Maria Cristina Fernandes: Por quem dobram os cotovelos

Gesto que irritou presidente é de autopreservação de Forças Armadas que veem crescer o contágio em suas fileiras

Há 1.813 militares infectados e sete óbitos, num efetivo de cerca de 390 mil nas Forças Armadas. A proporção de casos (0,5%) é dez vezes maior que o contágio do total da população brasileira. O elevado número de contagiados reflete a exposição dos militares em operações de combate à covid-19, da desinfecção de hospitais e higienização de áreas de grande circulação ao transporte de alimentos e equipamentos hospitalares. A mortalidade entre infectados, por outro lado, é um milésimo daquela observada no país, resultado, em grande parte, do monitoramento precoce dos casos e atendimento nos hospitais militares.

Alguns desses números foram expostos no tenso encontro que, no fim de semana, reuniu os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ao Palácio da Alvorada com o presidente da República e seus ministros militares. Na véspera, o general Edson Leal Pujol e todo o generalato presente à cerimônia de transmissão do Comando Militar do Sul haviam dobrado o cotovelo ante um presidente surpreendido.

Com os números, ofereceu-se uma explicação. Para continuar a colaborar com o combate à covid-19, que hoje mobiliza 29 mil militares em todo o país, os militares precisam se cuidar. Os comandantes bateram na tecla, que vêm pautando as portarias militares desde o início da pandemia, de que devem se proteger para proteger o país.

No dia seguinte, o comandante supremo estamparia o divórcio.

Desceu a rampa do Palácio do Planalto para mais um da série de espetáculos que protagoniza nesta pandemia. Cotovelos, naquele domingo, só entraram em cena para seus apoiadores baterem em jornalistas. Sem civismo, mas com muito cinismo, sugeriu que as Forças Armadas partilhariam consigo a paciência esgotada com as instituições e vazou a saída Pujol do comando.

Tratava-se de um balão de ensaio, mas tinha gás suficiente para aumentar a insatisfação dos oficiais da ativa com o presidente da República. O comandante que expunha as tropas ao risco de contágio, visto que se trata “da maior missão” de sua geração, estaria, de fato, com seu cargo em risco? Não. Tratava-se apenas de um presidente que resolvera regar de baciada a semente da indisciplina nos quartéis, praga da República brasileira da qual ele é apenas o mais recente representante.

É sua maneira de reagir ao cordão de isolamento que as instituições começam a apertar em torno de seu pescoço. O decano do Supremo Tribunal Federal é o puxador desse cordão. O depoimento do ex-ministro Sergio Moro frustrou muita gente mas não ao ministro Celso de Mello, que lhe deu publicidade bem como a todo inquérito.

Foi além do procurador-geral da República ao pedir a busca e apreensão do celular do ministro e estabelecer prazo para a tomada de depoimentos das testemunhas e a entrega do vídeo da reunião em que Moro disse ter sido tratada a substituição da superintendência da Polícia Federal no Rio.

Alguns dos intimados não gostaram da advertência do decano de que a resistência das testemunhas em marcar o dia, a hora e o local para serem ouvidos pode resultar em condução coercitiva. Depois que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi tirado de sua casa de madrugada para depor no aeroporto de Congonhas, o Supremo resolveu limitar o instrumento.

Réus não lhe estão mais sujeitos, mas o depoimento “debaixo de vara” continua valendo para testemunhas, mesmo que, entre elas, estejam três generais da reserva na função de ministros (Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto), um dos quais, da ativa.

Advertência no mesmo tom foi usada contra o secretário-geral da Presidência, Jorge Oliveira, e o secretário de Comunicação Social da Presidência, Fábio Wajngarten. Além do prazo de 72 horas para a entrega do vídeo da reunião, eles foram lembrados de que a eventual adulteração do material está sujeita a penalidades previstas na lei.

Um influente general da reserva viu na decisão do decano uma afronta à presunção de inocência, mas Celso de Mello não parece preocupado com as reações. Não foi por decisão dele que generais deixaram as Forças Armadas para servirem a um governo que tem Jair Bolsonaro como presidente da República e Wajngarten como chefe da comunicação.

O decano chegou ao Supremo no governo José Sarney, quando a democracia parecia consentimento de uma ditadura insepulta. Parece confiar no compromisso das Forças Armadas com a defesa da Constituição ao encurtar a vara com a qual intimou os servidores militares lotados no Palácio do Planalto. A quem serão leais, ao presidente, às Forças Armadas ou à lei máxima do país? A evolução do inquérito mostrará se as três lealdades terão como ser conjugadas.

Nas mais de três décadas em que os militares se ocuparam exclusivamente de profissionalizar as Forças Armadas, só deveram satisfação à justiça fardada. Foi a militarização deste governo, pela tese já nocauteada da tutela, que inverteu esta situação. Na ditadura, o Supremo Tribunal Federal teve acanhado desempenho, com honrosas exceções, como o ministro Ribeiro da Costa, que contestou o julgamento do governador deposto Miguel Arraes pela justiça militar. Hoje não há submissão possível.

No limite, o presidente da Corte e seu ex-assessor, o atual ministro da Defesa, movem as peças da contemporização. Se as Forças Armadas têm números a mostrar de sua participação no combate à covid-19, a Corte também os tem. Foram 1.660 processos e 1.473 decisões em torno da pandemia. Dias Toffoli reabilitou a Ordem do Dia de 31 de março, Fernando Azevedo e Silva entronizou a Constituição. Ambos repudiaram a violência contra jornalistas.

Não chega a ser um dueto, mas é um diálogo que pode manter Bolsonaro sob o cerco da Constituição. Ontem Toffoli definiu o Supremo como a última trincheira. A ver como dará cabo de um presidente que, na definição de um fardado, continua a ser o pentatleta da academia militar. Aquele que, quando a corda arrebentar, se manterá em pé com um pedaço dela nos dentes e os cotovelos em riste.


Fernando Schüler: Arranjo que permitiu o ciclo de reformas se perdeu

O governo Bolsonaro anda de lado. Os sinais são óbvios. Perdeu seu ministro mais popular, reagiu mal à crise e as pesquisas não andam lhe favorecendo. Há um conjunto de investigações delicadas em curso e o último levantamento do Datafolha diz que 45% dos eleitores apoiam seu impedimento.

Tudo isso pode ser apenas conjuntural e a crise se dissolver, quando a pandemia passar, mas intuo que há algo mais estrutural nesse processo.

O governo Bolsonaro é fruto de um arranjo instável entre três movimentos difusos na sociedade brasileira: o conservadorismo cultural, os movimentos contra a corrupção (o lavajatismo) e a agenda liberalizante, apoiada pelo mercado.

A agenda conservadora nunca andou. Ninguém se lembra mais de temas como Escola sem Partido ou a redução da maioridade penal. Coisas como o excludente de ilicitude e a nova regulamentação do porte de armas rodaram no Congresso.

A agenda em torno de Sergio Moro igualmente andou muito pouco. Temas caros ao ex-ministro, como a introdução do "plea bargain" e a prisão em segunda instância foram derrotadas ou simplesmente não andaram, no Congresso, e de quebra ele teve de assistir à instituição do juiz das garantias, depois suspensa pelo STF.

O que andou, até o final do ano passado, em ritmo lento, foi a pauta econômica. Temas como a reforma da Previdência e a Lei da Liberdade Econômica foram seus carros-chefes. O boletim Focus de dezembro previa 2,3% de crescimento para 2020, com inflação e juros nas taxas que sabemos.

As coisas andaram, no primeiro ano, à base de um arranjo de autonomia do Legislativo, dada a recusa do presidente em formar a coalizão majoritária. Disse que, em que pese minoritário, o governo conduzia uma agenda econômica majoritária no Congresso.

Estudo do Observatório do Legislativo Brasileiro demonstrou que 74,4% dos deputados apresentaram notas acima de 7, em uma escala de 0 a 10 de fidelidade ao governo. No Senado as coisas foram melhores.

O arranjo desmoronou a partir da virada do ano. Em boa medida, ruiu pelas indefinições do próprio governo, que nunca apresentou sua visão sobre a reforma tributária e sequer enviou a reforma administrativa.

Ruiu também pelo crescimento da pauta corporativa do Congresso, expressa no Orçamento impositivo, pelas dificuldades políticas do presidente, pela perspectiva do embate eleitoral e pelo consenso cada vez menor diante de reformas difíceis.

A pandemia explodiu de vez a agenda econômica, o feijão da feijoada deste governo. Feijoada de caldo ralo, diga-se, em um governo que nunca foi de fato liberal (a política de educação é mostra disso), mas que envolvia iniciativas de reforma fiscal e do gasto público nas três PECs do programa Mais Brasil.

Tudo agora pertence ao passado. O país termina os dias contando seus mortos, filas imensas de brasileiros sem máscara se formam nas agências da Caixa, pelo auxílio de R$ 600, e tudo indica que vamos terminar o ano com queda superior a 5% do PIB e déficit superior a R$ 600 bilhões, com o qual vamos conviver durante anos.

Em meio à turbulência, o governo ensaia adesão tardia ao modelo de coalizão, com cooptação do centrão. Previsível: o arranjo anterior, que chamei de modelo de corresponsabilidade, só funcionava sob a batuta das reformas estruturais que (por um bom tempo) perderam seu momento político.

Trata-se de um modelo de sobrevivência política. Pode servir para o governo se proteger, na hipótese de votação de um processo contra o presidente, mas não irá muito mais longe.

O que o país precisa é de repactuação. Algum sentido de estabilidade institucional. Da liderança política como um todo, a começar pelo presidente da República, que faria melhor saindo da cerca, no entorno do palácio, e trocando a lógica do entretenimento político pelas questões de Estado.

*Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.


Ricardo Noblat: O que Bolsonaro quer esconder – e por quê

Em jogo, seu destino

Até ontem, eram apenas os exames que fez para saber se contraíra o coronavírus que o presidente Jair Bolsonaro se recusava a mostrar por mais que lhe cobrassem. Ele jura que testou negativo para a doença, e que mostrar os resultados violaria sua privacidade.

Desde ontem, porém, Bolsonaro tenta esconder outra coisa – desta vez o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril último onde teria ameaçado de demissão o então ministro Sérgio Moro se ele não trocasse o superintendente da Polícia Federal no Rio.

Por quatro vezes, a Justiça ordenou que ele mostrasse os resultados dos exames, mas Bolsonaro ainda não o fez. Quanto ao vídeo, rogou a Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal, que revogue a decisão que o obrigaria a apresentá-lo em 72 horas.

No caso dos exames, o temor de Bolsonaro é ser flagrado mentindo. Se adoeceu, pior do que mentir foi ter circulado sem máscaras a apertar mãos e abraçar autoridades e bolsonaristas em manifestações de rua podendo tê-los contaminados.

Há oito dias, Bolsonaro chegou a dizer que divulgaria a gravação da reunião ministerial. Explicou-se assim:

– Eu comecei hoje a reunião de ministros pedindo uma autorização para eles, porque a nossa reunião é filmada. E fica no cofre lá, o chip. Eu falei: ‘senhores ministros, eu posso divulgar o que eu falei na última reunião de ministros?’. Ninguém foi contra. Eu falei, tá certo? Mandei legendar, mandei legendar, talvez tenha chegado no meu WhatsApp agora e eu vou divulgar.

Há seis dias, voltou atrás com a seguinte justificação:

– Eu tenho a última, a última, a última: o conselho que eu tive é não divulgar, para não criar turbulência, uma reunião reservada, então é essa a ideia.

Agora, quer que Celso de Mello reconsidere a decisão de pedir o vídeo porque na reunião ministerial foram tratados “assuntos potencialmente sensíveis e reservados de Estado”. Não sabia disso quando prometeu divulgar o vídeo com direito a legenda?

Ou por “assuntos potencialmente sensíveis e reservados de Estado” deve-se entender a confirmação de que de fato ameaçou Moro caso não tirasse da superintendência da Polícia Federal o delegado que Bolsonaro não queria ver por lá?

Suspeita-se que o vídeo possa ter registrado o ataque do ministro da Educação a um dos ministros do Supremo, e também o bate boca entre os ministros Paulo Guedes e Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, sobre os rumos da Economia.

Não deverá passar de hoje a resposta de Celso de Mello ao pedido de Bolsonaro. O provável é que reafirme sua decisão e garanta que os tais “assuntos potencialmente sensíveis” não interessam ao inquérito que apura se Bolsonaro quis intervir na Polícia Federal.


Luiz Carlos Azedo: Onde mora o perigo

“Ramagem voltou à direção da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) com superpoderes, depois de indicar seu braço direito para o comando da PF”

Uma parte da oposição considera o governo Bolsonaro protofascista. Discordo do conceito por dois motivos: primeiro, porque vivemos numa ordem democrática; segundo, porque a fascistização do governo não é inexorável. Toda vez que o presidente da República faz um gesto autoritário, tipo mandar um jornalista calar a boca, ou prestigia uma manifestação a favor de uma intervenção militar, porém, a narrativa do protofascista ganha novos argumentos: “E agora, você ainda acha que não estamos caminhando para o fascismo?”, questiona um velho amigo jornalista. Diante das circunstâncias, no entanto, vejo que é melhor explicar minha avaliação.

Estou entre os que veem no governo Bolsonaro um viés bonapartista, porque se coloca acima da sociedade e busca se apoiar nas Forças Armadas, com respaldo político-ideológico de pequenos proprietários, empreendedores e corporações ligadas aos setores de transportes e segurança pública, além dos truculentos e embrutecidos de um modo geral. Mais ou menos como Luís Bonaparte, o sobrinho de Napoleão I. A diferença é que, no bonapartismo, o parlamento foi completamente subjugado pelo estamento burocrático-militar, o que não é o nosso caso, embora tenhamos um governo no qual generais da reserva e da ativa estão dando as cartas. A lógica desse processo é o aparelho burocrático-militar avançar em relação aos demais poderes, em aparente neutralidade arbitral. Na França de 1851, o golpe de estado de 2 de dezembro pôs fim ao regime parlamentar.

Aqui no Brasil, diante da maior crise sanitária que o país enfrenta, desde a epidemia de febre amarela de 1918, e de uma recessão que cavalga a pandemia, nossas instituições estão funcionando. O Congresso realiza sessões por videoconferências, em marcha batida para aprovar o chamado “Orçamento de Guerra”, que busca socorrer estados e municípios. O vai e vem da emenda constitucional sobre o assunto, entre a Câmara e o Senado, decorre da divisão do próprio governo, como ficou demonstrado ontem. Assessores do ministro da Economia, Paulo Guedes, atuavam nos bastidores para garantir a aprovação da proposta do Senado sem emendas; já o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO), atuou para que houvesse modificações. Questionado, disse que agiu de mando, ou seja, recebeu orientação do Palácio do Planalto.

Ontem, Rodrigo Maia (DEM-RJ) recebeu a visita dos ministros Braga Netto (Casa Civil) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) na Presidência da Câmara. Os dois generais são os mandachuvas na Esplanada e comandam as articulações para formação de uma base parlamentar com os partidos do Centrão, na base do velho toma lá dá cá, ou seja, em troca de ocupação de cargos no governo. A operação atraiu o PTB, do ex-deputado Roberto Jefferson; o Partido Progressista, do senador Ciro Nogueira; o PL, do ex-deputado Valdemar Costa Neto, e o PSD, do ex-prefeito Gilberto Kassab, figuras carimbadas da chamada “velha política”. As conversas têm uma explicação: os presidentes do DEM, prefeito ACM Neto, de Salvador (BA); do MDB, deputado Baleia Rossi (SP); e do Solidariedade, Paulinho da Força (SP), não embarcaram nas articulações para transformar Maia num pato manco. O jeito foi retomar as conversas com o presidente da Câmara.

Arapongas
A movimentação do Palácio do Planalto tem dois objetivos: a curto prazo, impedir qualquer possibilidade de instalação de um processo de impeachment e afastamento do presidente Jair Bolsonaro por crime de responsabilidade; a médio, eleger ao comando da Câmara um aliado que possa ser pautado por Bolsonaro, o que não acontece hoje. A longo prazo, ninguém sabe. Entretanto, olhando ao redor, uma maioria fisiológica no Congresso é a via mais segura para a ampliação dos poderes de um presidente da República. Essa receita foi adotada com êxito em países como o Peru de Fujimori e a Venezuela de Chávez, a Rússia de Putin e a Hungria de Viktor Orban.

Neste momento, onde mora o perigo? Nas manobras de Bolsonaro para ter à sua disposição pessoal os órgãos de coerção do Estado. Por ora, a tentativa de utilizar a Polícia Federal como instrumento de poder fracassou. Essa intenção foi denunciada pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro. Isso resultou na suspensão da posse do delegado Alexandre Ramagem no cargo de diretor-geral da PF, por decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, e no inquérito aberto para investigar o caso, pelo ministro do STF Celso de Mello, a pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras.

Entretanto, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, delegou boa parte de suas atribuições a Alexandre Ramagem, que voltou à diretoria-geral da Agência Brasileira de Inteligência com superpoderes, depois de indicar seu braço direito, delegado Rolando de Souza, para o comando da PF. A agência tem por missão obter informações para o presidente da República, mas agora ganhou autonomia para contratar serviços sem licitação e financiar missões de servidores, militares, empregados públicos ou colaboradores eventuais da agência, obviamente, em segredo. Ou seja, Bolsonaro está organizando um exército de “arapongas”. É um péssimo sinal.

http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-onde-mora-o-perigo/

Coronavírus: Cidadania é remédio para enxergar o outro na pandemia, diz Gloria Alvares

Jornalista escreve sobre a importância de compartilhar atos do bem em meio à crise provocada pela Covid-19

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Em artigo publicado na 18ª edição da revista Política Democrática Online, a jornalista Gloria Alvarez, voluntária da Obra do Berço do Rio de Janeiro, diz que, na pandemia da Covid-19, só há uma esperança para quem se sente como “pessoa que não existe”. “Uma radical mudança no comportamento do ser humano, adotando o ato de compartilhar tempo ou dinheiro como uma ação civil transformadora e construtiva”, escreve ela. A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília, e pode ser acessada de graça no site da entidade.

» Acesse aqui a 18ª edição da revista Política Democrática Online!

De acordo com Gloria, a ação civil transformadora e construtiva é possível se as pessoas deixarem de querer só para si e conseguirem enxergar quem está ao seu lado, implorando para deixar de ser invisível. A autora observa que, da noite para o dia, milhões de brasileiros ficaram desamparados, sem alternativa para substituir o desemprego ou o subemprego.

“A chegada da pandemia provocada pelo novo coronavírus fora determinante e desesperante, especialmente para aqueles milhões que não pertencem ao Cadastro Único do Ministério da Cidadania, não têm Bolsa Família, muito menos FGTS, RG, título de eleitor e um simples CPF regularizado”, lamenta a jornalista.

Um desses brasileiros, respondendo a um repórter, definiu-se como “uma pessoa que não existe”. “Foi quebrada a rotina diária de passar a montar a barraquinha de biscoitos, balas e chocolate, e ficar sob sol e chuva à espera do resultado de suas vendas”, escreve Gloria, no artigo da revista Política Democrática Online.

No final do dia, depois das contas com o “empresário” (o dono da barraquinha e dos produtos), mal ou bem, restava algum para gastar na vendinha comprando a refeição das crianças e da mulher. “Agora, nem pensar”, observa a autora. “A barraca não podia mais ser montada. O negócio terceirizado dessa ‘pessoa que não existe’ fora fulminado pelas ações preventivas para conter o vírus”, afirma.

Leia mais:

» Coronavírus: ‘Trump não esconde sua decepção com pandemia’, diz Ricardo Tavares

» Coronavírus: Ciência busca vacina para salvar população contra pandemia

» Lilia Lustosa lista filmes sobre universo das pandemias, como a do coronavírus

» ‘Vamos viver de forma dramática com Covid-19 até final do ano’, diz Helio Bacha

» ‘Bolsonarismo ultrapassa clã presidencial’, analisa Marco Aurélio Nogueira

» ‘É urgente enfrentar escalada autoritária de Bolsonaro’, diz editorial da Política Democrática

» Política Democrática: Tragédias do coronavírus e do governo Bolsonaro são destaques

» Acesse aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


Merval Pereira: Pistas

Confirmada a hipótese de o vídeo ter sido apagado, ficará claro que há alguma coisa a esconder

O ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro deu uma pista importante em seu depoimento à Policia Federal no inquérito que investiga a possível tentativa de interferência do presidente Bolsonaro na Polícia Federal.

Disse que será possível verificar na Polícia Federal e na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que todas as informações “legais” foram passadas à presidência da República, não se justificando a reclamação do presidente.

Não é uma simples disputa entre chefe e subordinado sobre o cumprimento de funções, mas a pista para se confirmar que Bolsonaro não estava satisfeito com os limites legais que o impediam de ter acesso a outras informações da Polícia Federal, ato que passaria a ser ilegal.

Se é verdade que o procurador-geral da República Augusto Aras tende a arquivar o inquérito porque em seu depoimento o ex-ministro Sergio Moro não acusou Bolsonaro de nenhum crime, será uma decisão absurda que o desmoralizará, pois foi ele próprio quem identificou os diversos crimes que poderiam estar indicados no depoimento de Moro ao pedir demissão do ministério da Justiça.

Cabe ao procurador-geral investigar, e não a Moro acusar. Além dos indícios de provas que serão ou não investigados pelos promotores, há o vídeo citado por Moro da reunião ministerial onde Bolsonaro o teria ameaçado de demissão por não dar informações sobre a PF, e o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) explicado que aquele tipo de informação não poderia ser fornecida.

Neste caso, ficaria caracterizada a tentativa do presidente de interferir indevidamente na PF. Por absurdo, confirmada a hipótese de o vídeo ter sido apagado, ficará claro que há alguma coisa a esconder, o que configuraria obstrução da Justiça, um crime óbvio.

Foi assim que terminou a presidência do então presidente Richard Nixon, no caso Watergate nos Estados Unidos, quando parte de uma gravação de conversa em seu gabinete foi deletada pela secretária do então presidente americano, alegadamente por acidente. Alegação que se tornou ridícula.

O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, é o titular da ação penal, o que significa que é um ato de soberania sua oferecer a denúncia ao final do inquérito, ou arquiva-lo. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, relator do inquérito, não tem autoridade para discordar da decisão em caso de arquivamento. Mas o Supremo pode não aceitar eventualmente uma denúncia.

Repúdio
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, manifestou-se em nome da Corte condenando as agressões a jornalistas na manifestação contra o STF e o Congresso em frente ao Palácio do Planalto no domingo passado, com a presença do presidente Jair Bolsonaro.

Aproveitou para se posicionar sobre os ataques ao Supremo: “Na democracia, as divergências são equacionadas pelas vias institucionais adequadas, pré-estabelecidas na Constituição, a qual dita as regras do jogo democrático. As irresignações contra decisões deste Supremo Tribunal Federal se dão por meio dos recursos cabíveis. Jamais por meio de agressões ou ameaças a esta instituição centenária, ou a qualquer um de seus ministros individualmente”.

Toffoli disse que, na ocasião, “foi agredida a democracia”. A coincidência de as agressões terem acontecido no Dia da Liberdade de Imprensa, tornou, para Toffoli, as tornou “lamentáveis e intoleráveis”.

“Sem imprensa livre, não há liberdade de informação e expressão. Sem imprensa livre não há democracia”, afirmou. O presidente Dias Toffoli voltou a apelar a união necessária: “Devemos prestigiar a concórdia, a tolerância e o diálogo, bem como exercitar a solidariedade e o espírito coletivo. É momento de harmonia, de equilíbrio e de ação coordenada entre as instituições e os Poderes da República. As divergências existem, pois elas são naturais na democracia. Na democracia, as divergências são equacionadas pelas vias institucionais adequadas, preestabelecidas na Constituição, a qual dita as regras do jogo democrático”.

Mais uma vez a retórica a favor da democracia e da liberdade de expressão ganha força nesses momentos escuros que estamos vivendo. Breve, será necessário mais do que simples palavras para repudiar a tentativa de implantar no país um governo autoritário.


William Waack: Um 'novo' governo

Mas as pessoas só querem saber quando vão acabar a crise e a desagregação

O governo dono da plataforma com a qual foi eleito Jair Bolsonaro terminou no começo de maio, aos 16 meses de vida. Seus dois fortes apelos eram a campanha anticorrupção, associada à mudança da forma de se fazer política, e a grande reforma do Estado, ali incluída uma ambiciosa agenda de reformas econômicas de cunho estruturante e “liberal”.

O homem visto como campeão da luta anticorrupção, o ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, desceu da carruagem dizendo que o fazia por não acreditar que a campanha prosseguiria como tinha sido nos tempos da Lava Jato. Bolsonaro o chama agora de mentiroso e traidor. Em seu depoimento à Polícia Federal, Moro deixou claro como pretende seguir o roteiro: chamando Bolsonaro para a briga no campo da ética e da política – suas acusações não surgem até aqui capazes de levar o procurador-geral da República a oferecer denuncia contra o presidente.

Mas está claro que um pedação significativo da bandeira anticorrupção foi arrancado das mãos de Bolsonaro, e essa não é uma disputa que se encerra no curto prazo. Ela vai para 2022, e o motivo é como Bolsonaro decidiu fazer política agora: do mesmo jeito que seus antecessores fizeram, ou seja, oferecendo cargos em troca de apoio. Não importa como Bolsonaro justifique essa mudança de rumo a seguidores capazes de acreditar em qualquer palavra de ordem, nem se ele agiu por medo, cálculo, pressão, desespero ou burrice. O fato incontestável é o da presença ainda mais dominante da “velha” política.

É dela que passou a depender agora o outro pilar com o qual Bolsonaro foi eleito, o das reformas estruturantes e liberais. Perdeu-se tempo e o imponderável sob a forma da dupla catástrofe do coronavírus alcançou Paulo Guedes no meio da terra de ninguém – no mata burro, para usar a linguagem de quem aprecia o jogo de tênis.

A necessidade de socorro de emergência a estados e municípios arrancou a âncora fiscal, com os piores golpes vindo de dentro do Palácio do Planalto. Continua ali na gaveta o plano da gastação desenfreada em infraestrutura mas foi o sinal de abandono do congelamento dos salários do funcionalismo dado pelo próprio presidente que melhor traduziu o que sempre se intuiu: o corporativismo mora aqui.

A combinação de farra fiscal em ano eleitoral com severa recessão econômica é horrorosa para qualquer governo, mas o Bolsonaro 2.0 começa sob uma generalizada desagregação política e institucional, cuja expressão mais evidente é a forma como o STF decidiu reiterar limites à atuação do chefe do Executivo. “A judicialização da política em si já é ruim”, resumiu uma das grandes figuras do mundo do direito em Brasília, “pois o Judiciário não deveria legislar, mas o que estamos vendo é o pior dos mundos: é o Judiciário governando”.

Essa erosão está sendo acelerada pelas mortes diárias, pela apreensão das pessoas com seu futuro imediato, pela perda de confiança de consumidores e empresários, pelo medo do desemprego, da doença e da morte. São fatores “subjetivos” e “emocionais” de enorme e imprevisível peso na política, diante dos quais Bolsonaro tem insistido em aumentar a comoção. Exatamente como tudo isso vai se desdobrar é impossível dizer neste momento. Como também é difícil fugir à constatação de que a tripla crise – de saúde pública, economia e política – só tornou tudo ainda pior.

Aos 16 meses, Bolsonaro reinaugura seu governo num ambiente de angústia profunda e prolongada, com as pessoas se perguntando, aflitas, quando tudo isso vai acabar.


Coronavírus: ‘Trump não esconde sua decepção com pandemia’, diz Ricardo Tavares

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online, consultor analisa impacto da Covid-19 na corrida eleitoral norte-americana

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

“O novo coronavírus pode ter paralisado a sociedade e a economia norte-americanas, mas a política continua sua dinâmica intensa”. A avaliação é do consultor internacional de empresas de tecnologia, Ricardo Tavares, mestre em ciência política pelo Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e membro do Council on Foreign Relations (CFR), em artigo que produziu para a 18ª edição da revista Política Democrática Online. “Trump não esconde sua decepção com a pandemia”, afirma.

» Acesse aqui a 18ª edição da revista Política Democrática Online!

Tavares lembra que, nos Estados Unidos, os conflitos políticos estão no centro da gestão da pandemia, que está influenciando decisivamente a preparação para as eleições presidenciais em novembro deste ano. “O presidente Donald Trump faz coletivas de imprensa diárias sobre a pandemia com longas digressões que muitas vezes contradizem seus técnicos também presentes. Esta alta exposição à mídia, apesar do gerenciamento desastrado da crise, fez crescer sua popularidade”, escreve o consultor.

O mestre em ciência política observa, ainda, que, no Partido Democrata, a pandemia resolveu a disputa entre o vice-presidente Joe Biden e o senador Bernie Sanders. Segundo o artigo publicado na revista Política Democrática Online, Sanders finalmente reconheceu que não tem chance alguma de ganhar as primárias contra Biden e encerrou sua campanha. Biden é o candidato democrata à presidência.

“O Partido Republicano continuou sua trajetória de desencorajar eleitores a votarem, uma estratégia que assegura a predominância do partido na política americana, apesar de a maioria ter votado democrata em eleições recentes”, escreve Tavares. “No estado de Wisconsin, os Republicanos forçaram o voto presencial, descartando o adiamento das primárias até junho”, continua.

De acordo com o consultor, Trump não esconde sua decepção com a pandemia porque esperava fazer campanha para a reeleição em cima de seu desempenho econômico.  Em fevereiro, conforme observa o autor, a taxa de desemprego nos EUA era de 3.5%, a mais baixa das últimas décadas. Hoje, há 17 milhões de desempregados e, nas próximas duas semanas, devem ser 20 milhões, uma taxa de desemprego de 15% da força de trabalho.

Leia mais:

» Coronavírus: Ciência busca vacina para salvar população contra pandemia

» Lilia Lustosa lista filmes sobre universo das pandemias, como a do coronavírus

» ‘Vamos viver de forma dramática com Covid-19 até final do ano’, diz Helio Bacha

» ‘Bolsonarismo ultrapassa clã presidencial’, analisa Marco Aurélio Nogueira

» ‘É urgente enfrentar escalada autoritária de Bolsonaro’, diz editorial da Política Democrática

» Política Democrática: Tragédias do coronavírus e do governo Bolsonaro são destaques

» Acesse aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


Eleições 2020: Jornada destaca dados importantes aos futuros candidatos

Realizado pela FAP, curso de formação política chega à penúltima aula e explica fim das coligações proporcionais

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Informações importantes sobre as eleições municipais de 2020, como prazos, normas de financiamento de campanha e prestação de contas, são explicadas na penúltima aula multimídia da Jornada da Cidadania, disponibilizada, a partir desta quarta-feira (6), na plataforma de educação a distância. O novo pacote de conteúdo do curso de formação política, realizado pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), apresenta outros dados importantes a quem tiver interesse na disputa para vereador ou prefeito nos 5.570 municípios do Brasil.

O acesso à plataforma da Jornada da Cidadania é exclusivo a alunos matriculados com login e senha. Na principal videoaula do novo pacote de conteúdo, o advogado Arlindo Fernandes de Oliveira, especialista em direito eleitoral, destaca a nova regra do jogo. “O sistema eleitoral é o mesmo há muito tempo, mas, agora, nesta eleição, pela primeira, há uma novidade importante, uma vez que cada partido deve sair sozinho, sem coligações proporcionais, nas eleições municipais”.

Em seguida, o jornalista e colunista político Luiz Carlos Azedo explica o que é o Cidadania, que apoia a Jornada da Cidadania, apresentando o partido político que ele define como “pluralista”. Depois, o secretário-geral do partido, Davi Zaia, dá dicas sobre o papel do bom vereador, e o diretor de Treino da empresa Ideias Radicais, Renato Diniz, explica os níveis de abstração da liderança.

O novo pacote de aula também indica aos alunos que assistam ao filme a Voz da Igualdade (2008). A obra cinematográfica estadunidense tem direção de Gus Van Sant. É baseada na vida do político e ativista gay Harvey Milk, que foi o primeiro homossexual declarado a ser eleito para um cargo público na Califórnia, como membro da Câmara de Supervisores de São Francisco.

Os alunos também deverão ler o primeiro capítulo do livro Coronelismo, Enxada e Voto, que aborda indicações sobre a estrutura e o processo do coronelismo. O autor é Victor Nunes Leal. Em seguida, no podcast, o advogado eleitoral que ministrou aula de abertura comenta a possibilidade de adiamento das eleições municipais e as possíveis consequências da pandemia sobre o pleito de 2020. Para finalizar, os alunos também deverão responder à prova e ao questionário de satisfação.

Didática do curso

No total, o curso tem 36 horas de duração, distribuídas ao longo de 14 semanas. De acordo com o coordenador da Jornada da Cidadania, o advogado Marco Marrafon, o objetivo é formar e capacitar cidadãos acerca de conteúdos relevantes à política, além de fornecer bases fundamentais para possíveis candidatos que pretendem disputar as eleições municipais deste ano.

O conteúdo programático da Jornada da Cidadania está dividido em cinco pilares: ética e integridade na ação política; comunicação eficaz; fundamentos de teoria política e democracia; comunicação eficaz e casos de sucesso. Sempre às quartas-feiras, a plataforma disponibiliza novo pacote de aula multimídia. Dessa forma, o aluno pode se organizar ao longo da semana para aproveitar todos os conteúdos de cada aula.Leia mais:

Leia mais:

» ‘Governos vivem crise’, diz Felipe Oriá em nova aula da Jornada da Cidadania

» Síndrome do sapo cozido instiga aula de ética da Jornada da Cidadania

» Defesa de causas: 10 dicas de Leandro Machado na Jornada da Cidadania

» Ciberpopulismo ameaça democracia? Jornada da Cidadania responde em nova aula

» Entenda liberalismo igualitário e progressista em aula da Jornada da Cidadania

»Marco Marrafon: CF estabelece cooperação federativa para superar crise do coronavírus

» Comunismo e social-democracia têm ponto em comum? Veja Jornada da Cidadania

» O que é liberalismo econômico? Jornada da Cidadania explica corrente em nova aula

» Como ser um líder de sucesso? Veja nova aula multimídia da Jornada da Cidadania

» Nova aula do curso Jornada da Cidadania aborda política como vocação


Cristiano Romero: A economia Frankenstein

Modelo brasileiro é aberração por não superar passado

O longo período de instabilidade entre meados das décadas de 1970 e 1990, seguido de tentativas frustradas (ou incompletas) de implantação aqui de uma economia competitiva, equilibrada do ponto de vista fiscal e menos desigual no que diz respeito à distribuição da renda, criou no Brasil uma espécie de Frankenstein. No fundo, o país nunca superou modelos que, aparentemente, sucederam num determinado momento, mas, em outros, tornaram-se uma das principais razões do fracasso do nosso Produto Interno Bruto (PIB) em crescer de forma mais rápida.

A longa batalha contra a superinflação nos fez pensar apenas no dia de hoje. O planejamento de longo prazo, uma característica presente nas nações ricas e marcante nas economias asiáticas de crescimento acelerado, perdeu relevância na Ilha de Vera Cruz desde a crise da dívida, em 1982.

Parece mentira, mas, no início daquela década, o governo tinha órgãos públicos para avaliar permanentemente, por exemplo, a qualidade de rodovias federais construídas na década anterior. O objetivo era verificar se o impacto do aumento do tráfego ao longo do tempo não estava diminuindo a eficiência daquela estrada, elevando os custos dos produtores de grãos e de bens industriais. Na ocasião, um engenheiro brasileiro desenvolveu, para facilitar essa tarefa, um software que se tornou referência no mundo.

A urgência do combate à inflação turvou a visão de empresários, consumidores e formuladores de políticas públicas. Nada era mais importante do que domar o processo inflacionário, que, desde a primeira crise global do petróleo, em 1973, tornou-se uma preocupação, uma vez que o Gigante do Atlântico Sul era fortemente dependente de importação de óleo bruto.

A coexistência de mecanismos distintos usados não só nos planos de estabilização, mas também em modelos de desenvolvimento, forjou contradições que atolam esta enorme economia numa espécie de areia movediça. Daí, a referência ao famoso personagem da escritora Mary Shelley.

Na Ilha de Vera Cruz, convivem lado a lado um sofisticado mercado financeiro, dotado de instituições capazes de competir com seus pares internacionais, especialmente nas áreas de gestão de recursos e estruturação de operações no mercado de capitais, com uma injustificável rede de bancos estatais, seis no total. Justamente por não conseguirem competir com os rivais do setor privado, esses bancos custam caro ao Estado.

Tendo sido, ao lado dos bancos estaduais, uma das fontes da superinflação nas décadas mencionadas, continuam funcionando 26 anos após o lançamento do Plano Real, sujeitos a pressões políticas e à geração de prejuízos cobertos pelo suor de todos os brasileiros. Isto, sem falar da fatura recorrente que temos que honrar, decorrente de rombos dos fundos de pensão vinculados a essas instituições, originados de gestão temerária ou corrupção. A pergunta que fica é a seguinte: se a maioria dos congêneres estaduais foi privatizada, por que não se deu a mesma destinação, senão a todos, a quatro ou cinco dos federais?

Banco do Brasil e Caixa detêm quase 50% do volume de depósitos do sistema bancário. No fundo, a concentração faz a alegria dos grandes bancos privados, uma vez que isso é a garantia de que jamais haverá competição real no segmento de bancos de varejo. Isso explica os juros altos cobrados por todos os bancos, as taxas injustificáveis aplicadas a coisas como avaliação de imóvel, à resistência ignominiosa das instituições financeiras de renegociar dívidas, alongar prazos de débitos, enfim, de dar uma contribuição aceitável e indolor (face a seus lucros) à sociedade no momento mais trágico da humanidade em mais de cem anos.

Na semana passada, esta coluna relatou, de forma bastante sintética, as gestões da economia brasileira desde 1964. O objetivo é mostrar como o vai-e-vem de modelos, conceitos e experiências nos paralisa. Naquela edição (29/04/2020), foram retratadas as administrações até o último governo militar. Por um problema técnico, a conclusão desse relato e a informação de que o relato continuaria na edição seguinte foram suprimidos.

A crise da dívida, em 1982, solapou o modelo de substituição de importações adotado até então. Dali emdiante, o governo não teve mais condições de investir em obras públicas e mesmo na manutenção dos investimentos realizados em setores como os de telefonia e energia. O modelo estatal não funcionava mais e, na verdade, tornou-se fonte da perda do controle da inflação. A insistência em ressuscitar o defunto custou e ainda custa caro ao país. Senão, vejamos:

  1. Em 1986, o governo Sarney lançou o Plano Cruzado, a primeira tentativa de se derrubar a inflação, no período de redemocratização, por meio de um choque; preços e salários foram congelados, “tablitas” foram aplicadas sobre prestações de crediário (criando-se um efeito ilusório para o consumidor, de que sua dívida diminuíra quando, na verdade, o valor era o mesmo, descontado dos juros embutido na prestação); a inflação despencou, os trabalhadores tiveram ganho real de renda no início do plano, mas, à medida que o consumo expandiu-se de forma veloz, houve desabastecimento, cobrança de ágio etc; dois fatores já condena riam o Cruzado ao fracasso: o fato de termos uma economia fechada, herança do governo Geisel; e a situação fiscal precária da União; fracassado o plano, Sarney ainda lançou duas tentativas que não deram certo, os planos Bresser e Verão;
  2. Em março de 1990, eleito como o “outsider” que na verdade não era, Fernando Collor de Mello valeu-se do ataque mais radical e ousado da história do país para debelar a inflação: o confisco dos depósitos; toda a dívida pública era, grosso modo, reemitida a cada 24 horas; isso criou o que os economistas chamam de “quase-moeda”, tornando inútil qualquer esforço de controle monetário na economia, logo, era impossível controlar a evolução dos preços; o plano, chamado por Collor de “bala de prata”, isto é, a última do tambor, fracassou, mas seu governo lançou agenda liberalizante para o país superar o modelo de substituição de importações.

Na próxima edição, a coluna tratará das gestões seguintes.


José Murilo de Carvalho: 'Militares que embarcaram no governo Bolsonaro se veem em um dilema'

Para o historiador José Murilo de Carvalho, tutela do Exército pode ser usada contra o presidente

Por Malu Delgado, do Valor Econômico

SÃO PAULO - A tutela do Exército pode ser usada contra o presidente Jair Bolsonaro “caso ele leve o país a situação de grave instabilidade”, avalia o historiador José Murilo de Carvalho, em entrevista ao Valor. Observador atento do papel das Forças Militares na república brasileira e em especial na conjuntura atual, José Murilo concordou em responder a perguntas por e-mail, sua forma recorrente de comunicação, mesmo antes da quarentena.

“Imagino que os militares que embarcaram na canoa furada do governo se veem em um dilema: ou caem fora, ou arriscam fazer as Forças Armadas pagarem o custo dos erros do presidente”, enfatizou, numa resposta enviada dias antes de o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, divulgar, na segunda-feira, o documento que enfatiza exatamente o papel constitucional dos militares, como reflete o historiador. “Não creio que a corporação militar esteja disposta a pôr em perigo sua reputação entre a população para defender um presidente que não está à altura do cargo”, disse ao Valor.

Na reedição revista e ampliada de seu livro “Forças Armadas e política no Brasil”, da Editora Todavia, José Murilo já enfatizava ter uma “nova, e mais pessimista, interpretação do papel das Forças Armadas na história de nossa República e na construção de nossa ainda claudicante democracia”. A atuação dos militares, explica ele, merece seu olhar atento desde os tempos em que o jovem universitário, militante da Ação Popular, assistiu perplexo ao golpe de 1964. Nesta revisão, José Murilo dedicou um capítulo exclusivo a 2019, intitulado “Uma república tutelada”.

Além de relembrar o histórico tuíte de abril de 2018, do general Eduardo Villas Bôas - que o historiador classifica como agressão à Constituição pelo fato de pressionar um outro Poder, o Supremo Tribunal Federal, a rejeitar o habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva - José Murilo escreve que já havia “nuvens políticas turvando os céus bem antes”. Em 2015, pontua, o general que comandava a Secretaria de Economia e Finanças do Exército, Hamilton Mourão, já dava fortes declarações sem a usual contenção de militares para se meter em assuntos políticos.

“Não se pode deduzir do fato da inédita presença de militares no governo [Bolsonaro] a existência de um governo militar que se pareça com o que vigeu entre 1964 e 1985”, explica o historiador em seu livro. Mais explicitamente, os militares do governo Bolsonaro não representam as corporações e em uma eventual militarização do governo Bolsonaro, o presidente não teria adesão total das três Forças.

A pandemia serviu para ressaltar dramaticamente o problema de nossa desigualdade social”

Em outro ponto de reflexão que não poderia estar mais atual, José Murilo já salientava em sua obra que a Constituição de 88 manteve o papel de poder moderador das Forças Armadas, no seu artigo 142 (como na Constituição de 1824). É sintomático, continua ele, que não tenha havido “sequer uma tentativa de mudança em 39 anos de governos civis”, como se a república brasileira precisasse dessa bengala para sobreviver. “Cria-se, desse modo, um círculo vicioso: as Forças Armadas intervêm em nome da garantia da estabilidade do sistema político; as intervenções, por sua vez, dificultam a consolidação das práticas democráticas”, escreveu.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O senhor já havia feito análises minuciosas sobre o papel político dos militares do Brasil, antes e depois da ditadura. Considerando a noção de “intervencionismo tutelar” das Forças Armadas, no Estado Novo, o senhor considera que a tutela militar ainda é característica preponderante do governo Bolsonaro agora, neste atual cenário de política agravada pela pandemia da covid-19?

José Murilo de Carvalho: A visão tutelar é das corporações militares, especialmente do Exército, não de Bolsonaro. Ela pode mesmo ser usada contra Bolsonaro, caso ele leve o país a situação de grave instabilidade. Recentemente, um general repetiu um mantra dessa visão dizendo que as Forças Armadas servem à pátria, não a governos [o general Alberto Cardoso, que idealizou o GSI e a Abin, no governo Fernando Henrique Cardoso, afirmou em 2019 que o papel das Forças Armadas “é pela defesa da pátria e garantia da lei. Nós não somos servidores do governo, somos servidores do povo brasileiro”]. Ora, no artigo 142 da Constituição está escrito que as Forças Armadas estão submetidas à autoridade suprema do presidente da República. Contradizendo essa afirmativa, o próprio artigo diz, a seguir, que as Forças Armadas se destinam “à garantia dos Poderes constitucionais”. São duas coisas incompatíveis, uma aberração jurídica. Ou elas se submetem ao presidente ou garantem os Poderes. Em caso de presidente que ameace a independência dos Poderes, sem que haja ameaça grave ao país, o que farão elas? A ideologia da tutela as levará a optar pela segunda parte. Imagino que os militares que embarcaram na canoa furada do governo se veem em um dilema: ou caem fora, ou arriscam fazer as Forças Armadas pagar o custo dos erros do presidente.

Valor: Qual é a trincheira militar para evitar o desdobramento de um impeachment de Bolsonaro? O apoio das Forças Armadas, da cúpula à base, vai funcionar como contenção para Bolsonaro?

José Murilo: Entendo que contenção aqui se refere à defesa de Bolsonaro. Outro mantra das Forças Armadas é que elas têm boa aceitação na população, embora enfrentem a hostilidade de intelectuais, artistas, jornalistas. Esta visão tem sido confirmada em inúmeras pesquisas de opinião pública. Sem grande perigo de convulsão social, não creio que as Forças Armadas intervenham contra ou a favor do presidente. Hoje, a não ser em cabeças paranóicas, não há o perigo comunista como se alegava em 1964. Sem ameaça séria à segurança pública, não creio em intervenção explícita. Poderá haver disfarçada como a do general Villas Bôas às vésperas do julgamento de Lula no Supremo. Se a gravidade de uma eventual crise, como a de conflito entre os Poderes, for provocada ou acirrada pelo presidente, ele próprio poderá ser o alvo de ação para “garantir os Poderes constitucionais”. Não creio que a corporação militar esteja disposta a pôr em perigo sua reputação entre a população para defender um presidente que não está à altura do cargo.

Valor: Em suas reflexões sobre a cidadania brasileira, o senhor pontuou que “perdeu-se a crença de que a democracia política resolveria com rapidez os problemas da pobreza e da desigualdade”. Quais podem ser as consequências deste momento, considerando os aspectos políticos e a falta de vigor da nossa democracia?

José Murilo: A pandemia serviu para ressaltar dramaticamente o problema de nossa desigualdade social há muito apontado por analistas de nosso drama nacional. Sem a pandemia, já parecia quase impossível reduzir a desigualdade que bloqueia nosso caminho para um país sustentável. Com ela, tem-se corretamente gastado milhões para aliviar o drama dos pobres. Mas o que tem sido feito para aproveitar a crise no sentido de promover reformas estruturais? Nada. A cláusula pétrea de nossas políticas econômica e fiscal é: distribuir se possível, redistribuir, isto é, tirar, via política fiscal, de quem ganha mais para dar a quem ganha menos, nunca. Hoje, quem ganha R$ 5 mil ao mês cai na mesma alíquota do imposto de renda de quem ganha R$ 100 mil.

Valor: Como o senhor mesmo já atestou, Getúlio Vargas, Jânio Quadros e Fernando Collor tinham “traços messiânicos e, sintomaticamente, nenhum deles terminou o mandato, em boa parte por não se conformarem com as regras do governo representativo, sobretudo com o papel do Congresso”. Bolsonaro segue a mesma característica do trio acima?

José Murilo: Ele está indo por caminho perigoso, talvez acreditando no respaldo incondicional verde-oliva, que os outros não tinham. Acho que está enganado. No momento, está protegido pela pandemia. Um processo de impeachment nestas condições seria inapropriado. Depois, não. Para o país, o ideal seria que parasse de dar motivos para medida tão drástica.

Valor: Pelo menos um terço da população brasileira apoia Bolsonaro. A nação segue “bestializada”, se é que se pode apropriar do termo nesta reflexão?

José Murilo: Usar a expressão hoje não seria adequado. Na proclamação, realmente não houve povo, como notou Aristides Lobo. Só Quintino Bocaiúva viu povo na rua, como noticiou na edição do dia 16 em seu jornal, “O País”. Foram as primeiras “fakenews” da República. Mesmo depois, durante toda a Primeira República, os votantes não chegavam a 5% da população. O povo só se manifestava em revoltas que não alteravam as bases do sistema. Hoje é totalmente diferente. Há uma imensa ágora nas redes sociais em que quase todos se podem manifestar. Há conflito de opinião, mas chamar uma parte de bestializada seria arrogância da outra parte. A divergência é fruto de nossa sociedade, de nossas desigualdades.

Valor: Desde o início do século 21, expande-se no mundo a noção mais liberal e fiscalista, com forte debate sobre o papel do Estado-nação, como o senhor mesmo já salientou em suas obras. O senhor acredita que a pandemia vai abrir espaço para um reposicionamento do intervencionismo estatal? Isso poderia ser benéfico?

José Murilo: Até liberais ortodoxos concordam que em situações como a de hoje é imprescindível a iniciativa do Estado. Se isso vai ter consequências duradouras é uma questão de adivinhação. Entre nós, já ficaria satisfeito se, como lição da crise, o Estado decidisse montar um sistema mais eficiente e mais abrangente de saúde pública e de apoio a vulneráveis.

Valor: A democracia sairá mais frágil ou mais consolidada após a superação desta pandemia?

José Murilo: Outra adivinhação. Meu lado otimista, em fase minguante, acredita que nossas instituições terão força suficiente para navegar evitando o naufrágio. No que se refere à consolidação de sistemas políticos, a capacidade de sobreviver a desafios é um dos fatores mais importantes.


Ricardo Noblat: Justiça põe a nu o governo Bolsonaro. E o que se vê é muito feio

Aperta-se o cerco

Diz a lei que ninguém é obrigado a produzir provas que o incriminem. Ou o presidente Jair Bolsonaro não conhece a lei ou decidiu contrariá-la para ajudar a esclarecer o que de fato houve quando ele tentou intervir na Polícia Federal, provocando por tabela a saída do governo do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro.

De volta do expediente no Palácio do Planalto, no cercadinho à entrada do Palácio da Alvorada onde costuma confraternizar com seus devotos e mandar jornalistas calarem a boca, Bolsonaro sacou do seu celular e mostrou um fragmento de mensagens trocadas por ele e Moro. Ocorre que o que ele mostrou dá razão ao ex-juiz.

Moro disse em depoimento à Polícia Federal que Bolsonaro lhe enviara notícia publicada sobre um inquérito aberto no Supremo Tribunal Federal para apurar malfeitos de um grupo de deputados aliados dele. E ao comentar a notícia, escreveu que era por isso que chegara a hora de trocar o diretor-geral da Polícia Federal.

Por que Bolsonaro assinou embaixo da acusação que, se provada, poderá servir para que o Procurador-Geral da República o denuncie pelos crimes de falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de Justiça e corrupção passiva? Sabe-se lá! Bolsonaro é seu maior inimigo.

Cadê a gravação em vídeo e áudio da reunião ministerial de 22 de abril passado? Só falta a gravação ter desaparecido, como Queiroz. Ou aparecer faltando trechos. O ministro Celso de Mello, do Supremo, deu um prazo de 72 horas para que uma cópia fiel da gravação lhe seja entregue pelo governo. Nem uma hora a mais.

Foi nessa reunião, segundo Moro, na presença de várias testemunhas, que Bolsonaro afirmou que se não pudesse trocar o superintendente da Polícia Federal no Rio, trocaria o diretor-geral e o próprio ministro da Justiça. Desde agosto de 2019 que ele cobrava a Moro a substituição. Queria pôr ali um delegado de sua confiança.

A razão disso? Foi o próprio Bolsonaro, outra vez, que se complicou ao explicá-la ontem: “O Rio é o meu Estado. O Rio é meu Estado. Eu fui acusado de tentar matar [a vereadora] Marielle Franco, quer algo mais grave? A Polícia Federal tem que investigar. Por que não investigou com profundidade?”. Não, ele não foi acusado.

Talvez tema, um dia, ser. Investigados são os seus filhos Carlos, o Zero Dois, e Flávio, o Zero Um. E não pela morte de Marielle, mas por ligações com milicianos e apropriação criminosa de parte dos salários pagos a servidores públicos empregados em seus gabinetes na Câmara de Vereadores e na Assembleia Legislativa do Rio.

Em março último, Moro ouviu de Bolsonaro quase em tom de súplica: “Você tem 27 superintendentes [da Polícia Federal]. Eu quero apenas 1, o do Rio”. À época, Moro já fora avisado por Bolsonaro que o futuro diretor-geral da Polícia Federal seria o delegado Alexandre Ramagem, que cuidara dele depois da facada.

Só não foi porque o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, suspendeu a posse. Mas Ramagem indicou para substitui-lo o delegado Rolando Alexandre de Souza, seu braço direito na Agência Brasileira de Inteligência. E a primeira coisa que Rolando fez foi trocar o superintendente do Rio. Como Bolsonaro queria.