Carlos Andreazza: A semana do presidente

Isto é Jair Bolsonaro. O que planta descrença, difunde desconfiança, atenta contra o pacto social que fundamenta nossa rede de imunização

A semana passada foi especialmente rica em manchetes oferecidas — forjadas — pelo presidente da República. Acuado, Jair Bolsonaro disparou. É o que faz. Ameaçado, reage com novos graus de irresponsabilidade. Provoca. Agride. Trai. Mente. Conspira. Comete crimes. Promove conflitos. Dedica-se ao seu nós contra eles total — obra por meio da qual será capaz de atiçar policiais contra o inimigo jornalista. Obra por meio da qual transformou uma vacina — a chinesa, a comunista — em inimiga da liberdade.

Isto é Bolsonaro. Aquele que, sob pressão, espalha-se para lançar estímulos em direções diversas; para difundir pautas-isca, apostando em que o volume de suas descargas resulte num conjunto de reações difusas que embaralhe a hierarquia das gravidades.

São muitas as gravidades. Uma maior que as outras, porém. Óbvio que o Bolsonaro particularmente cafajeste dos últimos dias é produto do caso Abin. Evidente que seu último pacote de barbáries pretendeu também dissolver em boçalidades as novas revelações sobre o que seria a privatização da Agência Brasileira de Inteligência pela sua família. Nada se soube de mais comprometedor — de mais perigoso para Bolsonaro — numa semana em que galgou novos parâmetros em sua pregação antivacina.

O caso Abin: uma apuração jornalística, da revista “Época”, informou-nos que um órgão de Estado — aparelho de inteligência impessoal a serviço da Presidência — teria operado, com relatórios, para orientar a defesa do filho do presidente numa investigação relativa ao tempo em que Flávio Bolsonaro era deputado estadual. Escândalo a que se somou a notícia, pela revista Crusoé, de que haveria — dentro da agência — uma espécie de Abin do B trabalhando, à margem da estrutura convencional, pelos interesses de Bolsonaro e turma.

Então, para embaçar: onda e espuma. Também para camuflar a imposição do mundo real — seu governo, derrubando-lhe a palavra-veto, terá de comprar a vacina do Doria — à sua mistificação de macho-mito: onda e espuma.

Impressiona que ainda haja quem se surpreenda com Bolsonaro. Ingenuidade pela qual ele é gratíssimo; e que explora com engenho e arte. Por exemplo: em visita à Ceagesp, chocou os bocós liberais retardatários que, em dezembro de 2020, creem em que este governo privatizará alguma coisa. Nem a Ceagesp! Oh! Fomos traídos...

Em que planeta vivem? Como nenhum entre os limpinhos percebeu que o populista-estatista manipularia os manés liberais-só-na-economia para promover uma das facetas do grande estelionato eleitoral que aplica há quase dois anos? É como acreditar que de uma jaqueira pudesse cair uva. Como se um sujeito que engordou aboletado no sofá do Estado — um tipo que constituiu família, que ergueu bem-sucedida empresa familiar, dentro do Estado — pudesse se mover para diminuir a superfície que lhe enche e ampara a pança. Oh! Fomos enganados!

O presidente anunciou também que não montará o novo partido. Que não fundará o tal Aliança pelo Brasil; e que deverá se filiar a um já existente, decerto uma dessas legendas de aluguel que lhe assegurariam a escada formal para poder disputar a reeleição. Ah! Quem poderia imaginar que um notório depredador da democracia representativa — uma força destruidora que prosperou explorando a criminalização da política — não fosse investir na construção de um partido? Oh!

Também nos informou que Fabrício Queiroz pagava suas contas e que os R$ 89 mil que o amigo, amigo também de milicianos, depositou na conta da primeira-dama Michelle eram para ele — e que aquilo, aquela merreca, não poderia ser considerado propina. Ocorre que ninguém disse que a transação consistiria em pagamento de propina.

Como faz com frequência, Bolsonaro respondeu, com indignação, a uma acusação jamais feita. É mestre nisso; em criar uma falsa imputação, um falso problema, como o da vacinação obrigatória, e lhe responder com energia. Concebe um mundo paralelo — no qual estará sempre com a razão. Ninguém pode ser forçado a se vacinar — e assim brigará contra tirano inexistente. Com o que desvia a verdadeira questão: Queiroz foi denunciado como operador de um esquema de peculato havido no gabinete de Flávio Bolsonaro, tendo sido o mesmo Queiroz a fazer depósitos na conta da mulher do presidente. Essa é a fotografia no mundo real; a pergunta sendo: de onde veio o dinheiro depositado na conta de Michelle Bolsonaro?

Nenhum, porém, entre os atos graves encenados para diluir-distorcer a gravíssima investigação sobre a captura da Abin pela famiglia, teve maior gravidade do que o presidente da República declarar que não se vacinará. Foi o investimento desinformante mais violento em sua campanha — genocida – de dilapidação de nossa cultura vacinal. Isto é Jair Bolsonaro. O que planta descrença. Difunde desconfiança. Atenta contra o pacto social que fundamenta nossa rede de imunização — atentado que não apenas chama de volta o sarampo, mas também mina as bases de uma teia que costura mesmo, na prática, a própria ideia de República entre nós.

Essa malha de confiança — que alinhava a nação (como o sistema eleitoral) — é empecilho para o autocrata tanto quanto lhe será impulso ter uma Abin, uma Polícia Federal, particular.


Bernardo Mello Franco: O tombo de Davi Alcolumbre

Davi Alcolumbre planejou um dezembro glorioso. O presidente do Senado esperava garantir a permanência no cargo e emplacar o irmão como prefeito de Macapá. Em duas semanas, tudo foi por água abaixo.

No dia 6, o Supremo Tribunal Federal surpreendeu e vetou a reeleição dos chefes da Câmara e do Senado. A jogada estava ensaiada, mas a Corte voltou atrás e desistiu de atropelar a Constituição.

No dia 20, veio a segunda derrota: Josiel Alcolumbre perdeu a eleição na capital do Amapá. Ele liderava as pesquisas desde o início da campanha, mas foi ultrapassado na reta final pelo azarão Dr. Furlan.

O presidente do Senado se empenhou nas duas disputas. Para conquistar a simpatia do Supremo, engavetou pedidos de impeachment e barrou a chamada CPI da Lava-Toga. Para eleger o irmão, montou uma coligação de 12 partidos, apoiada pelas máquinas do estado e da prefeitura. A chapa parecia invencível até o apagão que atingiu o Amapá em novembro.

Numa entrevista desastrada, Davi disse que o maior prejudicado com a falta de luz foi Josiel, “que ia ganhar a eleição no primeiro turno”. A declaração revoltou amapaenses que passaram 22 dias às escuras.

Na véspera das urnas, Jair Bolsonaro ainda tentou retribuir a blindagem do senador ao primeiro-filho. Em vídeo, ele pediu votos para Josiel “do fundo do coração”. Tarde demais: a zebra já estava no pasto em Macapá.

Em dois anos na cadeira, o presidente do Senado nunca deixou de agir como um político do baixo clero. Sem luz própria, ele se equilibrou graças à distribuição de cargos e favores. Quando os bolsonaristas ameaçavam fechar o Congresso, fez cara de paisagem e aproveitou para arrancar mais verbas para aliados.

Após se recuperar do tombo, Davi poderá ser recompensado com uma vaga de ministro. Nesse caso, Josiel também ganhará um consolo: ele é o primeiro suplente do irmão no Senado.

+ + + 

Depois de dois anos sem trabalhar, Bolsonaro saiu de férias. Deve ser isso o que chamam de meritocracia.


Eliane Cantanhêde: O mundo dá voltas

Obscurantismo, negacionismo e terraplanismo estão passando. Bolsonaro é capaz de entender?

Uma pergunta envolta de desânimo se alastra pelos meios políticos e diplomáticos: Jair Bolsonaro vai dar um cavalo de pau na política externa para repor o Brasil nos trilhos, abrir um diálogo produtivo com os Estados Unidos de Joe Biden, reencontrar os parceiros tradicionais e retomar o pragmatismo, a tradição diplomática e a defesa dos interesses nacionais?

Assim como serão necessárias décadas para tentar recuperar nossas perdas na Amazônia e demais biomas, há também previsões nada otimistas sobre o tempo e as condições de Bolsonaro para liderar o recomeço da política externa. E assim como a culpa pelo desmanche do Meio Ambiente recai sobre o ministro Ricardo Salles, também a culpa pela política externa é jogada diretamente sobre o chanceler Ernesto Araújo. O responsável pelas políticas de governo, porém, é o presidente. Ministros só executam.

O que esperar de quem nomeia para o Meio Ambiente do Brasil um cidadão que jamais havia sequer pisado na Amazônia? E para o Itamaraty um embaixador júnior que escreve coisas sem nexo, muda de ideia de acordo com os ventos e compara Donald Trump a “Deus”, único capaz de salvar o Ocidente da China?

O governo Bolsonaro e, aliás, o próprio Bolsonaro, deram caneladas na China, França, Alemanha, Noruega, Argentina, Chile, Mundo Árabe... E jogaram todas as fichas não nos Estados Unidos, mas em Trump – que perdeu. Como em tudo, como na Saúde, que opera entre a vida e a morte, Bolsonaro não se deu por satisfeito e dobrou a aposta. Manteve-se firme e resolutamente trumpista e levou o Brasil a ser o último país do G20 (grupo das 20 maiores economias do mundo) a fazer o óbvio: reconhecer a vitória do democrata Joe Biden.

Os telegramas do embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster, divulgados pelo Estadão, mostram constrangedoramente que ele estava mais preocupado em falar o que Bolsonaro queria ouvir e em escrever o que Planalto e Itamaraty queriam ler, do que em relatar a realidade. Em live do Cebri, Celso Lafer disse que, se ainda fosse chanceler, demitiria o embaixador do cargo na hora. Forster, porém, é um coadjuvante, seguiu a linha do general Eduardo Pazuello de que “uns mandam, o outro obedece”. Apenas compactuou, mas não interferiu na realidade paralela de Bolsonaro e Araújo.

Com ou sem as 22 páginas papagaiando Trump, presidente e chanceler insistiriam na versão de “fraude”, “judicialização”, “guinadas”. Uma maluquice. Fica no ar: é possível recolocar a política externa no trilho do pragmatismo e do interesse nacional com Forster em Washington, Araújo no Itamaraty e Bolsonaro na Presidência? Mais: como corrigir a imagem do Brasil com Salles e o desastre ambiental?

Nunca a imagem do País esteve tão deteriorada entre governos, parlamentos, mídias, entidades e cidadãos do mundo inteiro. O chanceler tem de parar de achar bacana a posição de “pária internacional”, Bolsonaro tem de dar sinais para Biden, Eduardo Bolsonaro tem de torrar seu boné “Trump 2022”, todos têm de sentar com diplomatas, generais, políticos, acadêmicos e a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, para tentar entender o mundo, parar de atacar a China, voltar à racionalidade com Europa e vizinhos.

Biden já começou a mudar os EUA, a voltar ao Acordo de Paris e ao multilateralismo, a trocar retrocessos por avanços. É esse o caminho que o Brasil precisa fazer, abandonando as pisadas tortuosas de Trump e olhando para a frente. Não porque “um manda (os EUA) e outro obedece (o Brasil)”, mas porque os tempos de obscurantismo, terraplanismo e negacionismo estão passando. O difícil é acreditar que Bolsonaro, que chegou atrasado nas vacinas e na era Biden, esteja entendendo alguma coisa. Provavelmente, não. Nem quer.


Merval Pereira: Na janelinha

Nos Estados Unidos, um “Júnior justice” da Suprema Corte - ministro novato - tem, por tradição, a tarefa de fechar a porta da sala de reuniões depois que o último ministro chega. Uma demonstração de humildade diante dos mais antigos. Há até mesmo filmes que mostram essa cena, com o presidente da Corte advertindo um novato: “Você esqueceu de fechar a porta. É a tradição”.

Aqui, nosso ministro junior Nunes Marques mal chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) e, como diria o sábio popular senador Romário, “já está querendo sentar na janelinha”. Em sua primeira atuação, ele deu aquele voto pseudamente salomônico que aprovou a reeleição de seu amigo senador David Alcolumbre, e proibiu o deputado Rodrigo Maia, inimigo do Planalto, de fazer o mesmo.

Sua decisão monocrática de reduzir o prazo de inelegibilidade dos atingidos pela Lei de Ficha Limpa, fazendo com que ele seja descontado da pena cumprida, está causando séria perturbação dos tribunais eleitorais pelo país, e alimentando a percepção de que o novo ministro, nomeado ao acaso pelo presidente Bolsonaro, cumpre mais uma etapa do plano governamental de desmontar o aparato jurídico de combate à corrupção nos meios políticos, depois da aliança com o Centrão.

A atitude do ministro Nunes Marques foi tomada um dia antes do recesso do Judiciário, e em pleno período eleitoral. Isso quer dizer que centenas de candidatos que concorreram subjudice agora exigirão da Justiça Eleitoral suas posses, o que pode até mesmo alterar a composição das Câmaras de Vereadores. Ou até mesmo eleger algum prefeito.

O mais espantoso é que a Lei da Ficha Limpa foi colocada sob o escrutínio do plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012, e considerada constitucional pela maioria. O ponto específico agora alterado liminarmente pelo novo ministro foi analisado e considerado compatível com a Constituição e com a vontade do legislador, o Congresso Nacional.

O atual presidente do Supremo, Luis Fux, que era o relator do processo, tinha na ocasião a mesma opinião de Nunes Marques agora. Achava que a inelegibilidade, passando a contar somente a partir do fim da pena, era exagerada. O ministro Cezar Peluso, já aposentado, teve a mesma opinião, mas o ministro Marco Aurélio Mello rebateu o argumento lembrando que a utilização de recursos sobre recursos fazia com que a inelegibilidade não tivesse efeito prático, rejeitando a proposta de subtração do tempo decorrido entre a condenação e o julgamento dos recursos.

Sendo assim, a decisão monocrática do juiz novato foi contra um ponto da Lei da Ficha Limpa que já foi debatido pelo plenário, o que agrava a percepção de que, no Supremo, cada ministro é uma ilha que não se comunica com os outros, nem com as decisões já tomadas, sem que haja razão para um novo julgamento, mas apenas uma opinião pessoal

O caso, de todo modo, será avaliado pelo plenário depois do recesso, mas há uma movimentação no Supremo para que Nunes Marques altere sua decisão, para evitar o caos na justiça eleitoral. Ele pode definir que a medida só vale para a próxima eleição, para evitar que os tribunais eleitorais fiquem abarrotados de recurso durante o período de diplomação dos novos prefeitos e vereadores, ou, no limite, o presidente do Supremo, ministro Luis Fux, pode suspender essa liminar, com base exatamente em que essa lei já foi considerada constitucional pelo próprio STF.

Embora essa medida radical seja defendida por setores do judiciário, Fux parece inclinado a resolver o impasse pelo diálogo. A atuação do Supremo durante o recesso, que começou dia 20 de dezembro e vai até o dia 6 de janeiro, também está em discussão, pois quatro ministros já comunicaram que continuarão trabalhando nesse período.

Os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Alexandre de Moraes e Marco Aurélio Mello, com isso, reduzem o poder do presidente Luis Fux, que fica de plantão durante o recesso com poder de decisão. Aliados de Luis Fux garantem que o Regimento do Supremo não autoriza essa atitude, e o presidente parece decidido a exercer seu poder integralmente. Sendo assim, qualquer decisão a ser tomada no recesso dependerá apenas do ministro Luis Fux, que poderá cassar liminares que considere injustificáveis.


Pesquisas correm contra o tempo em relação ao eleitorado, diz Ciro Leichsenring

Em artigo na revista da FAP de dezembro, especialista mostra importância das pesquisas de intenção de voto

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Especialista em pesquisas de mercado e opinião por mais de 40 anos, o psicólogo Ciro Gondim Leichsenring diz que a divulgação de resultados das pesquisas eleitorais tem significativa relevância na intenção de voto. “A posição dos candidatos no ranking de preferências do eleitorado produz efeitos, positivos e negativos, na arrecadação de recursos, na mobilização partidária, na formalização de alianças. Lembremo-nos do voto útil”, analisa, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro.

Clique aqui e acesse a revista Política Democrática Online de dezembro!

Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. De acordo com o especialista, que é ex-presidente do Conselho da Sociedade Brasileira de Pesquisas de Mercado e vice-presidente executivo da mesma instituição, cada um dos elementos, isoladamente ou em articulação com os demais, influencia a escolha do eleitor, contribuindo para a sua decisão final.

“Nesse contexto, as pesquisas estão sempre correndo contra o tempo em relação ao movimento do eleitorado, pois, de um dia para o outro, tudo pode mudar sem que as pesquisas, defasadas temporalmente, possam captar o sentido da mudança”, observa, ressaltando a importância das pesquisas, embora algumas tenham projetado resultados diferentes dos que foram apurados nas urnas, nas eleições deste ano.

Pesquisas de intenção de voto, segundo Leichsenring, são eventos estáticos dentro de um processo dinâmico, que é a consolidação da decisão de voto pelo eleitor. “A decisão é um caminho que se revela por aproximações sucessivas. No início das campanhas eleitorais, as possibilidades de escolha apenas se insinuam para o eleitor típico, com baixo nível de engajamento político”, diz. “À medida que a campanha evolui, o eleitor gradualmente vai ajustando suas escolhas com as informações recebidas, até chegar à decisão final, que pode até mesmo ser a de não votar, anular o voto ou votar em branco”, acrescenta.

Em outro trecho, o especialista cita dados de 30 pesquisas, concluídas em média dois dias antes da última eleição, divulgados no site Poder 360 (Ibope, 26 e Datafolha, 4), que revelaram que apenas 15 tiveram acertos dentro da margem de erro. “Nenhum resultado coincidiu exatamente com os números das urnas.  No entanto, em 26 casos, o nome do vencedor foi apontado corretamente e, em 3, apontaram empate, registrando-se apenas um erro na indicação do vencedor”, avalia.

Leia também:

RPD: Reportagem mostra o que desestimula vítimas de estupro no Brasil

‘Liderar as Forças Armadas é imperativo para o país’, diz Raul Jungmann

‘Projeto da frente democrática deve ser mantido’, diz José Álvaro Moisés

Como o Brasil pode ter inserção positiva na economia mundial? Bazileu Margarido explica

‘Despreparado para o exercício do governo’, diz Alberto Aggio sobre Bolsonaro

Desastre de Bolsonaro e incapacidade de governar são destaques da nova Política Democrática Online

Confira aqui todas as edições da revista Política Democrática Online


Luiz Carlos Azedo: O espelho estilhaçado

É impressionante o paralelo do governo Bolsonaro com o governo Trump, a partir da crítica de Hannah Arendt à degradação política do governo de Nixon

Instigante artigo do ex-chanceler Celso Lafer, professor emérito da Faculdade do Largo do São Francisco (Direito-USP), publicado no último domingo, no O Estado de S. Paulo, faz um diagnóstico político preciso do governo de Donald Trump, que merece muita reflexão entre nós, pelo paralelo que podemos projetar, a partir do texto, para o governo do presidente Jair Bolsonaro.

O “mote” do artigo é uma carta enviada, em 1975, pelo presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, à filósofa judia-alemã Hannah Arendt, autora de Origens do Totalitarismo (Companhia de Bolso) e a A Condição Humana (Forense Universitária), na qual solicita à escritora que lhe envie o texto de uma palestra que fizera nas comemorações do bicentenário da independência dos Estados Unidos. Intitulada Tiro pela culatra, na tradução para o português, seu texto fui publicado no Brasil, na coletânea Responsabilidade e Julgamento (Companhia das Letras), organizada por Jerome Kohn.

Lafer destaca a iniciativa de Biden, quando integrante da Comissão de Relações Exteriores do Senado, como uma espécie de preocupação germinal do que pode vir a ser a linha de atuação do novo presidente dos Estados Unidos, de resto já anunciada na campanha eleitoral. O texto de Arendt trata da crise do governo Nixon e da degenerescência da política norte-americana nos anos 1970, cujos elementos se reproduzem durante o governo Trump, na visão de Lafer:

(1) a mentira por princípio, para manipular o Congresso e o povo americanos e, nesse caminho, pôr em questão a credibilidade dos EUA perante outros Estados;

(2) o empenho em abolir qualquer lei, constitucional ou não, que se interpusesse aos objetivos da presidência;

(3) o inserir da criminalidade nos processos políticos do país;

(4) o valer-se do “privilégio do Executivo” para proteger os colaboradores atraídos pela aura do poder;

(5) o não aceitar a derrota, qualquer derrota, da maior potência sobre a Terra, cujo poder estava em declínio;

(6) o equívoco de respaldar uma economia de desperdício, sem atentar para “as ameaças ao nosso ambiente” (Arendt);

(7) o cobrir com um tecido de mentiras os problemas do desemprego e da automação.

Espelho quebrado
A dimensão histórica da vitória de Biden vem sendo destacada não somente por Lafer como por outros analistas da cena brasileira. Sua repercussão na política mundial já se faz sentir, em todos os aspectos, inclusive em relação à pandemia da covid-19. Como ignorar, por exemplo, o gesto de ontem, quando o novo presidente dos Estados Unidos foi a um posto de saúde de sua cidade para tomar a vacina da Pfizer-Biontech? Quanta diferença em relação ao nosso presidente da República, que já disse e repetiu que não vai tomar e vacina e põe em dúvida a eficácia e segurança de qualquer uma delas. A troca de comando e rumo nos Estados Unidos, porém, transcende esse plano imediato das políticas públicas: a prática dos costumes democráticos repercute no fortalecimento das instituições republicanas e servem de exemplo para o mundo.

“A campanha eleitoral americana deste ano teve entre suas características uma batalha pela ‘alma’ dos Estados Unidos”, destaca Lafer. Nessa batalha, Biden personificou os valores e as instituições americanas, suas práticas e seus costumes. “Foi uma contraposição aos modos de proceder da presidência Donald Trump, que trouxe com o personalismo do seu bullying a erosão generalizada do softpower de atração dos Estados Unidos.”

E, aqui, no Brasil? É impressionante como Donald Trump serviu de espelho para o presidente Jair Bolsonaro, nas mais diversas áreas. Na política externa brasileira, por exemplo, toda a respeitabilidade de nossa diplomacia está sendo jogada pela janela, apesar de sua cultura secular, cujas raízes são as negociações com os países vizinhos, nas quais garantimos a consolidação de nossas fronteiras, sem derramamento de sangue. Ou na questão ambiental, na qual nosso protagonismo, da Rio-92 ao Acordo de Paris, deu lugar à vexatória condição de “pária” internacional, nas palavras do chanceler Ernesto Araújo.

As mentiras (1); as afrontas legais aos demais poderes (2); a promiscuidade com as milícias e outras atividades transgressoras (3); a proteção aos apaniguados (4); o não-reconhecimento dos fracassos (5); os incentivos à grilagem de terras, ao garimpo ilegal e ao desmatamento (6); e a terceirização dos problemas nacionais (7) tecem impressionante paralelo do governo Bolsonaro com o governo Trump (derrotado na reeleição), a partir da crítica de Hannah Arendt à degradação política do governo de Nixon (afastado por impeachment). Com a vitória de Joe Biden, esse espelho se quebrou.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-espelho-estilhacado/

Evandro Milet: As mídias sociais enganariam Alan Turing, o pai da computação

A OpenAI, uma organização fundada por Elon Musk, lançou o mais potente sistema de Inteligência Artificial(IA) para produção e compreensão de linguagem escrita, o GPT-3. Muita gente imaginou que acabaria o emprego de escritores e jornalistas. Cientistas porém estão constatando as limitações da engenhoca. Apesar da sofisticação, o novo sistema não sabe o que fala, embora seja um redator razoável: pode produzir qualquer tipo de texto, mas também pode cometer bobagens ao ignorar semântica, contexto, psicologia, convenções sociais, raciocínio lógico e até leis da física. Falta aquilo que nos torna humanos: bom senso.

Afinal, ao ser alimentado com tudo o que há na internet, o GPT-3 retrata o estágio onde a humanidade se encontra, incluindo vieses racistas e sexistas e uma capacidade de criação e disseminação de fake news. 

Nos anos 50, Alan Turing,um dos pais da ciência da computação e da inteligência artificial criou o teste que leva seu nome. Seu objetivo é descobrir se uma inteligência artificial é inteligente a ponto de enganar um humano, fazendo-o acreditar que se trata de uma pessoa respondendo às suas perguntas. Se 30% dos humanos consultados acreditarem que se trata de outro humano, a máquina passa no teste de Turing.

Ora, mais de 30% dos humanos reconheceriam hoje o GPT-3 como uma pessoa se comunicando nas redes sociais. Afinal é fácil encontrar ali raciocínios tortuosos, negações de verdades científicas, interpretações contorcionistas de textos, elaborações fantásticas para teorias da conspiração, justificativas fora de contexto, vieses racistas e sexistas, fake news esdrúxulas, enfim falta total de bom senso - realmente, um triste retrato da humanidade.

Todos os dias recebemos textos estranhos, supostamente assinados pelo Veríssimo, Jabor ou Clarice Lispector, onde qualquer um acostumado com esses autores percebe imediatamente a fraude. Ou vídeos onde médicos e supostos especialistas, sem nenhuma relevância profissional, glorificam remédios sem efeito ou condenam criminosamente vacinas, máscaras ou distanciamento social. Ou recebemos avisos alarmados sobre uma suposta conspiração internacional globalista soros-sino-gramsciana que amedronta até mentes doentias no governo.

Cabeças estacionadas na década de 1950 enxergam iminentes invasões da Amazônia atrás de nossos recursos naturais sem perceber que os recursos mais valiosos hoje estão no conhecimento. E esse conhecimento está se perdendo no flagelo da educação brasileira, no desprezo da bioeconomia e indo embora na diáspora dos nossos estudantes e cientistas brilhantes contratados no exterior. Por analogia do nome, a Amazon que negocia com bits e bytes e gerencia conhecimento tem valor de mercado 25 vezes maior que a nossa Vale, especialista em minérios.

O GPT-3 deve se sentir em casa com tanta falta de bom senso. Se Turing fosse vivo e se baseasse nas postagens das mídias sociais teria que inventar outro teste, o GPT-3 passaria por humano. 


Rubens Barbosa: Estratégia para o comércio exterior

Objetivo é fazer o Brasil se inserir plenamente nos fluxos dinâmicos de trocas internacionais

Uma estratégia de desenvolvimento para o Brasil para o período 2020-2030 com cinco eixos – econômico, institucional, de infraestrutura, ambiental e social – foi divulgada pelo governo Bolsonaro. Nos desafios e orientações de todos os eixos, em especial no da área econômica, encontram-se declarações de intenção que terão forte impacto no futuro do comércio exterior.

Como subsídio para o exame dessas medidas, o Conselho de Comércio Exterior (Coscex) da Fiesp discutiu e elaborou uma estratégia para o comércio exterior, encaminhada pelo presidente da entidade a Brasília. Essa estratégia tem como objetivo a ampliação das exportações e importações, diversificar os mercados e os produtos exportáveis e permitir uma inserção competitiva dos produtos brasileiros nos fluxos mais dinâmicos do intercâmbio comercial.

Do ponto de vista da indústria, essa estratégia deveria estar baseada no tripé reindustrialização, agenda de competitividade e abertura da economia via negociação de acordos comerciais, cujos principais aspectos poderiam ser resumidos como a seguir.

A reindustrialização e a modernização industrial seriam possibilitadas pela implementação da atual agenda de reformas horizontais (mudança estrutural) e pelo aumento da produtividade, que seriam complementadas com uma verdadeira política industrial que induza negócios estratégicos de alto impacto econômico e social, visando à geração de empregos e renda. Nesse sentido, caberia fortalecer mecanismos de apoio à indústria como financiamento, compras governamentais e estímulos à produção e exportação de bens de média e alta tecnologia; definir como áreas prioritárias as indústrias de alto conteúdo tecnológico e inovadoras; identificar nichos de mercado para a nacionalização de produtos essenciais estratégicos na área da saúde e outros; identificação de áreas para criar cadeias de valor agregado na América do Sul a partir de interesses da indústria nacional; apoio com políticas públicas à internacionalização da empresa nacional

A agenda de competitividade poderia ser levada adiante mediante ação política junto ao Executivo e ao Legislativo para aprovação da reforma tributária, o fator mais importante para aumentar a competitividade da economia e das empresas nacionais. Outras políticas incluiriam a isonomia de tratamento entre produtos importados e nacionais; aprovação da reforma do Estado, com a desburocratização e a simplificação de regras e regulamentos a fim de facilitar os negócios (portal único e OEA); fortalecimento de uma política de incentivos à inovação com estímulos a P&D junto à iniciativa privada (universidades e centros de pesquisa) e aos órgãos governamentais existentes em áreas estratégicas (mas não limitadas), como indústria 4.0, inteligência artificial e biotecnologia; incentivos à formação e capacitação de profissionais e dirigentes empresariais com a concessão de bolsas de estudo e estágios, no País e no exterior; licitação da tecnologia 5G ou autorização de redes particulares para acelerar o processo de modernização da indústria (4.0–inteligência artificial, automação avançada); alinhamento de políticas internas, principalmente a ambiental, com a política de comércio exterior para evitar medidas restritivas contra produtos brasileiros; medir os impactos sociais após a revisão completa dos tributos e outros projetos estratégicos em nível federal (sustentabilidade).

A abertura da economia seria realizada via acordos comerciais, com a definição de uma política de negociação de acordos comerciais, com a participação do setor privado, com vista a diversificar mercados e a pauta de produtos exportáveis e promover a ampliação de empresas exportadoras, de modo a reduzir a concentração hoje existente. Deveria haver uma sincronização com a agenda de competitividade, cujo atraso em sua implementação justificaria certo grau de proteção à indústria pela elaboração de lista setorial limitada de produtos sensíveis que seriam liberalizados no final do processo ou ficariam em lista de exceção. Impõe-se a transparência nas negociações dos acordos e na defesa comercial contra medidas restritivas e protecionistas. Nesse contexto, caberia examinar, entre outras, uma reforma tarifária com a revisão da Tarifa Externa Comum do Mercosul, sob a ótica da escalada tarifária; a convocação de conferência especial do Mercosul para examinar seu funcionamento e seus objetivos depois de 30 anos de sua criação, como previsto no artigo 47 do Protocolo de Ouro Preto; o exame junto ao Ministério da Economia e o Banco Central de mecanismos financeiros como o Centro de Clearing com o renminbi na China e o CCR na América Latina, para facilitar a expansão das exportações brasileiras num momento de crise no cenário externo; e rever o funcionamento e os objetivos da Zona Franca de Manaus à luz de uma nova política para a Amazônia, com ênfase na biotecnologia e na bioeconomia.

Urge a discussão de uma estratégia com o setor privado para que o Brasil possa inserir-se plenamente nos fluxos dinâmicos das trocas internacionais. Essa é a contribuição do Coscex da Fiesp.

*Presidente do Conselho de Comércio Exterior da FIESP


Fernando Gabeira: Uma vacina contra a estupidez

A dois meses de completar 80 anos, a Covid-19 me visitou. Se a ideia era me matar na praia, o vírus perdeu

Com a vacina no horizonte, a dois meses de completar 80 anos, a Covid-19 me visitou. Se a ideia era me matar na praia, o vírus perdeu. Tornou-se apenas uma memória no meu sangue, na forma de IgG reagente. Um retrato na parede, como dizia Drummond.

Pouca febre, muita dor de cabeça: é bom vencer uma batalha, mesmo sabendo que, no final, perde-se a guerra.

Ainda assim, estarei na fila da vacina. Dizem que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, mas a Covid-19 tem negado essa crença popular.

Bolsonaro está tirando o bumbum da seringa. E o faz em situações diferentes. Em primeiro lugar, quer que as pessoas assumam um termo de responsabilidade ao tomar a vacina. Ele não leu a Constituição no trecho que afirma que a saúde como direito de todos é dever do Estado.

Em segundo lugar, afirma que não vai se deixar vacinar e ponto final. Em muitos lugares do mundo, os estadistas se vacinam em público para estimular as pessoas. Obama, Clinton e Bush se dispuseram a isso. O vice-presidente dos EUA o fez. A rainha da Inglaterra espera na fila de vacinação.

Depois de muito resistir à CoronaVac, que chama de vacina chinesa, Bolsonaro decidiu autorizar o general Pazuello a comprá-la, no Instituto Butantan.

Aqui, o movimento de tirar o bumbum da seringa é mais sutil. Ele percebeu que não será fácil conseguir vacinas rapidamente, além da CoronaVac. E o exame cotidiano das pesquisas mostra que a incapacidade de oferecer vacinas derrubará seus índices de popularidade.

A ideia de sabotar a CoronaVac não era boa. Na década de 1980, no auge da epidemia de aids, o governo francês sabotou uma técnica de exame de sangue, formulada pelo Abbott. Havia uma iniciativa semelhante, porém mais atrasada, no Instituto Pasteur.

Quando se descobriu que o governo empurrou com a barriga a licença de uma técnica que salvaria muitas vidas, foi um deus-nos-acuda. Famílias de hemofílicos entraram na Justiça, houve até uma tentativa de explodir uma bomba. Para simplificar a história: dois diretores do Centro Nacional de Transfusão de Sangue foram condenados a quatro e dois anos de cadeia. São eles Michel Garreta e Jean-Pierre Allain.

Em síntese: atrasar por razões políticas uma vacina que possa salvar vidas dá cadeia. É importante que os militares da Anvisa saibam disso. O próprio general Pazuello também deveria entender. Se for difícil para ele, sempre haverá alma caridosa para explicar com desenhos e animação.

Outro dia, vi nas redes um vídeo em que o general Pazuello, numa festa, cantava “Esperando na janela”. O ministro da Saúde cantando numa festinha, em plena pandemia, é sempre estranho. Pazuello já teve Covid. Foi tratado com todos os recursos disponíveis, não lhe faltou leito.

Ao dizer em discurso que não entende a ansiedade de todos nós, ele se esquece de milhões de pessoas que têm medo de não encontrar vaga em hospital, medo da falta de ar, medo de ser intubadas, medo da morte.

A frase de Pazuello é a versão edulcorada do “país de maricas” que Bolsonaro enunciou num dos seus discursos no Planalto. No fundo, são pessoas que não entendem o medo em nossa economia psíquica, muito menos as qualidades do feminino. Associam ideias estupidamente.

Percebo agora como subestimei o perigo que Bolsonaro representava em 2018. Calculava apenas a ameaça à democracia e contava com os clássicos contrapesos institucionais: STF e Congresso, imprensa. Não imaginei que um presidente poderia enfrentar uma tragédia como o coronavírus ou precipitar dramaticamente a tragédia anunciada pelo aquecimento global.

Os Estados Unidos passaram por um flagelo semelhante e o superaram, apesar das marcas. A versão tropical é mais devastadora, não só pela profundidade da ignorância de Bolsonaro, mas também pelas circunstâncias.

Trump deixa os Estados Unidos com pelo menos uma vacina produzida nos EUA e quantidade de doses contratada suficiente para imunizar o país. No seu lugar, entra Biden: consciência ambiental e sintonia absoluta com a ciência no combate ao coronavírus.

Não tenho dúvidas de que também vamos acordar do pesadelo. Mas uma importante tarefa, assim como aconteceu com uma geração de intelectuais alemães no pós-guerra, será estudar as causas disso tudo: as raízes no imaginário nacional que nos tornam tão vulneráveis à barbárie, tão seduzidos pelo discurso da estupidez.


Luiz Carlos Mendonça de Barros: Chegamos ao fim de 2020

O controle da pandemia abrirá condições para promover as mudanças no funcionamento da nossa economia

Certamente 2020 entrará para a história como um dos anos mais difíceis vividos pela humanidade com o aparecimento de um vírus mortal que colocou em cheque parte do conhecimento acumulado nas últimas décadas. Este seu status deriva não apenas do número de mortes causadas pela covid-19 em todo o mundo, mas também por mudanças importantes do protocolo de funcionamento das economias nacionais. A chamada globalização, que era considerada o modelo mais eficiente para a economia mundial, terá que ser repensada em função dos riscos que a ultra mobilidade entre os mercados nacionais revelou agora.

Mas, nesta última coluna do ano, prefiro restringir minhas reflexões na evolução da economia brasileira neste período e, principalmente, o que esperar para 2021. A partir do momento em que foi possível entender a natureza da crise econômica provocada pela covid procurei centrar minha atenção nos seus aspectos estruturais de mais longo prazo, deixando a conjuntura para outros profissionais. Aprendi, ao longo da carreira profissional, que em momentos de crise grave é esta postura a mais adequada para fugir das armadilhas e ruídos do curto prazo. Relendo minhas colunas deste ano foi possível fazer uma linha do tempo da evolução de meu entendimento do que iríamos enfrentar.

Assim, propus na coluna de abril “Olhar com otimismo para 2021” em função das decisões tomadas rapidamente por governos e bancos centrais para enfrentar o pânico que atingiu investidores e instituições financeiras no mundo todo. A lição de 2008 foi aprendida e, desta vez, as ações previstas foram rapidamente aplicadas, e mesmo expandidas por outras medidas ainda mais heterodoxas. Em pouco tempo construía-se um protocolo de natureza keynesiana para enfrentar a recessão que se seguiria. O mesmo ocorreu aqui no Brasil, com um dos mais exitosos e eficientes entre os que foram acionados por países emergentes e mesmo os desenvolvidos.

Já em 15 de junho na coluna “Um segundo pacote fiscal“ ponderei que seria necessário a definição de um segundo pacote de estímulos fiscais de cunho keynesiano para fortalecer a recuperação da atividade econômica na parte final de 2020 e principalmente durante 2021. Mesmo no Brasil, com todas as dificuldades de lidar ainda com a fase de estabilização da pandemia, o governo Bolsonaro e o Congresso precisavam iniciar um debate sobre a questão de novos estímulos para enfrentar 2021. Esta questão continua presente mesmo depois que a recuperação mais rápida da economia em 2020 tenha ocorrido, reduzindo o escopo das medidas a serem tomadas.

Em julho, meu otimismo sobre o futuro estava descrito na coluna “A destruição criativa no pós pandemia”. Citei as ideias do economista Joseph Schumpeter em seu livro, “Capitalismo, Socialismo e Democracia”, quando definiu o termo “destruição criativa” como um impulso fundamental para o motor do desenvolvimento econômico no mundo capitalista via inovações tecnológicas e de gestão das empresas”.

Em outras palavras, Schumpeter queria dizer que o sistema capitalista não acaba porque sempre se reinventa. Mas, para entender é preciso ter vivido algumas das crises que já ocorreram e ter sobrevivido a elas.

Hoje temos uma visão mais clara do que significa a expressão “destruição criativa” na crise atual com reflexões de vários analistas sobre o “boom” econômico que pode acontecer em função do choque positivo que terá a implantação de novas tecnologias a partir de 2021. Cito aqui artigo recente de Martin Wolf do Financial Times no qual aponta que a covid-19 acelerou o mundo rumo ao futuro. Este movimento será liderado por duas forças principais que já estavam em ação, mas que se intensificaram durante a pandemia: tecnologia e desglobalização,

Na coluna de novembro “O vírus contra-ataca” consolidei minha visão de que “a volta da atividade econômica no Brasil foi conseguida principalmente em função de uma expansão vigorosa - e eficiente - dos gastos do governo em um momento em que a arrecadação corrente de tributos era reduzida pela recessão. Portanto era natural - e necessário - que seu déficit fiscal tivesse um grande aumento no período mais agudo da crise. Somente com o retorno do crescimento econômico sustentado a partir de 2022 é que o governo poderá buscar uma situação orçamentária de superávits primários que estabilize a curva da dívida pública no futuro.

O objetivo destas minhas reflexões era o de enfrentar os argumentos dos economistas mais ortodoxos que pediam quase histericamente movimentos radicais para reduzir os déficits fiscais do setor público. Implícito nestas mensagens estavam as ameaças de um chamado “abismo fiscal” eminente e o colapso da rolagem da dívida pública. Hoje com a calma de volta aos leilões dos títulos públicos pela ação eficiente do Tesouro e Banco Central podemos esperar a volta do crescimento econômico para definir uma ação mais estruturada de medidas fiscais de controle da expansão dos gastos públicos.

Finalmente, agora com a definição pelo governo de um programa de vacinação racional e sem os preconceitos anteriores, temos a certeza de que o controle da pandemia abrirá condições para olharmos para a frente, cuidar das feridas da batalha e promover as mudanças no protocolo de funcionamento da nossa economia. Isto em um mundo que deve entrar em um período de crescimento mais forte puxado pela China e outros países da Ásia e as maiores economias ocidentais.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.


Bruno Carazza: Saúde, paz, união...e reforma tributária

Reforma tributária não vai sair se todos não cederem

Se acreditassem em Papai Noel, certamente a maioria dos empresários brasileiros desejaria o fim da pandemia e uma reforma tributária em 2021.

Enquanto escrevo este texto, às 16:39h de domingo (20/12), o Impostômetro calculado pela Associação Comercial de São Paulo indicava 1,987 trilhão de reais em tributos pagos neste ano - o que indica que provavelmente ao longo desta semana ultrapassaremos a marca de R$ 2 trilhões arrecadados pelos governos de todos os brasileiros. Trata-se de apenas um de vários indicadores de nossas distorções neste campo.

Pode-se criticar a metodologia de rankings de ambiente de negócios como o Doing Business, do Banco Mundial, ou o índice de competitividade do Fórum Econômico Mundial, mas ninguém discorda que o Brasil seja um dos países que demanda mais tempo e recursos humanos para o cumprimento de todas as exigências tributárias da União, 27 Estados e mais de 5 mil municípios.

Essa complexidade traz consigo uma alta litigiosidade, que congestiona o nosso Judiciário. De acordo com o relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça, apenas no ano de 2019 foram iniciados 5.168.177 novos processos envolvendo impostos, taxas e contribuições - um número que dá a medida da insegurança jurídica no país gerada pelo nosso sistema tributário.

Estimativas de especialistas indicam que em torno de 66% do PIB é alvo do contencioso tributário em nível administrativo (no âmbito das receitas dos três níveis federativos e conselhos de contribuintes) e judicial. São dois terços da produção anual do país que ficam empoçados enquanto não se decide se devem entrar nos cofres do governo ou serem liberados para investimento das empresas.

Qualquer pesquisa que se realize com empresários aponta uma concordância quase unânime de que é necessário reformar todo o sistema, buscando sua simplificação, desburocratização e aumento da competitividade e da transparência - além da redução da carga tributária, é claro.

O problema é que na cartinha para Papai Noel ou nos desejos de Ano Novo do empresariado brasileiro sobram pedidos e faltam compromissos.

Desde 19 de fevereiro uma Comissão Mista do Congresso Nacional discute as propostas na mesa: a PEC nº 45/2019 (“proposta Appy”), a PEC nº 110/2019 (baseada no trabalho do ex-deputado Luiz Carlos Hauly) e o PL nº 3.887/2020, encaminhado pelo ministro da Economia Paulo Guedes.

Ao longo dos últimos meses dezenas de audiências públicas foram realizadas e, a se contar pelas manifestações dos representantes dos principais setores da economia, os consensos se resumem aos seus objetivos gerais. Quando se desce às medidas concretas, é cada um por si e o diabo (que mora nos detalhes) por todos.

Todos querem simplificação de impostos, mas quando se trata de unificar as alíquotas, querem tratamento especial. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), por exemplo, defende alíquotas diferenciadas por atividades e produtos, assim como a manutenção do sistema cumulativo como opcional para empresas que trabalham com lucro presumido e prestadoras de serviços. Ora, se for assim, é claro que nosso carnaval tributário vai continuar.

A Confederação Nacional dos Transportes (CNT) pretende fazer rabanadas sem quebrar ovos. No documento “Pilares para a Reforma Tributária”, ele exige que a reforma tributária não apenas mantenha a carga tributária global da economia, como também se comprometa a não elevá-la em nível setorial. Na sua lista de presentes para o bom velhinho há o abatimento de seus gastos com insumos e folha salarial no valor imposto agregado devido, mas tratamento diferenciado na tributação dos negócios em transportes e infraestrutura. Impostos seletivos? Só se forem para não onerar as transportadoras - um dos setores mais poluidores de nossa matriz econômica.

Ideais de justiça e igualdade são valorizados nas mensagens de final de ano, mas quando se trata de reformar o sistema, meu interesse vem primeiro. Em carta aberta enviada ao relator da Comissão de Reforma Tributária, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), 45 associações de produtores rurais listaram os pleitos do agronegócio brasileiro. Entre elas, a manutenção da desoneração da cesta básica, a imposição de alíquota zero para os insumos agropecuários, tratamento especial para as cooperativas e exclusão dos produtores rurais inscritos como pessoa física.

As entidades filantrópicas, por sua vez, querem continuar a fazer o bem com o chapéu alheio. Um grupo de onze organizações representativas de entidades religiosas, de educação e saúde que se beneficiam de isenções fiscais lançou um manifesto contra a “taxação da solidariedade”. As intenções são as melhores possíveis, mas nenhuma palavra se vê sobre a necessidade de se separar o joio do trigo e dar o tratamento correto a atividades lucrativas travestidas de assistencialismo.

Numa velha tirinha do cartunista Bill Watterson, o garoto Calvin, de 6 anos, se pergunta como o Papai Noel consegue pagar os duendes e os brinquedos que ele distribui. Seu tigre de estimação, Haroldo, arrisca uma responda: endividando-se. O lobby em prol da desoneração da folha de pagamentos, que une setores tão díspares quanto a construção civil e a indústria de tecnologia da informação e o varejo, recebeu seu presente de Natal antecipado em novembro. “O problema é que, mais cedo ou mais tarde, a farra acaba e aí como é que eu fico?”, pergunta Calvin diante da perspectiva de ficar sem presentes no futuro.

Para terminar este texto pré-natalino com um pouco de poesia, fica a dica de Drummond para o empresariado brasileiro (e para cada um de nós): “Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo. Eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre”.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.


Moisés Naim: Trumpismo sobreviverá

Trump será o primeiro presidente dos EUA a ter um movimento político de massas com seu nome, como Mao Tsé-tung e Chávez

Os seguidores mais entusiasmados de Mao Tsé-tung, Juan Domingo Perón, Charles De Gaulle, Fidel Castro e Hugo Chávez deram lugar a movimentos políticos mais duradouros do que os líderes que os inspiraram.

Donald Trump será o primeiro presidente dos EUA a ter um movimento político de massas com seu nome. O trumpismo – caracterizado por sua retórica combativa contra elites e imigrantes, seu nacionalismo nostálgico, sua tendência autocrática e sua manipulação narcisista da mídia – tem muito em comum com movimentos políticos que adotaram o nome de seu líder. O trumpismo terá, portanto, uma vida longa e transcenderá Trump.

Alguns desses movimentos tiveram influência internacional, como o maoismo, enquanto outros eram predominantemente regionais, como o castrismo cubano, e alguns eram puramente nacionais, como o gaullismo francês e o peronismo argentino.

Esses movimentos têm muitas semelhanças: a transgressão rotineira das normas políticas estabelecidas, o oportunismo descontrolado, a propensão ao autoritarismo, o anti-intelectualismo e a hostilidade a regras e instituições que limitam a concentração de poder no Executivo são apenas algumas. O mesmo ocorre com a feroz inimizade contra rivais que não são vistos como compatriotas de ideias diferentes, mas como inimigos mortais.

As ideologias desses movimentos se revelaram de uma maleabilidade peculiar: o maoismo foi usado para legitimar o totalitarismo comunista de suas origens e, décadas mais tarde, para apoiar a abertura econômica que criou o atual modelo capitalista chinês. Na França, o gaullismo serviu para justificar o nacionalismo espinhoso do general De Gaulle e, posteriormente, o centrismo democrático de Jacques Chirac.

O peronismo argentino tornou-se famoso por sua plasticidade: originalmente justificou o fascismo “light” de Juan Domingo Perón e, décadas depois, as reformas neoliberais de Carlos Menem para, mais tarde, servir de base ao populismo de esquerda de Néstor e Cristina Kirchner. Na Venezuela, o chavismo transformou o país mais rico da América Latina em um dos mais pobres, mas pesquisas de opinião revelam que metade da população apoia Hugo Chávez, morto em 2013.

O trumpismo está prestes a entrar nesta lista, independentemente dos problemas jurídicos e políticos que afetarão Trump nos próximos anos. Com ou sem Trump, o trumpismo continuará. O movimento terá mais ou menos sucesso político, mas suas estratégias, táticas e truques para ganhar e manter o poder perdurarão.

Com suas ações e indiscutíveis sucessos políticos, o 45.º presidente dos EUA revelou ao mundo que é possível chegar ao poder fazendo e dizendo coisas que nenhum político ousou antes. Rotular imigrantes mexicanos como estupradores ou colocar crianças imigrantes em jaulas, insultar seus rivais ou outros chefes de Estado, mentir rotineira e abertamente e fazer o que é necessário para ampliar as divisões sociais existentes ou criar novas fontes de polarização e agitação social são coisas que não tiveram custo político para Trump. Ao contrário: permitiram que ele chegasse à Casa Branca e fosse o candidato mais votado da história dos EUA – depois de Joe Biden.

Inúmeros imitadores de Trump aparecerão nos próximos anos. Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, a quem seus seguidores chamam de “Trump dos trópicos”, é um de seus primeiros e mais bem-sucedidos imitadores. E, nos EUA, haverá uma multidão de candidatos que se declararão trumpistas, mas terão o cuidado de evitar as políticas catastróficas.

No curto prazo, o mais importante é o papel que Trump terá como líder da oposição ao governo Biden. Uma vez fora da Casa Branca, o ex-presidente deve se defender da avalanche de ações judiciais. Terá de passar muito tempo com seus advogados, juízes e promotores.

Simultaneamente, estará captando recursos, consolidando a máquina do trumpismo e uma plataforma de mídia semelhante à Fox News. Ao mesmo tempo, estará lutando pelo controle do Partido Republicano. 

A incerteza política continuará a reinar nos EUA. O certo é que Trump tem agora um movimento político de massas que servirá de base para que ele siga lutando para reconquistar o poder. Que seja. / Tradução de Augusto Calil

*É escritor venezuelano e membro do Carnegie Endowment