jair Bolsonaro foi eleito negando as virtudes do presidencialismo de coalizão. Propôs um rompimento com o que chamou de jogo da política tradicional e se comprometeu com a implantação de uma suposta “nova política”. Preencheu as expectativas de uma parcela do eleitorado de “limpeza” da política, construindo uma plataforma essencialmente antipartido, enfatizando a imagem de que todas as siglas e seus membros seriam iguais e fariam parte de uma mesma elite corrupta. Ao associar diretamente o estilo predatório de presidencialismo de coalizão praticado pelos governos do PT à corrupção, Bolsonaro alimentou no eleitorado uma espécie de aversão à própria política.

Uma vez eleito, Bolsonaro se comportou de forma consistente com o que havia prometido durante a campanha. Se negou a montar uma coalizão de governo, acreditando que poderia governar na condição de minoria. Adotou uma estratégia conhecida como presidencialismo plebiscitário, estabelecendo conexões diretas com seus eleitores e ao mesmo tempo negligenciando as instituições numa espécie de cruzada contra todos que lhe oferecessem resistência.

Se estava de fato insatisfeito com o presidencialismo de coalizão, deveria ter aproveitado a força do início de seu governo e ter proposto uma reforma no sistema político. Preferiu nadar individualmente contra a corrente ao invés de propor mudanças institucionais que viessem a reduzir os problemas governativos decorrentes da ausência de uma coalizão majoritária dentro do presidencialismo multipartidário.

Dois choques recentes fragilizaram profundamente o governo Bolsonaro, reduzindo drasticamente seu apoio junto à sociedade, colocando em xeque sua escolha de continuar governando sem uma coalizão: um exógeno, a subestimação dos impactos da pandemia do novo Coronavírus; e outro endógeno, a saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça.

Esses eventos obrigaram Bolsonaro a se voltar para a antes demonizada coalizão como forma de sobrevivência política. Busca apoio do conhecido “Centrão”, formado por partidos políticos heterogêneos, ideologicamente amorfos e não programáticos.

Ao corromper suas promessas de uma “nova política” junto ao seu eleitorado mais cativo, Bolsonaro realiza um dos maiores estelionatos eleitorais da história recente. Substitui legitimidade eleitoral por sobrevivência. Sua conversão tardia ao presidencialismo de coalizão pode ter se dado em condições muito mais adversas que as que teria encontrado se tivesse construído uma coalizão majoritária e estável desde o início do seu governo.

Ainda é cedo para vaticinar o futuro do presidencialismo de coalizão a la Bolsonaro. Afinal de contas, antes tarde do que nunca. Entretanto, será muito difícil que Bolsonaro consiga impedir que os seus novos aliados inflacionem o preço do apoio.

Como esse é um jogo de repetição, é esperado que o Centrão aja de forma estratégica e aumente o valor da contrapartida para o suporte político a cada novo sinal de vulnerabilidade. Afinal de contas, o céu é o limite quando se perceber que o que está a prêmio é a cabeça do presidente.


Sergio Lamucci: A máquina de produzir incertezas

Fonte de conflitos, Bolsonaro contribui para manter a incerteza elevada, prejudicando a economia, que pode encolher 5% ou mais neste ano

A pandemia da covid-19 fez a incerteza disparar no Brasil e no mundo, com os indicadores criados para medir o grau de indefinição na economia superando em muito recordes anteriores. A combinação de uma crise de saúde com a paralisação da atividade global provocou um choque de imprevisibilidade sem precedentes.

Por aqui, soma-se a esse cenário os conflitos e ruídos causados pelo presidente Jair Bolsonaro, uma máquina de produzir incertezas desde o início de sua gestão. É um fator de peso a conspirar contra a recuperação da economia quando houver o abrandamento das medidas de isolamento social. Níveis elevados de incerteza atrapalham especialmente o investimento, que depende de um horizonte previsível.

O Indicador de Incerteza da Economia (IIE) da Fundação Getulio Vargas (FGV) alcançou em abril 210,5 pontos, o nível mais alto da série. Em dois meses, subiu mais de 95 pontos. Antes dos recordes de março e abril, o patamar máximo anterior, de 136,8 pontos, tinha sido atingido em setembro de 2015, mês em que a agência de classificação de risco Standard and Poor’s (S&P) tirou o grau de investimento do Brasil.

A imprevisibilidade também superou marcas históricas no exterior. O índice de incerteza de política econômica dos EUA bateu o recorde em março, ao atingir 425,9 pontos, bem acima dos 284,1 pontos do pico anterior, de janeiro de 2019. Em abril, o indicador cedeu um pouco, mas seguiu elevadíssimo, em 400,7 pontos. O índice foi criado em 2011 por Nicholas Bloom, da Universidade Stanford, Steven Davis, da Universidade de Chicago, e Scott Baker, da Universidade Northwestern. Estudiosos do tema, os três mostram em seus trabalhos a influência da imprevisibilidade sobre o investimento, a produção e o emprego. Eles desenvolveram indicadores para mais de 20 países, entre eles o Brasil, baseados na varredura de notícias na imprensa relacionadas à incerteza econômica. O IIE da FGV,, por sua vez, tem dois componentes. O de mídia, com peso de 80%, se baseia na frequência de notícias com menção à incerteza em meios de comunicação impressos e on-line. O de expectativa busca medir a indefinição relacionada a previsões do mercado em relação a câmbio, juros e inflação, com peso de 20%.

No mês passado, Bloom, Davis, Baker e Stephen Terry, da Universidade de Boston, publicaram um estudo sobre a incerteza provocada pela pandemia. Segundo eles, a doença criou um enorme choque de imprevisibilidade, maior do que o associado à crise financeira de 2008 e 2009 e mais próximo em magnitude ao que ocorreu durante a Grande Depressão de 1929 a 1933. Para avaliar esse aumento maciço da incerteza em tempo real, eles usaram medidas de volatilidade no mercado de ações, de incerteza econômica baseada em notícias da imprensa e respostas a pesquisas sobre a percepção do tema pelas empresas. O exercício indica uma contração do PIB dos EUA de 9% no segundo trimestre em relação ao mesmo período do ano passado, atingindo uma retração máxima de 11% nessa base de comparação no quarto trimestre de 2020. Mais da metade desse tombo se deve à incerteza econômica induzida pela doença, de acordo com eles.

Para atenuar os efeitos negativos do choque sobre a economia, bancos centrais e governos têm adotado medidas para garantir a liquidez dos mercados e ajudar consumidores e empresas, que sofrem com a abrupta queda de renda e de receita. Essa estratégia, se bem sucedida, terá um papel relevante para reduzir a incerteza e contribuir para a recuperação da economia quando o isolamento for relaxado. É difícil, porém, acreditar numa retomada rápida. É provável que famílias e empresas sigam cautelosas, num cenário em que medidas de confinamento poderão ser retomadas de modo intermitente, a depender do grau de contágio.

No Brasil, o auxílio emergencial de R$ 600 para informais começou a ser pago, mas há reclamações de trabalhadores que em tese têm direito ao benefício e não o receberam. O maior problema, contudo, é fazer o crédito chegar em maior volume e com maior fluidez a micro e pequenas empresas. Depois da hesitação inicial, a equipe econômica tem buscado agir, mas ainda há correções a serem feitas. Há ainda a importante atuação do Banco Central (BC), reduzindo os juros e provendo liquidez, por exemplo.

Quem joga contra e aumenta a incerteza é Bolsonaro. No meio da pandemia, ele minimiza a gravidade da doença e faz seguidos apelos para o abrandamento da quarentena, contrariando a recomendação da maior parte dos especialistas e a decisão de muitos governadores e prefeitos. Para completar, trocou o ministro da Saúde durante a crise sanitária. O rompimento com Sergio Moro, que pediu demissão do governo, provocou uma grave crise política. Há ainda os constantes atritos com o Congresso e o Judiciário. Fonte de conflitos, Bolsonaro contribui para manter a incerteza elevada, prejudicando a economia, que pode encolher 5% ou mais neste ano. Isso aumenta a probabilidade de uma recuperação lenta depois que a quarentena for relaxada.


Cacá Diegues: Não desistir nunca

Esta não é apenas uma crise sanitária, mas uma revisão redentora de nosso comportamento no planeta

De grandes líderes populares, só se pode esperar milagres, como fizeram (para ficar só no século XX) Franklin Roosevelt, Winston Churchill ou Charles De Gaulle. Quem não sabe fazer milagres não deve se meter em política. Sobretudo se pegar pela frente um país feito o Brasil, tão necessitado de milagres, para realizar nossos sonhos.

A pandemia e os erros que estamos cometendo, durante a pressão dela, vão levar o Brasil a uma crise econômica e social, que já está aí e se tornará, daqui a pouco, ainda mais vigorosa. Pois é neste exato momento que Jair Bolsonaro e seus filhos levam o país a gigantesca crise moral, política e institucional. Não é possível que o presidente não tenha alguém, por perto dele, capaz de alertá-lo. Alguém que ouse lhe dizer que esta não é apenas uma crise sanitária, mas uma revisão redentora de nosso comportamento no planeta.

O coronavírus é mais um jeito que a Natureza achou de nos dizer que não vivemos sozinhos no planeta, nem somos os donos dele. Que devemos negociar nossas necessidades com as dos outros. E, quando se negocia, é preciso estar sempre disposto a abrir mão e ceder. Basta conhecer a História para compreender que, desde a Guerra do Peloponeso até nossos tensos dias atuais, cheios de guerras localizadas e maus-tratos ao meio ambiente, cada momento destrutivo corresponde a uma peste qualquer, vinda a bordo de mosquitos, de ratos, de morcegos ou do que seja.

Do surto que chegou a interromper a guerra decisiva entre Atenas e Esparta à Covid-19, passando pela Peste Negra às vésperas da imposição da indústria ou pela Gripe Espanhola nos últimos meses de um inédito genocídio bélico, as desgraças coletivas chegam sempre em momentos de mudanças radicais, cheias de violência e sem destino garantido. Não precisamos desses choques para fazer do Brasil um grande país, onde amemos estar e nos orgulhemos de viver. Basta que ele seja, enfim, um país do século XXI, que leve em consideração e se paute por tudo aquilo que já aprendemos até aqui. Um país que não perca mais tempo com essa disputa borocoxô e selvagem entre direita e esquerda, dois pretextos mais ou menos parecidos pra mandar nos outros.

Li, recentemente, uma entrevista do escritor português, nascido em Angola, Valter Hugo Mãe, em que ele nos dá algumas sugestões, como esta: “Nunca se deixem convencer de que o Brasil deu errado. (…)Um povo convencido de que é um erro, é um povo predisposto a desistir. Não caiam nessa armadilha”.

O isolamento social que adotamos, muito parcialmente, para evitar uma vitória arrasadora da Covid-19, vai, talvez, gerar desemprego e perda de renda no futuro. A burrice, ignorância ou má-fé de nosso chanceler, Ernesto Araújo, ousou compará-lo a um campo de concentração nazista. Ele deve ser daqueles para quem a fábrica de biscoitos fechada é mais dramático do que uma vida perdida. Mas é claro que o sistema adotado, somado às perdas de vida (ainda não sabemos a quantas chegarão), vai provocar a necessidade de inventarmos outros modos de viver e trabalhar. Temos que ter coragem de assumir essa mudança inevitável,para não sermos passivamente derrotados por um inimigo do povo, o vírus que está matando pessoas tão queridas.

Como o jornalista Luís Edgar de Andrade, morto semana passada, vítima desse vírus desgraçado. Conheci Luís Edgar em maio de 1964, ele já era jornalista consagrado, correspondente do “Jornal do Brasil” na Europa, um dos melhores textos de uma geração que já havia produzido Luiz Carlos Barreto, Janio de Freitas ou Armando Nogueira. Foi Barreto quem nos aproximou, por motivo generoso. Luís Edgar ia cobrir o Festival de Cannes e podia me dar uma carona, em seu Fusca meio acabadão. Conheci-o, portanto, durante quase dois dias, em seu carro, numa autoroute no sul da França, conversando sem parar sobre a vida e o mundo.

Além de grande jornalista, conhecedor informado de política, literatura e história, ele era um Mestre, a quem nunca deixei de pedir opinião e conselhos sobre coisas da vida. Constante viajante,era difícil acompanhá-lo. Para não perder sua pista, vivia lhe mandando comentários sobre seu trabalho público, como a cobertura das Olimpíadas de Roma, da Guerra dos Cem Dias, a do Vietnã, sua editoria no “Jornal Nacional” da televisão. Era o jeito que eu tinha de lhe dizer que sentia sua falta. Mas o que me dava inveja, mesmo, era a capacidade que Luís Edgar tinha de estar sempre ligadoaoBrasil, em que tinha tantaesperança. Tantaque o fazia subestimar inevitáveis decepções.

Mais uma morte que podia ter sido evitada. Mas alguém poderia me dizer: “e daí?”


Bruno Carazza: O mundo mudou, o Brasil nem tanto

Dá melancolia ler a edição nº 1 do “Valor”, há 20 anos

Eu me lembro exatamente quando e onde estava quando li a edição nº 1 do Valor Econômico, há 20 anos. Eu era praticamente um estagiário de luxo no Ministério da Fazenda quando me mandaram assistir a um seminário sobre a reforma da Previdência em Curitiba. Era a primeira vez que eu viajava de avião, e ao entrar na aeronave a comissária de bordo me entregou um exemplar do jornal de economia que acabara de ser lançado no Brasil.

Muita coisa mudou desde então. Não há mais Varig, três reformas da Previdência foram aprovadas (e ela continuava em déficit), o ministério trocou de nome e (quem diria?) o economista recém-formado - que naquele dia não sabia se olhava pela janela do avião ou lia fascinado o novo jornal escrito por um supertime de jornalistas, com layout inovador e cheio de dados - hoje assina uma de suas colunas.

Vinte anos depois folheio a primeira edição do Valor e reflito sobre as voltas que o mundo e o Brasil deram. Em 2/5/2000, o Valor custava R$ 1,50, e os R$ 5,00 de hoje refletem exatamente os 238% de variação do IPCA no período - um alerta para quem acredita que a inflação deixou de ser um problema no Brasil. Naquele tempo o dólar valia R$ 1,80 e a meta da Selic estava em 18,5%. “Bons tempos”, muitos dirão.

Era um outro mundo. Na página A14 há uma foto dos líderes de então: Tony Blair, Fernando Henrique, Massimo D’Alema, Bill Clinton, Lionel Jospin e Gerard Schröder propondo uma Terceira Via que prometia conciliar justiça social e livre mercado num mundo cada vez mais globalizado. Deu ruim.

Mas muita coisa continua como dantes: Ribamar de Oliveira chamava a atenção para a carga tributária que alcançava 30,3% do PIB graças a uma perniciosa concentração em contribuições sociais aplicadas em cascata, uma distorção de nosso federalismo disfuncional.

O exemplar inaugural traz ainda assuntos que se tornaram recorrentes ou premonitórios de crises nos anos seguintes: Claudia Safatle e Marli Olmos cobriam uma greve de servidores da Receita Federal por aumento de salários e Francisco Góes relatava as ameaças de paralisação dos caminhoneiros por causa do preço do frete e tarifas dos pedágios. E na mesma semana em que seria sancionada a Lei de Responsabilidade Fiscal, o Congresso debatia um projeto de renegociação de dívidas dos Estados, enquanto Rodrigo Maia e Eduardo Paes discutiam uma proposta de constituir um fundo de R$ 700 milhões para financiar campanhas eleitorais. No Rio de Janeiro, o governador Garotinho prometia a privatização da Cedae, a companhia estatal de saneamento que sempre foi um locus de corrupção e hoje distribui água contaminada aos cariocas.

A edição traz também uma longa reportagem sobre suspeitas de fraude no sistema bancário e uma discussão sobre uma suposta vantagem de bancos estrangeiros no leilão de privatização do Banespa. Duas décadas depois, nosso sistema financeiro está muito mais sólido, apesar de a insegurança jurídica do país ter espantado a maioria dos gringos e a concorrência bancária ainda desafiar o Banco Central e o Cade.

E nestes tempos em que Bolsonaro procura desesperadamente o apoio do Centrão para sobreviver, fica o alerta do então presidente do Senado, o cacique baiano Antonio Carlos Magalhães, que demonstrava sua força em entrevista a César Felício: “Eu tenho o governador, os três senadores, 95% dos prefeitos, 30 dos 39 deputados federais. Me mostre alguém que tenha um poder como este onde faz política”.

Nada, porém, mudou tanto quanto a tecnologia. No artigo de apresentação do projeto, a equipe do Valor se orgulhava dos seus 200 computadores, “sendo 21 notebooks”. Também pudera: outra reportagem informava que o mundo àquela época tinha apenas 140 milhões de usuários de internet - sendo 2 milhões no Brasil. E Cristiano Romero, de Washington, anunciava a intenção dos Estados Unidos entrarem com uma ação na OMC contra o Brasil. O motivo? CDs piratas. Mas é bom não se iludir: o primeiro número traz ainda entrevista de Bill Gates defendendo-se das acusações de domínio do mercado, nada muito diferente do que hoje vemos hoje com as chamadas “tech giants” Google, Apple, Amazon, Facebook e… Microsoft.

No entanto, a melhor indicação dos efeitos do tempo são os artigos das principais lideranças políticas do país na época, escritos especialmente para a estreia do Valor. Fernando Henrique Cardoso, àquela altura no sexto ano do seu governo, tecia loas ao recém-lançado tripé macroeconômico e apostava num ciclo de crescimento contínuo de crescimento na casa dos 4% por pelo menos 5 anos. Só não contava com o apagão, cujos riscos foram apontados em reportagem da página A6 - mas com declarações do ministro de Minas e Energia e dos presidentes da Aneel e da ONS negando essa possibilidade.

No artigo de Lula, o “sapo barbudo” ainda brigava com o “Lulinha paz e amor”. Ao mesmo tempo em que acusava FHC e o FMI de tornarem o país “uma nau sem rumo que navega ao sabor dos ventos da globalização neoliberal” e propunha controle de capitais para tirar o Brasil da crise, seu artigo é um prenúncio do que os futuros governos do PT teriam de bom e de ruim: medidas voltadas aos mais pobres (renda mínima, aumento do salário mínimo e estímulo ao crédito ao consumidor) e políticas econômicas que desaguaram em ruína fiscal e grandes escândalos de corrupção, como colocar o BNDES para conceder crédito subsidiado às empresas, estimular a formação de multinacionais brasileiras e lançar um grande programa habitacional.

Em tempos de ameaças autoritárias e “fake news”, chegar aos 20 anos fazendo jornalismo diário comprometido com fatos, dados e informação de qualidade é a principal notícia do dia. Vida longa ao Valor e ao seu excelente time de jornalistas e funcionários!

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Demétrio Magnoli: O paradoxo de Bolsonaro

O cenário é sombrio para o presidente da ‘gripezinha’

Meio a meio, duas vezes. A pesquisa Datafolha realizada na esteira da demissão de Sergio Moro indicou 45% favoráveis à deflagração de processo de impeachment e 48% contrários. O instituto também registrou queda de apoio ao isolamento social, agora em 52%, contra 46% que querem a “volta ao trabalho”. Paradoxalmente, a mesma emergência sanitária que precipitou a crise do governo mantém Bolsonaro à tona — e não apenas porque impede manifestações públicas.

O cenário é sombrio para o presidente da “gripezinha”. O “estado de guerra”, como regra universal, dá coesão às sociedades em combate ao “inimigo comum”. Pelo mundo afora, os governos ganham popularidade na emergência do coronavírus. O Brasil, onde metade dos eleitores pede a adição de uma crise institucional à crise da pandemia, é a única saliente exceção.

Moro entrou em confrontação letal com Bolsonaro, cindindo a coalizão política e social de sustentação do governo. O ex-juiz, ex-ministro e sempre candidato leva ao campo de batalha o “Partido dos Procuradores”, duas legendas parlamentares (PSL e Podemos) e uma camada de eleitores incensados pela narrativa da luta contra a corrupção. Segundo o Datafolha, 52% avaliam que, no intercâmbio de acusações, a verdade está com Moro, contra escassos 20% de crentes na palavra presidencial.

Mas os números são caprichosos, solicitando leitura mais sofisticada. O governo mantém apoio de 33% dos eleitores, e o desempenho de Bolsonaro na crise sanitária tem o aplauso de 27% e uma resignada aceitação de outros 25%. Vitória na derrota: o presidente resiste, ainda sem ventilação mecânica. A solução do mistério encontra-se na dependência e nos sofrimentos impostos pela emergência sanitária, subestimados entre analistas que fazem quarentena com vista para o mar.

Dezenas de milhões começam a receber os esquálidos, mas vitais, R$ 600, que levam a assinatura oculta do presidente. Cinco milhões de trabalhadores formais já perderam seu empregos ou experimentam cortes salariais. Multidões de comerciantes assistem, impotentes, à destruição de negócios que garantem a renda familiar. Cumpre não confundir essa vasta parcela da população com o núcleo militante bolsonarista, que reage a estímulos ideológicos extremistas.

O apelo da “volta ao trabalho” cala fundo no Brasil que não pratica o nobre esporte do home office. Uma sondagem conduzida pelo cientista político Carlos Pereira e publicada no “Estado de S. Paulo (20/4) mostra nítida correlação positiva entre apoio às ações de Bolsonaro na pandemia e a vivência de prejuízo econômico pessoal. O medo de um vírus de consequências incertas atenua-se diante da certeza da perda de meios dignos de subsistência.

A cláusula de exceção, detectada pela sondagem, é o conhecimento direto de pessoa que faleceu sob a Covid. Dois terços dos óbitos no Brasil concentram-se em cinco regiões metropolitanas. Num país de 217 milhões de habitantes, quase ninguém conhece algum dos mais de 7 mil mortos, especialmente em milhares de cidades do interior.

Bolsonaro não perde eleitores, mas os substitui. Saem os admiradores incondicionais do xerife da Lava-Jato. Entram os órfãos da quarentena, espalhados social e geograficamente. Qualificá-los como ignorantes ou incultos nada revela sobre eles. Diz muito, porém, sobre a bolha de classe que delimita o olhar dos analistas.

“Não vão botar no meu colo uma conta que não é minha”, reclamou Bolsonaro, referindo-se à sinistra contabilidade das mortes. O presidente, que não se descolou de Trump tanto assim, cobra de outros a dívida do emprego mas recusa a fatura dos óbitos. Ele nem simula governar, operando como agitador de rua. De um lado, clama contra os governadores e provoca aglomerações. De outro, abstém-se de usar suas prerrogativas para reabrir escolas federais ou liberar acesso às praias e parques nacionais — e seu novo ministro da Saúde jura respeito às determinações estaduais de isolamento social.

A curva da Covid no Brasil tem a forma de um morro em meia-laranja. Já a curva de nossa epidemia política vai adquirindo as feições dramáticas de um Everest.


Fernando Gabeira: E daí? A pulsão da morte

No mesmo dia em que foi treinar tiro ao alvo, Bolsonaro disse sua frase histórica diante dos mortos na pandemia

‘Entre mortos e doentes/ No meio dessas bananas/ Os meus ódios e os meus medos? E daí?”

Essa poderia ser uma versão sinistra de Bolsonaro para a bela cancão de Milton Nascimento “E daí?”.

Sua reação diante dos mortos pelo coronavírus não me surpreende. Creio que posso entendê-la, pois, de certa forma, venho falando dela desde o princípio do governo. Eu a chamei nos meus artigos de namoro com a morte. Era uma forma de sistematizar minhas críticas.

Umberto Eco afirma com razão que por trás de um regime e sua ideologia há sempre um modo de pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos obscuros e de pulsões insondáveis. É essa pulsão de morte que contesto na política de armas, na retirada dos radares das estradas, no afrouxamento das regras de transporte de crianças nos carros.

No mesmo dia em que foi treinar tiro ao alvo, Bolsonaro disse sua frase histórica diante dos mortos na pandemia. Creio que entendo o que há por trás disso. Ele acredita na tese da imunização do rebanho. Nela, a saída é a inevitável contaminação da maioria para que se resolva de uma vez o problema.

Muitos cientistas afirmam isso. Pode ser que tenham razão. No entanto, o isolamento social torna espaçada essa contaminação, permite que os sistemas de saúde não entrem em colapso: salva vidas.

Bolsonaro até que compreende essa tese. Mas responde com outra: necessidade do crescimento econômico.

A pandemia coloca hoje em discussão o crescimento pelo crescimento. Amsterdã prepara-se para buscar modelos sustentáveis, depois da crise, com o argumento de que o crescimento pelo crescimento é, na verdade, a filosofia da célula cancerosa.

Durante a pandemia, manifestantes contra o isolamento social fizeram buzinaços diante de hospitais em São Paulo. A mensagem que queriam passar era da volta ao trabalho. Assim como não importava o conforto dos doentes hospitalizados, também não importavam as mortes que viriam de uma suspensão prematura da quarentena.

Nesse clima nacional, uma influenciadora digital dá uma festa em plena quarentena e lança o grito: “foda-se a vida”, uma versão tupiniquim do “viva a morte”.

Trabalho com essas resistências no cotidiano. Outro dia, resenhei o artigo de um médico americano que falava do avanço silencioso da pneumonia em pessoas atacadas pelo vírus. Para evitar tantas mortes, ele sugeria que se usasse um oxímetro para medir constantemente o nível de oxigênio no organismo.

Uma leitora reagiu furiosa a esse texto. Nunca mais me leria pois, segundo ela, não compreendo como o Brasil é pobre e não tem condições de pensar nesses instrumentos.

O oxímetro custa em torno de R$ 100. O que ela queria dizer é que estamos condenados pelas circunstâncias a um grande número de mortes.

As pessoas que não se resignam diante das mortes com a pergunta “e daí?” são vistas como personagens trágicas que se rebelam contra o destino.

É nesse contexto de namoro com a morte que se dá também a petrificação do pensamento, a recusa à modernidade, a negação de fenômenos planetários que podem nos inviabilizar como espécie.

Insisto nesse ponto porque a história nunca estará completa se nos detemos apenas no aquecimento global e deixamos de lado os hábitos culturais e as pulsões que o nutrem.

Quando escrevermos a história da passagem dessa peste pelo Brasil, não poderemos esquecer que ela foi politizada, tratada como um vírus comunista, e uma nuvem de suspeição se ergueu contra os que queriam combatê-la de frente.

Com um tempo e alguma pesquisa, talvez possamos estabelecer um paralelo com a chegada dos colonizadores ao continente. Um conjunto de mitos impediu que fossem vistos na sua dimensão real. E isso precipitou a ruína das civilizações aqui existentes.

Ao longo do caminho, tenho enfatizado algumas ideias. Uma delas é a necessidade de uma ampla frente pela vida para se opor à política da morte.

A outra é a confiança de que as pessoas mudam, nem todas é verdade, mas mudam. Quantos não concluíram, depois de atingidos, que o coronavírus não é apenas uma gripe comum?

Outros, certamente, começarão a respeitar a ciência, podem chegar ao ponto de admitir que a Terra é redonda, que vacina garante a sobrevivência e que a humanidade está realmente ameaçada pela degradação ambiental.

Uma aliança pela vida pressupõe uma tática diferente da radicalização que produziu Bolsonaro.


Ricardo Noblat: Bolsonaro desafia os demais poderes e agrava a crise política

Ameaça à democracia

No dia em que mais caixões de mortos por coronavírus se acumularam ao pé da rampa do Palácio do Planalto (agora são 7.025), o presidente Jair Bolsonaro protagonizou outra manifestação popular antidemocrática contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal e a favor de uma intervenção militar.

Em 19 de abril passado, à porta do Quartel-General do Exército, em Brasília, Bolsonaro disse em manifestação da mesma natureza que estava do lado dos seus devotos e que nada negociaria. Não explicou o que se recusava a negociar. Talvez se referisse a negociação política de cargos no governo.

Ontem, Bolsonaro elevou o tom do seu discurso. Acompanhado de filhos e de uma dezena de seguidores histéricos com sua presença, desceu a rampa do palácio atrás de uma gigantesca bandeira do Brasil e depois de ter pronunciado ao vivo um discurso incendiário e desafiador nas redes sociais onde afirmou:

– As Forças Armadas e o povo estão conosco. Daqui para frente não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição. Ela será cumprida a qualquer preço. Cheguei ao meu limite. Não tolerarei mais a interferência de outros poderes.

No sábado, Bolsonaro reuniu-se no Palácio do Planalto com o general Fernando de Azevedo e Silva, ministro da Defesa, os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, e os demais generais que o cercam na condição de ministros. Obteve o apoio deles à solução que pretende dar ao problema da Polícia Federal.

Uma vez que demitiu da direção da Polícia Federal o delegado Maurício Aleixo, Bolsonaro nomeou para seu lugar o delegado Alexandre Ramagem, que cuidou de sua segurança após a facada em Juiz de Fora, e ganhou a confiança de sua família. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, barrou a nomeação.

Bolsonaro comunicou aos ministros que encontrara um jeito de driblar a decisão de Alexandre. Nomeará para a vaga de Aleixo um nome ligado a Ramagem. Encaixará Ramagem ali. Na prática, Ramagem é quem mandará na Polícia Federal. Mais tarde, junto ao Supremo, tentará anular a decisão do ministro Alexandre.

O general Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria do Governo, saiu da reunião a comentar que o Supremo só tem criado problemas para o presidente. Não é o único general que pensa assim. Ramos sonha suceder no comando do Exército seu colega Edson Leal Pujol. Bolsonaro acha que Pujol não é suficientemente alinhado com ele.

O ministro da Defesa não se oporá à substituição. Pujol não foi sua primeira escolha para comandar o Exército. O ministro indicou para o lugar o general Paulo Humberto Cesar de Oliveira, então chefe do Estado Maior. Bolsonaro vetou porque ouvira falar que o general o criticara um dia. Entrou Pujol, o oficial mais antigo.

Quando a política entra no Exército por uma porta, a disciplina costuma sair pela outra. Quando o presidente da República se nega a governar com o apoio de partidos, só lhe restam o apoio das Forças Armadas e o apelo direto pelo apoio dos seus seguidores. É o que faz Bolsonaro. De outras ferramentas não dispõem.

Às vésperas de entregar dezenas de cargos ao Centrão, o grupo de partidos mais fisiológicos com representantes no Congresso, Bolsonaro procura esconder sua rendição à política do “é dando que se recebe”. A troca de cargos por votos é o único recurso que tem para tentar barrar um eventual processo de impeachment.

Sua base de apoio popular rachou com a saída do governo do ex-ministro Sérgio Moro, da Justiça. De servo obediente até o último momento, Moro virou denunciante e adversário de Bolsonaro. Coletou provas de que ele quis promover uma intervenção política na Polícia Federal. Aspira disputar a eleição de 2022.

Os garotos Bolsonaro estão em apuros. Carlos e Eduardo são investigados em dois inquéritos abertos para descobrir quem organiza e financia atos públicos em favor de Bolsonaro, e quem dissemina notícias falsas para atingir a honra de desafetos deles. Flávio é investigado por ter embolsado grana de terceiros.

Com quantas legiões militares conta Bolsonaro para aplicar um golpe? Generais da ativa que preferem não ser citados asseguram que o Exército está imunizado contra uma aventura de tal espécie. À moda antiga, não se verá tanques rolando por aí. Nem se verá à nova moda a transmissão de um golpe pelas redes sociais.

Mas é fato que governo algum desde o fim da ditadura foi encabeçado por um capitão e teve como vice um general. Governo algum empregou um número tão grande de militares. São mais de 1.200. Usufruem dos benefícios de dois mundos: o da farda e o civil. Estão de volta ao poder graças aos votos de Bolsonaro.

O poder é afrodisíaco.

Devotos a serviço de distrair a atenção do distinto público

Deu certo mais uma vez
A manifestação antidemocrática de ontem encomendada aos bolsonaristas mais radicais de Brasília teve pelo menos um objetivo imediato: ocupar parte do espaço que a mídia tradicional e as redes sociais dedicariam exclusivamente ao depoimento do ex-ministro Sérgio Moro à Polícia Federal e ao aumento do número de mortos e de casos confirmados de coronavírus no país.

O objetivo foi atendido. O que disse o presidente Jair Bolsonaro antes e depois da manifestação virou manchete de capa nesta segunda-feira dos mais importantes jornais e tema obrigatório dos noticiários do rádio e da televisão. Assim será pelos próximos dias, salvo se o próprio Bolsonaro aprontar algo mais grave. Ele não se preocupa que falem mal dele, desde que falem. Regra antiga.

O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, reunirá sua equipe para decidir que providências tomará quanto à manifestação. Deverá também investigar quem a promoveu e financiou como já faz com a manifestação de 19 de abril último que ocorreu diante do Quartel-General do Exército. A essa altura, já conhece em linhas gerais o depoimento de Moro.

Caberá ao ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, a decisão de tornar público de imediato o depoimento ou de só fazê-lo mais tarde para não prejudicar a coleta de novas provas contra Bolsonaro fornecidas por Moro.


Benito Salomão: Lei de Responsabilidade Fiscal 20 anos, o que nós aprendemos?

“Isto poderia ser claro que nenhuma instituição iria (ou poderia, talvez) prevenir um governo ou uma legislatura executar déficits, se isto é o que eles estão realmente determinados a fazer”. (Alesina e Perotti, 1996).

No dia 04/05, comemoramos 20 anos desde a implantação da Lei Complementar 101/2000 ou Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O destino e suas ironias quis que comemorássemos seu 20º aniversário em meio a uma aguda crise fiscal, iniciada em meados desta década a partir de contabilidades criativas (Gobetti e Orair, 2017), e que será inevitavelmente ampliada durante a pandemia.

Os cálculos do Professor Josué Pellegrine estimam uma necessidade de financiamento (NFSP) de aproximadamente R$980 bilhões em 2020, sendo R$267 bi referentes ao déficit primário já previsto para este ano mais o socorro aos Estados e municípios em trâmite no Congresso, mais R$454,4 referentes a medidas de enfrentamento ao COVID-19, chegando a um resultado primário de -R$721 bi. Some-se a isto um provisionamento de despesas nominais (serviços da dívida) estimadas na casa de R$380 bi, chegaríamos aos R$980 (ou 14% do PIB). Parte disto está sendo suavizado pela venda de reservas cambiais, cujo impacto, porém, é limitado, Pellegrine trabalha com um saldo líquido de 10% do PIB de NFSP em 2020. Nada impede, que estes cálculos sejam revistos para cima se: 1° os efeitos da pandemia durarem mais tempo do que o previsto e demandarem mais socorro do governo e, 2° se o custo de rolagem da dívida pública aumentar como aliás já está sinalizado.

A pandemia fez com que os objetivos de curto e longo prazo da política fiscal no Brasil, se descolassem. A PEC 10/2020 de autoria da Câmara, deu ao governo Federal as condições legais necessárias para que o governo financiasse todas as despesas de curto prazo da Pandemia através da emissão de títulos do Tesouro, que excepcionalmente podem ser comprados pelo Banco Central (prática vedada pelo art. 34 da LRF). No longo prazo, no entanto, o objetivo inevitavelmente será conter a trajetória de expansão da dívida. O fato é que a crise fiscal era um dado da realidade antes da pandemia, fruto de erros evitáveis da política econômica e não totalmente corrigidos nos anos recentes. Mas como lidar com ela? No Brasil, diferentemente do resto do mundo, o primeiro passo para lidar com um problema fiscal é considerar que ele existe, parece uma obviedade, no entanto, existem grupos de economistas que estão convencidos que uma dívida de 90% ou 95% do PIB não é um problema. Eu, evidentemente discordo e vejo que existem três formas de lidar: 1° elevar tributos, 2° cortar gastos públicos e, 3° privatizações.

Se após a Pandemia, o estoque de dívida for, por exemplo 90% do PIB e o PIB brasileiro crescer a uma média de 1% ano, tendo um custo de rolagem da dívida constante e próximo a 4% ano, o esforço fiscal para manter a relação dívida/PIB é de um superávit primário da ordem de 3% ano (próximo de R$180 bilhões). Se levarmos em consideração que o Brasil sem Pandemia já apresentava um déficit fiscal previsto para 2020 de R$124 bi, estaremos falando de um esforço da ordem de R$304 bilhões no primeiro ano do ajuste. Um esforço desta magnitude certamente exigirá uma combinação de aumento de impostos e corte de gastos.

Pelo lado dos gastos, a reforma da previdência aprovada deve começar a ser sentida no caixa. Se estimou um potencial de economia total de R$900 bilhões em 10 anos, porém, dado que as novas regras incidem sobre trabalhadores que irão se aposentar, a maior parte desta economia ficará concentrada nos anos finais da estimativa. O gasto com pessoal do governo federal em 2019 foi da ordem de R$313 bilhões, esta rubrica estará congelada pelos próximos 2 anos, considerando que seriam gastos a simples reposição da inflação para tais salários, o efeito orçamentário disto é simbólico, próximo a R$22 bilhões em 2 anos. A margem para cortar despesas discricionárias, dentre elas, o investimento público foi praticamente exaurida nos anos anteriores e, talvez, teremos um congelamento real do salário mínimo em 2021 que pode criar uma folga de mais uns R$15 bi no orçamento.

Pelo lado dos gastos a situação está no limite, pelo lado das receitas, é preciso ser realista e dizer que novos impostos serão criados. Não que eu goste da ideia, mas a recriação da CPMF parece inevitável neste novo cenário. A estimativa do Ministério da Economia é de uma arrecadação próxima de R$150 bilhões. Recriar um imposto em períodos recessivos é sempre perigoso, por isto seriam necessárias duas ações adicionais: 1° aprovação da reforma tributária nos moldes do projeto da Câmara e, 2° sinalizar ao país que este seria um imposto temporário, com validade de no máximo 5 anos, para que a sociedade entenda este movimento como um esforço de ajuste e não como um aumento perene do tamanho do Estado.

Há ainda outras medidas como privatizações e revisões de incentivos fiscais a setores empresariais que podem ter grande impacto fiscal neste momento. Sobre isto, dissertarei em artigo futuro. Por hora, saliento que qualquer estratégia de ajuste, deve considerar a permanência das regras fiscais como a LRF e o Teto de Gastos, que têm um efeito disciplinador e distributivo sobre o Estado e um papel fundamental na credibilidade da política macroeconômica e na ancoragem de expectativas.

*Benito Salomão – Doutorando em Economia PPGE-UFU, Visiting Research VSE-UBC.

Referências
ALESINA, A. PEROTTI, R. Fiscal Discipline and the Budget Process. American Economic Review. 1996.


Fundações partidárias debatem pandemia, recessão e saídas para a crise

Ciclo de webconferências Diálogos, Vida e Democracia é realizado pelo Observatório da Democracia

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP*

Coronavírus, isolamento social e saúde pública são assuntos da primeira mesa de debates do ciclo de webconferências Diálogos, Vida e Democracia, que começa nesta segunda-feira (4), às 14h30, com transmissão ao vivo no site do Observatório da Democracia e retransmissão na página da FAP (Fundação Astrojildo Pereira) na internet. O ciclo pluripartidário de seminários virtuais tem o objetivo de agregar forças do campo democrático da política brasileira e construir propostas para enfrentar a crise política e econômica e os impactos da Covid-19 no país.

Realizado pelo Observatório da Democracia – fórum das fundações do PT, PSB, PCdoB, PDT, PSOL, PROS e Cidadania –, o ciclo terá 19 mesas temáticas que deverão ser realizadas de maio a julho (Veja programação ao final). A primeira webconferência terá a participarão de Artur Chioro, José Gomes Temporão e Carlos Augusto Grabois Gadelha. As interações com internautas serão feitas pelo canal de comentários do youtube do Observatório e também pelas páginas das fundações no Facebook.

Presidente do Conselho Curador da FAP, que é vinculada ao Cidadania, Cristovam Buarque destaca a importância da série de webconferências pluripartidárias. “É fundamental, neste momento das crises política e econômica terríveis, agravadas pela epidemia, que pessoas de diferentes partidos busquem não apenas entender o que está acontecendo, mas, sobretudo, propor alternativas”, afirma.

De acordo com Cristovam, os partidos políticos precisam mostrar à população alternativas que superem o bolsonarismo. “A gente precisa refletir sobre onde estamos errando. Apesar de tudo que Bolsonaro faz e diz de maneira autoritária e enlouquecida, precisamos admitir onde é que estamos errando e não conseguimos mostrar isso a uma parcela grande da população brasileira que continua iludida com Bolsonaro”, assevera. “Ficar gritando basta a Bolsonaro é importante, mas não basta. Nós estamos errando em alguma coisa que não somos capazes de mostrar ao Brasil inteiro os equívocos e riscos do Bolsonaro”, destaca.

As próximas webconferências serão Pandemia e saídas para a crise econômica (12/5); Pandemia, crise e pacto federativo (16/5); e Coronavírus, isolamento social e saúde pública 2 (18/5). Para acompanhar a programação em maio, junho e julho, os internautas podem acessar o site do Observatório da Democracia (www.observatoriodademocracia.org.br)

Após a transmissão, os debates estarão disponíveis no canal do youtube do Observatório da Democracia (https://bit.ly/35oDPeh).

Confira o vídeo!

Os convidados e as convidadas a participar do ciclo Diálogos, Vida e Democracia são:

Acácio Favacho
*ACM Neto
Adilson Araújo
Alessandro Molon
Alexandre Navarro
Aloizio Mercadante
André Longo
Ângela Albino
Antônio Neto
Arnaldo Jardim
Artur Chioro
Axel Grael
Carlos A. Grabois Gadelha
Carlos Lupi
Carlos Nobre
Carlos Sampaio
Carlos Siqueira
Carol Proner
Celso Amorim
*Cid Gomes
Cristovam Buarque
Davi Alcolumbre
David Miranda
Dra. Regina Barros
Edson Carneiro Índio
Eleonora Menicucci
Ênio Verri
Eurípedes Gomes de Macedo Jr.
Fernanda Melchionna
Fernando Haddad
Flávio Dino
Francisvaldo Souza
*Glen Greenwald
Gleisi Hoffmann
Glória Teixeira
Guilherme Mello
Heleno Araújo
Henrique Matthiesen
Humberto Costa
Iago Montalvão
Ildeu de Castro
*Izolda Cela
Ivaldo Paixão
João Carlos Salles Pires da Silva
Joênia Wapichana
José Calixto Ramos
José Eduardo Cardozo
José Gomes Ramos Temporão
José Luís Fiori
Juliano Medeiros
Leocir Costa Rosa
Leonardo Attuch
Lídice da Mata
Lígia Bahia
Luciana Santos
Luis Fernandes
Luiz Davidovich
Luiz Eduardo Soares
Luiz Gonzaga Belluzzo
Luiza Erundina
Manoel Dias
Manuela D’Ávila
*Marcelo Freixo
Marco Antônio Raupp
Maria Amélia Enríquez
Maria Célia Vasconcellos
*Marina Silva
Mauro Oddo Nogueira
Miguel Nicolelis
Miguelina Vecchio
Nilma Lino Gomes
Nilson Araújo
Olívia Santana
Osvaldo Maneschy
Paulinho da Força
Paulo Jerônimo, Pajê
Pedro Cunha Lima
Pedro Gorki
Pedro Ivo
Perpétua Almeida
Raul Jungmann
Renata Mielli
Renato Casagrande
Renato Rabelo
Renato Rovai
Ricardo Antunes
Ricardo Carneiro
Ricardo Galvão
Roberto Freire
Rodrigo Maia
Rosa Maria Marques
Rubens Ricupero
Rui Costa
Sérgio Nobre
Sergio Rezende
*Silvio Almeida
Tereza Campello
Thaísa Silva
Túlio Gadêlha
Ubiraci Dantas de Oliveira
Wolney Queiróz

*Pendentes de confirmação

Dr. Manoel Dias – Fundação Alberto Pasqualini-Leonel Brizola
Christovam Buarque – Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira
Rosanita Monteiro de Campos – Fundação Claudio Campos
Alexandre Navarro – Fundação João Mangabeira
Francisvaldo Souza – Fundação Lauro Campos e Marielle Franco
Renato Rabelo – Fundação Maurício Grabois
Felipe Espírito Santo – Fundação Ordem Social
Aloizio Mercadante – Fundação Perseu Abramo

*Com informações do Observatório da Democracia


George Gurgel: Tempos difíceis. O imperativo da democracia e do diálogo

Estamos vivendo uma situação mundial e nacional de crises. A pandemia colocou em evidência a insustentabilidade da sociedade contemporânea. Coloca-se o imperativo de defesa e ampliação da democracia como caminho para a construção de novas relações centradas na vida e na preservação da natureza.

A pactuação desta construção, através do dialogo e da cooperação permanente, é o desafio colocado às dificuldades que estamos vivendo no Brasil e em toda humanidade. A pandemia desnuda as fragilidades do sistema político, econômico e social em que vivemos.

O confinamento social está nos proporcionando uma necessária reflexão individual e coletiva. Como estamos pensando e agindo na perspectiva de superação desta complexa realidade?

A pandemia está nos transformando. Sob qual perspectiva nos colocamos?

As mudanças estão acontecendo no mundo do trabalho e da cultura. A vida em home office já está proporcionando mudanças significativas no nosso cotidiano. Muitas vieram para ficar.

Estamos nos vendo melhor e, portanto, vendo melhor o outro. O isolamento social está nos aproximando e nos fazendo pensar e agir de outra maneira, entendendo melhor as nossas limitações e fragilidades individuais e coletivas. Estamos e podemos ser melhores. Há uma preocupação maior para o que nos faz humanidade: a cooperação, a solidariedade, a luta pela igualdade, liberdade e fraternidade.

A realidade grita a favor dos excluídos, nos agride com a chegada da pandemia. Coloca nas ruas e nas redes a tragédia social de milhões de pessoas, excluídas das conquistas sociais elementares (trabalho, alimentação, moradia e saúde-saneamento básico). Será o despertar da sociedade para a importância de cada ser humano, independente em que lugar esteja no Planeta?

No Brasil, a polarização da cena política, delineada de uma maneira contundente nas últimas eleições presidenciais, levou Jair Bolsonaro à Presidência, em 2019.

É a vitória das forças conservadoras, do discurso liberal na economia, de uma efetiva participação dos militares na política e a derrota daquelas forças políticas fiadoras da transição democrática e que estiveram de maneira alternada, no centro do poder no Brasil, nos últimos 30 anos. É a derrota principalmente do PT, da maneira como agiu e construiu o exercício do poder durante os quatro mandatos na Presidência da República.

Assim, as forças conservadoras chegam ao poder pelo voto, com apoio dos militares, através de uma liderança que foi menosprezada até as eleições, pelos partidos hegemônicos da política brasileira.

Desde os primeiros dias de mandato de Jair Bolsonaro, inaugurou-se uma maneira de governar pautada na agenda do cotidiano presidencial, espetacularizada no dia a dia dos meios de comunicação, inédita na vida nacional.

A crise recente instalada no Governo Bolsonaro, com a saída dos ministros Luiz Henrique Mandetta (da Saúde) e Sérgio Moro (da Justiça), nos desafia como sociedade à construção de alternativas democráticas para o enfrentamento dos nossos problemas cotidianos, de superação da pandemia e o enfrentamento da nossa difícil realidade social, que exclui a maioria da cidadania brasileira das conquistas do bem-estar, aterrorizando em cada esquina a vida dos brasileiros.

O presidente Bolsonaro traz para a cena política um ativismo beligerante do conservadorismo brasileiro. Ameaça e despreza as conquistas do Estado de Direito e da Constituição de 1988. Desautoriza a tudo e a todos. Está recolhido ao seu labirinto familiar, com apoio e a tutoria dos generais e de uma parcela, ainda significativa, da sociedade.

O Governo Bolsonaro movimenta-se para o enfrentamento da atual conjuntura vivida pela sociedade brasileira. Há uma importante inflexão em curso de aproximação do “centrão”, colocando na berlinda o discurso eleitoral e de governo. Atua para a conquista da maioria no Congresso Nacional para barrar impeachment, colocado na sociedade e no Congresso Nacional e, adiante, havendo a continuidade do governo, para aprovação das reformas planejadas, interrompidas com a pandemia.

A política para o presidente Jair Bolsonaro é o confronto. Confronto cotidiano – mesmo quando tenha que recuar no dia seguinte. É o modo Bolsonaro de Ser e de Agir.

A República não é isto. Não pode ser isto. O que pode ser?

O futuro da sociedade e da democracia deve ser, e vai ser, mais generoso para todos os brasileiros e brasileiras. Estamos desafiados à construção de uma alternativa democrática para a nossa sociedade.

A tecelagem de uma alternativa democrática às crises política, econômica, social e sanitária é o desafio de trabalhar a unidade das forças democráticas, dialogando com a cidadania, com o mundo do trabalho e da cultura para a mobilização de uma frente ampla que garanta o Estado de Direito, a defesa da Constituição e a continuidade das reformas, assegurando a melhoria de vida da população.

O momento nos coloca a necessidade de refletir, de sonhar e de agir. A pandemia desafia a tudo e a todos. A própria vida. A ciência, como nunca, é imprescindível. São muitos os questionamentos e as possibilidades de mudanças. Há espaço para o novo, a imprevisibilidade, a construção de novas relações políticas, econômicas e sociais.

Assim, as condições estão dadas, com cenários plausíveis a serem escolhidos, como acontece nos momentos cruciais da história da Humanidade.

As opções entre a democracia e a barbárie continuam postas. A democracia venceu os grandes embates no século XX. É um processo em construção. A questão democrática se impõe como um valor para a sociedade nas suas relações em si e com a própria natureza.

*Professor da Universidade Federal da Bahia e membro da Fundação Astrojildo Pereira


Alon Feuerwerker: O abacaxi para descascar

Há algo errado num país onde a taxa de mortalidade política dos presidentes eleitos é de estonteantes 50%. Mais de dez vezes a da Covid-19 (e ainda tem a subnotificação). Jair Bolsonaro é o quinto presidente saído da urna desde a volta das eleições diretas para o Palácio do Planalto em 1989, e agora começa a sofrer, como a maioria, o cerco e a tentativa de aniquilamento. Vamos ver como ele se sai.

Não que os substitutos estejam imunizados contra o problema. Viram alvo instantaneamente quando sentam na cadeira. O vice de Fernando Collor, Itamar Franco, só escapou da liquidação quando finalmente aceitou ser um presidente decorativo e nomeou Fernando Henrique Cardoso para a Fazenda. Ou primeiro-ministro. Saciou ali a sede de poder dos que sempre querem muito mandar mas só de vez em quando têm os votos para tal.

Para cruzar a correnteza, Michel Temer precisou usar todo o repertório de ás da hoje estigmatizada velha política. Foi ajudado por um fato singular, que Dilma Rousseff não conseguiu manobrar para ela própria: como estava quase todo mundo meio encrencado com a Lava Jato, estabeleceu-se no mundo político um certo espírito de corpo e Temer foi usado de boi de piranha. Para dar tempo de pelos menos um punhado de bois atravessarem.

Qual é então o problema? Algum deve mesmo haver, porque definitivamente os índices brasileiros de perecimento político presidencial não são normais. Uns dirão que o povo não sabe votar bem. Hipótese não verificável. Outros, que o presidencialismo é um sistema bichado. Contra isso, observem-se as dificuldades mundo afora para formar e manter governos estáveis em parlamentarismos onde o bipartidismo colapsou.

O xis da questão é outro. O sistema aqui está organizado para impedir que o presidente da República escolhido pelo povo consiga governar com quem o elegeu. Isso seria possível apenas se o presidente trouxesse com ele, da mesma urna, uma maioria parlamentar. As regras brasileiras forçam exatamente o contrário: desde a Constituinte, nunca um presidente eleito levou à Câmara dos Deputados e ao Senado maiorias orgânicas.

Notem, caro leitor e cara leitora, que quando a opinião pública encasqueta com um governo essa ingovernabilidade potencial é apresentada como algo bom, e o governante que tenta formar base parlamentar é acusado de “comprar votos”. Já quando o governo é, digamos, bem visto, lamenta-se a fragmentação e surgem os apelos pelo aperfeiçoamento da articulação política. E a distribuição de cargos e verbas adquire verniz algo republicano.

Jair Bolsonaro está em xeque principalmente porque 1) resolveu surfar na conversa de que haveria uma nova política e subestimou a necessidade de sustentação parlamentar e 2) trouxe para dentro do governo em posições de poder potenciais opositores da reeleição dele em 2022. Ingenuidade. Quer (precisa) corrigir a rota agora em condições mais desfavoráveis, no meio de uma pandemia e com a economia ameaçada de ir a pique.

Um abacaxi não trivial de descascar.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Merval Pereira: Homicídios voltam a crescer

Situação de 20 estados já indica que deve haver um crescimento entre 7% e 8% nos dois primeiros meses deste ano

No momento em que o presidente Bolsonaro se envolve em mais uma polêmica armamentista, revogando portarias do Exército que instituíam normas mais eficazes para controle e rastreamento de armas e munição, o governo vai se deparar com a notícia de que os homicídios voltaram a crescer em todo o país.

Dados de janeiro e fevereiro analisados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram a tendência de crescimento. Os números não estão fechados ainda, mas a situação de 20 estados já indica que deve haver um crescimento entre 7% e 8% nos dois primeiros meses deste ano.

O envolvimento do Exército em questões políticas, pois o presidente Bolsonaro anunciou pelo Twitter a decisão de mandar revogar as portarias, atendendo a pressões da indústria armamentista apoiada pela bancada da bala na Câmara, já incomoda ala de militares, que consideram que o trabalho técnico do Departamento de Fiscalização de Produtos Controlados interessa à proteção da sociedade como um todo, e não a um grupo especifico, como disse em sua carta de despedida o General de brigada Eugênio Pacelli Vieira Mota, que foi para reserva logo depois do cancelamento das portarias.

Rastreamento de armas e marcação de munições para que possam ser identificadas interessa ao Judiciário, para esclarecimento de crimes, interessa ao combate às milícias. Num país em que 80% das mortes são por armas de fogo, é fundamental que o Estado tenha capacidade de rastrear armas e munições.

Ao mesmo tempo, o Ministério Público Federal quer incluir o caso no inquérito que foi aberto no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre as denúncias do ex-ministro Sergio Moro sobre interferências ilegais do presidente Bolsonaro na Policia Federal. Esse seria um outro exemplo de interferência, desta vez no Exército. Aliás, Bolsonaro acusou Moro de ser “desarmamentista” no seu pronunciamento sobre sua demissão.

O maior problema que os críticos vêem é a repolitização dos quartéis com a chegada ao governo de vários oficiais-generais, alguns inclusive da ativa, como Luiz Eduardo Ramos na Secretaria de Governo e o almirante Flavio Rocha na Secretaria de Assuntos Estratégicos. O fato de oficiais-generais da ativa fazerem parte do governo é simbólico dessa mudança, e grande número de militares em vários escalões do governo, indicam que o Exército voltou ao centro da política.

Recentemente, houve um princípio de desentendimento entre a ala de militares com gabinete no Palácio do Planalto e o ministro da Economia Paulo Guedes, em torno do programa Pró-Brasil, uma proposta incipiente de retomada econômica feita sem a participação da equipe de Guedes.

O ministro da economia aparentemente venceu o primeiro round, depois de estar quase fora do governo, mas terá ainda que enfrentar resistências da política. Os partidos que formam o centrão estão interessados no plano dos militares de retomada de obras públicas, e se incomodam com a insistência de Guedes de manter o controle dos gastos dentro do possível na situação de crise social em que vivemos devido à pandemia da Covid-19.

A tese de que o momento é de o governo gastar é tentadora para políticos fisiológicos, e faz sentido para militares com uma visão estatista da economia. A mistura de militares nacionalistas com políticos da estirpe de Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto é outro estranhamento para os que não vêem com bons olhos a participação de militares na atividade politica. O pragmatismo prevalece na saída de Sergio Moro, que tinha o apoio dos militares.

Há os que consideram que os militares estão desfazendo um trabalho de 30 anos, em que foram “o grande mudo”, granjeando respeito da opinião pública. Inicialmente, os militares que aderiram mais diretamente à candidatura de Bolsonaro achavam que ele, por ser popular, abriria espaço para os militares voltarem à vida pública com um selo de legitimidade da eleição presidencial. O problema é que funções de governo são essencialmente políticas, e as Forças Armadas são instituições de Estado, de acordo com a Constituição. Quando a política entra por uma porta, a hierarquia sai pelo outro.