‘STF é um dos pilares da estrutura democrática, mas tem problemas’, diz João Trindade Filho

Em artigo publicado na revista da FAP de dezembro, constitucionalista cita casos em que a Corte evitou negacionismo do governo federal

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Consultor Legislativo do Senado Federal, o advogado João Trindade Cavalcante Filho afirma que o STF (Supremo Tribunal Federal) é um dos pilares da estrutura democrática brasileira, mas aponta problemas. “Decide causas demais, os ministros dão muitas decisões monocráticas, a Corte poderia e deveria ter uma jurisprudência mais estável, previsível, além de precisar, de tempos em tempos, praticar as ‘virtudes passivas’”, analisa, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de dezembro. 

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. “No combate à pandemia, ao reforçar a descentralização política e assegurar o poder de governadores e prefeitos definirem as medidas sanitárias, o Tribunal evitou que o negacionismo do governo federal deixasse ainda mais mortos do que os mais de 180 mil atuais”, disse. 

Em outras ocasiões, de acordo com a análise publicada na revista Política Democrática Online, postou-se em defesa de minorias. “Foi o caso da ADO nº 26, quando decidiu pela criminalização da homofobia e da transfobia. Porém, tal decisão é ambígua”, diz. “Reforçou a defesa de grupos minoritários, mas, ao estabelecer um crime sem lei anterior que o defina, vulnerou um princípio milenar do direito penal (a legalidade). Teria sido melhor para Corte e para a democracia que se tivesse utilizado da técnica do ‘apelo ao legislador’”, sugere. 

Houve outras situações em que o papel concreto do STF não foi tão positivo para a democracia, segundo o advogado, que também é mestre e doutorado em Direito Constitucional. “A Corte acaba de decidir sobre a impossibilidade de reeleição dos presidentes das casas legislativas dentro da mesma legislatura. Não deveria haver qualquer dúvida de que o artigo 57, § 4º, da CF, diz o que efetivamente busca dizer”, afirma. “Permitir a reeleição dos dirigentes das casas legislativas por conta do reconhecido papel que desempenharam parece uma espécie de ‘casuísmo do bem’”, observa.

No entanto, ressalta o consultor do Senado, mesmo os que votaram pelo respeito à literalidade do texto constitucional não o fizeram todos por respeito à Constituição, mas sim – alguns – por pressão da opinião pública.

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Luiz Carlos Azedo: No fio do bigode

Há meses, Lira vem negociando individualmente com as bancadas de oposição; além de verbas e cargos, oferece para cada grupo de interesse uma pauta específica

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou, ontem, o nome do candidato do seu bloco político ao comando da Casa, o deputado Baleia Rossi (MDB-SP), o jovem presidente do maior partido do país e líder de sua bancada federal, com 34 deputados. Rossi conseguiu reverter as resistências da maioria dos deputados do bloco de esquerda, o que levou o deputado Aguinaldo Ribeiro (PB), um dissidente do PP, a desistir de disputar a indicação no grupo de Maia. Formalmente, juntos, os dois blocos somam 282 deputados, número mais do que suficiente para ganhar a disputa com o candidato governista, Arthur Lira (PP-AL), mas isso é apenas uma projeção otimista. A disputa será no corpo a corpo, voto a voto.

É aí que entra a história do bigode. Quando houve a fusão dos antigos esta dos do Rio de Janeiro e Guanabara, em 1975, o brigadeiro Faria Lima, interventor federal, fez um acordo com o ex-governador Chagas Freitas, cacique do MDB da antiga Guanabara, para que fosse possível formar uma maioria que aprovasse a Constituição do novo estado. Para chegar ao acordo, teve que atropelar a líder do governo, deputada Sandra Cavalcanti (Arena), e entregar a relatoria da nova Constituição a um deputado “chaguista”, José Maria Duarte (MDB). Originário do antigo PSP, Chagas era um político populista, dono dos jornais O Dia e A Notícia.

Duarte era amigo do lendário distribuidor de cinema Luiz Severiano Ribeiro, que o chamava para ver os filmes antes da estreia e sugerir a tradução dos títulos, que muitas vezes não tinha nada a ver com o nome original, como em “A morte não manda recado” (The Ballad of Cable Hogue), “Os brutos também amam” (Shane), clássicos do faroeste norte-americano, ou “Django não perdoa…mata” (L’Uomo, L’Orgloglio, La vendetta), o western italiano inspirado na ópera Carmem, de George Bisset. Frasista de primeira, chamava o anteprojeto de Constituição de “boneca” e mantinha segredo absoluto sobre os acordos envolvendo o interventor Faria Lima, Chagas Freitas e o senador Amaral Peixoto (MDB), velho cacique pessedista, que era o líder da oposição no antigo Estado do Rio.

Nessa época, o time de jornalistas que fazia a cobertura da Constituinte da fusão era de primeira linha: Mauricio Dias, Marcelo Pontes, André Luiz Azevedo, Rogério Coelho Neto, Carlos Vinhais e Dácio Malta, entre outros. Mesmo assim, a crise no dispositivo parlamentar do interventor era mantida em sigilo, até que Sandra Cavalcanti resolveu chutar o balde. Nessa época, o antigo Diário de Notícias ainda era o jornal dos professores e dos militares. Graças a isso, fui escolhido por Sandra Cavalcanti para uma entrevista exclusiva, na qual denunciou o acordo e renunciou à liderança, em caráter irrevogável. Foi então que resolvi perguntar ao líder do MDB, Cláudio Moacir, deputado eleito por Macaé, homem ligado a Amaral Peixoto, se a oposição pretendia formar a nova base do governo. Em off, para minha surpresa, respondeu: “Não, nós vamos ficar como bigode: na boca, mas do lado de fora”.

Traições
Esse é o problema de Baleia Rossi. O Palácio do Planalto está jogando muito pesado para eleger Arthur Lira, o principal líder do Centrão, que articulou a nova base governista na Câmara e sempre teve o apoio dos deputados do baixo clero. Tece sua candidatura com a promessa de liberação de verbas e cargos no governo, acenando com uma reforma ministerial que estaria prevista para o começo do próximo ano. Arthur Lira anunciou sua candidatura com apoio dos 135 deputados do Centrão — PL (41), PP (40), PSD (33), Solidariedade (13) e Avante (8). De imediato, recebeu apoio do PL (41), do PTB (11), do Pros (10), do PSC (9) e do Patriota (6), ou seja, teoricamente, de mais 77 deputados. Tenta montar uma espécie de rolo compressor, já integrado por 212 deputados, que avança nos bastidores para seduzir os deputados de oposição.

O grupo de Maia soma 158 deputados, dos seguintes partidos: DEM (28), MDB (34), PSDB (31), PSL (53), Cidadania (8) e PV (4). O PT, com 54 deputados, lidera a oposição, que soma 124 deputados, com as bancadas do PSB (31), do PDT (28), do PSol (10) e da Rede (1). Esse acordo de bancada precisa ser confirmado por cada deputado, que negocia no fio do bigode; porém, como o voto é secreto, a palavra empenhada não pode ser cobrada depois. Como dizia Tancredo Neves, a vontade de trair é muito grande na cabine de votação.

Ninguém sabe o que vai, de fato, acontecer. Lira vem negociando individualmente há meses, inclusive com as bancadas de oposição, com uma agenda que não pode ser subestimada, porque além de verbas e cargos, oferece pra cada grupo de interesse uma pauta específica. Aos evangélicos, promete levar adiante a agenda dos costumes; aos ruralistas, desmontar a legislação ambiental; aos sindicalistas, a volta do imposto sindical; aos enrolados na Lava-Jato, blindagem contra o Ministério Público Federal (MPF) e a flexibilização da contagem do tempo de ilegibilidade da Lei da Ficha Limpa, na linha da liminar do novo ministro do Supremo Tribunal federal (STF) Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro. Muitos estão comprometidos com Lira.

Em tempo, feliz Natal!

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-no-fio-do-bigode/

Eliane Brum: Quando o vírus nos trancou em casa, as telas nos deixaram sem casa

A cultura do ‘home office’ e das ‘lives’ e dos ‘meetings’ pedalou a nossa porta

Encerro 2020, o ano que anuncia que o tempo das pandemias chegou, com estranhos sintomas. A ideia de fazer mais uma live, mais um meeting pelo Jitsi, Zoom ou Google, ou mesmo pelo WhatsApp, me deixa fisicamente enjoada. Escrever, como faço agora, enquanto as notícias e as mensagens pipocam num canto da tela, me deixa tonta e exausta. Amigos me pedem encontros de Natal, happy hours de Ano-Novo. Quero. Mas não consigo. Que o excesso de telas cansa e pode causar transtornos e até doenças, sabemos. A experiência atual, porém, vai muito além disso. O home office, as lives e os meetings mudaram oconceito de casa. Ou talvez tenham provocado algo ainda mais radical, ao nos despejar não apenas da casa, mas também da possibilidade de fazer da casa uma casa.

A maioria dos que tiveram a chance de ficar entre paredes durante a maior parte do ano para se proteger do vírus vive, como eu, uma experiência inédita na trajetória humana: a de estar 24 horas dentro de casa e, ao mesmo tempo, não ter nenhuma casa. A pandemia nos levou ao paradoxo de nos descobrirmos sem teto debaixo de um teto. Mais do que sem teto, nos descobrimos sem porta. Sem porta, não há chave para nenhum entendimento.

Sim, aqueles que têm a chance de trabalhar no sistema de home office, o que significa trabalhar a partir da sua casa, são privilegiados num planeta encurralado pelo vírus. Pensar sobre a desigualdade no tempo das pandemias é pensar sobre quem pode desempenhar suas funções profissionais “remotamente” e quem não pode. A maioria dos que não podem trabalhar remotamente é composta pelos mesmos que têm mais chances de figurar em todas as piores estatísticas: os mais pobres, os negros, as mulheres.

Afirmar que a pandemia expõe e agrava a desigualdade social, de raça e de gênero é uma obviedade que várias pesquisas comprovaram ao longo de 2020. A iniquidade abissal do Brasil —e, em menor escala, da maioria dos países do planeta— impõe como privilégio aquilo que é um direito básico, o de ser capaz de se proteger de uma ameaça. Assim, é como privilegiada que discuto aqui a experiência de nos descobrir sem casa, uma experiência que não é apenas subjetiva. Apesar das paredes de concreto que nos cercam, nos sentir sem casa é uma experiência bem concreta.

O que é uma casa?

O que é uma casa? Essa pergunta entrou na minha vida de jornalista junto com a imposição de Belo Monte ao rio Xingu e aos seus povos. Para os ribeirinhos expulsos de ilhas e da beira do rio para a construção da hidrelétrica, casa era uma ideia concretizada a partir de uma experiência de viver e de ser floresta. Para os funcionários da Norte Energia SA, a empresa concessionária da usina e outras terceirizadas a seu serviço, assim como para os advogados que consumavam a “negociação” em que nunca se negociou nada, porque tudo foi imposto, casa era algo referenciado na experiência de viver em cidades do centro-sul do Brasil.

Como quem detinha —e detém— o poder era a empresa, o valor da indenização e de outras compensações foi determinado à revelia da experiência cultural e também objetiva de quem vivia um conceito expandido do que é uma casa, um conceito arquitetônico diverso do que é uma casa, um outro tipo de material para criar uma casa. Enfim, para quem vivia uma experiência inteiramente diversa de fazer casa que foi esmagada pelos tecnocratas. Não apenas por ignorância, mas porque, ao ter o poder de determinar que o que era casa não era casa, ou que o que era casa não era uma boa casa, o valor monetário da indenização e também as compensações seriam muito mais baixos ou, em alguns casos, inexistente.

Testemunhar essa violência implantou a questão do que é casa definitivamente na minha cabeça, e eu a expandi para outros territórios objetivos e, principalmente, subjetivos. Em minha experiência como jornalista, já escrevi reportagens sobre um homem que fez uma casa dentro de uma grande árvore, em plena zona urbana de Porto Alegre. Já contei de uma família que fez casa embaixo de um viaduto, convertendo o cotidiano numa experiência onde cabia preparar o café da manhã, arrumar e levar os filhos para a escola todos os dias para garantir que tivessem educação formal. Já testemunhei o que se tornou uma das reportagens mais impactantes da minha vida, na qual um grupo de crianças de rua fez casa nos esgotos da cidade. Chamavam a si mesmos de Tartatugas Ninja, como no filme que então estreava nos cinemas.

Conheci também experiências diversas de casa com diferentes povos indígenas. Algumas coletivas, como a dos Yanomami, outras unidades familiares, sendo que também aí há diferentes entendimentos sobre qual é a teia de relações que constitui o que cada etnia chama de família. As humanidades são variadas e experimentam diferentes formas de tecer relação com a natureza. Ou, no caso da minoria branca e dominante —essa que chama sua experiência de civilização e equivocadamente a considera universal ou até mesmo superior—, romper com a natureza.

Andando pelos tantos Brasis em busca de histórias para contar, vi as pessoas inventarem todo o tipo de casa, até as invisíveis, quando é necessário fantasiar paredes nas esquinas movimentadas de cidades gigantes como São Paulo, para fazer limite simbólico entre a família e o mundo sempre ameaçador para os que pouco têm além do próprio corpo. E, claro, já entrei em mansões e também em palácios. Parte do encanto de ser jornalista é a possibilidade de ter acesso a lugares aos quais jamais teríamos em outras profissões.

Apesar da diversidade de experiências, há algo comum a essas tantas construções do que é uma casa, algo para além das diferenças de tamanho, de material, de arquitetura, de contexto e de geografia. É a ideia da casa como o lugar onde cada um faz seu espaço próprio, o lugar que cada um reserva para si ou para a família ou para o grupo. É a ideia da casa como refúgio. É a ideia da casa como proteção contra chuva e contra sol excessivo, contra animais que podem querer nos converter em jantar, contra aqueles que não conhecemos e por isso não sabemos se querem ou não nos fazer mal. É a ideia da casa como espaço de abrigo e de descanso, como um mundo dentro do mundo onde fazemos aquilo que é mais importante, como nos alimentar, nos reproduzir e amar.

Se há ‘office’, não há ‘home’

Quando a casa deixa de representar esse conjunto de significados, não importa a forma que ela tenha, há um distúrbio. Pode ser porque o abusador mora nela —seja ele o pai, um padrasto ou um tio que molesta, seja um marido ou companheiro violento. E então a casa já não garante mais segurança, proteção e abrigo. Seja porque a casa foi invadida e saqueada, seja porque algo violentamente disruptivo aconteceu desde dentro e a casa passa a guardar uma memória com a qual temos dificuldade de lidar. A casa então já não pode mais ser refúgio. A casa então se descasa, porque sozinhos ou acompanhados somos, de qualquer modo, casados, no sentido de que fizemos casa. E fazer casa é preciso.

Se tornar descasado, no sentido de sem casa, é o que está acontecendo hoje com aqueles que, desde março, fazem home office, expressão em inglês para apontar que a casa, no sentido de lar (home), se tornou também o escritório (office), no sentido de local de trabalho. A expressão home office, porém, é ardilosa. A experiência cotidiana mostra que, se há office, não há home.

Quando o trabalho invade a casa no modo 24(horas)X7(dias) por semana, perdemos a casa. E com ela o descanso, o refúgio, o remanso. E também o espaço de intimidade que só será alcançado pelos de fora se quisermos abrir a porta. Perdemos principalmente a porta. E uma casa sem porta não é uma casa. Mesmo que essa porta seja invisível, caso dos moradores de rua, essa barreira concretizada pela imaginação cumpre o papel simbólico de fazer borda, dar limite. No modo pandêmico, ao contrário. Mesmo que materialmente exista uma porta de madeira ou mesmo de ferro, grossa e cheia de fechaduras complicadas, seguidamente precedida da porta do prédio e ainda da porta externa do edifício, como hoje vive parte da classe média urbana, ainda assim não há porta nenhuma porque já não há limite para o que invade a casa pelas telas —todas as telas— desde dentro.

Essas muitas portas e fechaduras que se multiplicaram para supostamente nos manter seguros só são capazes de botar algum limite nos assaltantes clássicos. Hoje, porém, há outro tipo de assaltante, que pode nos roubar algo muito mais importante, até mesmo insubstituível e seguidamente irrecuperável do que bens materiais. A invasão contemporânea é aquela que nos rouba o tempo e sequestra o espaço da vivência dos afetos, da intimidade, dos prazeres e das subjetividades. Tempo no sentido definido pelo grande pensador Antônio Cândido (1918-2017), tempo como o tecido das nossas vidas, como tudo o que temos, como algo não monetizável. Esse assalto, a médio e longo prazo, pode provocar muito mais estragos no corpo-mente de cada um do que o que convencionamos chamar de assalto.

A tecnologia, e de forma totalmente transtornante e veloz, a Internet, já haviam nos tirado de casa quando em casa. Talvez o primeiro ataque tenha sido o telefone, mas lembro que não era educado telefonar para a casa das pessoas depois de certa hora da noite, em geral cedo, e antes de certa hora da manhã, tampouco na hora das refeições, que costumavam ser feitas na mesma hora em todas as casas. E jamais um chefe ligaria para a casa de um subordinado no fim de semana ou feriado se não fosse literalmente um caso de vida e morte. Mesmo no jornalismo, só éramos perturbados na nossa folga se literalmente caísse um avião ou houvesse um massacre em algum lugar que exigisse uma viagem imediata. E, ainda assim, com um pedido de desculpas por perturbar nossa privacidade e interromper nosso descanso logo na introdução.

A Internet mudou as convenções sociais muito rapidamente, antes que a maioria sequer pudesse compreender a Internet e antes que mesmo seus criadores fossem capazes de entender seu impacto. A Internet, como quase tudo, se fez e se faz na própria experiência. Assim como as pessoas acham que podem escrever nas redes sociais o que lhes vêm a cabeça, sem filtros ou freios, apenas porque o outro supostamente estaria à sua disposição ou, com frequência, seria seu saco de pancada, também se tornou corriqueiro mandar mensagens de WhatsApp a qualquer hora ou por qualquer motivo ou mesmo sem motivo algum. Ninguém enviaria 10 cartas para alguém no mesmo dia, mas quase todos acreditam ser perfeitamente “normal” enviar mensagens e memes e vídeos e links numa só manhã, confundindo poder com dever.

Essa é justamente uma época em que, dos cidadãos aos governantes, todos acreditam que, porque podem, devem. Ou, mais provável, o questionamento sobre dever ou não fazer ou dizer algo foi deletado e, assim, o único verbo a ser exercitado é o “poder”. O tempo da Internet, que é o tempo da velocidade, eliminou para muitos a etapa obrigatória da reflexão. Estamos todos pagando um preço altíssimo por essa mudança brusca e ainda subdimensionada que encolheu ou mesmo eliminou o tempo dedicado à ponderação antes da ação ou reação. Seu impacto é a corrosão de todas as relações, a começar pelos governantes, que passaram a se comunicar pelas redes sociais, conectados diretamente com seus eleitores, em alguns casos com seus fiéis, mas desconectados do ato de responsabilidade que é governar.

Tudo se complica infinitamente mais quando o mundo do trabalho invade a casa. Com a comunicação facilitada e imediata permitida pela tecnologia, os limites que antes eram determinados pela carga horária da jornada passaram a ser ultrapassados ou mesmo ignorados. A precarização das condições de trabalho, o apagamento das fronteiras entre vida privada e profissional, o devoramento do tempo, e com ele, a corrosão da vida, já tinham se tornado uma questão crucial da nossa época.

Com o home office, as condições de trabalho se precarizaram ainda mais. A vida foi transtornada com maior rapidez do que no acontecimento da Internet. Ainda que veloz, a internet foi ao menos progressivamente veloz. Já o home office se impôs literalmente da noite para o dia, determinado pelas necessidades de quarentena ou lockdown. E, para muitos, com o home office do companheiro ou companheira e também com as crianças sem escola.

As crianças, por sua vez, foram convocadas a compreender o incompreensível: que a casa deixou de ser casa para se tornar o lugar de trabalho onde os pais se tornam ainda menos acessíveis e, por todas as razões, com menos paciência e disponibilidade. Os pais estão totalmente presentes e, ao mesmo tempo, quase que totalmente ausentes. Quase que inteiramente em outro lugar, mesmo que inteiramente dentro de casa. Os impactos dessa experiência sobre as crianças de todas as idades estão sendo muito mal dimensionados. É muito difícil para as famílias cuidarem de algo que os pais nem sequer entendem e com o qual também sofrem muito. Também os pais sentem que lhes faltam ferramentas para lidar com a casa transtornada pela pandemia.

Sintomas de “descasamento”

Acompanhando minha própria experiência, assim como a de amigos e conhecidos, percebi que, no início, ficar em casa foi bem interessante. O álibi perfeito para quem já não suportava mais viajar e correr de um lado para o outro, de um mundo pro outro. Para quem vive em cidades grandes, o deslocamento para o trabalho costuma ser estressante, custoso e demorado. Assim, as pessoas acreditaram que, de imediato, ganhariam no mínimo uma hora a mais de tempo para si. Muitos se iludiram que leriam todos os livros empilhados na cabeceira e finalmente ficariam atualizados com os filmes e séries. Trabalhar de pijama ou moletom também soou confortável. A casa oferecia ainda o bônus de manter longe colegas de trabalho chatos e chefes abusivos.

Muita gente já dizia que não voltaria mais ao escritório ou ao consultório ou para o que fosse porque estava provado que era possível e melhor trabalhar de casa. Principalmente, várias empresas começaram a fazer as contas de quanto poderiam economizar quando cada funcionário virasse uma ilha em caráter definitivo. Muitas dessas empresas, inclusive, pouco dispostas a pagar os custos dessa ilha que é, afinal, a casa da pessoa. Defendem, portanto, que deveria ser problema de cada indivíduo pagar as contas de luz, internet etc., mesmo que os custos tenham aumentado pelas necessidades profissionais de uso.

E então começou o império do Big Brother, e a rotina passou a ser determinada pelo agoniante, às vezes enlouquecedor, ruído das mensagens entrando pelo Whatasapp ou dos e-mails se enfileirando na tela. Claro, se pode “emudecer” o som das mensagens, mas quem vai emudecer o chefe, o fornecedor, o fulano que ficou de dar notícias sobre prazos, o sicrano que vai enviar informações importantes, o beltrano que precisa de documentos? As horas foram invadidas além de qualquer precedente. Como emudecer ou mesmo desligar os celulares na hora de dormir se pessoas queridas estão sozinhas no meio de uma pandemia e podem precisar de ajuda a qualquer momento?

Se antes era impossível marcar um número muito grande de reuniões por dia, porque havia o tempo do deslocamento, agora as pessoas estão em casa. Tornou-se possível triplicar o número de encontros (ou desencontros), às vezes sem hora para acabar. As lives e os meetings, que permitiram que o mundo se conectasse para traçar estratégias para enfrentar a pandemia, fazer vaquinhas de solidariedade ou apenas conversar, se tornaram fáceis demais e por isso mesmo excessivos demais. Todos querem fazer meetings e lives por qualquer motivo. Tudo vira imediatamente performance. As horas que se acreditava liberar ao eliminar o tempo de deslocamento entre o trabalho e a casa foram engolidas... pelo trabalho. E outras que não estavam lá foram adicionadas. A desculpa social de “não vou estar em casa” ou “dei uma saidinha” desapareceu. Todos agora sabem onde cada um está. Em casa.

Essa foi a sequência alucinante de acontecimentos que pedalaram a porta da casa. Sem porta, logo a casa deixou de ter paredes e, sem paredes já não fazia mais sentido nenhuma estrutura. Nos tornamos sem porta e com janelas demais, mas um tipo de janelas pelo avesso, na qual somos observados desde dentro, em vez de contemplar o exterior. Reproduzimos a experiência excruciante dos animais confinados em zoológicos, criados em cativeiro.

A tecnologia que nos uniu, essencial para enfrentar essa pandemia, também nos escravizou. Não importa onde estivermos, as telas nos acompanham. No bolso, na bolsa, na mão, no pulso. Os mais sensíveis sentiram primeiro e sofreram mais. Uma amiga passou a não enxergar o que estava na tela. Ou melhor, enxergava, mas um borrão. Nenhuma doença foi constatada. Os relatos em geral apontavam sintomas que impossibilitavam seguir diante da tela. Há pessoas com enxaquecas que nunca antes haviam tido enxaquecas. Gente que se orgulhava de dormir como um cadáver que passou a ter insônia ou sono interrompido. Eu mesma passei a sentir enjoo diante da tela, mas enjoo seletivo. Reuniões de trabalho e meetings com muita gente me provocam náuseas, mesmo quando adoro todos que estão na tela.

Me sinto um corpo que não suporta mais tanta exposição. Minha capacidade subjetiva ainda não encontrou caminhos para criar paredes e portas na minha mente, fazer um refúgio onde não há nenhum, fazer de mim a casa que perdi. Tudo e todos entram casa adentro, na hora que bem entendem, pela tela do computador, pela tela do celular, pela tela do tablet. Informações que não pedi, vídeos que não me preparei para ver, comentários que preferia não ouvir. Gente desconhecida de repente está na minha sala ou mesmo na minha cama. E já não é mais tão fácil desligar todas essas telas porque o trabalho depende delas, as informações que eu realmente preciso dependem delas, a certeza do bem-estar de pessoas que amo e que fazem quarentena sozinhas dependem delas, a vida social depende delas. Nunca socializei tanto quanto nessa pandemia e não sou exatamente alguém que gosta de conversar o tempo todo. Sinto falta de estar realmente sozinha, de estar realmente em silêncio, de estar realmente no meu tempo e no meu ritmo.

Uma porta para importar o que importa

Esses sentimentos e sintomas, porém, são apenas a barbatana que desponta acima da superfície. Abaixo dela, há um tubarão inteiro. Obcecados por planejar a volta de algo que andam chamando de “normal”, esquecemos de olhar para a profundidade da transformação que nossa vida está sofrendo. Somos resultado, como espécie, de um longo processo de evolução e de adaptação, pelo menos dois milhões de anos desde o Homo erectus. Mas, como humanos contemporâneos, nossa existência sofreu uma brutal transformação com a internet e, em 2020, com a primeira pandemia na época das telas.

Nosso corpo não processa uma mudança tão monumental em tão pouco tempo. Desde que o novo coronavírus apareceu, a principal preocupação dos vários setores da sociedade é com os custos financeiros da pandemia. É urgente falar muito mais dos custos psicológicos, das crianças que só conhecem paredes e têm medo de outras crianças porque aprenderam que são ameaças, dos velhos confinados em solidão, dos adultos submetidos a uma pressão inédita e a um nível de convivência também inédito. Esse custo é alto e suas sequelas poderão durar uma vida.

Tratamos a pandemia como uma anomalia, mas a real anomalia é o mundo que criamos dentro do mundo. Ou melhor: o mundo que a minoria dominante dos humanos criou dentro do mundo, submetendo todos os outros, subjugando a maioria. O custo desse mundo ameaça nossa existência no planeta, isso que chamamos crise climática. A pandemia é consequência da corrosão da vida causada pelo capitalismo neoliberal, ao destruir o habitat de outras espécies, e pelo modo de produção em que as mercadorias circulam ampla e velozmente pelo globo, assim como muitos de nós a bordo de aviões altamente poluentes.

A segunda onda de covid-19 mostrou que anomalia produz anomalia. Nosso modo de vida é insustentável, o que fizemos com as outras espécies agora pode nos matar. É uma fantasia perigosa acreditar que é possível voltar à anomalia que chamamos de normal e seguir tocando a vida como se cada ato não tivesse consequências em cadeia.

Em 2020, perdemos definitivamente a casa. Que, além de perder a porta, se tornou também uma prisão, a pior espécie de prisão, aquela que foi criada pelos nossos atos. E o que é uma prisão senão um lugar em que estamos confinados mas não temos privacidade, em que somos acessados a qualquer hora, em que cada gesto é controlado e monitorado, onde as visitas são reguladas e não pode haver toque? O que é uma prisão senão um lugar em que não temos escolha sobre o que pode ou não entrar? Um lugar em que estamos a mercê de todas as outras forças?

Do lado de fora, nas ruas, há três tipos de experiências. A daqueles a quem foi arrancado o direito fundamental de se proteger, porque seu trabalho não pode ser feito em casa e os empregadores e o Estado não os bancam. A daqueles que fazem serviços essenciais, como os profissionais de saúde. E a da maioria de pessoas, que poderia fazer quarentena mas não faz, porque não se importa com a vida de todos os outros, e assim contribui de forma decisiva para a ampliação da contaminação e pelo maior número de vítimas. Esse grupo numeroso de boçais é cínico a ponto de empunhar a bandeira da liberdade, conceito que corrompem ao convertê-lo em liberdade de matar.

Para enfrentar a pandemia é preciso enfrentar a emergência climática e estancar a extinção das espécies. Para enfrentar a emergência climática e estancar a extinção das espécies teremos que criar muito rapidamente uma vida realmente sustentável. Para criar uma vida realmente sustentável temos que nos tornar outro tipo de gente.

Diante da magnitude do desafio, podemos começar organizando a casa. Para organizar a casa é preciso recuperar a casa, essa que é refúgio. E então parar de destruir a casa comum que é o planeta. Não é coincidência que no momento em que enfrentamos as consequências da destruição de nossa casa comum também enfrentamos a experiência subjetiva de perder a possibilidade de fazer casa da casa. É o mesmo nó. Para sair dele, precisamos recuperar a porta, e com ela a possibilidade de voltar a importar —colocar para dentro, deixar entrar— apenas o que realmente importa. A porta da casa é a única saída.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de ‘Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro’ (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum


William Waack: Sem controle

O País está sem controle efetivo, à espera do imponderável

As chances de Jair Bolsonaro ser o condutor dos fatos políticos ficou para trás e ele começa a segunda metade de seu mandato claramente à mercê de fatores sobre os quais tem pouco controle. O sentido da expressão é o seguinte: ser capaz de ditar ou, pelo menos, conseguir encaminhar uma agenda política com rumo e direção claros – além da necessidade de proteger a si mesmo e sua família dos conhecidos enroscos com a Justiça e conseguir se reeleger.

Estar “à mercê de fatores sobre os quais tem pouco controle” significa que, para onde olhe, Bolsonaro está preso a uma intrincada teia que o mantém manietado. Os aspectos mais evidentes envolvem o Legislativo e o Judiciário. No Congresso, ao contrário das aparências, não é Bolsonaro que tem o controle do amorfo grupo de partidos chamado de “centrão”. É essa gelatinosa maioria que o carrega – e se sente totalmente à vontade por não ter de seguir ordens emanadas do Executivo.

O Judiciário, especialmente o STF, em dois anos impôs derrotas sucessivas ao presidente, encurtou seu poder, limitou seus arroubos, e o mantém refém de inquéritos e processos. Pode-se gostar ou não do que fazem os juízes do Supremo, mas nunca se viu um chefe do Executivo tão desmoralizado por decisões de mérito ou liminares que, na prática, o mantém emparedado em estreitos limites. Usando linguagem popular, o STF é o sócio majoritário do poder do atual presidente. 

Há exatamente um ano, passados 12 meses no Planalto, Bolsonaro tinha ensaiado a apresentação de “eixos estratégicos” de seu governo. Reconhecia a questão fiscal como prioritária e, pelo lado das despesas, propunha atacar o crescimento dos gastos públicos através de uma reforma administrativa que enfrentasse o corporativismo das folhas de pagamento do funcionalismo. De outro, propunha destravar a economia e melhorar substancialmente o ambiente de negócios (reduzindo o famoso custo Brasil) via reforma tributária, reforma do Estado em geral, desburocratização, desregulação e privatizações.

A tripla crise política, econômica e de saúde pública, agravada pela falta de visão e liderança dele mesmo, reduziu esses “eixos estratégicos” a uma luta pela sobrevivência política e pessoal, não importando o custo. As recentes eleições municipais não podem ser tomadas como retrato do “caráter nacional” da política, mas expuseram o derretimento da figura do mito, incapaz de transmitir sequer fração dos votos com que tinha impulsionado as mais diversas candidaturas nas eleições de 2018.

Em termos da capacidade de influenciar a recuperação da economia, da qual em último aspecto dependem diretamente as chances de reeleição, Bolsonaro está hoje em situação muito mais precária do que há um ano. Vacina, juros baixos e inflação até aqui razoavelmente comportada funcionam como analgésicos que retiram da esfera política o sentido de urgência e gravidade da questão fiscal – aquela que, no fundo, é a que condiciona toda a política brasileira (desde sempre entendida como o empenho em acomodar interesses setoriais às custas dos cofres públicos).

A desorganização e a falta de coordenação e de rumos, as principais características do atual governo, são ao mesmo tempo causa e consequência de um fenômeno que os sociólogos da velha guarda definiam como anomia social – na sua acepção mais severa, a expressão descreve a ausência de regras que orientem uma sociedade, ou o relacionamento entre suas diversas instituições. Bom exemplo é o comportamento de governadores e prefeitos diante da falta de coordenação federal no caso da vacinação da população: cada um tratou de defender o seu o mais rápido possível, atendendo a uma pressão que Bolsonaro não foi capaz de entender. Na prática, está entregando as coisas a si mesmas, uma perigosa aposta contra o imponderável.

*Jornalista e apresentador do Jornal da CNN


Mariana Ceratti: Brasil analisa como fortalecer o controle interno para evitar desperdício de recursos públicos

Novo estudo alerta: discrepâncias nos sistemas de controles internos dos estados e municípios podem facilitar irregularidades e piorar a qualidade dos serviços públicos

Nepotismo; evolução de patrimônio incompatível com o salário de um servidor público; fraudes e desvios de recursos dos contribuintes: em tese, tais problemas, bem conhecidos entre os que vivem no Brasil e no resto da América Latina, podem ser evitados, rastreados e/ou punidos com sistemas fortes e eficientes de controles internos.

Na realidade, mesmo compatíveis com as melhores práticas internacionais, esses sistemas estão sujeitos a deficiências e desigualdades na implementação, o que abre portas para irregularidades, fraudes e desperdício de verbas públicas. Em uma palavra: corrupção. Todos os anos, US$ 1 trilhão é pago em subornos, enquanto mais US$ 2,6 trilhões são roubados; tudo devido à corrupção, de acordo com as Nações Unidas. E em tempos de pandemia, é mais importante do que nunca conter esse flagelo.

No Brasil, por exemplo, um novo relatório do Banco Mundial e do Conselho Nacional de Controle Interno (Conaci) encontrou grandes diferenças no nível de implementação dos controles internos nos estados e municípios brasileiros. “Isso implica em desperdício de recursos públicos e, na maioria das vezes, em baixa qualidade dos serviços prestados à população”, explica Susana Amaral, especialista sênior em gerenciamento financeiro do Banco Mundial. O desempenho tende a ser melhor nos estados com maiores receitas e Índices de Desenvolvimento Humano (IDH).

“O estudo demonstra a necessidade de reestruturar o sistema de controle interno não apenas para cumprir o arcabouço legal, que no caso do Brasil é desenvolvido e em grande parte aderente aos padrões internacionais. Mas, sobretudo, para que ele seja fortalecido em todas as áreas e funções desempenhadas, e cumpra seu real objetivo de ajudar os gestores, corrigir e orientar a implementação dos programas de governo de modo a entregar serviços de qualidade aos cidadãos”, comenta Susana.

Para entender melhor os resultados do estudo, é importante saber o que são os sistemas e instituições de controle interno e de que forma elas ajudam os governos a entregar serviços públicos de qualidade à população.

  • O controle interno é o conjunto de práticas de supervisão que visam a garantir que os gestores e servidores observem as normas da administração pública e que as políticas públicas sejam cumpridas, sempre prevenindo erros, irregularidades, fraudes e desperdício na aplicação dos recursos dos contribuintes.
  • Existem três tipos de controle interno: o preventivo, que busca evitar desvios; o concomitante, que ocorre durante a execução de uma atividade (uma obra de escola ou hospital, por exemplo); e o corretivo, que visa a ressarcir os cofres públicos pelos recursos que foram mal utilizados e punir os agentes públicos.
  • As Unidades Centrais de Controle Interno (UCCI) orientam os gestores e os servidores públicos a acompanhar a execução dos programas de governo. Elas identificam falhas e sugerem melhorias, seja nos aspectos de registro financeiro, contábil, etc., ou na preparação de contratos e outros documentos. É muito importante que essas unidades tenham equipe própria, independência financeira e manuais de ética para desempenhar suas atribuições de controle. Além disso, todos os órgãos de governo precisam ter unidades de controle interno para executar as recomendações da UCCI.
  • As instituições de controle interno ajudam na prevenção e no combate à corrupção e na melhoria da qualidade do gasto público. Elas também dão apoio ao controle externo, como os tribunais de contas, da União, dos estados ou dos municípios. Esses órgãos fiscalizam e orientam todos os demais órgãos da administração pública nos processos de compra, de contratação de serviços e de terceiros, além de propor soluções para questões técnicas.

Vinte e dois estados e o Distrito Federal enviaram seus dados (faltaram Acre, Maranhão, São Paulo e Sergipe). De acordo com o estudo, apenas oito têm instrumentos para regulamentar conflitos de interesse, o que pode prejudicar o atendimento do interesse coletivo. Esse é o mesmo número de estados que ainda não contam com instrumentos para acompanhar a evolução do patrimônio de seus agentes públicos.

Outra descoberta é a de que nem todas as macrofunções de controle interno — corregedoria, ouvidoria, integridade e auditoria interna — estão estruturadas ou implantadas nos estados participantes da pesquisa. Quase um terço dos órgãos não exercem as funções de transparência e corregedoria, enquanto aproximadamente um quarto dos órgãos não executam a função de promoção da integridade.

O documento também analisa dados de 22 das 26 capitais. A avaliação identificou que 19 têm regulações para vedar a prática de nepotismo. Por outro lado, apenas quatro delas apresentam normas sobre conflitos de interesse e acompanham a evolução patrimonial dos agentes públicos. Além disso, quase metade das capitais não regulamentaram satisfatoriamente a Lei Anticorrupção.

Apesar de mais de 95% das UCCIs das capitais estarem inseridas no primeiro escalão da administração, aproximadamente 20% delas não têm acesso irrestrito às informações e aos documentos necessários para a realização das atividades.

Finalmente, em apenas um quinto das capitais a UCCI participa do planejamento de todas as auditorias executadas. E quase um terço das UCCIs não instauram investigações para apurar responsabilidades em caso de fraudes ou desvios.

O diagnóstico foi apresentado para os representantes dos órgãos em 16 de dezembro. Os dados por estado e capital serão enviados separadamente a cada órgão para orientar a implementação de melhorias. Em um país que chegou ao 106º lugar (de 180 países) no Índice de Percepção da Corrupção 2019 (IPC-2019), divulgado no começo de 2020 pela Transparência Internacional, essas e outras mudanças serão fundamentais para melhorar a qualidade dos serviços públicos e ajudar a aumentar a confiança dos brasileiros em suas instituições.

*Mariana Kaipper Ceratti é comunicadora online do Banco Mundial no Brasil


O Estado de S. Paulo: PT quer Aguinaldo Ribeiro como candidato de Maia

Presidente da Câmara promete anunciar hoje nome do deputado que terá o seu apoio; Baleia Rossi está no páreo

Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - A bancada do PT apoia o deputado Aguinaldo Ribeiro (Progressistas-PB) para ser o candidato do bloco parlamentar à sucessão do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A posição do partido será tomada em reunião marcada para hoje e pode mudar o quadro até então desenhado, tornando-se decisiva para a escolha de Maia, já que a bancada é a maior do bloco, com 54 deputados.

A definição do candidato que vai concorrer à eleição para o comando da Câmara com o apoio de Maia, em fevereiro de 2021, se arrasta há quase 20 dias e não são poucos os que reclamam da demora para o anúncio do nome que vai enfrentar Arthur Lira (Progressistas-AL), líder do Centrão. Lira tem o aval do presidente Jair Bolsonaro.

Desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) barrou a possibilidade de reeleição de Maia e do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), no último dia 6, há um sobe e desce de cotados e favoritos para a disputa que vai renovar a cúpula do Congresso. Além de Aguinaldo, que foi ministro do governo Dilma Rousseff e votou pelo impeachment em 2016, o deputado Baleia Rossi (SP), presidente do MDB, também está no páreo.

O anúncio do candidato deve ser feito hoje. Na segunda-feira, o PT, PDT, PSB e PC do B – todos integrantes do bloco de Maia – lançaram um manifesto no qual afirmam ser preciso derrotar Bolsonaro, chamado de “presidente criminoso”.

“Queremos derrotar Bolsonaro e sua pretensão de controlar o Congresso, um presidente criminoso, cujo afastamento é imperioso para que o Brasil possa recuperar-se da devastação em curso, e também queremos, neste momento, expressar nossa posição e defesa de temas relevantes que merecem a atenção e responsabilidade do Congresso Nacional”, diz o texto.

O documento defende posição contrária à privatização de estatais e à autonomia do Banco Central. Maia observou, porém, não haver acordo em torno da agenda econômica dentro do bloco, que também é composto por DEM, MDB, PSDB, Cidadania, PSL, Rede e PV.

“O perfil do candidato vencedor é ser (homem de) diálogo, que não afaste os parlamentares do gabinete ou da residência do presidente da Câmara e que mantenha independência como ponto principal de uma gestão para os próximos dois anos”, disse Maia. No último dia 18, ao anunciar a formação do bloco com 11 partidos, ele leu um documento, assinado por representantes de todas as legendas, contendo fortes críticas ao governo.

“Esta não é uma eleição entre o candidato A ou o candidato B. Esta é a eleição entre ser livre ou subserviente. Ser fiel à democracia ou ser aliado do autoritarismo. Ser parceiro da ciência ou ser conivente com o negacionismo. Ser fiel aos fatos ou ser devoto das fake news”, sustentava um dos trechos.

Se o escolhido for Aguinaldo, o racha no Progressistas ficará escancarado, vez que Lira é o candidato do partido. Para ser eleito, o candidato precisa do apoio de 257 dos 513 deputados.


Folha de S. Paulo: Kassio se isola na defesa de pautas de Bolsonaro no STF e cumpre expectativa garantista

Em julgamentos importantes, indicado do presidente à corte fica sozinho ao se alinhar a interesses do Planalto

Matheus Teixeira, Folha de S. Paulo

O ministro Kassio Nunes Marques se alinhou aos interesses do presidente Jair Bolsonaro nos dois julgamentos mais importantes dos quais participou desde que chegou no STF (Supremo Tribunal Federal),

Em ambas as oportunidades, o ministro ficou isolado e não foi acompanhado por nenhum colega na defesa das teses que beneficiavam os planos do chefe do Executivo.

Em uma delas, Kassio desagradou a militância bolsonarista ao defender que o Estado pode declarar obrigatória a vacina contra a Covid-19, mas agradou o presidente ao sustentar que apenas a União poderia tomar decisão nesse sentido.1 8

Na outra, Kassio se posicionou pelo veto à reeleição de Rodrigo Maia (DEM-RJ), adversário do governo, na presidência da Câmara, e para liberar Davi Alcolumbre (DEM-AP) a permanecer à frente do Senado.

No fim, quatro ministros votaram a favor da recondução de ambos e outros seis foram contrários.

Em outro julgamento com interesse direto do governo, Kassio se alinhou ao ministro Marco Aurélio, conhecido por ficar vencido em diversos processos, para se opor a uma ação que contestava ato de Bolsonaro.[ x ]

Nesse caso, os outros nove ministros foram no caminho oposto e formaram maioria para derrubar decreto do chefe do Executivo que instituía a Política Nacional de Educação Especial.

Os magistrado entenderam que a medida incentiva a criação de escolas e classes especializadas para pessoas com deficiência em vez de priorizar a inclusão dos alunos, como determina a Constituição.

Marco Aurélio e Kassio, porém, afirmaram que o meio processual escolhido para contestar norma do presidente é inadequado e votaram pela manutenção da norma.

Em menos de dois meses no cargo, o magistrado também correspondeu às expectativas em relação ao anunciado perfil mais garantista em matérias criminais, com uma visão de mais respaldo às alegações dos investigados.

Um exemplo foi dado na decisão liminar (provisória) concedida no último sábado (19) para restringir o alcance da Lei da Ficha Limpa. Advogados elogiaram o despacho, mas movimentos de defesa da legislação que limita direitos políticos de condenados criticaram o entendimento fixado pelo ministro.

O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, por exemplo, disse ter visto na medida "uma articulação de forças que pretende esvaziar a lei”.

Em outro movimento que vai na contramão do que Bolsonaro defendia durante as eleições de 2018, Kassio tem sido decisivo para derrotar a Lava Jato em julgamentos na Segunda Turma do STF.

O ministro costuma se unir aos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski para derrotar a operação.

No processo mais emblemático relacionado ao tema analisado por Kassio, o ministro foi voto decisivo para rejeitar recurso da PGR (Procuradoria-Geral da República) contra decisão que excluiu a delação do ex-ministro Antonio Palocci da ação penal que investiga o petista por suposta doação ilegal de terreno para construção do Instituto Lula.

O ministro ajudou a manter o entendimento de que o ex-juiz Sergio Moro agiu politicamente ao incluir a colaboração de Palocci aos autos do processo às vésperas das eleições de 2018.

O magistrado mostrou que seria contrário aos métodos da Lava Jato já na estreia em um julgamento presencial, na sessão da Segunda Turma de 10 de novembro.

Na ocasião, ele foi voto decisivo para retirar a investigação contra o promotor Flávio Bonazza das mãos do juiz Marcelo Bretas, responsável pela operação no Rio de Janeiro.

Kassio foi indicado por Bolsonaro com o aval do ministro Gilmar Mendes, principal crítico da operação no Supremo, e tem ajudado o ministro a enterrar a operação.

No processo de escolha para a vaga de Celso de Mello, o chefe do Executivo preferiu agradar Gilmar, que é relator da ação que discute o foro especial concedido a Flavio Bolsonaro pelo TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), em vez de estreitar a relação com o presidente da corte, Luiz Fux, que sequer foi consultado sobre a indicação.

Além deste caso, Kassio interrompeu análise de processos no plenário virtual que poderiam atingir de alguma forma Bolsonaro. O ministro pediu que os casos sejam analisados pelo plenário físico, atualmente realizado por videoconferência, e, com isso, retardou decisões que poderiam impactar o presidente.

Isso ocorreu, por exemplo, nas duas ações em que se discute se o chefe do Executivo pode bloquear seguidores nas redes sociais.

Os relatores de cada um dos processos, os ministros Marco Aurélio e Cármen Lúcia, defenderam que o presidente desbloqueie os seguidores que entraram com as ações.

Com o pedido de destaque, o caso vai para as mãos do presidente do tribunal, Luiz Fux, decidir uma data para julgamento presencial.

Kassio fez o mesmo com uma ação penal que discute a gravidade do crime da “rachadinha”.

O processo diz respeito ao deputado Silas Câmara (Republicanos-AM), mas é similar à denúncia contra o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e pode servir de parâmetro para o julgamento do filho do presidente.

Em matérias econômicas, Kassio também seguiu a linha liberal defendida pelo Executivo ao votar pela constitucionalidade do trabalho intermitente previsto na reforma Trabalhista.

O relator, ministro Edson Fachin, defendeu a anulação da norma, mas o indicado de Bolsonaro divergiu.


Marco Aurélio Carvalho: Um ano que exigiu coragem e esperança

Neste dezembro enlutado e vazio, falta de Sigmaringa Seixas é ainda mais sentida

“Não ressuscite por nenhum motivo. Não tem por que você passar nervoso”.

As palavras acima pertencem a uma poesia do chileno Nicanor Parra, também poeta e irmão de Violeta Parra. O poema fala do sentido da vida e abraça aqueles que perderam pessoas inesquecíveis.

Apesar do tom sarcástico, a frase tem o poder de evocar aqueles seres humanos queridos que, nas plagas celestiais, ficariam desgostosos ao olhar para o plano terreno e constatarem o rumo das coisas.

Neste final de dezembro, ano em que quase 200 mil brasileiros perderam a vida pela Covid-19, a força da memória traz para o presente a figura ímpar de Sigmaringa Seixas, o nosso Sig, advogado, parlamentar e brasileiro da melhor estirpe, que nos deixou precocemente no Natal de 2018.

Na trajetória de construir um país com oportunidades iguais para todos, respeitar e restaurar direitos, o advogado que brilhou na Constituinte se tornou referência de liderança.

Sig se destacou pelos exemplos de diálogo, cordialidade e de extrema responsabilidade com o bem comum. Atributos que —diga-se de passagem— tem sido cada vez mais escassos na paisagem nacional, obrigando brasileiros e brasileiras, diuturnamente, a conviverem com cenas constrangedoras de falta de liturgia republicana, de ausência de civilidade e com ameaças perigosas para a nossa jovem democracia.[ x ]

Daquele triste dia 25 de dois anos atrás aos dias de hoje, o exemplo de Sig esparramou esperanças e inspirou novas veredas de luta.

grupo Prerrogativas, fruto da união de juristas e advogados, dos mais diversos espectros, é um filho da fecunda herança deixada pelo ativista dos direitos humanos.

Não por acaso, Sigmaringa Seixas é o patrono do Prerrogativas. Patrono que nunca se escondeu na conveniência do silêncio e que abraçou resolutamente a bandeira do Estado de Direito face ao voluntarismo de parte do sistema judiciário e dos arroubos autoritários expostos pelas novas configurações políticas pós-impeachment.

Em 2020, o grupo promoveu mais de cinquenta lives e conferências virtuais com a temática central de continuar alertando para os perigosos desvios do arcabouço jurídico quando, sob a roupagem da imparcialidade, fica entrelaçado a cada movimento do ponteiro do relógio eleitoral.

Em outro frente, o grupo, em homenagem ao seu inesquecível patrono e inspirador, publicou “O Livro das Suspeições”, com 34 artigos originais de juristas e advogados que atuaram na Lava Jato.
A obra disseca os bastidores de uma operação fundamentada em atos incompatíveis com as regras do jogo democrático.

Por feliz coincidência, no encerramento do ano, chega às livrarias este lançamento auspicioso para a necessária e esperada correção de rumos das instituições brasileiras. Certamente, teria em Sigmaringa um leitor atento e arguto perante uma obra que, longe do deslumbramento, e de forma pioneira, esmiúça a Operação Lava Jato com especial felicidade.

Recentemente, uma outra obra foi aplaudida por parte da imprensa como fruto de uma visão desapaixonada e “isenta” sobre a operação. Como se assim não fossem as reflexões oferecidas desde o início de 2014 por juristas como Lenio Streck, Juarez Tavares , Weida Zancaner e Pedro Serrano.

Fabiana Alves Rodrigues, juíza federal, é a autora deste importante livro: “Lava Jato: aprendizado institucional e ação estratégica na Justiça”.

Fabiana produziu um alentado e minucioso levantamento sobre uma série de vícios e distorções que produziram informações manipuladas, omissões graves, voluntarismo e que culminaram em ingerências no processo eleitoral.

Em um trecho, a autora aponta que a narrativa midiática dos operadores da Lava Jato alardeava uma corrupção generalizada a partir de contratos da Petrobras. “Ao pressupor que esse diagnóstico está correto, depara-se com um problema adicional relacionado ao funcionamento da democracia, que envolve o déficit de legitimidade quando alguns integrantes do sistema de Justiça definem de forma cirúrgica qual parcela da corrupção sistêmica será priorizada”, sublinha a juíza e pesquisadora.

Visto que o perfil da operação foi um “recorte seletivo”, uma das conclusões do livro aponta na direção de que dificilmente as consequências da Lava Jato produzirão resultados duradouros “à corrupção sistêmica que se afirma existir no país”.

Com a seletividade de alvos, rasgaram-se os princípios da imparcialidade e da isenção.
E emergiu o poder discricionário da toga, sem limites e sem regras, que permeou toda a cronologia engendrada pela chamada “República do Paraná”.

Curiosamente, o caminho trilhado pelos agentes públicos na Lava Jato remete ao embate entre o ministro Jarbas Passarinho, de origem militar, e o vice-presidente Pedro Aleixo, em dezembro de 1968.

Ao se manifestar na reunião ministerial que aprovou o Ato Institucional nº 5, Passarinho falou de forma soberba: “às favas, sr. presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”.

Felizmente, outros brasileiros, resistem e resistiram ao arbítrio. Sigmaringa foi um deles, comprometido com princípios, premissas e valores do Estado de Direito e da plena democracia.

Neste dezembro enlutado e vazio, tempos de medo e espanto, sua falta é ainda mais sentida.
Mas o exemplo de sua vida continua a nos mover e a nos iluminar com coragem e esperança.

Sigmaringa... Presente! Hoje, e sempre.

*Advogado, atualmente é sócio da CM Associados; sócio-fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e do Grupo Prerrogativas


Conrado Hübner Mendes : A vacina da revolta sustenta Bolsonaro

Mais difícil que explicar a letargia social é justificar o torpor institucional

Jair Bolsonaro vacinou 30% da população brasileira muito antes da pandemia. Assim como a vacina do RNA mensageiro ensina o organismo a se defender do coronavírus sem inocular vírus nenhum, a vacina bolsonara ensina a mente a recusar fatos e a atacar uma esfera pública que comunique fatos. Sequestra a consciência, os sentidos e qualquer afeto social em nome da promessa de liberdade. Vacina assim não é qualquer Pfizer que fabrica.

Essa é a versão otimista da história. A versão cínica e menos autoindulgente diria que a liberdade do "eu sozinho", a liberdade do "eu primeiro", a liberdade do "e daí?", somadas às liberdades do "eu mereci", "sou engenheiro civil formado" e "todo mundo vai morrer mesmo", liberdades brasileiras por excelência, casaram com Jair.

Nosso liberalismo à bala foi gestado por proprietários de escravos. O litígio por essa herança ainda reúne muita gente. Partido Novo e Paulo Guedes, o liberal de Bagé que trata maricas com joelhaços, só tentaram furar a fila.

A versão cínica ou a otimista da história, somada às imposições da pandemia, talvez expliquem a letargia social diante da enormidade dos fatos de autoria intelectual ou material de Bolsonaro em 24 meses. Recordar é sobreviver:

Há uma agência de inteligência (Abin) trabalhando para defender filho do presidente de acusação criminalR$89 mil foram transferidos por operador de rachadinha na conta da primeira-dama; uma família inteira (três filhos e ex-esposa) comprou imóveis com dinheiro vivo; funcionários-fantasmas e assessores de gabinete tiveram salários confiscados por anos a fio. Nem o presidente nega: "Queiroz pagava minhas contas e está sendo injustiçado".

O quarto filho, jovem empresário, troca hora marcada na agenda presidencial por serviços gratuitos de empresas contratadas pelo governo federal. O pai segue lutando para acelerar colapso climático, para isentar polícia da responsabilidade por matar crianças negras e facilitar armamento de milícias (ou você achava que reduzir fiscalização era para te proteger?).

O circuito da delinquência se encerra na pandemia, agora no estágio da vacinação: contra a lei, presidente incita medo e defende a não-obrigatoriedade da vacina; cioso de seu papel de educar pelo exemplo, afirma "não vou tomar!"; encomenda campanha sobre perigos da vacina e pede termo de responsabilidade; boicota vacina que supõe beneficiar adversário eleitoral; está pelo menos seis meses atrasado na construção de plano de vacinação.

Bolsonaro calcula que postergar até 2022 as condições sociais de insegurança, incerteza e apreensão da pandemia o beneficia eleitoralmente. Está certo de que a responsabilidade por 200 mil mortes, número que deve seguir em alta com a inoperência do projeto de vacinação, será atribuída ao Congresso, ao STF, a governadores e prefeitos. Até ao capeta, mas não a ele.

Bolsonaro aposta que, quando a vacina enfim chegar, será recompensado. Melhor que aconteça perto da eleição. Ele pode estar certo.

Mais angustiante que buscar explicação para a letargia social, porém, é decifrar e justificar um torpor institucional e partidário tão duradouro. Afinal, o "instinto assassino", o "descaso homicida" e o "instinto sabotador", qualificativos de editorial recente da Folha, precedem à pandemia. Estavam lá desde o começo.

O negacionismo político que normaliza gratuitamente o projeto de Bolsonaro nasceu com a posse do governo e, depois de tudo, continua a suspirar nos tribunais superiores, nas Casas legislativas e até no jornalismo. Enquanto isso, o centrão se bolsonarizou, fez o presidente mergulhar na fisiologia venal que jurou combater e o tornou ainda mais perigoso.

Nessa conjuntura, a coalizão de partidos democráticos, formada para disputar a presidência na Câmara dos Deputados, é novidade promissora no horizonte. O tom e a cor das palavras, pelo menos, mudaram: "esta é a eleição entre ser livre ou subserviente; ser fiel à democracia ou ser aliado do autoritarismo". A união nasce para rechaçar "projeto de poder que menospreza as instituições e que por inúmeras vezes sugeriu fechamento desta Casa".

As dezenas de crimes de responsabilidade estão aí, escolha seu preferido. Para que crime de responsabilidade resulte em impeachment, porém, vamos ter que elaborar algum antídoto contra a vacina da revolta.

*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.


Cristiano Romero: Todos sabemos por que o Brasil não dá certo

Trata-se de questão ética: como ser feliz num país racista

Muitos brasileiros fazem a seguinte pergunta diante do espelho: "Por que o Brasil não dá certo?". Geralmente, quem faz a indagação não tem muito do que reclamar. Sua vida é melhor aqui, mais fácil, mais farta, com maior acesso ao que o país oferece de melhor a seus cidadãos, do que seria se ele vivesse em outra economia de renda média ou mesmo numa nação rica, ainda que sendo proporcionalmente detentor de renda equivalente. A péssima distribuição de renda explica parte dessa história.

Evidentemente, aqui, todos, pobres e ricos, reclamam da extrema violência que ceifa anualmente a vida de cerca de 60 mil pessoas - em 2018 (último dado disponível), foram 57.956, mas, como há algo de podre no reino das estatísticas dos Estados, visto que nos anos recentes houve aumento exponencial de mortes violentas sem causa determinada, o número de mortos está subestimado.

O contingente de pessoas que sai de casa num determinado dia para morrer parece uma espécie de maldição estatística, uma vez que, com poucas variações, se repete ano a ano. Maldição? Praga? Predestinação diabólica de um povo condenado à miséria e ao sofrimento? Não creia nisso. Não há nada intangível nas estatísticas da violência no país chamado Brasil.

Os dados oficiais da violência mostram que 75,7% dos brasileiros assassinados há dois anos eram negros - entre as mulheres, o percentual é 68%, informa o Atlas da Violência 2020, elaborado pelo Ipea com base nas ocorrências registradas pelas secretarias estaduais de segurança pública em 2018. Mais da metade (29.064) eram jovens com idade entre 15 a 29 anos.

Em 2018, uma mulher foi assassinada neste país a cada duas horas, somando 4.519 vítimas. Olhemos mais de perto os números e num período maior de tempo, para tentar achar uma pista que aponte alguma tendência desta terrível mazela nacional: entre 2008 e 2018, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras caiu 11,7%, a taxa de mulheres negras assassinadas aumentou 12,4%.

O resumo da violência neste imenso território é o seguinte: os homicídios vitimizam, principalmente, homens (91,8% dos casos), jovens (53,5%), negros (75,7% dos casos), pessoas de baixa escolaridade (74,3% dos homens vitimados possuem apenas sete anos de estudo) e solteiros (80,4% do total de homens assassinados). O principal instrumento de agressão é a arma de fogo, usada em 77,1% dos casos de morte de homens e em 53,7%, no caso de mulheres.

Convenhamos: os números são de uma racionalidade espantosa, é desnecessário desenhar: a sociedade brasileira assiste, indiferente, a um verdadeiro genocídio de jovens, em sua maioria absoluta, negros e pobres, o que também se aplica às mulheres negras. Será que é difícil saber qual é a verdadeira monstruosidade que explica esta vilania que nos caracteriza como sociedade e que, em vez de diminuir, só tem aumentado?

Como o tema não é novo neste espaço, um leitor escreveu para dizer que, nesta guerra civil interminável, morrem mais negros porque estes são a maioria entre os pobres. Trata-se da tese de que quase 42 mil negros foram assassinados neste canto do mundo em 2018 não porque eram negros, mas porque eram pobres. Trata-se de uma falsa questão.

Na música "Haiti", Caetano Velloso e Gilberto Gil escrevem o seguinte, a respeito do massacre do Carandiru, ocorrido no dia 2 de outubro de 1992, quando 111 presidiários foram mortos e 37 ficaram feridos após ação da polícia - como não se tratava de um presídio, a maioria dos mortos ainda não havia sido julgada ou tido a sua sentença definida pela Justiça:

" (...) Cento e onze presos indefesos

Mas presos são quase todos pretos

Ou quase pretos

Ou quase brancos, quase pretos de tão pobres

E pobres são como podres

E todos sabem como se tratam os pretos (...)"

O poema afiado como navalha de barbeiro nos lembra que, nestes tristes trópicos, é tão ruim ser negro que, se você é pobre, muito pobre, é "quase preto".

Senhores, 56% das pessoas que habitam a quarta maior extensão de terra contínua do planeta se declararam pardos ou negros no último censo demográfico conduzido pelo IBGE. A maioria de nós, portanto, é negra. Nosso problema, acima de qualquer outro, é o racismo secular, estrutural, vicejado pela minoria branca, remediada, rica e mais educada, contra a maioria.

O Brasil não dá certo por essa razão. Como poderia suceder? A escravidão nos acompanha desde a chegada dos europeus. Quando a abolimos por meio de uma lei, quase 400 anos depois, não a abolimos de fato porque o mundo quase acabou - os barões do café exigiram compensação financeira do Estado pela perda de "propriedade", "demitiram" os negros, derrubaram a monarquia, implantaram uma República condominial (sem povo e com rodízio no comando entre dois dos três Estados mais ricos), forçaram o governo a importar mão de obra do Japão e de nações europeias para substituir a mão de obra escrava, impediram os negros de ter acesso a escolas...

Por que ainda há entre nós quem seja contrário a políticas de reparação à população negra, posta em desvantagem por séculos na história deste país? Nossa sociedade não é racista, ela é o próprio racismo. Este faz parte da paisagem nacional tanto quanto o samba, o futebol (onde, aliás, manifestações racistas são crescentes), o carnaval, mas, enquanto esses símbolos são projetados como parte de nossa identidade cultural, a discriminação aos negros é negada de forma vergonhosa e institucional.

Não é mais possível (nunca foi) olhar a realidade política, econômica, social, cultural, sem as lentes que corrijam a pior das miopias: a de que o racismo é apenas mais um problema a ser enfrentado, uma obrigação cidadã, uma determinação constitucional. Nada disso. Não é mais possível admirar nada neste país de 210 milhões de habitantes sem pensar, a cada segundo, que vivemos numa sociedade profundamente escravagista, onde a maioria é discriminada pela minoria. Trata-se de uma questão ética: como viver, como aceitar viver numa sociedade assim?


Vinicius Torres Freire: Economia deve fraquejar no verão vermelho da Covid-19

Metade final de 2021 deve ser melhor, mas desordem na saúde deve causar estagnação

A segunda metade do ano que logo vem pode ser de notícias melhores na economia se o governo não sabotar o país. O verão de 2021, porém, vai ser uma “fase vermelha”, como se diz aqui em São Paulo das restrições mais graves para comércio e serviços na epidemia.

Não quer dizer que a economia vá embicar para baixo ou que embique de modo relevante. Mas os indícios são de que deve haver estagnação, uma parada da recuperação desde o fundo do poço de meados do ano. Quais são esses indícios?

Índice de Confiança do Consumidor medido pela FGV caiu de modo significativo de novembro para dezembro e a intenção de ficar na retranca nos gastos é alta. O repique da epidemia, o fim dos auxílios emergenciais, a desordem no programa de vacinação e o desgoverno em geral devem derrubar os ânimos.

A inflação medida pelo IPCA deve ficar entre 5,5% e 6% ao ano de abril a agosto. É uma dentada cruel na renda real e uma injeção de desânimo na veia do povo miúdo.

No estado de São Paulo, o número de internações em UTI por Covid-19 parece ter desacelerado nesta semana, mas ainda é cerca de 60% maior que no início de novembro. O número de mortes é 86% maior. No conjunto do país, o morticínio cresceu mais de 100% nesse período.

Mesmo sem restrições formais a movimentação e atividade econômica, o medo causa receio ou paralisa. Continuam parados, muito prejudicados ou voltam a cair os negócios de turismo, convenções, feiras, viagens, esportes, cultura, entretenimento em geral, serviços de saúde e de educação, restaurantes, bares, lanchonetes, salões de beleza, academias. A movimentação menor pelas cidades derruba a venda dos lojistas. Tudo isso é um pedaço enorme da economia. O repique da Covid-19 já faz estragos nos faturamentos, é a conversa quase geral, mesmo sem medidas restritivas.

Quanto à política econômica, mais especificamente sobre gastos do governo, é agora improvável que aconteça uma explosão, barbeiragem ou gambiarra mais nociva até fevereiro, pelo menos. Mas não há governo na economia e não se sabe se haverá, menos ainda enquanto não houver a eleição dos comandos de Câmara e Senado, em fevereiro. Até lá, haverá arrocho por inércia e inépcia do governo.

Ainda assim, a falta de rumo (qualquer rumo racional), a persistência da epidemia e a sabotagem federal do programa de vacinação não devem animar contratações de trabalho e de novos investimentos em expansão de empresas e construções. Haverá certamente uma massa de pessoas, talvez vinte milhões ou mais, que cairá em miséria, mesmo no melhor cenário médio.

Nesta quarta-feira pode ser que tenhamos uma grande e boa notícia sobre a vacina comprada pelo governo de São Paulo. Uma vacina eficaz (perto de 90%) e um programa de vacinação com ampla cobertura (mais de 90% das pessoas) atenuaria a tristeza horrível por tanta morte e daria esperança econômica.

A taxa básica de juros está baixa, há oferta razoável de crédito bancário, o preço das commodities está bom, há alguma poupança financeira represada nas famílias remediadas. Há pelo menos alguns meios para que possamos continuar a subir desde o fundo do poço da epidemia. Com responsabilidade sanitária na virada do ano e no verão, a retomada da retomada poderia vir mais cedo.

Se Jair Bolsonaro e sua sabotagem criminosa da vacinação puderem ser contidos, melhor ainda _o país, governadores e Supremo tentamos improvisar um governo na área da saúde.

No entanto e por enquanto, o risco é de a recuperação fraquejar no verão vermelho da Covid-19.


Zuenir Ventura: E Biden não virou jacaré

Presidente eleito dos EUA, com transmissão ao vivo pela TV, tomou sua primeira dose de vacina da Pfizer/BioNTech

Além de tudo, a vacinação em massa seria um bom negócio para o país. É o que dizem duas autoridades econômicas do governo: o presidente do Banco Central e o ministro da Economia. Roberto Campos Neto afirma que investir em vacina é mais barato do que o pagamento de benefícios emergenciais. Já Paulo Guedes traduz isso em números. Em entrevista, ele lembrou que o auxílio emergencial chegaria a R$ 55 bilhões por mês, enquanto a vacinação da população custaria menos da metade, R$ 20 bilhões.

Isso não deveria ser novidade. Desde criança, me acostumei ao ritual de ser picado contra diversas doenças, numa boa. Doía um pouquinho, mas valia a pena, porque fazia bem à saúde da gente e do país. Nunca chegou a me fazer chorar.

Até que ultimamente comecei a ouvir perguntas disparatadas sobre possíveis efeitos que seriam causados pela imunização. Ideia de algum maluco, como a hipótese de que quem tomasse corria o risco de virar jacaré. Parei de rir quando soube que não era uma fake news das redes sociais. O próprio presidente Jair Bolsonaro foi quem, num evento na Bahia, advertiu os ouvintes assustados: “Se você virar um jacaré, é problema seu”.

Ele não costuma dizer coisa com coisa, mas dessa vez garantia, com a autoridade de presidente da República, acredite, que o contrato da Pfizer/BioNTech isentava o laboratório da responsabilidade pelos efeitos colaterais. E dava mais exemplos: “Se você virar Super-Homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino, eles (Pfizer) não têm nada a ver com isso”.

O teste definitivo aconteceu anteontem, quando o presidente eleito dos EUA, Joe Biden, com transmissão ao vivo pela TV, tomou sua primeira dose de vacina, justamente do laboratório contra o qual Bolsonaro lançara a advertência, o Pfizer/BioNTech.

Mas até ontem pelo menos, até o momento em que escrevo esta coluna, tudo indica que Joe Biden não virou jacaré. Se isso tivesse acontecido, acho que não só eu, mas o mundo todo teria sabido.