Ricardo Noblat: Partido de Bolsonaro em pé de guerra
Nunca mais o PSL será o mesmo
Passava um pouco das 11h de ontem quando a reunião da Comissão de Tributação e Finanças da Câmara foi interrompida por uma voz de choro. “Acabei de ser destituída”, anunciou a deputada federal Alê Silva (PSL-MG) que desde fevereiro último sempre falou ali em nome do governo de Jair Bolsonaro.
Fez-se silêncio na ampla sala onde havia dezenas de deputados. Aos prantos, Alê contou que fora informada por telefone que sua missão estava encerrada. E que em breve a direção do PSL indicaria outro nome para substitui-la. Foi a primeira baixa na guerra deflagrada por Bolsonaro dentro do partido pelo qual se elegeu. Haverá outras.
“Esse partido só quer dinheiro e que se dane o povo brasileiro. Partido pequeno, nanico, que chegou aonde chegou por causa de Bolsonaro”, prosseguiu Alê no seu desabafo. Mais tarde, no plenário da Câmara, e dessa vez sem chorar, ela ainda discursaria para alguns dos seus colegas que a procuraram solidários:
“Sabe por que o PSL me excluiu? Porque eu sou inteligente, porque eu entendo de contas públicas. Por que para mim o interesse da população brasileira está acima de qualquer interesse de oligarquia política ou econômica. Foi essa a razão pela qual eles me excluíram. Joguem-me aos lobos que eu volto liderando a matilha”.
Alê é bolsonarista de raiz. Está disposta a ficar no PSL se Bolsonaro ficar ou sair junto com ele para outro partido. Quem a tirou da Comissão, despojando-a dos poderes que tinha, foi o deputado Luciano Bivar (PE), presidente do PSL, e uma espécie de dono do partido há algumas décadas. Nada de pessoal contra Alê.
Bivar, apenas, aceitou pelejar com Bolsonaro pelo controle do PSL. Não fez sequer um gesto para impedir que Bolsonaro deixe o partido se esse for mesmo o seu desejo. E começou a retaliar disparando na direção dos deputados do PSL mais fiéis a Bolsonaro. Parece convencido de que assim a maioria ficará ao seu lado.
A exemplo de outros partidos, o PSL está organizado nos Estados por meio de comissões provisórias, não eleitas, mas indicadas pela direção nacional. Por provisórias, podem ser dissolvidas de um momento para o outro, afetando diretamente os interesses de detentores de mandatos. Aí reside parte da força de Bivar.
Outra parte reside na grana. Bivar é dono da chave do tesouro do partido, alimentado por dinheiro dos fundos partidário e eleitoral. Mensalmente, o PSL embolsa algo entre R$ 12 milhões a R$ 15 milhões. Dinheiro vivo. O partido pode fazer com ele o que quiser sem ter que dar muitas satisfações à Justiça Eleitoral.
Bolsonaro e seus filhos estão de olho nesse dinheiro. E como Bivar não abre mão de administrá-lo, a nova família imperial brasileira estuda meios e modos de se transferir para outro partido onde de fato possa mandar e desfrutar das benesses de quem manda. A saída não será tão simples e demandará algum tempo.
O partido de destino terá de ser um ainda em fase de construção. Esse partido terá de se fundir a outro dando origem a um partido realmente novo. Só então os que quiserem acompanhar os Bolsonaros na aventura poderão fazê-lo sem risco de perder os mandatos, e levando parte da grana que hoje é do PSL.
(De volta ao ar, o programa Topa Tudo por Dinheiro.)
Nem um tostão a menos
O apetite da grande família por dinheiro
À meia voz porque os ouvidos das paredes nos tempos que correm andam muito aguçados, deputados de vários partidos conversavam, ontem, no final da tarde no cafezinho da Câmara sobre o apetite por dinheiro da família Bolsonaro.
Um deles, de Santa Catarina, lembrou um fato prosaico, mas revelador. De quatro em quatro anos, a Câmara dá uma grana extra ao deputado que não se reelegeu para que se mude de volta ao seu Estado. E ao que se elegeu para que se mude para Brasília.
Como a Câmara é generosa, ela dá a mesma grana também para o deputado que se reelegeu e que já mora, portanto, em Brasília e não terá de se mudar. Há os que recusam por pudor. Há também os que recusam porque são donos de imóveis em Brasília.
Reeleito deputado federal, Eduardo Bolsonaro embolsou a ajuda destinada aos que voltariam aos seus Estados, e também a ajuda destinada aos que se mudariam para Brasília. Seu pai fez o mesmo, porém com um agravante.
Bolsonaro tem imóvel próprio em Brasília. E sua mudança foi paga pela presidência da República.
Censura ao passado
Nomes apagados
Sobrou para o índio Sapé Tiarajú, cujo processo de canonização amadurece no Vaticano. Ele morreu em 1756 em batalha contra a remoção de 30 mil índios pelos exércitos unificados dos reinos de Portugal e Espanha.
Sobrou também para Aureliano Chaves, vice-presidente da República no governo do general João Batista de Oliveira Figueiredo, o último da ditadura militar de 64. Mineiro, Aureliano foi um político conservador.
Sobrou ainda para Barbosa Lima Sobrinho, ex-governador de Pernambuco e presidente da Associação Brasileira de Imprensa à época do regime militar. E para o economista Celso Furtado. E para o ator Mario Lago. E para o ex-governador do Rio Leonel Brizola.
Eles deram nome a 11 termoelétricas da Petrobras. Não dão mais por ordens superiores.
Ascânio Seleme: As manifs vêm aí
Que ninguém se espante se o próximo ano for repleto de manifestações
Normalmente eles têm razão. Não apenas porque reúnem coragem e saem de casa para dizer o que pensam, o que já é bastante, mas porque quase sempre estão refletindo um sentimento que assalta o coração da maioria. Os manifestantes que ocupam as ruas e que gritam e se batem em favor de temas que dizem respeito à vida dos cidadãos são muitas vezes ingênuos, e em outras cumprem apenas um ritual juvenil. Mas estão ali, enfrentando o Estado e a sua polícia, porque acreditam que, se vencerem, todos ganharão. Não falo dos manifestantes de corporações, que apenas sopram a brasa debaixo da sua sardinha. Me refiro aos que gritam pela floresta, pelos direitos civis, em favor das mulheres, dos gays, dos negros, da liberdade de expressão, da democracia.
Não, não me refiro aos manifestantes que fazem atos de política partidária, que se esgoelam porque perderam o poder numa eleição ou porque não se conformam com o programa de governo de quem a venceu. Estou tratando dos que bloqueiam as ruas em protesto pelo aumento de 14 centavos na passagem dos ônibus, como se viu em 2013, mas não dos que pegam carona nas mobilizações para apresentar reclames próprios, corporativos, partidários ou sindicais. São homens e mulheres que defendem minorias e causas ignoradas pelo Estado e esquecidas pela sociedade. São jovens, alguns de idade, todos de espírito. Estou falando de pessoas de muito valor.
Sorte do país cujo povo sabe se defender das gigantescas estruturas estatais, indo para a rua, gritando, exigindo respeito. Na França, essas manifestações de indignação e confrontação são tão comuns que ganharam até um apelido carinhoso. São as manifs. Em Paris, elas partem sempre da Place de la République em direção à Bastilha. Antes das enormes demonstrações dos coletes amarelos, as manifs tinham objetivos mais claros e muitas vezes cirúrgicos. No Brasil, depois da supermanifestação “contra isso tudo que está aí” de 2013, houve diversas outras, mas as maiores e mais barulhentas foram quase todas de natureza partidária ou corporativa.
As partidárias são bem conhecidas, sobretudo aquelas em favor do impeachment da Dilma e as do Fora Temer. As corporativas vão desde o bloqueio de ruas por taxistas contra motoristas de Uber, que eram triviais há três anos, até a megaparalisação de caminhoneiros que gerou a maior crise de abastecimento da história do país no ano passado. Essas, embora importantes e algumas vezes gigantescas, têm muito menos valor do que as que se espalharam pelos estados em favor da Amazônia, da manutenção das bolsas de estudo da Capes, de salários iguais entre homens e mulheres, a favor da comunidade LGBTQI+, dos negros dos oprimidos, dos excluídos.
As pequenas demonstrações de dor e indignação que aconteceram no Rio em protesto pela morte da menina Ágatha, vítima de uma monstruosa imprudência policial, têm mais sentido e calam muito mais profundamente no coração do carioca do que todas as demais. Segurança, saúde, educação, meio ambiente, democracia, os temas são muitos e estão na pauta do dia. São eles que merecem cada vez mais atenção, debate e protesto. E a temporada de manifestações e protestos parece estar começando. O governo, com uma política dura, meio burra e absolutamente inflexível, já começa a ouvir o rufar dos tambores.
Que ninguém se espante se o próximo ano for repleto de manifestações dessa natureza. Claro que haverá aproveitamento político partidário em ano eleitoral. Sempre foi assim e seguirá sendo. Os caroneiros vão estar presentes nas filas às portas dos hospitais, em frente a escolas públicas caindo aos pedaços, no velório das muitas outras vítimas da política de segurança que morrerão em 2020. Mas os genuínos, os que estarão lá para expressar inconformismo e determinação, esses têm o poder de manter o país sólido e impermeável a autoritarismos.
Esses têm a força. Serão eles que gritarão por democracia e liberdade, contra a censura, sempre. A onda autoritária que varreu o país nas eleições de 2018 deverá ser confrontada no ano que vem. Prepare-se, Brasil, as manifs vêm aí.
Bernardo Mello Franco: Lula aos olhos de FHC
Nos últimos “Diários da Presidência”, FH expõe visões contraditórias sobre Lula. O tucano sofreu com os ataques do petista, mas ficou satisfeito com a civilidade da transição
Vem aí o último volume dos “Diários da Presidência” de Fernando Henrique Cardoso. Os principais temas do livro são a eleição de 2002 e a transição para a posse de Lula. Foi um processo exemplar, que lembra como a política brasileira já soube ser civilizada.
No penúltimo dia de governo, os rivais históricos brindaram juntos num churrasco na Granja do Torto. Dias antes, o neto do tucano foi convidado para jogar bola com o neto do petista. “Esse é o grau de amizade”, anotou FH, satisfeito com o clima de reconciliação.
Nem sempre foi assim. No calor da disputa, o sociólogo sofreu com os ataques do operário. “O Lula é realmente um despreparado, além de ser grosseiro”, desabafou, em outubro de 2001. “Ele é um clown. Foi um líder e hoje é uma réplica de si mesmo, e de quinta categoria. É patético”, esbravejou, seis meses antes.
No início da campanha, FH levantava dúvidas sobre o favoritismo do oposicionista. “O Lula é boa pessoa, é intuitivo, mas não é preparado. Quando começar a falar, vai assustar todo mundo”, apostou, em agosto de 2001. Ele parecia convencido de que o rival não conseguiria pilotar o governo. “Eu acho, e lamento dizer isso, que o Lula não está preparado para ser presidente”, sentenciou. “Não estudou nada, não trabalhou, não se aperfeiçoou”.
Aos poucos, FH foi dando o braço a torcer. “Começo a perceber que o Lula penetrou muito. Penetrou em camadas que acham que o Lula mudou, que o PT é outro”, admitiu, em maio de 2002. A desconfiança passou a dar lugar à ironia. “O Lula fez ontem um discurso beijando a cruz”, disse, em junho, quando o petista prometeu respeitar os contratos. “Estão muito bonzinhos”, debochou.
FH assistiu ao último debate na TV do Alvorada. Achou Lula “demagógico”, mas reconheceu que sua vitória era irreversível. Depois da abertura das urnas, ele zombou do primeiro discurso do eleito. “Mais parecia eu falando. Só que eu falaria com mais ênfase e talvez com mais graça, sem um documento nas mãos para ler”.
No fim do diário, o presidente registrou seu incômodo com a festa em torno do sucessor. “Curioso, não sei se fizeram uma entronização tão sacra assim quando fui eleito. Menos ainda quando fui reeleito”, reclamou.
Merval Pereira: o Dito pelo não dito
Depois de receber um cartão vermelho simbólico do presidente do PSL, Luciano Bivar, teve que recuar
O presidente Bolsonaro descobriu, nesse episódio da briga com a direção do PSL, que pode muito, mas não pode tudo. Deu uma de Jânio, ameaçou sair do partido pelo qual se elegeu, e deu com os burros n’água. Ficou o dito pelo não dito.
Depois de receber um cartão vermelho simbólico do presidente do PSL, Luciano Bivar, teve que recuar. Em entrevista ao site O Antagonista, o presidente, apesar de reiterar as críticas, deixou escapar o centro das divergências: “Eu não quero esvaziar o partido. Quero que funcione. O PSL caiu do céu para muita gente, inclusive para o Bivar. O que faço é uma reclamação do bem. O partido tem que funcionar, tem que ter a verba distribuída, buscar solucionar os problemas nos diretórios. Todo partido tem problema. O presidente, o tesoureiro, eles têm que solucionar isso.”
Bolsonaro tem razão quando diz que “o partido caiu do céu para muita gente, inclusive para o Bivar”. Por sua causa, o PSL recebeu 10,8 milhões de votos para deputado federal a mais nessas eleições do que em 2014.
Na última disputa para a Câmara dos Deputados, sem Bolsonaro, o partido tivera apenas 808 mil votos. Já em 2018, foram 11,6 milhões. Por isso, o partido terá nada menos que R$ 359 milhões em 2020, com os fundos Partidário e Eleitoral. Mais que o PT, (R$ 350 milhões) e o MDB (R$ 246 milhões).
A engorda do Fundo Partidário se deveu a Eduardo Bolsonaro, eleito com mais de 1,8 milhão de votos, o deputado federal mais votado da história do Brasil. Superou Éneas (1.573.642 em 2002 pelo Prona) e Celso Russomanno (1.524.361 votos em 2014). A candidata de primeiro mandato Joice Hasselmann, também do PSL, foi outra campeã de votos em São Paulo, com mais de 1 milhão de votos, superando Tiririca, do PR, que teve 1.016.796 votos em 2014, mas caiu para cerca de 500 mil votos em 2018.
Além de aumentar as bancadas de seus partidos, ajudando a eleger vários deputados com a votação que excedeu o quociente eleitoral, esses puxadores de voto aumentam também o fundo partidário distribuído pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) anualmente aos partidos que participaram das eleições para a Câmara.
A maior parte dos recursos - 95% - é distribuída entre os partidos de acordo com o número de votos obtidos na eleição para a Câmara dos Deputados (os 5% restantes são divididos igualmente). Cada voto obtido por uma legenda equivale, todo ano, a uma determinada quantia. Hoje, deve estar por volta de R$ 30,00. Isso quer dizer que só Eduardo Bolsonaro deu ao PSL cerca de R$ 54 milhões, além de ter elegido três outros deputados federais.
Os grandes puxadores de voto também recebem uma atenção especial dos partidos, assim como os grandes craques de qualquer esporte têm remuneração variável pela performance, ou executivos recebem bônus por produtividade.
O partido de Bolsonaro tem ainda as maiores votações de cinco estados. Hélio Negão, como é conhecido, obteve 480 votos quando disputou uma vaga de vereador no Rio. Em 2018, como Hélio Bolsonaro pelo PSL, os votos pularam para 345.234, tendo sido o deputado federal mais votado.
São filiados ao PSL os deputados mais votados de Goiás, Delegado Waldir, hoje líder do partido, do Mato Grosso, Nelson Barbudo; de Minas Gerais, Marcelo Alvaro Antonio, ministro do Turismo às voltas com denuncias de ter usado candidatas laranjas para desviar dinheiro para sua campanha.
Na chamada "janela partidária", um período de 30 dias corridos antes de o prazo de filiação se encerrar, seis meses antes do pleito, os parlamentares podem trocar de partido sem a ameaça de perda de mandato. Deputados podem mudar, fora da janela eleitoral, se expulsos sem justa causa ou se houver fusão de legendas.
Nem os votos, nem o tempo de televisão, que é contado pela bancada eleita em 2018, e não pela atual, migram para a nova legenda, a não ser que seja um novo partido criado. E mesmo assim é uma questão a ser decidida pelo Tribunal Eleitoral.
É essa a aventura que Bolsonaro teria que encarar, a um ano das eleições municipais, convencer deputados a trocar o certo pelo duvidoso, criar um novo partido do zero, para ter tempo de televisão e dinheiro para a campanha municipal. Por isso, recuou para a defesa e procura rearrumar o time, com o mesmo Luciano Bivar, que disse estar queimado, na presidência da legenda.
Igor Gielow: Radicalização de Bolsonaro e crise fiscal sugerem impasse perigoso
Medidas podem levar a ruas indóceis e a Congresso mudo, estimulando autoritarismos
Nas eleições de 1990, Fernando Collor de Mello já não gozava da popularidade que o havia levado ao Planalto, mas ainda assim a sigla hospedeira de sua aventura presidencial, o PRN, viu eleitos 40 deputados federais.
Não era assim uma potência, ante os gigantes PMDB (108 deputados) e PFL (83 eleitos), mas uma agremiação robusta do segundo escalão. O partido reclamava mais espaço no governo Collor.
Quatro anos depois, escorraçado do poder com o presidente, o PRN estava reduzido a quatro deputados. Logo depois, despareceu, virando mais um zumbi nanico a assombrar a vida política —hoje atende pelo nome de Partido Trabalhista Cristão e tem dois representantes na Câmara.
O PSL, outro nanico que abrigou uma improvável campanha presidencial em 2018 e virou uma das maiores sigla da Casa, parece que seguirá o rumo do PRN. A diferença é que seu comensal, Jair Bolsonaro, será o responsável pelo movimento sem ter caído em desgraça como Collor.
Para tentar isolar-se dos rolos do laranjal do PSL, Bolsonaro deu a senha ao dizer nesta terça (8) para um apoiador que ele “esquecesse” a sigla. O tamanho da sangria nos 53 deputados, que de resto se comportam como se estivessem num grupo de WhatsApp e não um partido, é algo a ver.
Coesão não há. Todos reclamam, como na época do PRN, por espaço no governo. Membros se acusam mutuamente, e alguns, como o líder no Senado, Major Olímpio (SP), compraram briga com os radioativos filhos do presidente. O que acontecerá após a implosão é incógnito e perigoso para Bolsonaro: poderão brotar homens-bomba com segredos inconvenientes a contar.
O caso é exemplar da política brasileira tão criticada pelo presidente. A geleia institucional em que o país está imerso é tão amorfa que a discussão hoje é sobre a conveniência de Bolsonaro fundar uma nova agremiação ou partir para a tradicional fusão de nanicos.
Ou se ele vira o jogo e toma o PSL para si. Ou, quem sabe como insinuou no começo da noite da quarta, deixe tudo como está.
Uma coisa é certa: o país continuará sem um partido conservador verdadeiro, com o nome sequestrado por gente que flerta com extremismos, como o tal congresso que irá discutir o tema em São Paulo neste fim de semana provará.
O fato é que, para Bolsonaro, tanto faz. Seu desprezo pelo jogo político é notório, e o preço de tal atitude começa a se fazer sentir. A reforma da Previdência só será aprovada, com toda a desidratação a que foi submetida, quando as faturas passadas pelo Senado forem enfim pagas.
Com o enterro na prática da mexida tributária mais ampla, o próximo item na agenda é uma emergência, a crise fiscal que ameaça quebrar estados em série pelo país e, ao fim, a federação como um todo.
A solução que o faz-tudo Rodrigo Maia (DEM-RJ) encontrou foi dar prioridade a um misto de burla com reforma, no caso a mudança de critérios da chamada regra de ouro e propostas para reduzir o gasto federal com o funcionalismo.
A insolvência que ronda obriga medidas drásticas, não há dúvida. Mas elas, a depender da dose, podem levar a reações corporativas pesadas, e não é descabido antever greves e outros protestos. Aí fica a dúvida: se houver uma grande turbulência, as bancadas crescentemente alienadas pelo presidente irão assumir sozinhas o ônus de lidar com o problema?
Porque é duvidoso que um Bolsonaro tão intensamente radicalizado por motivos de estratégia eleitoral tenha, ao fim, algum tipo de capacidade de articulação e liderança congressual. Novamente, o fardo cairá sobre Maia, que não tem vocação para coveiro de velório alheio.
Neste caso extremo, com impasse no Congresso e ruas convulsionadas, parece razoável supor a exacerbação dos pendores autoritários de Bolsonaro e o consequente teste da tal solidez das instituições. Como dito, é uma hipótese hiperbólica que nem leva em conta o Lula Livre desejado pelo presidente para alimentar sua base, mas se há uma coisa que a realidade política nos ensina é nunca duvidar do pior.
José Serra: Preferência pela educação
A Petrobrás é forte, competente e lucrativa, não precisa de privilégios
O ataque de 14 de setembro ao maior complexo de exploração petrolífera do mundo, na Arábia Saudita, trouxe prejuízos transitórios e uma lição duradoura: o mundo está encharcado de petróleo.
Num primeiro momento, especulou-se que o inusitado ataque imporia prêmio de risco geopolítico permanente aos preços do óleo. Quase um mês depois, porém, o pico de alta nas cotações se desvaneceu numa pronunciada queda dos preços dessa matéria-prima. Na véspera do evento, a cotação do brent foi de US$ 60,22 o barril; no dia útil seguinte, fechou a US$ 69,02, uma alta de 15%. Entretanto, três semanas depois, em 2 de outubro, a cotação caiu a US$ 57,69 – 5% menor que à véspera do ataque.
A lição: o petróleo é uma riqueza cujos dias – ou décadas – estão contados. Enquanto a produção é impulsionada por novas tecnologias, como o fraturamento hidráulico e a exploração em águas ultraprofundas, a demanda não tem acompanhado o crescimento da economia mundial. O gasto energético tem sido mais eficiente e o petróleo vem sendo substituído por outras fontes de energia. De 2008 a 2018, o PIB mundial cresceu 28,3% e a demanda por óleo, apenas 16,1%.
Quanto mais demorarmos, menos bônus extrairemos da riqueza-petróleo. Quando o assunto é o pré-sal, tempo é dinheiro, literalmente.
O Brasil desperdiçou oportunidades trazidas pelos preços maiores do petróleo quando iniciou uma improdutiva e demorada mudança do marco legal do pré-sal. Ficamos cinco anos parados, sem novos leilões de petróleo. E o novo regime aprovado, o de partilha, representou só a volta mal disfarçada do monopólio da Petrobrás. A estatal passou a ser operadora compulsória de, no mínimo, 30% dos campos. E com a obrigação de arcar nessa proporção com os custos de exploração, encargo muito além da capacidade da empresa, então à beira da insolvência por causa de anos de má gestão. O primeiro leilão só foi realizado em 2013, para o campo de Libra.
Em 2016, lei de minha autoria modificou o regime de partilha, transformando a obrigatoriedade de participação da Petrobrás em direito de preferência. O ideal seria ter revogado essa obrigatoriedade, mas o direito de preferência foi o consenso político possível à época.
A mudança permitiu destravar os leilões do pré-sal. Em 2017 e 2018 foram feitas quatro rodadas de licitações, que arrecadaram R$ 16,1 bilhões em bônus de assinatura e garantiram R$ 2,5 bilhões em investimentos na fase de exploração.
A competição entre as petroleiras resultou em ofertas de excedente em óleo para a União que chegaram a 80%. O excedente em óleo é o lucro da produção. A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis estimou que os campos leiloados nas quatro rodadas do pré-sal renderão R$ 1,2 trilhão para União, Estados e municípios ao longo de 30 anos, ou R$ 40 bilhões por ano. Nada mau para um projeto de lei tachado de “entreguista” pelos suspeitos de sempre.
Entretanto, é possível avançarmos ainda mais para aumentar a participação do Estado na renda petrolífera. Em que pese o sucesso dos leilões do pré-sal, ficou claro que o direito de preferência dado à Petrobrás causa distorções que podem frear ou mesmo reduzir o ganho estatal proporcionado pela exploração.
O direito de preferência permite à Petrobrás, caso tenha seu lance superado no leilão, aderir ao consórcio vencedor, tornando-se a operadora do campo, com participação mínima de 30%. Isso pode parecer razoável, em se tratando de empresa estatal. Porém é preciso levar em conta que a Petrobrás participa dos leilões com uma lógica exclusivamente empresarial, isto é, objetivando a maximização de seu lucro. E não se deve esquecer que, apesar do controle ser estatal, a propriedade da empresa, hoje, é majoritariamente detida por acionistas privados.
Vejam do que se trata: na 4.ª Rodada de Partilha de Produção, na condição de operadora de um consórcio, a Petrobrás ofertou 18% de excedente em óleo para a União pelo bloco de Três Marias, proposta derrotada por outro consórcio, que ofereceu 49,95%. Como era previsível, a empresa exerceu seu direito de preferência e aderiu ao consórcio vencedor.
Se aderiu, é porque considerou vantajoso, mesmo repassando 49,95% de excedente em óleo para a União – o que não a inibiu de apresentar inicialmente uma proposta tão baixa quanto 18%. Ficou óbvio: o direito de preferência induz a Petrobrás a oferecer lances mais baixos dos que daria na ausência desse direito. A empresa não corre o risco de perder campos que lhe interessem.
Por isso estou propondo agora um passo à frente: um projeto de lei que prevê o fim do direito de preferência da Petrobrás. Os interesses da empresa nem sempre coincidem com os interesses da União. Para um mesmo nível de eficiência, qualquer aumento do lucro da Petrobrás reduz a parcela de óleo ofertada à Federação.
O excedente em óleo da União é receita pública destinada ao Fundo Social e, dessa, 50% vão para a educação pública. Quanto menores os lances da Petrobrás, menos recursos serão destinados à educação.
Não somos adversários da empresa. Ao contrário, desde sempre defendemos a ideia de que ela seja bem gerida e apresente bons resultados. Apenas discordamos de que parte de seu lucro possa advir não de maior eficiência, mas do direito de preferência, um privilégio legal.
A Petrobrás é forte, competente e lucrativa o suficiente para contemplar o interesse dos seus acionistas, majoritariamente privados. Não precisa de privilégios especiais. Num Brasil moderno e socialmente justo, privilégios só para a educação.
Neste momento de grave crise fiscal, em que os recursos para a educação chegam a ser contingenciados – a ponto de comprometerem o futuro do Brasil –, temos de tomar posição de forma inequívoca: toda a preferência deve ser da educação.
*Senador (PSDB-SP)
William Waack: A grande ofensiva
O governo Bolsonaro diz querer atacar seu mais perigoso adversário
Pelo menos na economia o governo de Jair Bolsonaro parece ter achado um centro de gravidade, a julgar por parte do recente noticiário. Os generais que acompanham o capitão conhecem bem o conceito, que estudaram nas escolas de Estado-Maior: é a escolha de um eixo central de ação (vem do alemão “Schwerpunkt”). Trata-se da proposta, divulgada com bem menos alarde do que brigas sobre costumes, de uma ambiciosa reforma administrativa.
Ela mira num dos mais poderosos aparatos burocráticos do mundo, o universo de servidores públicos do Brasil que, de acordo com o Ministério da Economia, saltou de cerca de 500 mil em 2003 para cerca de 712 mil em 2018. Na média, é uma força de trabalho que desfrutou de aumentos de salários (já bem melhores dos que são pagos para funções similares na iniciativa privada) muito superiores à inflação. Segundo o Banco Mundial, acionado pelo próprio Ministério da Economia, o número de funcionários públicos no Brasil não é extraordinariamente elevado na comparação internacional, mas o gasto do País com o funcionalismo como proporção do PIB é muito maior do que o registrado em países ricos.
Programas de concessões e privatizações, desburocratização e desregulamentação empalidecem diante da ambição dessa ação – a reforma administrativa – que pretende reduzir salários, reenquadrar funções, baixar números de servidores e atacar privilégios. Ela seria coordenada com duas outras: a tributária (acoplada a um novo pacto federativo para distribuição de recursos entre Estados e municípios) e a demolição da rigidez dos orçamentos. A reforma da Previdência, ainda em curso, não era uma proposta ambiciosa: era uma medida fundamental sem a qual nem se poderia examinar qualquer outra coisa.
Ainda na linguagem militar, esse conjunto de ações formaria a maior ofensiva contra o tamanho do Estado jamais tentada desde a redemocratização. Enfrentaria a mais poderosa resistência política que se conhece no Brasil – a dos (na antiga linguagem sociológica) estamentos burocráticos que ocupam o alto das carreiras públicas, dispõem do controle sobre os assuntos do próprio interesse e são capazes de paralisar qualquer ação que considerem prejudicial a eles mesmos, sem grande apreço pela noção de conjunto da Nação (basta lembrar como o Judiciário se trata).
O mesmo Banco Mundial, que fornece a artilharia de flanco para o Ministério da Economia, reitera a “janela histórica” oferecida pela biologia: nos próximos dez anos, calcula-se que 26% dos servidores se aposentam até as próximas eleições presidenciais. Quarenta por cento vão para a inatividade nos próximos dez anos. É a oportunidade, argumenta-se na equipe de Paulo Guedes, de lidar para valer com um sistema inchado, ineficiente, que preserva graves distorções dentro dele mesmo (em termos salariais e de carreira) e, em termos relativos, custa muito em relação ao que devolve à sociedade que o sustenta. E que bloqueia qualquer governo.
É incalculável a quantidade de energia política, além de liderança e articulação dentro e fora do Legislativo, necessária para levar adiante uma ofensiva tão ambiciosa. Mas o que mais chamou a atenção no noticiário dos últimos dias foram as brigas do presidente com a cúpula do partido que deveria ser dele, mas, aparentemente, não é. O indiciamento de um ministro pelo cultivo de laranjais em campanhas eleitorais. Disputas sobre as credenciais de um líder de governo no Senado apertado pela Lava Jato. Para não falar na evidente desorientação do governo quanto ao que ele mesmo quer na discutida reforma tributária, ou no pacote anticrime.
Diante do desafio a ser enfrentado, organizar-se com sentido de urgência, foco e direção pode parecer óbvio para qualquer um. Menos para o pessoal da lacração para o qual o presidente dá tantos ouvidos.
Pesquisa e inovação são destaques da nova edição de Política Democrática online
Produzida e editada pela FAP, revista também publica reportagem sobre acordo frustrado entre Brasil e Paraguai sobre usina de Itaipu
A FAP (Fundação Astrojildo Pereira) lançou, nesta quarta-feira (9), a 11ª edição da revista mensal Política Democrática online, com destaque para a entrevista do físico e diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), Carlos Henrique Brito. A publicação também leva ao público reportagem especial sobre o movimento político liderado pelo Cidadania 23 na Câmara dos Deputados que cobra audiência pública para esclarecer o acordo frustrado entre Brasil e Paraguai sobre a usina de Itaipu, além de análises sobre os cenários político e econômico.
» Acesse aqui a 11ª edição da revista mensal Política Democrática online
Na entrevista, Brito diz que “o país precisa mudar a forma como trata a pesquisa científica, acabando com um sistema distorcido de incentivos e recompensas que mata a inovação”. Ele destaca que, em todos os países onde se consegue criar desenvolvimento econômico e social usando ciência e tecnologia, há parte expressiva de recursos investidos na pesquisa, tanto pela universidade quanto por institutos de pesquisa governamentais e por empresas.
Já a reportagem especial revela a dificuldade de parlamentares da oposição democrática, entre os quais Rubens Bueno (Cidadania-PR), para realizarem audiência pública na Comissão de Relações Exteriores da Câmara sobre o acordo do Brasil com o Paraguai que teve de ser anulado para evitar o impeachment do presidente daquele país, Mario Abdo Benítez. Há suspeitas de que o acordo beneficiaria a empresa brasileira Léros, supostamente ligada a aliados do presidente Jair Bolsonaro.
No editorial, a revista considera que a Operação Lava-Jato ocupa o centro do debate político. “No balanço parcial de sua atividade, o saldo é positivo para a democracia, menos pelas estatísticas de desempenho, em termos de número de condenações e volume de recursos recuperados, e muito mais pelo aumento da informação em benefício de toda a sociedade”, diz um trecho, para continuar: “Sabemos hoje que a política no Brasil operava com base em regras ilegítimas e ilegais, inaceitáveis para a grande maioria dos cidadãos”.
A nova edição da Política Democrática online também aponta a necessidade de o Brasil ter eficiência econômica. Por isso, de acordo com um dos analistas políticas, as propostas para o país devem contemplar a reestruturação do Estado, reorientando investimentos e gastos públicos, conforme sugere Sérgio Buarque.
A revista também traz outros artigos de opinião, com análises sobre democracia, cultura e economia. Integram o conselho editorial da Política Democrática online Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.
Ricardo Noblat: Tudo por dinheiro
Em jogo, algo como mais de 700 milhões de reais em 4 anos
O presidente Jair Bolsonaro quer queimar o deputado Luciano Bivar (PE), presidente do PSL, para que ele e seus garotos possam controlar a fortuna destinada ao partido pelos fundos partidário e eleitoral. Nos próximos quatro anos, algo como R$ 740 milhões.
É isso o que está por trás do ataque feito, ontem, por ele a Bivar. À saída do Palácio da Alvorada, na paradinha que dá para falar diariamente com admiradores e, como de costume, ofender jornalistas, Bolsonaro disse a um filiado do PSL:
– [Bivar] está queimado pra caramba.
Bolsonaro não quer sair do PSL. Quer que Bivar se curve às suas ordens na hora de repartir o dinheiro do partido com vistas às eleições municipais do próximo ano e às eleições gerais de 2022 quando ele deverá ser candidato à reeleição.
Há quatro anos, o PSL só elegeu um deputado federal e nenhum senador. Temporariamente alugado a Bolsonaro no ano passado, o partido elegeu 52 deputados federais e quatro senadores. Na Câmara, é dono da segunda maior bancada. A primeira é do PT.
Bolsonaro não tem nenhum apreço por partidos. Foi filiado a oito deles nos seus quase 30 anos como deputado federal. O PSL é o nono. A essa altura, montar um novo partido demandaria muito tempo – e Bolsonaro não pode se dar a esse luxo.
Trocar o PSL por um partido nanico seria arriscado. Os deputados do PSL que o acompanhassem na aventura poderiam perder o mandato. Só não perderiam se o PSL os expulsasse ou concordasse com sua saída. Improvável. Perderia dinheiro.
O mais provável é que Bolsonaro e Bivar acabem se entendendo.
Um jantar de arromba
Coisas da República
Nem por encomenda a noite, ontem, no restaurante Lake’s, tradicional reduto em Brasília de políticos, jornalistas e pessoas afins, poderia ter reunido para jantar uma fauna tão improvável.
Em uma área reservada, o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar, e parte da bancada federal do partido confraternizavam com o ministro Sérgio Moro, da Justiça.
O prato principal deveria ter sido o pacote de leis contra o crime de Moro. Acabou sendo o ataque feito horas antes a Bivar pelo presidente Jair Bolsonaro
Moro chegou atrasado ao encontro. E não se deu conta de que em outra mesa estavam os procuradores Deltan Dallagnol, coordenador da Lava Jato em Curitiba, e Roberson Pozzobon.
Tanto quanto Moro, Dallagnol e Pozzobon são personagens de destaque nas conversas sobre os bastidores da Lava Jato divulgadas pelo site The Intercept Brasil. Virão mais por aí.
De repente, irrompeu no restaurante o ex-senador Romero Jucá (PMDB-RR). Um jornalista o aguardava. Jucá perdeu o cargo de ministro do Planejamento do governo Temer pelo que disse.
Em uma conversa gravada com o empresário Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, subsidiária da Petrobras, Jucá cunhou uma frase que se tornaria célebre e profética:
– É preciso estancar essa sangria.
Referia-se à Lava Jato. Que começa a ser estancada pelo Supremo Tribunal Federal e o Congresso.
Os personagens da noite tão movimentada foram embora fazendo de conta que não haviam se visto.
Por que Bolsonaro não irá a Roma
A opinião da primeira-dama Michelle Bolsonaro pesou na decisão do seu marido de não viajar a Roma para a canonização no próximo domingo da Irmã Dulce, a primeira santa brasileira.
O presidente havia admitido comparecer à cerimônia que será celebrada pelo Papa Francisco. Michelle foi contra por uma questão religiosa. Ela é evangélica de raiz.
No lugar de Bolsonaro irá o vice-presidente Hamilton Mourão. Por orientação de Bolsonaro, ele viajará em um jatinho da FAB com poucos lugares ao invés de num dos Boeing presidenciais.
Assim, Bolsonaro espera mostrar ao Papa a sua insatisfação com o Sínodo da Amazônia que se estenderá até o fim do mês reunindo em Roma cerca de 260 cardeais, bispos e religiosos.
Ministros de Estado, admiradores da Irmã Dulce, voarão a Roma em aviões comerciais e às próprias custas. Também o ex-presidente José Sarney que foi amigo da futura santa.
Merval Pereira: Dirigismo cultural
Critério do que é pornográfico é de Bolsonaro, como se dinheiro público também fosse dele. Essa não é a função do governo
A intromissão do governo na vida pessoal dos cidadãos é a ambição de todo governo autoritário, de esquerda ou de direita. Quando há uma ditadura, como na China, é fácil até mesmo controlar o dia a dia do cidadão, como o governo pretende fazer a partir do próximo ano pondo em prática o Sistema de Crédito Social, que dará nota aos cidadãos de acordo com seu comportamento cotidiano, que será monitorado pelo governo.
Esse programa definirá o grau de confiança do governo no cidadão. Conforme a pontuação, cidadãos serão proibidos de viajar, ou de colocar filhos em boas escolas, ou de trabalhar. Pode transformar alguém em pária, ou em burocrata bem-sucedido.
Aqui, como ainda somos uma democracia, o governo está inaugurando um sistema de monitoramento tupiniquim, com burocratas checando nas redes sociais o pensamento e o comportamento político de artistas e produtores que pretendam financiamento para suas obras dos órgãos públicos.
Na Caixa Econômica já começou. Para o presidente Bolsonaro, trata-se de não “perder a guerra da informação”. O que ele chama de “mudanças na questão da cultura, da Funarte, da Ancine”, é simplesmente censura oficializada, pois determinou que “não veremos mais certo tipo de obra por aí”.
Para Bolsonaro, “não é censura, isso é preservar os valores cristãos, é tratar com respeito a nossa juventude, reconhecer a família como uma unidade familiar, essa é a nossa linha”. O presidente já definiu claramente o que pensa: se quiserem fazer filmes pornográficos, façam com dinheiro próprio, não com dinheiro público.
Simples assim. O critério do que é pornográfico é dele, como se o dinheiro público fosse também dele. Essa não é a função do governo no financiamento público da cultura. Ao contrário, um governo democrático tem obrigação de estimular e financiar a diversidade cultural.
O conceito intervencionista e dirigista que está por trás do suposto projeto cultural do governo Bolsonaro, que já faz seus efeitos na autocensura dos dirigentes de órgãos que temem punições, pode ser espelhado na tentativa dos governos petistas de controlar a produção cultural.
O presidente Bolsonaro vê a área de cultura aparelhada pela esquerda, e quer fazer o seu próprio aparelhamento ideológico, pela extrema direita.
A tentativa de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav) no governo Lula, com o objetivo de garantir uma “contrapartida social” à produção cultural, tem o mesmo sentido da criação do Conselho Federal de Jornalismo, para “regulamentar, disciplinar e fiscalizar o exercício profissional” e “zelar pela qualidade da informação e pelo exercício ético do jornalismo”.
Essa, aliás, é uma ojeriza comum aos governos autoritários de direita e de esquerda: detestam a imprensa independente. O presidente Bolsonaro refere-se às empresas de comunicação brasileiras como “abjetas”, “mentirosas”, e procura constranger jornalistas escolhidos como adversários pessoais, assim como faz Trump nos Estados Unidos, e como fazia Lula em seus tempos de liberdade.
Nos tempos petistas, até mesmo associações que teoricamente deveriam representar os jornalistas associaram-se ao governo para “enfrentar e combater a manipulação da informação, a distorção de fatos e as práticas jornalísticas que privilegiam interesses escusos em detrimento do cumprimento da função social do jornalismo”.
Com as mesmas palavras, o governo de hoje, que se contrapõe ao de ontem, e vice-versa, tenta controlar a imprensa e as manifestações culturais. Enquanto o PT quis incluir a tal da “contrapartida social” nos incentivos culturais, o governo Bolsonaro tenta incluir seus pensamentos e crenças, seus valores morais, como régua para os demais cidadãos, alegando que está “preservando os valores da família cristã”.
Quem define quais são os “valores da família cristã”? O que seja manipulação da informação? Qual é a “função social” do jornalismo? Denunciar os desvios do governo, qualquer governo, seria uma delas? E quais são as “contrapartidas sociais” para financiamentos de obras audiovisuais?
De esquerda ou de direita?
Vera Magalhães: Jair e os partidos
Propensão do bolsonarismo ao confronto já leva o presidente a cogitar fazer as malas
Não pode surpreender ninguém o fato de Jair Bolsonaro aproveitar uma de suas aparições para selfies em frente ao Alvorada para pedir que o apoiador “esqueça” o PSL, e aproveite para dar uma espinafrada em Luciano Bivar, o presidente da sigla. Bolsonaro nunca deu a mínima para partidos. Menos ainda para aliados. Seu partido é sua família.
O embarque do bolsonarismo no PSL foi um negócio conveniente para ambas as partes. Bivar desocupou a casa para que Bolsonaro se instalasse com os seus e colocasse o até então aliado Gustavo Bebianno no comando. A legenda tinha, então, R$ 1,2 milhão de Fundo Partidário em conta. Agora, com a eleição de 52 deputados na esteira do presidente, Bivar pegou o partido de volta com um Fundo Partidário de R$ 110 milhões neste ano. Não se tem conhecimento de aplicação tão rentável.
Bivar esperava que o negócio bom para ambas as partes continuasse no governo. O presidente e os filhos controlariam as seções do partido em São Paulo e no Rio, as duas principais; e ele seguiria tocando a lojinha, entre uma denúncia de laranjal aqui, outra ali.
Mas a propensão do bolsonarismo ao confronto transformou a sigla num balaio de gatos e já leva o presidente a cogitar fazer as malas de novo. Resta saber: para onde? As demais legendas nanicas com propensão a serem alugadas já têm seus donatários estabelecidos. E abrir mão de um partido sentado em tantos recursos não é uma decisão simples, nem com todo o voluntarismo belicista do presidente e de seu clã.
Tributária encrua e perde lugar para reforma administrativa
A tal “linha de montagem” de reformas e projetos para destravar a economia prometida por Paulo Guedes parece ter sofrido uma mudança de escala: sai a reforma tributária, encruada pela falta do que colocar no lugar da finada Contribuição sobre Pagamentos, e entra a administrativa, igualmente importante e espinhosa, cujos pontos foram antecipados por José Fucs no Estado. Caso o governo inverta mesmo as prioridades, terá de contar com a boa vontade da Câmara e do Senado, que já deram a partida na discussão das suas próprias propostas de mudança tributária.
STF concentra definições no fim da ‘temporada 2019’
Tal como uma série de TV, o Supremo Tribunal Federal decidiu concentrar as emoções todas no final da temporada de 2019. Gilmar Mendes confirmou, no Roda Viva desta semana, que o plenário deve analisar no dia 23 duas decisões que são cruciais para o futuro do processo penal brasileiro: a das prisões após condenação em segunda instância e a tese para a aplicação do entendimento, firmado na semana passada, de que réus delatados têm direito a manifestação final depois dos delatores.
Não que haja consenso sobre essas questões. Mas os ministros reconhecem que não dá para virar o ano com tamanho grau de indefinição. No caso da prisão em segundo grau, voltaram a circular tentativas de se firmar uma tese intermediária, que permita a execução da pena em certos casos, mas não a torne uma regra. Assim como a saída tentada por Dias Toffoli em 2018 de aguardar manifestação do STJ, uma espécie de terceiro grau, também essa parece eivada de improvisação.
Cristiano Romero: Anatocismo
A União tem participação, direta ou indireta, em mais de 600 empresas e precisa vender, e se livrar, de tudo isso logo
Brasílio é um sujeito que possui um patrimônio razoável, mas tem, também, uma dívida enorme, sobre a qual incidem juros altos (principalmente, porque a dívida é grande). E foi quase sempre assim: patrimônio e dívida elevados. O problema do Brasílio é que ele não consegue cortar despesas nem gerar mais receitas e, assim, economizar uma quantia para pagar os juros e, assim, impedir que a dívida cresça. Resultado: o cidadão segue aumentando os compromissos financeiros para bancar as despesas correntes, que não param de crescer.
O gerente do banco onde o Brasílio tem conta, conhecedor de suas finanças, o aconselha a se desfazer do vasto patrimônio. Diz-lhe para vender imóveis, carros de luxo, barcos, coisas que, na idade do Brasílio, não fazem mais nenhum sentido na vida dele. O sujeito tem na garagem, entre outros carros, um Alfa Romeo 76 e uma Kombi 77 amarela, “vintage”. Uma coisa o Brasílio é: honesto. Tudo o que possui está registrado direitinho em sua declaração do Imposto de Renda.
Mas, pense num sujeito apegado a coisas sem utilidade... Por isso, pediu ao gerente uma avaliação do seu patrimônio. Feito isso, descobriu que, dos 146 ativos listados em seu patrimônio, poucos realmente valem um bom dinheiro. O gerente, visto pelo Brasílio como algoz, cidadão portador de más notícias, pessoa insensível, explicou-lhe que seria bom correr para vender logo os mimos porque alguns estão “apodrecendo”.
“No mundo real, Brasílio, as mudanças estão ocorrendo de maneira muito rápida. Alguns dos seus bens podem não valer coisa alguma se não forem passados adiante com a maior brevidade possível”, advertiu o gerente, pobre homem, acusado injustamente por mostrar a seu cliente a calamidade financeira em que ele vivia. “Sou bancário e não banqueiro, Brasílio.”
O “cão babão” - como ele chamava o gerente nos momentos mais difíceis - ainda teve a pachorra de recomendar ao endividado Brasílio que, na relação do sem-número de ativos que ele possui, alguns deveriam ser simplesmente doados ou fechados. São coisas que, se mantidas, só vão lhe dar despesas. Não rendem nada, a maioria dá prejuízo, logo, o ideal, sugeriu o “coisa ruim”, é livrar-se disso o quanto antes.
Brasílio decide, então, consultar dois amigos do peito. O primeiro diz que o gerente está certo, que não faz sentido manter todo aquele patrimônio e ver a dívida crescer nos bancos. “Brasílio, você sabe o que é anatocismo? Se não sabe, corra ao dicionário. Venda tudo e pague o que puder da sua dívida. E veja: o que você levantar na venda do que possui não será suficiente para pagar a dívida, mas melhorará muito a situação. Ademais, livre dessa ‘coisalhada’ que só lhe dá despesa e com uma dívida menor, você retomará a capacidade de pagar o restante da dívida. Feito isso, terá crédito na praça novamente”, aconselhou o amigo, um indivíduo de vida organizada, pouca dívida, independência financeira, um investidor. “E tenha juízo quando puder investir novamente.”
Consultado, o outro amigo o surpreendeu no primeiro momento. Disse-lhe, um tanto consternado, que ele realmente precisava se desfazer daquele patrimônio. A surpresa se deu porque esse sujeito foi sempre contrário à venda da cobertura na Delfim Moreira, do iate estacionado na Marina da Glória e mesmo do Alpha Romeo 76 e da Kombi 77 amarela (“vintage”). “Tem que vender, Brasilinho, sua situação não é boa.”
Na verdade, esse vivente, mesmo vendo a dívida do Brasílio explodir ao longo dos anos e a despesa com juros escalar alturas impensáveis, fez sempre oposição cerrada à venda de qualquer item do vasto patrimônio, do qual ele tirava proveito como se fosse seu. Pense numa pessoa apegada a coisas alheias... Mas, aí, a boa surpresa do início da conversa se desfez num átimo porque o bom conselho veio seguido de outro, que, aplicado, anulava os bons efeitos do primeiro.
“Brasílio, meu filho, não venda tudo. Não toque, pelo amor de Deus, na cobertura do Leblon. E, olha, com metade do dinheiro da venda da Quinta em Portugal e do avião [comprado com empréstimo subsidiado do BNDES], você terá condições de investir novamente! Olha, já te falei que a nossa velha Petrobras vai montar uma fábrica de tecido no complexo petroquímico de Suape, em Pernambuco?”, disse, todo animado, o “amigo do alheio”, como o chamava um cínico que frequentava a casa do Brasílio.
“A Petrobras, Brasílio, voltará a ser a empresa com que sonhamos quando fomos às ruas exigir em alto e bom som: ‘O Petróleo é nosso!’, Que campanha aquela, não foi, Brasílio? Os americanos não queriam que o Brasil produzisse petróleo. Temiam o crescimento do nosso país, queriam que ficássemos eternamente dependentes deles. Mas, o Getúlio Vargas, espertíssimo, peitou os gringos, promoveu a maior campanha popular da história do país e, por isso, temos hoje petróleo e a Petrobras”, bradou o amigo, entorpecido pelas notícias de que a estatal, por causa da camada pré-sal de petróleo, anunciaria [no início desta década] o maior programa de investimento de uma empresa no planetinha.
“Compre correndo ações da 'nossa' Petrobras, que construirá, também em Suape, a maior refinaria de combustíveis do Brasil, um investimento que nos custará menos de R$ 3 bilhões, uma pechincha. Eu te disse que a Petrobras tem hoje a maior carteira de investimento do planeta? Acorda, Brasílio.”
Dividido, Brasílio foi ao dicionário e aprendeu que “anatocismo” significa “capitalização de juros, juros compostos ou juros sobre juros”. Descobriu, assustado, que anatocismo diz respeito a “diferentes variações linguísticas para designar um mesmo fenômeno jurídico-normativo, que tem como pano de fundo um contrato de mútuo vencido e não pago, fazendo incidir as rubricas atinentes ao inadimplemento relativo aos juros de mora”.
Nosso personagem teve o equivalente a uma epifania: se ele precisa se desfazer do que tem para pagar dívidas, não faz sentido investir em coisa alguma. Isso vale também, pensou, para a União, que possui 637 participações em empresas controladas diretamente, suas subsidiárias, e coligadas, mas hoje não tem dinheiro para pagar os juros de uma dívida que beira os 80% do PIB.
“Por que o Estado brasileiro tem mais de 140 estatais se não consegue educar as crianças decentemente nem oferecer serviços de saúde aceitáveis?”, questionou-se Brasílio, determinado a partir dali a estudar artimética novamente.