Merval Pereira: A banalização do ilegal
O Brasil está perigosamente normalizando atividades ilegais, e o caso do encontro que o presidente Bolsonaro teve com advogadas de seu filho Flávio para receber uma denúncia contra a Receita Federal é apenas a mais recente revelação, e não a menos grave.
O presidente participou de uma reunião, em 25 de agosto, no seu gabinete do Palácio do Planalto, com as advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach, que apresentaram um dossiê sobre “irregularidades das informações constantes de Relatórios de Investigação Fiscal” sobre o senador.
Para agravar a situação, participaram da reunião o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, e o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem, o mesmo que Bolsonaro e seus filhos queriam ver à frente da Polícia Federal.
A nova tentativa de anular as investigações sobre o esquema de desvio de dinheiro público, conhecido como “rachadinha”, em seu gabinete quando era deputado estadual foi feita fora da agenda, e só foi revelada porque a revista “Época” a descobriu.
Por essa nova versão, um grupo de fiscais da Receita Federal usou de meios ilegais para fornecer informações sobre as contas do hoje senador Flávio Bolsonaro aos órgãos de fiscalização como o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) — o que, se confirmado, feriria de morte as acusações contra ele.
A explicação para tamanha irregularidade é que o assunto envolve integrante da família presidencial, o que merece análise dos órgãos de segurança, especialmente o GSI, que cuida da segurança pessoal do presidente e sua família. Tal justificativa é de uma banalidade tão grande que, revelado o encontro, o GSI divulgou uma nota afirmando que “à luz do que nos foi apresentado, o que poderia parecer um assunto de segurança institucional configurou-se como um tema, tratado no âmbito da Corregedoria da Receita Federal, de cunho interno daquele órgão e já judicializado”. A nota do GSI concluiu: “Diante disso, o GSI não realizou qualquer ação decorrente. Entendeu que, dentro das suas atribuições legais, não lhe competia qualquer providência a respeito do tema”. Como se bastasse uma explicação burocrática para tamanha irregularidade.
Um presidente da República utilizar os órgãos de segurança a favor de um filho seu que é investigado por corrupção é ato gravíssimo, que precisa ser apurado e pode resultar em impeachment. No caso, apenas em tese, porque o centrão no momento está bem aquinhoado e não dará a maioria necessária.
O caso é agravado por haver uma investigação no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a denúncia do ex-ministro da Justiça Sergio Moro a respeito da interferência do presidente Bolsonaro na Polícia Federal justamente para proteger seu filho das investigações. O ministro Alexandre de Moraes herdou o processo do ministro aposentado Celso de Mello e agora tem sob seus cuidados três processos que convergem.
Os das fake news e das manifestações antidemocráticas, organizadas pelo chamado “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto, são próximos entre si, e agora o da interferência na Polícia Federal, com as novas informações que devem ser anexadas, pode demonstrar que o governo se aproveita de sua estrutura e poder para defender interesses próprios, sejam pessoais ou eleitorais.
Já há diversos pedidos de políticos, como o deputado federal Alessandro Molon, do PSB, e o senador da Rede Randolfe Rodrigues, pela atuação da Procuradoria-Geral da República e do próprio STF nesse caso revelado pela “Época”, num momento em que Bolsonaro volta a assumir posições agressivas contra a Justiça. Ao afirmar que não é possível um juiz determinar que a vacinação contra a Covid-19 seja obrigatória, Bolsonaro está claramente pressionando o Supremo, que deve tratar do tema em breve.
Há indicações de que a maioria do STF é a favor da obrigatoriedade da vacinação, por uma questão de segurança sanitária. O presidente volta a usar sua força nas mídias sociais para jogar seus seguidores contra o Supremo, o que não deu resultado das outras vezes.
Hélio Schwartsman: Ponto para a democracia
Chile transformou Constituição com forte vício de origem em experiência real de democracia
Símbolos importam. E os chilenos foram claros quanto a isso ao determinar, por uma margem de quase 80%, que a atual Carta, herança da ditadura de Pinochet, seja substituída por uma nova, a ser elaborada por uma convenção constitucional exclusiva. Ponto para a democracia.
No mundo da vida prática, porém, o Chile, apesar da origem espúria da Carta, já era uma democracia sólida, com alguns ciclos de alternância de poder entre esquerda e direita. Os aspectos mais autoritários da Constituição foram extirpados por uma série de emendas aprovadas ao longo dos anos, notadamente em 1989 e 2005. Não teria sido impossível persistir nesse caminho.
Aliás, num cálculo puramente numérico, será mais difícil aprovar a nova Carta do que emendar a velha. Pelas regras em vigor, algumas matérias constitucionais exigem maioria de 3/5 dos parlamentares para ser modificadas, e outras, as mais sensíveis, de 2/3.
Pelas regras da convenção, só irão para o novo texto constitucional artigos aprovados por 2/3 dos constituintes, e, ao fim dos trabalhos, o projeto ainda terá de ser chancelado pela população em plebiscito.
Outro aspecto interessante do processo constitucional é que será o primeiro no mundo a ser conduzido por uma convenção paritária, com 50% de mulheres e 50% de homens. Achei um pouco autoritário não terem dado aos eleitores chilenos a oportunidade de exercer uma escolha ativa diante de algo tão novo (a opção pela convenção exclusiva já vinha com a paritária), mas são os tempos em que vivemos.
Meu ponto é que constituições são uma parte importante da democracia, mas nem de longe o jogo inteiro.
Há Cartas que são ótimas no papel, mas que na vida real não geram nada parecido com uma democracia, e há casos como o do Chile, que conseguiram transformar uma Constituição com forte vício de origem numa experiência real de democracia. Símbolos importam, mas a prática também.
Luiz Carlos Azedo: O cobertor curto
Indefinição em relação às reformas e impasse no Congresso para instalação da Comissão de Orçamento aumentam a insegurança Dos investidores na nossa economia
O Ministério da Economia anunciou que não pretende pagar o 13º. Bolsa Família neste ano, ao contrário do que aconteceu em 2019, por decisão do presidente Jair Bolsonaro, talvez o primeiro sinal de que não se sente confortável com o programa social criado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, carro-chefe da sua reeleição, em 2006. O cobertor está muito curto e a prorrogação do auxílio emergencial até dezembro, que virou a principal ação social de enfrentamento da pandemia de Covid-19, já está deixando o governo de língua de fora.
O Bolsa Família é um auxílio para as famílias de baixa renda, que beneficia àquelas consideradas (1) extremamente pobres: com renda mensal de até R$ 89 por pessoa; e (2) pobres: com renda mensal de até R$ 178 por pessoa, mas que incluam gestantes ou crianças e adolescentes de até 18 anos. No valor de R$ 89 mensais, pode ter parcelas adicionais de R$ 41 para crianças, adolescentes e gestantes; e R$ 48 para adolescentes de 16 ou de 17 anos. O valor total não pode ultrapassar R$ 372 por família, mas a média está em R$ 190, portanto, bem, abaixo dos R$ 300 do auxílio emergencial previsto para este último trimestre do ano.
Se pudesse, Bolsonaro trocaria o Bolsa-Família pelo Renda Brasil (ou outro nome que o governo resolva dar), já a partir de janeiro, mas não tem recursos em caixa para garantir o benefício sem romper a Lei do Teto de Gastos. Entre idas e vindas, o presidente da República acabou cedendo às preocupações do ministro da Economia, Paulo Guedes, que tenta conter os gastos do governo para evitar um descontrole total da economia. O cenário para o próximo ano é preocupante. O governo está tendo dificuldades para financiar a dívida pública, que deve chegar a 100% do PIB até o final do ano. Em setembro, a dívida aumentou 2,6% e chegou a R$ 4,5 trilhão.
Para financiar essa dívida, o Banco Central vende títulos da União, porém, está pagando juros anuais de 7,6% para os títulos com vencimento em dez anos, portanto, muito acima da taxa Selic, que está em 2%. Para reduzir essa diferença, reduziu o prazo de resgate para dois anos, obtendo taxa de juros de 4,57%, o que continua sendo muita coisa, ainda mais tendo que pagar esses títulos em 24 meses. Os juros no mercado futuro são pressionados pela alta do dólar, que ontem fechou a R$ 5,71, com impacto também nos preços ao consumidor. O IPCA acumulado nos últimos 12 meses está em 3, 14%, acima da meta de inflação, que é de 2,5%. Nesse rumo, o Banco Central terá que aumentar a taxa Selic para conter a inflação.
Orçamento
A economia mundial sofre o impacto da pandemia, mas aqui no Brasil a indefinição do governo em relação às reformas e o impasse no Congresso para instalação da Comissão de Orçamento da União colaboram para aumentar a insegurança. Além disso, a desastrada atuação do governo na questão ambiental afugenta investimentos. É um um quadro muito preocupante, porque o governo não tem como financiar a dívida pública de curto prazo sem uma política fiscal mais rigorosa.
Há uma certa esperteza do presidente do Congresso, senador Davi Alcolumbre (DEM-RJ), ao não convocar a reunião da Comissão de Orçamento, pois empurra o ajuste fiscal para depois das eleições municipais. Aproveita o impasse criado pela queda de braços entre o líder do PP, Artur Lira (AL), e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), pela presidência da comissão, para a qual o Centrão indicou a deputada Flávia Arruda (PL-DF). O candidato de Maia é o deputado Elmar Nascimento (DEM-BA). A disputa é uma espécie de preliminar para o embate que haverá na eleição da Câmara. Lira pretende suceder Maia, com apoio do Palácio do Planalto, mas o atual presidente da Câmara apoia o líder do MDB, Baleia Rossi (SP).
A criação da Renda Brasil passa pela Comissão de Orçamento, cujo relator é o senador Marcio Bittar (MDB-AC), que tentou antecipar a criação do programa. Não conseguiu por causa das divergências entre a equipe econômica – que quer extinguir outros programas sociais – e o próprio presidente da República, além de algumas impropriedades jurídicas, como a utilização de recursos destinados ao pagamento de precatórios. Quando a Comissão de Orçamento for instalada, a discussão sobre o novo programa social será retomada, mas pode enfrentar mais dificuldades ainda, por causa dos impactos da pandemia na economia.
Monica De Bolle: Sequelas, sequelas, sequelas
Como vamos ajudar as pessoas que foram impactadas de forma desigual pelo vírus?
Dez meses após os primeiros registros da doença hoje conhecida como covid-19, a grande preocupação de cientistas e de gestores de saúde pública mundo afora são os chamados “long-haulers”, ou aqueles que ainda sofrem sintomas ou apresentam sequelas meses depois de terem se “recuperado” do vírus. Artigos sobre as sequelas publicados nos principais periódicos científicos do mundo abundam, relatos clínicos também. A chamada “segunda onda” na Europa tem provocado grande alarme entre as autoridades de vários países devido aos efeitos de um duplo impacto sobre o sistema de saúde: o número de novos infectados que podem a vir a precisar de hospitalização somado ao número de pessoas que desenvolvem sequelas e acabam retornando aos hospitais.
Aqui nos Estados Unidos não é diferente, ainda que Trump siga negando a gravidade da doença, mesmo depois de ter sido hospitalizado e de ter recebido tratamentos de ponta que não estão disponíveis para o restante da população. O Brasil continua fechando os olhos para o óbvio, com mais de 160 mil óbitos e muitas pessoas hospitalizadas em razão das sequelas.
Tenho escrito com frequência nesse espaço sobre as sequelas. Não é incomum que infecções virais causem problemas diversos. Há vasta documentação de sequelas em sobreviventes de Sars e Mers, duas doenças respiratórias mais letais do que a covid-19 e também causadas por coronavírus. O próprio vírus da gripe pode causar problemas pulmonares e neurológicos, entre outros. A diferença no caso da covid-19 é que seu vírus causador, o Sars-CoV-2, pode provocar um enorme desarranjo no sistema imunológico, levando a quadros que se assemelham ao de doenças autoimunes. Tais pacientes não precisam necessariamente ter desenvolvido uma manifestação grave ou severa da doença, já que há evidências do problema também entre pacientes que apresentaram casos leves ou moderados de covid-19.
Entre os diversos desafios que a pandemia trouxe, o mais recente e urgente, sobretudo com o surgimento de novas ondas da epidemia, é identificar quantas pessoas já sofrem de sequelas e quantas mais poderão vir a apresentar problemas. E há problemas de todo tipo: respiratórios, renais, hematológicos, vasculares, cardiológicos, neurológicos. Há pessoas que desenvolvem quadros de hiperglicemia, hipertensão, disfunções da tiroide.
Com a alta do número de infecções no mundo e sua provável elevação daqui a alguns meses no Brasil – defasagens importam e o vírus não deixou de circular –, é razoável supor que a quantidade de gente com sequelas haverá de aumentar. Isso representa não apenas um risco de sobrecarga do sistema de saúde no curto prazo, mas também um ônus considerável de longo prazo.
Governos e gestores de política pública precisam se preparar desde já para esse legado da pandemia, pois esses são elementos suficientes para vislumbrarmos desde já que, mesmo em um futuro que ainda não conseguimos enxergar – aquele em que a vida terá algum semblante do que antes considerávamos ser a normalidade –, os sistemas de saúde não serão os mesmos, muitas pessoas não serão as mesmas, e as economias haverão de refletir essa realidade. Não temos ainda um cálculo para o custo econômico das sequelas, mas não é exagero dizer que ele provavelmente será elevado.
No caso do Brasil, como tenho escrito quase toda semana nesse espaço, um grande desafio será o que fazer para dar ao SUS condições de enfrentamento desse quadro. Já há relatos de hospitais públicos no país onde leitos de UTI estão sendo ocupados por pessoas com sequelas. Esse é um problema não só para a distribuição dos recursos médico-hospitalares do SUS, mas também um enorme desafio para a economia.
Quantas dessas pessoas as terão de forma permanente? Quantas ficarão impossibilitadas de retornar ao mercado de trabalho? Quantas terão de receber algum tipo de assistência do Estado para sobreviver? E os dependentes dessas pessoas, como haverão de sobreviver? Já sabemos que a covid-19 aflige de forma desproporcional pessoas de renda mais baixa, pessoas mais vulneráveis. Como vamos ajudar essas pessoas, impactadas de forma desigual pelo vírus e pelo seu legado?
Todas essas perguntas aguardam respostas. Não apenas do governo federal, mas também dos governos estaduais e, sobretudo, dos governos municipais. As eleições estão aí. Onde estão as respostas?
*Economista, pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University
Otávio Santana do Rêgo Barros: Memento mori
''A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade''
Legiões acampadas. Entusiasmo nas centúrias extasiadas pela vitória. Estandartes tomados aos inimigos são alçados ao vento, troféus das épicas conquistas. O general romano atravessa o lendário rio Rubicão. Aproxima-se calmamente das portas da Cidade Eterna. Vai ao encontro dos aplausos da plebe rude e ignara, e do reconhecimento dos nobres no Senado. Faz-se acompanhar apenas de uma pequena guarda e de escravos cuja missão é sussurrar incessantemente aos seus ouvidos vitoriosos: “Memento Mori!” — lembra-te que és mortal!
O escravo que se coloca ao lado do galardoado chefe, o faz recordar-se de sua natureza humana. A ovação de autoridades, de gente crédula e de muitos aduladores, poderá toldar-lhe o senso de realidade. Infelizmente, nos deparamos hoje com posturas que ofendem àqueles costumes romanos. Os líderes atuais, após alcançarem suas vitórias nos coliseus eleitorais, são tragados pelos comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião.
É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais.
Tão logo o mandato se inicia, aqueles planos são paulatinamente esquecidos diante das dificuldades políticas por implementá-los ou mesmo por outros mesquinhos interesses. Os assessores leais — escravos modernos — que sussurram os conselhos de humildade e bom senso aos eleitos chegam a ficar roucos.
Alguns deixam de ser respeitados. Outros, abandonados ao longo do caminho, feridos pelas intrigas palacianas. O restante, por sobrevivência, assume uma confortável mudez. São esses, seguidores subservientes que não praticam, por interesses pessoais, a discordância leal.
Entendam a discordância leal, um conceito vigente em forças armadas profissionais, como a ação verbal bem pensada e bem-intencionada, às vezes contrária aos pensamentos em voga, para ajudar um líder a cumprir sua missão com sucesso.
A autoridade muito rapidamente incorpora a crença de ter sido alçada ao olimpo por decisão divina, razão pela qual não precisa e não quer escutar as vaias. Não aceita ser contradita. Basta-se a si mesmo. Sua audição seletiva acolhe apenas as palmas. A soberba lhe cai como veste. Vê-se sempre como o vencedor na batalha de Zama, nunca como o derrotado na batalha de Canas.
Infelizmente, o poder inebria, corrompe e destrói! E se não há mais escravos discordantes leais a cochichar: “Lembra-te que és mortal”, a estabilidade política do império está sob risco.
As demais instituições dessa república — parte da tríade do poder — precisarão, então, blindar-se contra os atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade, que advirão como decisões do “imperador imortal”. Deverão ser firmes, não recuar diante de pressões. A imprensa, sempre ela, deverá fortalecer-se na ética para o cumprimento de seu papel de informar, esclarecendo à população os pontos de fragilidade e os de potencialidade nos atos do César.
A população, como árbitro supremo da atividade política, será obrigada a demarcar um rio Rubicão cuja ilegal transposição por um governante piromaníaco será rigorosamente punida pela sociedade. Por fim, assumindo o papel de escravo romano, ela deverá sussurrar aos ouvidos dos políticos que lhes mereceram seu voto: — “Lembra-te da próxima eleição!”
Paz e bem!
* General de Divisão do Exército Brasileiro. Doutor em ciências militares, foi o porta-voz da Presidência da República, nomeado pelo governo Jair Bolsonaro
‘Renda Cidadã é ponto de tangência entre bolsonarismo e petismo’, afirma Benito Salomão
Economista critica governo brasileiro, que, segundo ele, segue de ‘braços cruzados’
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Uma provável segunda onda da pandemia do coronavírus na Europa pode voltar a derrubar os mercados financeiros e causar ainda mais volatilidade na taxa de câmbio e prejuízos ao comércio internacional, de acordo com o economista Benito Salomão. “Se enganam os crentes em uma recuperação robusta em 2021, o cenário econômico deve prosseguir conturbado”, afirma ele, em entrevista na revista Política Democrática Online de outubro.
Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de outubro!
A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília e que disponibiliza todos os conteúdos, gratuitamente, em seu site. O economista observa que, em meio a um cenário fiscal tão desolador, o governo brasileiro segue de braços cruzados, a reforma tributária parece ter saído de discussão, a reforma administrativa apresentada não tem condições de ser aprovada, e o governo aposta em trapaças contábeis para criar seu “Renda Cidadã”.
De acordo com o autor do artigo, a proposta do programa de distribuição de renda é “fruto da obsessão pessoal do Presidente da República, não como uma política de mitigação da pobreza, da miséria, ou da fome, mas sim como um mero instrumento de perpetuação no poder”. “Renda Cidadã é o ponto de tangência entre o bolsonarismo e o petismo. Ambos são capazes de lançar mão da sustentabilidade fiscal e da estabilidade macroeconômica do país, em troca da formação de feudos eleitorais constituídos por programas de transferências de renda, que, se não fossem deturpados, poderiam ser importantes instrumentos de redução das desigualdades no Brasil”, analisa.
Ao paralisar reformas estruturais e insistir em teses econômicas inviáveis, como o Renda Cidadã e a substituição da CPMF pela desoneração da folha de pagamentos, o Brasil está construindo rápido atalho entre a crise atual e a próxima crise, segundo o economista. “Em janeiro de 2021, o decreto legislativo de calamidade pública irá expirar”, diz.
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Alon Feuerwerker: Constituinte
O líder do governo na Câmara dos Deputados, pelo visto falando em caráter pessoal, defendeu a ideia de uma Assembleia Constituinte também aqui no Brasil, seguindo o exemplo chileno (leia). Seu argumento é um que vem há tempos: a Carta de 1988 tornou o Brasil ingovernável.
Qualquer um que analisar a situação objetivamente irá concordar com ele. Qualquer governador ou prefeito da oposição irá concordar com ele. Mas a política é mais complexa. Tem certas coisas que podem até ser verdade, mas não convém dizer (leia).
Na prática, a Constituição não existe mais, de tão remendada e reinterpretada. Aliás, remendar e reinterpretar foi só o que se fez desde 1988. Como ninguém tem certeza que bicho sairia da Constituinte, todo mundo em posições de poder (oposição também é posição de poder) prefere ignorar a realidade.
Enquanto isso, na prática já há uma "constituinte" instalada, funcionando a pleno vapor. São os onze ministros do STF. A discussão portanto não é sobre se vai ter ou não uma Assembleia Constituinte, mas quem elege, quem compõe e o que ela decide.
Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Janaína Figueiredo: Plebiscito no Chile deixa Bolsonaro mais isolado no continente
Em recente discurso, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, se referiu ao Brasil como um “pária”. O chanceler não especificou muito. Disse apenas que o país está nessa categoria por defender a liberdade. No domingo, quase 80% dos chilenos votaram a favor de uma nova Constituição no país, onde ainda vigora a deixada pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Ditadura que o presidente Jair Bolsonaro elogiou em sua viagem a Santiago, em março de 2019, meses antes do início da onda de manifestações que levou à vitória do “aprovo” no plebiscito.
Naquele momento, a atitude do presidente foi repudiada por importantes congressistas, que se negaram a participar de um almoço em homenagem a Bolsonaro no Palácio de la Moneda, o mesmo que Pinochet mandou bombardear em 11 de setembro de 1973. Foi o início de uma fase violenta da História chilena, que trouxe junto a implementação de um modelo econômico liberal, no qual o Estado tem escassa participação e quem manda é o mercado. Um modelo comemorado publicamente pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
Há um ano e meio, Bolsonaro sentiu na pele o isolamento dentro da política chilena. Hoje, o presidente Sebastián Piñera, que o recebeu em grande estilo, se alinhou à maioria que exigiu mudanças que enterrem definitivamente o passado. O chefe de Estado chileno nunca foi pinochetista, mas tampouco se atrevia a defender uma nova Constituição. O fez, finalmente, sob pressão das ruas.
Piñera mantém contatos com o presidente da Argentina, Alberto Fernández, com quem Bolsonaro nunca quis falar. O presidente do Chile também reconheceu rapidamente a vitória do Movimento ao Socialismo (MAS) na Bolívia, nas eleições do último dia 18 de outubro. O Brasil demorou quase uma semana em se pronunciar.
O isolamento do governo Bolsonaro na região está ficando evidente e poderá acentuar-se se o presidente americano, Donald Trump, não for reeleito. Um eventual governo do democrata Joe Biden daria mais força a governos progressistas e terminaria com a aliança direitista entre EUA, Brasil e Colômbia, formada, entre outros objetivos, para tirar Nicolás Maduro do poder na Venezuela.
O cenário regional não é nada favorável para Bolsonaro. O termo "pária" usado por Araújo ganha cada vez mais sentido.
Adriana Fernandes: Proposta de plebiscito no Brasil é debate às avessas do movimento chileno
Não é correto responsabilizar a Constituição por todas as escolhas ruins que foram feitas por vários e vários governos
BRASÍLIA - Na esteira do movimento ocorrido no Chile, é oportunista a declaração do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), propondo a realização de um plebiscito para que os brasileiros decidam sobre a elaboração de uma nova Constituição.
Sob o argumento de que a Carta Magna transformou o Brasil em um “País ingovernável”, Barros culpou as regras do Orçamento com o argumento de que o Brasil não tem mais capacidade de pagar a sua dívida, que com o efeito da pandemia do coronavírus cresceu muito.
Não é correto responsabilizar a Constituição por todas as escolhas ruins que foram feitas por vários e vários governos. A Constituição não determinou a elevação das renúncias tributárias de 2% para 4,3,% do Produto Interno Bruto (PIB), as várias ineficiências dos programas de governo, a corrupção, a contratação de grande quantidade de servidores, as remunerações acima do teto, os penduricalhos, os seguidos Refis (parcelamento de débitos tributários) que beneficiaram os devedores contumazes, as obras faraônicas sem retorno social e econômico, os R$ 200 bilhões de subsídios via BNDES e outras fontes de transferência de recursos para setores privilegiados, além da falta de prioridade política nas últimas duas décadas para fazer a reforma tributária e cobrar do “andar de cima”.
Não precisa fazer uma nova constituição para dar conta da rede de proteção prevista na Constituição. Tem é que ter coragem para enfrentar o ajuste e as medidas necessárias.
A Constituição tem defeito. Entre elas, amarras que engessam o Orçamento. Mas por que falar de mudanças justo agora quando faltam poucas semanas para uma série de encaminhamentos de medidas de ajuste para 2021? Passa a impressão de que o líder está sinalizando que o governo pouco pode fazer para costurar um acordo no Congresso para medidas que apontem um rumo para 2021 diante do ímpeto gastador dos aliados do presidente Bolsonaro. Estaria o líder jogando a toalha?
Como líder do governo, Barros deveria estar mais preocupado com a criação das condições políticas para a instalação da Comissão Mista de Orçamento (CMO), que poderia ajudar o País a sair do impasse fiscal e orçamentário que tem alimentado as incertezas sobre o futuro da economia.
Como definiu a procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Élida Graziane Pinto, ferrenha defensora dos recursos para saúde e educação garantidos na Constituição, um plebiscito agora traria, na prática, uma espécie do debate chileno às avessas: uma desconstitucionalização das garantias de saúde e educação públicas universais e um retrocesso brasileiro na contramão da revolta social chilena.
Bernardo Mello Franco: Bolsonaro contrata crise com o Supremo
Jair Bolsonaro contratou mais uma crise com o Supremo Tribunal Federal. Ontem o presidente disse que nenhum juiz pode decidir “se você vai ou não tomar a vacina”. Foi uma clara provocação à Corte, que deve julgar três ações sobre o tema.
Na sexta-feira, o ministro Luiz Fux avisou que a disputa sobre a vacina tende a ser judicializada. É o desfecho mais provável caso Bolsonaro insista em sacrificar a população para fazer guerra política. Na semana passada, ele mandou o Ministério da Saúde cancelar a compra da vacina em desenvolvimento no Instituto Butantan. Tudo para atingir o tucano João Doria, seu virtual adversário em 2022.
Ontem o capitão disse que seria “mais fácil” investir na cura do que na vacina. A declaração tenta impor um falso dilema. Cura e vacina são esperadas com a mesma ansiedade. Não faz sentido trocar a segunda pela primeira. Abrir mão da vacinação significaria condenar milhões de brasileiros, especialmente os idosos, a uma quarentena sem fim. Além disso, seria loucura permitir que as pessoas adoeçam se for possível imunizá-las contra o vírus.
Bolsonaro parece insano, mas sabe aonde quer chegar. Ao fomentar um embate com o Supremo, ele tenta repetir um truque de abril, quando tentou impedir estados e municípios de decretarem medidas de distanciamento. O tribunal barrou a ideia por 9 votos a 0. Em seguida, o presidente passou a vender a falsa versão de que foi deixado “de mãos atadas”.
Ao atacar a Justiça, o capitão tentou se eximir de responsabilidade pelas milhares de mortes. A tragédia humanitária seria culpa dos prefeitos, dos governadores e até dos ministros do Supremo. Menos dele, que nada fez para combater a pandemia.
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O deputado Ricardo Barros pode ser acusado de muitas coisas, mas não de falta de transparência. Ao torpedear a Constituição de 1988, o líder do governo disse que a Carta garantiu muitos direitos. Deixou claro que o objetivo do bolsonarismo é retirá-los.
José Casado: A fila cresce na bolsopandemia
Processos atrasados na Previdência ultrapassaram 4,4 milhões
É um desastre administrativo sem precedentes. A quantidade de processos atrasados na Previdência ultrapassou 4,4 milhões. Estão pendentes mais de 3,6 milhões de perícias e 788 mil avaliações de assistência social, atestam os dados oficiais auditados no dia 30 de agosto.
Por trás das estatísticas, está uma multidão sem rosto, de pobres com algum tipo de incapacidade, dependentes das aposentadorias e pensões ainda não reconhecidas. O número de vítimas desse congestionamento no INSS já equivale a 60% dos habitantes do Rio. Supera a população da Baixada Fluminense.
A confusão nada tem a ver com falta de dinheiro. É desleixo burocrático mesmo, com limitada contribuição da pandemia — o volume de processos atrasados aumentou um terço entre março e agosto. No caos florescem interesses de corporações, como a dos médicos peritos.
É reflexo da falta de liderança. Mas isso, naturalmente, não está na agenda de Jair Bolsonaro, mais preocupado com a reeleição sob a bandeira do retrocesso secular, numa fraudulenta defesa do liberalismo. Na bolsopandemia, ele já desperdiçou dinheiro público com químicos inócuos, redefinindo o charlatanismo na política.
O filme é antigo. Foi visto há 170 anos, quando a febre amarela aportou a bordo de um navio de bandeira americana, devastando o império de Pedro II. Em abril de 1850, o senador mineiro Bernardo Pereira de Vasconcellos, defensor da escravidão, foi à tribuna do Senado para pregar a “liberdade” de ficar doente, sem interferência do governo: “Peço que me deixem curar com charlatães quando entender que me podem servir melhor do que os senhores doutores”. Morreu duas semanas depois, de febre amarela.
O presidente agora propõe uma revolta da vacina, como a de 1904. É ardil de campanha, conveniente para encobrir a tragédia de 157 mil mortes e a incapacidade de resolver problemas governamentais que se agravam, como o do INSS. No melhor cenário, estima o Tribunal de Contas da União, o último dessa fila só será atendido dentro de 34 meses, por volta de agosto de 2023. Ou seja, no próximo governo.
Carlos Andreazza: Vacina - O Queiroz do futuro
É um debate falso, fora de lugar e tempo
Não existe vacina. Nunca foi tão necessário afirmar obviedades. Não há, infelizmente. Mas já se discute — até com o entusiasmo do presidente de nossa corte constitucional — sobre se a vacinação será obrigatória. Um debate falso, fora de lugar e tempo, que só mesmo a mentalidade autoritária poderia forjar.
Advirta-se — nova notícia do óbvio — que ninguém entrará na sua casa para lhe meter agulha ao braço. Tampouco seus filhos e netos serão levados pela orelha, sob a vara de um agente policial, ao posto de saúde — lá onde os esperaria a seringa compulsória. Não estamos no começo do século XX, embora esse discurso de que “ninguém me obrigará” seja estímulo a uma revolta da vacina a ter lugar não nas ruas, mas no zap-profundo. Funciona. Para um líder sectário que cultiva nicho: funciona.
Diga-se que essa pregação reacionária bolsonarista — contra ameaça inexistente — só tem campo para se exibir porque houve bravateiro, da cepa dos que confundem liderança e coação, que falasse em vacinação obrigatória como produto da autoridade coerciva do Estado. Para quê, João Doria?
A combinação das leis brasileiras — uma das quais sancionada por Jair Bolsonaro —impõe a vacinação. Ponto final. Não precisa de força. Basta que as obrigações do Estado, conforme previsto na legislação, sejam cumpridas para que a sociedade corra à vacina sem qualquer necessidade de coerção. As pessoas querem se vacinar.
O conjunto de obrigações do Estado: adquirir doses de produto certificado em quantidade capaz de cobrir o território brasileiro, distribuí-las universalmente e comunicar a disponibilidade da vacina e a importância de se imunizar. Pronto. As pessoas irão se vacinar. Temos uma cultura vacinal sólida. Seria só chamá-la.
Mas não. O concurso de autoritarismos fundou um debate que judicializará a questão; como já, com muito gosto, antecipou Luiz Fux, outro virtuoso, quase que implorando por ações a respeito. Ele quer decidir. Ele cuida de nós, como Doria. E o presidente agradecerá, mais uma vez ganhando de presente um palanque sobre o qual exercitar seu liberalismo reacionário de resignação.
Já posso mesmo enxergar-lhe a mensagem alguns meses adiante, lavando as mãos, depois de seu governo haver comprado milhões de doses da CoronaVac. Dirá: “Ninguém deveria ser obrigado a se vacinar, mas, novamente, fiquei de mãos atadas”. Vimos variação desse texto de vitimização — que distorce decisão do Supremo — ser bem-sucedida, para a popularidade de Bolsonaro, quando a Corte garantiu a autonomia de estados e municípios para baixar decretos sobre como enfrentar a pandemia.
Voltemos ao presente, porém. Não existe vacina. Mesmo assim, já há vacina — comunista! —vetada. Este é o presente, interditado por intensa trama de teorias da conspiração — desde onde se projeta um futuro que, mesmo ainda apenas incerto, veste-se para a guerra. O inimigo será obra de fantasia. Bolsonaro saberá vencer. Ou melhor: saberá comunicar a vitória. Que não houvesse oponente é sempre detalhe.
Quem falou em ministrar vacina à população sem comprovação científica e à revelia do aval da Anvisa? Ninguém. A exigência de que se cumpram todas as etapas de certificação é raro consenso. Mas Bolsonaro novamente planta o falso problema, o algoz imaginário. Prospera assim.
A falsa responsabilidade, amparada em mentira: afirma que não gastará dinheiros em vacina ainda não segura, como se o entendimento com o Butantan, mera carta de intenções, previsse dispêndios anteriores à aprovação pela autoridade brasileira; e como se não tivesse sido o governo dele — sob ordem direta dele —a jogar, aí sim, milhões fora para adquirir um medicamento, a hidroxicloroquina, inútil para o tratamento do vírus.
Não existe vacina. Mas há esperança. Há também o medo. Quando tivermos uma testada em todas as etapas, e avalizada pela Anvisa, e se essa primeira disponível for a chinesa, o fato se apresentará a Bolsonaro. E então veremos como agirá. Ele sabe ser objetivo. É intuitivo. Fareja quando a própria carne se acerca do espeto, circunstância em que o futuro de luta pela liberdade e contra o sistema se materializa em presente à mesa com Toffoli etc. O tal do medo.
Não comprar a vacina significaria botar em risco a saúde da população. Será crime. Tipificado. Significa também arriscar a própria popularidade. E falamos de alguém que é mestre em equilibrar vários pratos concomitantemente, tanto quanto em derrubar discurso em nome do pragmatismo de ocasião.
Não me surpreenderei se, enquanto mantém no alto a pipa anti-China, Bolsonaro já tiver autorizado uma costura por baixo que resulte, mais adiante, em o governo registrar mesmo o compromisso de compra da vacina ora amaldiçoada —que logo será brasileira. A realidade se impõe. A vacina chinesa pode ser um novo Queiroz diante de si, a hora de baixar a pressão da valentia e compor com o Centrão.
Não me surpreenderei se Bolsonaro vacinar Doria. Ninguém será obrigado. O presidente sabe que a vacina aplicada por Alexandre de Moraes machuca.