Nelson Paes Leme: Como as democracias morrem
O culto à personalidade e o voluntarismo voltam à história com força inusitada
Este é o título, em tradução livre, do esplêndido e arrepiante livro “How Democracies Die”, um estudo histórico e comparado dos professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Trata-se de um completo trabalho em torno da tese de que os autocratas não obrigatoriamente tomam o poder através de golpes de Estado. Mas em inúmeros exemplos, ao contrário, valem-se do próprio regime democrático e fundam seus próprios partidos para golpear o poder, já eleitos. Foi assim com Mussolini, que inaugura a extensa lista de casos relatados detalhadamente no livro, passando por Hitler, Getúlio Vargas e vindo até Chávez, que teve seu trampolim no próprio constitucionalista Rafael Caldera ao sair aquele do cárcere para fazer política. Perguntado para onde iria ao sair da cadeia, Chávez teria respondido: “Para o poder!”
Pelo fato de os autores serem americanos, ou talvez também pela forte tradição democrática da nação do “We, the people” do introito da Constituição da maior democracia do Planeta, ou por ambos os motivos, há um capítulo extenso à parte dedicado às eleições de 2016, que, inacreditavelmente, levaram ao poder a esdrúxula figura de Donald Trump. E, claro, o risco que passou a representar para o ideal de democracia dos Founding Fathers dos EUA. E, ainda, o que isso poderá reverberar nas demais democracias do continente, inclusive na nossa.
O livro é extremamente importante para o decisivo momento histórico vivido pelo Brasil, embora estude apenas até o período Vargas, já que, de lá para cá, há copiosa obra de brasilianistas americanos sobre o tema, capitaneada pelo famoso “Brasil — De Getúlio a Castello”, clássico de Thomas Skidmore, também de Harvard. Não faz reflexões expressas sobre o atual momento, até porque a primeira edição foi de 2018, quando se travava a luta plebiscitária eleitoral brasileira do segundo turno. Mas deixa nas entrelinhas do estudo comparado os riscos terríveis que correm a nossa atual democracia e outras mundo afora.
De Erdogan na Turquia ao pupilo bolivariano de Chávez, Maduro, há um vento desfavorável à democracia mundo afora e o Brasil, imagina-se, não estaria fora dessa tormenta. Ao contrário, a continuar esse discurso maniqueísta que tomou conta da nossa política, através do falso e jurássico dilema de confronto da “direita” versus a “esquerda”, nossas chances são mínimas de não naufragar nessa borrasca mundial. Os mecanismos que evoluíram de Cromwell e Montesquieu até o atual modelo de freios e contrapesos (os check and balances do modelo americano) entre os Três Poderes, hoje em muito auxiliados pelo fortalecimento constitucional do Ministério Público e os ouvidores do povo, do tipo sueco do ombudsman e do defensor del pueblo , espanhol, não têm tido o condão de reverter o avanço célere dessa nova onda de autocracias, ainda que disfarçadas camaleonicamente no rótulo de democracias.
O culto à personalidade e o voluntarismo voltam à história com força inusitada. Proliferam os salvadores da pátria e os nacionalistas acerbos, restando ao cidadão comum apenas refletir e, ainda assim muito timidamente, sobretudo no gueto da academia, mobilizar-se nessas reflexões sobre o cruel momento, em favor de uma urgente inflexão ao centro democrático. E aos que creem em Deus, por Ele e pela luz permanente do Divino Espírito Santo, orar fervorosamente. Os autores são céticos quanto às alternativas. Pelo ótimo estudo contido no livro, a História Universal está em franco desfavor dos verdadeiros democratas. Estão de volta os condottiere , os refugiados, os muros e as cercas.
*Nelson Paes Leme é cientista político
Cacá Diegues: Do outro lado da Baía
Em proporção a seu orçamento, Niterói já é a 9ª cidade do país que mais investe em cultura. E a primeira do estado
No final do ano passado, Renata Almeida Magalhães, minha esposa e produtora, produziu, em Niterói, o filme “Aumenta que é rock’n’roll”, dirigido pelo jovem realizador Tomás Portella, a partir do livro “A onda maldita”, de Luiz Antonio Mello. O autor do livro foi o fundador da célebre Rádio Fluminense que, a partir de 1982, lançou todas as jovens bandas populares daquele momento e se tornou um sucesso único entre a juventude das cidades próximas, como o Rio de Janeiro. E ainda colaborou com uma renovação cultural e de costumes, para a nova democracia que se anunciava no horizonte.
Voltei portanto a Niterói, para onde, quando era criança, minha mãe me levava com meus irmãos, para tomar banho de mar no Saco de São Francisco. E onde, adolescente aspirante a cineasta, visitei Nelson Pereira dos Santos e sua família, que então moravam na cidade. Redescobri Niterói.
Todo estudioso do assunto sabe que a primeira sessão de cinema na América do Sul, deu-se no Rio de Janeiro, na Rua do Ouvidor, em 8 de julho de 1896. Mas há controvérsias quanto à primeira imagem filmada no Brasil, a inauguração da produção cinematográfica no país. Minha aposta é em Affonso Segretto que, com seus irmãos Paschoal e Caetano, se tornaria depois o mais importante grupo exibidor de cinema do Rio de Janeiro, a então capital federal.
A imagem que o empresário ítalo-brasileiro registrou do navio em que voltava da Europa foi a da entrada da Baía de Guanabara, com suas águas transparentes protegidas pelos picos do Maciço da Tijuca. E ainda as baleias que ali nasciam, se criavam e vinham mais tarde visitar. Seu projeto talvez fosse registrar a capital. Mas, ocupando inevitavelmente parte do enquadramento, lá estava também Niterói, do outro lado da Baía, com suas praias e prédios serenos.
Mais de um século depois, Niterói confirma essa presença fundadora, tornando-se uma espécie de futura capital brasileira do cinema. Semana passada, estive lá para a inauguração, pelo prefeito Rodrigo Neves, do Auditório Nelson Pereira dos Santos.
Com 490 lugares, a sala é parte de conjunto arquitetônico de Oscar Niemeyer. Ela servirá à exibição de filmes, bem como a concertos, conferências, espetáculos teatrais ou de música popular, como parte de um complexo cultural. Ali, o prefeito Rodrigo Neves anunciou, para o futuro próximo, a criação de um Museu do Cinema Brasileiro. Seria bem oportuno, porque, do jeito que o governo federal o tem tratado, nosso cinema pode mesmo desaparecer em breve.
Quando a cultura se torna um alvo preferencial a ser abatido, com a eliminação de incentivos federais e a tentativa disfarçada de reinstaurar a censura, a prefeitura de Niterói abre os braços generosos para ela. Proporcionalmente a seu orçamento, Niterói já é a nona cidade do país que mais investe em cultura. E a primeira do estado. A atual prefeitura criou incentivos para que empresas locais possam abater do IPTU e do ISS aquilo que investirem na cultura. E qualquer produção brasileira de audiovisual pode também se servir do fomento, quando utilizar a cidade como cenário.
A prefeitura de Niterói também cuida da preparação de profissionais da área, numa cooperação frutuosa com a Faculdade de Cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF), uma das primeiras escolas de cinema do Brasil, fundada pelo mesmo Nelson Pereira dos Santos. Alguns desses profissionais participaram, com louvor, da equipe de “Aumenta que é rock’n’roll”.
Segundo o prefeito Rodrigo Neves, a Secretaria de Cultura do município toca um Museu de Arte Popular; o Teatro Municipal, criado por João Caetano no século XIX; uma companhia de balé, como a do Municipal do Rio; o Arte na Rua, um apoio a artistas de rua; o Teatro Oscar Niemeyer; e o Aprendiz, programa de iniciação musical em escolas públicas. “Investimos no Aprendiz”, diz o prefeito, “porque, como sociólogo e amante da cultura, tenho a convicção de que a criança e o adolescente que têm contato com a arte dificilmente vai, um dia, empunhar uma arma. A cultura é fundamental para a autoestima de Niterói, mas também para a redução das desigualdades e prevenção à violência”.
Como seria bom que o resto do Brasil seguisse esse exemplo de Niterói.
‘Quadro político mais radicalizado ameaça democracia’, alerta Vinicius Muller à Política Democrática online
Doutor em histórica econômica e professor do Insper publicou artigo na 11ª edição da revista produzida pela FAP
A formação de um novo quadro político-eleitoral mais radicalizado em nosso país, com a ascensão de Jair Bolsonaro, ameaça as instituições, em particular, a democracia. A avaliação é do doutor em histórica econômica e professor do Insper Vinícius Muller, em análise publicada na 11ª edição da revista Política Democrática online. A publicação é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao partido político Cidadania 23.
» Acesse aqui a 11ª edição da revista Política Democrática online
De acordo com ele, há razoável dificuldade em compreender as origens e causas das recentes mudanças no Brasil, com reflexos, em certa medida, em outros e variados países. “Tais mudanças envolvem um conjunto de questões que podem ser vistas em seus aspectos econômicos, políticos e sociais”, afirma.
Entre elas, segundo o autor, certo esgotamento do processo de globalização, o recrudescimento da desigualdade, o surgimento de novas ferramentas tecnológicas e a ampliação das preocupações ambientais e sociais. “Neste quadro, um sem-número de questionamentos ganhou forma e conteúdo. A ampliação da riqueza promovida pela liberdade produtiva e financeira que caracteriza a globalização foi questionada pelo aumento da desigualdade econômica, principalmente entre grupos internos aos países”, analisa.
Desta forma, conforme acrescenta o professor do Insper, na mesma medida em que houve ampliação da riqueza, alguns grupos se viram mais distantes das cadeias produtivas globalizadas e, portanto, enfrentando problemas como desemprego e queda significativa de renda. “A reação, muitas vezes, foi voltada ao questionamento do próprio processo de globalização, entendido como resultado de uma economia aberta e liberal”, acentua.
Contestada a globalização, diz o analista, contestaram-se, fundamentalmente, os princípios da economia aberta, dando origem a discursos protecionistas e nacionalistas. “A diferença foi que, enquanto em um passado recente, os questionamentos ao processo de globalização e à economia de mercado partiam de grupos mais à esquerda no espectro político, desta vez os ataques originam-se em grupos mais conservadores”, destaca.
“Houve, assim, uma aproximação entre a defesa de certo nacionalismo e protecionismo econômico e valores considerados mais conservadores no plano moral e dos costumes. Esta associação, historicamente não muito original, ganhou no Brasil alguns elementos adicionais”, acentua. Segundo ele, em meio à crise do desemprego e aos escândalos de corrupção envolvendo os governos do Partido dos Trabalhadores, ganharam força, desde 2013, movimentos que deram voz a desconforto promovido, em partes da população, pelos caminhos que o país adotava, ao menos desde a eleição de Dilma Rousseff.
“E esta voz não mais entendia a disputa política brasileira nos quadros que estavam dados até então, mas, sim, a partir da ascensão de um discurso que envolvia a repulsa aos escândalos de corrupção e que defendia suposto resgate de valores tradicionais embalados em um discurso nacionalista”, avalia.
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Fernando Gabeira: Esqueletos no armário
Ao gritar que Queiroz estava com a mãe do ciclista, Bolsonaro chamou a atenção para os ossos
Correndo de praia em praia, seguindo a mancha de óleo no Nordeste, tive uma noite livre para pensar na política nacional.
Dizem que é nova política. Não sei se tenho condições de entendê-la. Mas o exame da política de sempre é o critério que tenho para analisar esses fatos. Na minha tosca enciclopédia, dois verbetes dariam conta da fúria de Bolsonaro contra um ciclista e a divisão desse estranho partido que é o PSL: esqueletos no armário e racha, entendido aqui como a cisão num grupo partidário.
Esqueletos no armário podem ser cadáveres reais ou mesmo episódios que governos ou partidos querem ocultar porque a transparência, nesse caso, é indesejável. Fabrício Queiroz é um esqueleto no armário. Há muitas formas de tratar disso. Bolsonaro parece ainda inexperiente no assunto. Ao gritar que Queiroz estava com a mãe do ciclista, ele apenas usou a pior tática: chacoalhar os ossos e chamar a atenção de todos para o esqueleto rangendo contra a madeira.
Esqueletos no armário são corrosivos. Os ultrafiéis não se importam, talvez nem acreditem que essas coisas aconteçam nos bastidores. Há um grupo que simplesmente aceita, com o argumento de que o objetivo é maior e que essas coisas acontecem mesmo em todos os partidos.
Mas essa concordância entra em colapso quando o chamado objetivo maior não se realiza. Manter os esqueletos silenciosos no armário é uma tarefa difícil também a longo prazo. Bolsonaro, diga-se a seu favor, não é dos mais brilhantes na tarefa.
Outro tema que me interessou foi a história de um possível racha no PSL. É o partido de Bolsonaro, e ele disse que é preciso esquecê-lo. Disse ainda que o presidente do partido estava queimado para caramba. É um partido que movimenta milhões. E brigas partidárias, apesar de sua natureza diferente, lembram separações conjugais: quem fica com o quê?
No nosso movimento estudantil, os rachas, quando aconteciam, sempre desfechavam uma disputa em torno do mimeógrafo. Bem mais poético que agora.
Não há grandes divergências ideológicas no PSL. Não há correntes de pensamento definidas. São indivíduos e suas carreiras políticas. Se houvesse espaço, avançaria em outro verbete da tosca enciclopédia: as bancadas eleitas pelo populismo. São heterogêneas, compõem-se de gente que expressa proximidade com o líder, repete um ou outro dos seus slogans, e pronto.
Imagine o que acontece quando se injetam milhões de reais num agrupamento com essa consistência política? Não se trata mais de discutir quem fica com o quê, depois de uma divergência ideológica.
Nesse caso, o dinheiro é a própria razão do conflito. Dinheiro público, pois acabou o financiamento privado.
Nos partidos chamados nanicos, o fundo oficial é uma espécie de vaquinha que alimenta os dirigentes, consegue mantê-los com uma renda pessoal. Mas quando a soma é gigantesca, em R$ 350 milhões, como no PSL, é certo que vão se dilacerar para decidir quem gasta o quê, campanhas vão florescer; outras, submergir.
Sempre tive essa intuição sobre a briga atual do PSL. Temia, no entanto, supersimplificar. Afinal, é possível que tenham ideias. Ganhei um pouco de coragem para enunciá-la porque no momento em que perguntaram a Bolsonaro qual era o problema do PSL, ele respondeu: é o tesoureiro.
No tempo em que, diante da complexidade de governar o país, o problema do partido dominante é o tesoureiro, meu tosco arsenal carece de atualização. Faltam categorias. Esperava que o líder populista entrasse em conflito com sua base pantanosa. Pensei em infidelidade partidária, em choque de egos.
O tesoureiro me escapou. Tesoureiros de partidos costumavam ser presos, em tempos de financiamento privado. Agora, são o objeto de desejo.
A nova política não se cansa de me surpreender. Embora se diga defensora de valores tradicionais e prometa uma volta ao passado num mundo que se transformou profundamente, o seu tema central, no fundo, é o mais prosaico: dinheiro.
Aliás, ele é também a causa do ruidoso esqueleto no armário. Não apenas por ofensas ao ciclista. Os ossos rangem estrepitosamente desde o momento em que Toffoli proibiu a cooperação entre receita e órgãos investigativos. É uma espécie de grito: há alguma coisa errada entre nós; logo, suprimam-se as investigações.
Valor: Huck amplia elos com DEM e busca ponte com esquerda
Apresentador aumenta rede de aliados, mas é visto com cautela no meio político
Por Malu Delgado, do Valor Econômico
SÃO PAULO - A candidatura de Luciano Huck à Presidência da República é um caminho possível para 2022, mas são muitas as baldeações no trajeto. A viabilidade da candidatura é escrutinada em constantes pesquisas de intenção de votos encomendadas por seus apoiadores, que são categóricos: nenhum passo objetivo será dado antes de 2021 e, até lá, todas as variáveis estão no radar: o protagonismo eleitoral do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, hoje preso, é uma incógnita; o ministro Sergio Moro pode ser candidato; o próprio Huck pode declinar, como fez em 2018; a economia pode propiciar um gás inesperado à reeleição do presidente Jair Bolsonaro.
Nessas sondagens feitas para consumo interno, Huck já aparece com intenção de votos superior a Ciro Gomes (PDT), que terminou em terceiro na eleição de 2018. Há amostragens qualitativas que deixam os entusiastas da candidatura animados: entre cada cinco eleitores de Lula, três admitem votar em Huck, ou seja, é flagrante a entrada do apresentador nas classes C e D simpatizantes do lulismo. A viabilidade eleitoral de Huck funciona como ímã para várias forças políticas. O apresentador não admite a candidatura e, diante de sua alta exposição nos últimos meses, está mais recolhido. Ao Valor, Huck alegou que, com uma agenda atribulada, preferia não conceder entrevista no momento.
Enquanto concilia sua atividade profissional com o que seus apoiadores chamam de espírito cívico, Huck intensifica contatos políticos com lideranças de centro-direita, tendo aliados no DEM, mas está impelido a buscar também pontes com figuras da esquerda abertas ao diálogo.
O que é inegável, no momento, é que Huck amplia a sua influência para esboçar políticas públicas que poderão constar num programa de governo. O estímulo mais imediato para uma candidatura partiu de fundadores do Agora, movimento político suprapartidário ao qual Huck aderiu em 2017, mas há simpatizantes e apoiadores em outros movimentos sociais recém criados, como o RenovaBR e parte do Livres e Acredito.
Está em curso a reorganização de um campo que vai da centro-esquerda até uma visão liberal reformista”
— Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo
Interlocutor frequente de Huck, o cientista político e cofundador do Agora Leandro Machado diz que o apresentador encontra no grupo um canal de debate sobre questões relevantes do país, como educação e segurança, mas isso não significa que ali esteja se gestando o plano de governo de uma eventual candidatura ao Planalto. Machado questiona os interesses de partidos que, vendo em Huck um nome competitivo, se aproximam dele. “É ele se aproximando ou é o DEM e o PSDB que se aproximam dele?”, pergunta.
O empresário Eduardo Mufarej, criador do RenovaBR, é um dos maiores entusiastas da candidatura. Procurado pelo Valor, também preferiu não falar sobre o assunto. Se, por um lado, o apoio de movimentos é um gás para a candidatura, por outro, a antecipação da disputa deixa integrantes dos mesmos movimentos, que não querem se associar a partidos, mas a ideias, reticentes e ressabiados.
Fontes confirmaram ao Valor que Huck já pediu ajuda para conhecer mais profundamente alguns políticos da esquerda. Se o diálogo com o PT parece impossível, outras pontes vem sendo construídas. Um nome que está no radar do apresentador, por exemplo, é o do governador do Maranhão, Flávio Dino. Hoje no PC do B, Dino dá sinais de que se prepara para uma disputa presidencial, possivelmente no PSB.
“Antes de olhar para 2022 precisamos olhar o que dá para fazer numa caminhada positiva que diminua o sofrimento da população brasileira”, disse ao Valor o ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung, hoje o principal conselheiro político de Huck. Em 2018, apresentado ao possível candidato pelo ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, Hartung chegou a ser sondado para vice, caso a empreitada fosse levada adiante. A primeira conversa por e-mail mais longa entre Armínio e Huck data de fevereiro de 2018.
“O que precisa ser reorganizado no país, e para a minha alegria isso está em curso, com muitas conversas e boa interlocução, é um campo político que vai do pensamento de centro-esquerda, que tem muita sensibilidade para os gravíssimos problemas sociais do país, até uma visão liberal reformista, que trabalha a ideia de modernização da economia, melhorar o ambiente de negócios, de dar segurança jurídica para quem quer trabalhar, gerar empregos, gerar oportunidades”, define Hartung. "Esse campo começa a dar passos de diálogo e a olhar para ajudar o país a sair dessa encrenca que entrou”, diz.
Não sou político, mas acho que o Luciano não tem que ficar na linha de frente da política. É muito cedo”
— Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central
Neste esforço contínuo de diálogo, o ex-governador trabalha para levar Dino ainda neste ano a uma conversa na Casa das Garças, no Rio, um espaço de debates sócio-econômicos identificado como reduto do pensamento tucano. Hartung também teve conversas recentes com o governador da Bahia, Rui Costa (PT). Os governadores de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), e do Ceará, Camilo Santana (PT), são outros interlocutores frequentes da esquerda com esse centro “liberal progressista”, como Hartung tem definido.
A aproximação com a centro-esquerda é pragmática e interessa aos dois lados: caso se desenhe, no futuro, um segundo turno que tenha em um dos polos a direita, como o presidente Jair Bolsonaro, essas outras forças pretendem traçar, desde agora, condições de diálogo para evitar o que ocorreu em 2018, quando o petista Fernando Haddad não conseguiu construir pontes ao centro e foi derrotado.
O apresentador tem, entre seus conselheiros políticos, também a ala mais jovem do DEM. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia é figura frequente em jantares promovidos por Huck ou por seus aliados. Há também grande proximidade do apresentador com o ex-ministro da Educação José Mendonça Filho, que Huck conheceu numa das viagens profissionais a Pernambuco no início dos anos 2000, quando Mendoncinha, como é chamado pelos amigos e correligionários, era vice-governador. Mendoncinha, hoje, frequenta a casa de Huck e o considera um amigo. Símbolo da renovação geracional do DEM, o presidente da sigla, ACM Neto, prefeito de Salvador, é outro político que Huck respeita e escuta.
Nenhum político experiente que endossa a candidatura de Huck fala abertamente sobre o assunto. Um integrante do DEM admite, reservadamente, que o partido está com o pé em três canoas e que a fase atual é delicadíssima. “É uma missão possível construir uma candidatura ao centro, liberal democrática, menos ortodoxa, distante dos polos. Mas de um lado tem a hegemonia petista e, do outro, a bolsonarista. Penetrar nesse meio todo não é fácil.” Parte do DEM, segundo esse político, tem simpatia por Huck, mas também por João Doria, e há ainda os três ministros do partido no governo Bolsonaro. “O diálogo com esses três vai existir no DEM. Bolsonaro é detentor de capital político bastante elevado. Tirar isso dele não é simples”, diz essa fonte.
Recentemente, Huck foi aconselhado a não citar o nome de Bolsonaro em suas palestras. Quando afirmou, num evento em Vila Velha, em agosto, que Bolsonaro era o último capítulo de uma história que não deu certo, Huck e seus apoiadores perceberam o tamanho do estrago que o fã-clube bolsonarista pode provocar em reputações. O próprio Huck confidenciou a um interlocutor que Bolsonaro lhe dará dor de cabeça. A estratégia, agora, é defender as iniciativas do ministro da Economia, Paulo Guedes, e estimular ações no Congresso, com o aval e a articulação direta de Rodrigo Maia, para que o máximo de reformas possam avançar neste governo.
A linha do discurso de Huck numa eventual campanha já está delineada e há até definição dos cinco eixos centrais que ele deve explorar: desigualdade social, sustentabilidade, educação, saúde e segurança pública. Para cada um desses eixos, conversas têm sido articuladas com especialistas em cada um desses setores.
O ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga apresentou Huck aos economistas Marcos Lisboa, presidente do Insper, e Ricardo Paes de Barros, que também é do Instituto Ayrton Senna e conselheiro do Livres. PB, como é conhecido, foi o principal formulador do Bolsa Família e é hoje a maior referência no país para elaboração de políticas públicas com base em dados e evidências. Esses profissionais estão incumbidos de subsidiar debates sobre desigualdade e macroeconomia.
As conversas sobre desigualdade começaram no Agora, em 2017, quando o advogado Beto Vasconcelos, alinhado a governos do PT, e o cientista social Humberto Laudares, simpático a governos tucanos, fizeram a cabeça de Huck sobre aspectos estruturais do problema. Foi ali que Huck ouviu sobre a dificuldade de endereçar publicamente o problema já que ele faz parte da elite super rica do Brasil.
Definindo-se como liberal progressista, Armínio Fraga diz que o debate sobre desigualdade é imprescindível num país como o Brasil. “Eu não sou político, mas realmente acho que o Luciano não tem que ficar na linha de frente da política. É muito cedo, não faz sentido. Ele pode aprender, influenciar onde puder, e mais para a frente ele pensa nisso”, diz Armínio Fraga. O ex-presidente do BC admite que “Luciano está mordido pelos assuntos públicos há muito tempo, e ele deve continuar fazendo isso”, sem ter 2022 como foco. “Ele tem uma cabeça muito prática: esse é o problema, quero entender, como fazer para melhorar.”
Na área de segurança pública, por exemplo, Huck conta com Ilona Szabó e Melina Risso, ambas cofundadoras do Agora e com atuação nessa área e interfaces no terceiro setor.
Se lá na frente o cavalo continuar arreado, uma saída é Huck se filiar ao partido Cidadania, o antigo PPS, comandado por Roberto Freire. A hipótese, admite Freire, foi discutida em 2018 e ainda está no radar. “O Cidadania ficaria muito gratificado se ele decidir ser candidato e se integrar ao partido. Só que isso não vai acontecer nem tão cedo, nada agora vai ser decidido. Se isso vier a se concretizar, não tenho dúvida: vamos ser protagonistas em 2022”, afirma o ex-deputado da Constituinte. (Colaborou Cristian Klein, do Rio)
UOL: Luciano Huck não é um noviço na política, diz presidente do Cidadania
O apresentador de TV e empresário Luciano Huck flertou com a ideia de concorrer à Presidência da República em 2018 e surge entre os cotados a ser candidato em 2022. No que depender de Roberto Freire, 77, presidente do Cidadania (novo nome do antigo PPS), o nome de Huck estará na urna
Wellington Ramalhoso, do UOL, em São Paulo
"Nós do Cidadania estamos de porta aberta [para Huck]. Quando chegar o momento e se esse momento chegar [de] uma procura dele de um partido para se filiar, o Cidadania estará lá na primeira fila", diz Freire.
Em sua opinião, Huck já não pode mais ser considerado como uma figura de fora da política. "Desta vez ele também está muito mais enfronhado na política. Ele não pode dizer que é um noviço."
A decisão de rebatizar o partido como Cidadania foi oficializada neste ano. A história da legenda remonta ao antigo PCB (Partido Comunista Brasileiro). Criado em 1992, o PPS (Partido Popular Socialista) representou a revisão política feita por antigos comunistas depois do esfacelamento da União Soviética e da queda dos regimes apoiados por ela no fim da década de 1980.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista concedida pelo presidente da sigla.
UOL - O Cidadania é citado como um partido com o qual o apresentador Luciano Huck dialoga para se filiar.
Roberto Freire - Se filiar, não. Ele em momento algum disse que iria se filiar e ser candidato. A conversa, já há muito tempo, desde o ano passado, é uma conversa de que ele tem participação na política junto aos movimentos cívicos e sociais que existem na sociedade brasileira, que estão fazendo política, participando, formando quadros políticos. E muitos desses movimentos têm um diálogo muito intenso conosco. E outros são filiados ao nosso partido.
Então, essa relação com ele é uma relação que há algum tempo existe, que é de intenso debate, participação política nas discussões dos problemas nacionais. Existe a possibilidade de que ele venha a disputar alguma eleição. Isso está no horizonte. Agora não tem nada definido sobre isso.
Ele nunca se declarou candidato, mas o Cidadania admite que isso possa vir a ocorrer. Até porque ele é um homem político, participa da política, não disse que é candidato, ainda não definiu militância ou filiação partidária. Mas de qualquer maneira está participando e quem sabe amanhã se pode vir a discutir essa hipótese. O Cidadania não exclui [a possibilidade], mas não tem nada definido sobre isso.
O senhor já o convidou a se filiar ao Cidadania?
Olha, no ano passado, teve um determinado momento em que a gente imaginou que ele poderia ser candidato. E para ser candidato tem que se filiar. Mas ali ele não aceitou. E agora ainda está muito distante a eleição presidencial.
O que a gente tem conversado com ele é a participação dele junto a alguns quadros jovens que estão entrando no Cidadania, inclusive alguns deles como prováveis candidatos nessas eleições municipais de 2020. Tenho contato com ele. Ele tem tido contato com várias forças políticas, ele tem participado da política, mas ainda com nenhuma definição para candidatura.
Quais são as afinidades entre Huck e o Cidadania?
Muitas.
Ele tem uma formação política de um social-democrata.
O combate à corrupção deve existir, é fundamental fazer isso, mas o Brasil tem outros problemas que não foram resolvidos e alguns até se agravaram, que é da nossa justiça, da nossa desigualdade. Nesse encontro público que ele teve [em agosto] em Vila Velha, no Espírito Santo, ele tocou nesse ponto. Poucos políticos estão discutindo isso. E ele toca porque esse é o problema brasileiro. Isso precisa ser enfrentado e resolvido. Ele tem essa compreensão.
E ao mesmo tempo ele é um um empresário de sucesso, um homem muito antenado com essa nova realidade no mundo, esse novo mundo que aí está, das inovações tecnológicas, da inteligência artificial. Ele é um homem vinculado a isso, inclusive à indústria do futuro, da indústria cultural, do entretenimento. Isso é o que vai ser muito forte em qualquer economia do futuro. Ele tem muita compreensão disso.
Estou lhe dizendo isso porque até muitas vezes as pessoas imaginam que ele é apenas um excelente apresentador de televisão, um grande comunicador. Não é só isso. Ele é profissionalmente muito bem-sucedido, mas ele tem uma boa visão de mundo.
O que o país ganharia com Huck na política?
Não será Luciano Huck, mas é a nova geração que ele representa que está chegando à política, e esse processo de renovação é da vida e é bom quando acontece na política. Não é ruim, não. Já fiz parte de uma juventude que renovou lá atrás no século passado. Sei como isso é importante.
Então ele representa isso: novos quadros, nova geração na política brasileira, que tem esse compromisso com o futuro mais até fácil do que nós. Já não temos até expectativa de vida.
Falou-se muito em nova política na eleição do ano passado e no começo deste ano.
Não gosto muito desse negócio da nova e da velha política, não. Sou muito mais afeto à boa política, à política com "p" maiúsculo. Não é um problema de novos e velhos até porque tem alguns novos aí que são muito velhos até.
É a renovação da vida, é nova geração que está chegando. Não precisa forçar nada, não. Isso acontece naturalmente. E mais: está acontecendo porque também as pessoas que são jovens estão muito mais antenadas com esse mundo disruptivo, de mudança.
A própria vida provoca essa mudança, essa renovação. Essa nova geração tem que assumir a sua responsabilidade. O que nós mais experientes, mais idosos, mais antigos da política, temos que fazer é abrir as portas para isso e contribuir, se for necessário, com a nossa experiência porque a experiência ajuda que as pessoas entendam e não cometam erros que lá atrás cometemos ou vimos cometer.
Quando o senhor conheceu Huck e desde quando conversam?
Eu conhecia Huck muito pouco. Conheci ele ano passado quando começamos a discutir sobre movimentos sociais que estavam procurando participar da política entrando em partidos, alguns para disputar a eleição e tudo mais. Foi quando o conheci. Através do movimento Agora!, que era muito ligado a ele, [e de] alguns que participavam do Renova [movimento RenovaBR], que é de formação de quadros, e que entraram no partido. Então, passamos a conversar. Porque o Huck era ativo participante desses movimentos. Tiveram os primeiros encontros, e hoje tenho permanentemente contato, converso [com ele].
Se ele se decidir por uma filiação, o senhor acredita que ele optará pelo Cidadania ou poderá se filiar a outro partido?
Tem que perguntar a ele.
O que posso dizer é que nós, do Cidadania, estamos de porta aberta [para Huck]. Quando chegar o momento e se esse momento chegar [de] uma procura dele de um partido para se filiar, o Cidadania estará lá na primeira fila
E se ele quiser ser candidato a presidente? O Cidadania também está de portas abertas para isso?
Também. Pode ser uma boa alternativa.
Desta vez ele está mais inclinado a isso?
Difícil dizer, mas desta vez ele está muito mais enfronhado na política. Naquela vez [em 2018], ele estava começando ali, era o primeiro momento. Ele era total um outsider. Hoje já é menos [outsider]. Porque a sua participação já vem de algum tempo. Ele não pode dizer que é um noviço
O que é o Cidadania hoje? É um partido de centro?
Hoje é um partido em que convivem liberais e sociais-democratas. São as duas vertentes de pensamento político contemporâneas que você está vendo como forças vitoriosas no mundo mais desenvolvido. Na Europa foi essa aliança a fundamental para dar a vitória às forças que sustentam a União Europeia. Acrescente aí algo que tem também a ver com a origem do Cidadania no PPS: a questão da sustentabilidade.
São essas as forças políticas que estão, eu diria, na vanguarda do processo desse novo mundo que aí está: as grandes transformações da inteligência artificial, o mundo da rede, da internet, da robotização da economia. O Cidadania é uma etapa desse mundo moderno, etapa superior aos partidos que estão muito prisioneiros do que significava a sociedade industrial, que está sendo superada.
Não dá para imaginar hoje um partido como um partido de uma esquerda da sociedade industrial, até porque o mundo do futuro está caminhando para que você não tenha mais, por exemplo, classe operária. O chão de fábrica hoje é de robô, não é mais de classe operária. Se quiser usar a terminologia, você pode botar centro-esquerda. O Cidadania é um partido de centro-esquerda
Para a eleição presidencial de 2022, é possível o Cidadania fazer aliança com PSDB e o DEM?
Você pode dizer: por que não uma candidatura de centro-esquerda? Estamos abertos a isso, claro. De centro, centro-esquerda e até de centro-direita. Não apoiarei, provavelmente, um candidato de centro-direita, mas se fizer parte desse grande polo democrático... Porque a gente precisa evitar que se tenha novamente uma disjuntiva entre lulopetismo e bolsonarismo. Isso é um desastre para o país, na minha avaliação.
Como romper essa polarização?
Não tínhamos essa polarização em 2018. Ela se cristalizou por uma série de circunstâncias. Não acredito que ela vá ser a polarização em 2022. De qualquer forma, temos que nos preparar para construir uma alternativa que seja um dos polos e seja um polo democrático.
No fim do ano passado, comentou-se que o Cidadania poderia fazer uma fusão com a Rede, partido de Marina Silva. Por que essas conversas não foram à frente?
Foram [conversas] até muito intensas. Teve um determinado momento que eu imaginei que iria ser possível essa integração entre Rede e PPS formando o Cidadania. Conversamos bastante, tenho muito bom diálogo com Marina. Há uma relação muito respeitosa entre nós. Apoiamos ela em 2014.
Mas não deu. Havia um certo casuísmo na legislação e só pode fazer fusão o partido que tiver cinco anos de registro. E na oportunidade, a Rede ainda não tinha cinco anos de registro. Então não podia fazer fusão.
Houve internamente uma discussão de que o partido [a Rede] deveria continuar para tentar ver se se consegue superar a cláusula de barreira [em 2022]. E nessa oportunidade discutir a possibilidade de fusão porque já terá cinco anos de registro. O diálogo continua e se isso voltar a surgir, o partido [Cidadania] evidentemente não tem nenhum obstáculo. Da mesma forma que o PV. Somos todos adeptos desse mundo moderno. O importante é construir a alternativa democrática, humanista. Nesse sentido, [há] essa possibilidade de junção com Rede, com PV. Podemos ter nossas divergências, mas no sentido mais profundo da luta política, temos muitas semelhanças.
Que avaliação o senhor faz do governo Jair Bolsonaro (PSL)?
É um governo que muito rapidamente perdeu, em termos de opinião pública, sua base de apoio. Reduziu-se muito. Talvez tenha sido o presidente que, com menos de um ano, teve uma maior redução na sua base de sustentação em termos de opinião pública.
É um governo que teve até uns ganhos apesar do presidente. Muito provavelmente, até o fim do mês, você terá aprovada a reforma da Previdência. Todos os governos lutaram por ela e com tremendas dificuldades aprovaram algo mais ou menos assemelhado a uma reforma. E essa é uma reforma mais completa do que a da Dilma [Rousseff, PT], do que foi a do Lula [PT] e do que foi a apresentada por Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Ou seja, esse governo foi beneficiado por isso, mas o presidente é tão inepto que consegue não transformar isso numa grande vitória do próprio governo. E atrapalha. Comete tantas bobagens e equívocos que até faz oposição ao seu próprio governo. Cria adversários, inimigos. Todo dia tem uma polêmica, todo dia cria problema ao governo e para o país em alguns momentos, como por exemplo, na questão da Amazônia, na questão das suas relações internacionais com alguns países. Nesse sentido, é um governo que considero inepto.
O governo é completamente desastrado na questão da reforma tributária. Ele não tem um projeto de reforma tributária. Ele tinha um projeto de aumentar a arrecadação dos impostos, aumentar a carga tributária do país com a criação da CPMF.
No caso do Ministério da Justiça, são dois pontos que mais se sobressaíram. Ele deu continuidade a algumas políticas positivas, corretas no campo da segurança pública, sistema penitenciário e combate ao crime organizado, que começaram a dar frutos no governo Michel Temer (MDB) e na administração do ministério, com Raul Jungmann. Por outro lado continua, de forma muito equivocada, admitindo propostas no combate ao crime e na questão da segurança pública, como esse absurdo que é o excludente de ilicitude. É um absurdo, é uma licença para matar.
[O governo é] desastroso na educação, [com] um ministro [Abraham Weintraub] que mais parece um animador de vídeo. Não é um ministro que se dê ao respeito. Não tem a compostura devida para o cargo. Ali é um setor muito negativo do governo, mas eu prefiro analisar no geral. O governo deixa muito a desejar. Eu também não tinha uma expectativa, não, viu? Convivi com ele [Jair Bolsonaro] como parlamentar e sabia da sua incapacidade de ser um gestor.
A oposição tem cumprido seu papel?
Eu diria a você que a oposição não tem cumprido necessariamente seu papel porque, como eu disse, o governo faz oposição a sim mesmo. E na oposição você tem, por exemplo, uma oposição que parece que continua prisioneira de Curitiba, especialmente hegemonizada pelo PT, e um pouco alheia aos reais problemas brasileiros, que evidentemente não é Lula na cadeia ou solto. Isso é algo irrelevante, mas eles continuam muito prisioneiros disso.
Então, essa oposição deixa muito a desejar também. Mas também existe uma outra oposição, que não é ao país, apoia a reforma, mas ao mesmo tempo [está] atenta a todos esses desmantelos praticados pelo governo. Taí atuando inclusive com muita eficiência nas tentativas do governo das censuras, de tentar governar por decreto, certos autoritarismos, submissão a fundamentalismos religiosos. Toda essa pauta de costumes e culturais [está sendo bem enfrentada pela oposição brasileira. Está tendo um papel positivo a oposição. Está conseguindo deter esses arroubos antidemocráticos e de retrocesso e obscurantistas.
O senhor é um crítico dos governos do Partido dos Trabalhadores. Para o sr., é impossível dialogar com o PT?
Consigo [dialogar]. Temos inclusive um bom dia diálogo com o governador do Ceará [Camilo Santana]. O governador da Bahia [Rui Costa] tem tido algumas posições interessantes em análises sobre o que deve presidir a ação política da esquerda, falando inclusive do PT.
São setores do PT que facilitam o diálogo sem nenhuma dúvida e podem ajudar muito no combate a essas posturas antidemocráticas da parte do próprio governo. Esses setores do PT estão começando a entender que este é um problema brasileiro e que tem que ser enfrentado.
Bernardo Mello Franco: O capitão quer guerra
Jair Bolsonaro quer guerra. Na sexta-feira, o capitão participou de uma solenidade no Complexo Naval de Itaguaí. Diante de operários e oficiais da Marinha, fez mais um discurso em tom de combate. “Temos inimigos dentro e fora do Brasil. O de dentro são os mais terríveis. O de fora nós venceremos com tecnologia e disposição, e meios de dissuasão”, afirmou.
O Brasil já teve um presidente que se sentia perseguido por “forças terríveis”. Agora é comandado por um ex-militar que vê perigos em toda parte.
A retórica de Bolsonaro expõe uma personalidade viciada em confronto. No último dia 2, no Planalto, ele falou em “dar a vida pela pátria”. “Não nos esqueçamos que o inimigo está aí do lado, o inimigo não dorme”, advertiu.
Em agosto, no QG do Exército, jurou “lealdade ao povo” e conclamou o povo a “marchar para o sucesso”. “Não nos faltam é inimigos como os de sempre, que teimam em ganhar a guerra de informação contra a verdade”, afirmou.
Na ausência de guerras reais, o presidente se dedica a fabricar inimigos imaginários. No início do governo, a ameaça viria dos comunistas, que estão em extinção desde a queda do Muro de Berlim. Em seguida, foi a vez de estudantes, professores, artistas e jornalistas.
Com a onda de queimadas na Amazônia, entraram na mira cientistas e ambientalistas que alertam para os riscos de destruir a floresta. Depois a fúria se voltou contra líderes da centro-direita europeia, como Angela Merkel e Emmanuel Macron.
A pregação contra “inimigos internos” é usadapor todo regime autoritário. Na ditadura brasileira, o conceito fazia parte da doutrina de segurança nacional. Servia para simular um ataque iminente e justificar a repressão feroz aos opositores.
No caso de Bolsonaro, a estratégia se mistura a uma tendência à paranoia. Nos últimos tempos, o capitão passou a enxergar inimigos até nas próprias bases. Personagens como o cantor Lobão e o deputado Alexandre Frota, que o apoiaram com fervor, viraram desafetos do governo. Agora o alvo é o PSL, o partido do clã presidencial. Aliados que resistem à nova cruzada, como o senador Major Olímpio, estão prestes a entrar na lista dos proscritos.
Míriam Leitão: A estupidez da censura
A censura é terrível. Ela entrega um poder arbitrário ao burocrata que sempre toma decisões estúpidas. Ela assedia as mentes de produtores culturais, escritores, artistas e vai construindo a teia dos impossíveis — cheia de “melhor não” ou “isso eles não aceitarão” — que definimos como autocensura. A Constituição que o Brasil escreveu no pacto social da democracia não a tolera. “Cala a boca já morreu”, sentenciou a ministra Cármen Lúcia. Contudo, ela está de volta.
A censura se infiltra em atos como o veto à propaganda com jovens negros e descolados porque o presidente da República viu neles algo que ofendia as famílias. Avança quando se entrega o assunto cultura a um ministro capaz de qualquer volteio nas leis para bajular o novo chefe, como, por exemplo, banir temas em edital público. Ela se espalha quando o Estado vai criando bloqueios à liberdade de expressão usando subterfúgios como a defesa de supostos valores morais. Ela fica escancarada quando o presidente de um banco público, como a Caixa, diz que não aceita “posicionamento político” em espetáculos que patrocina. Será preciso voltar mais de dois mil anos e censurar os autores gregos que se atreveram a usar as tragédias para expor seus “posicionamentos políticos” sobre dilemas eternos como os limites ao poder despótico.
No Brasil de hoje, essa é a tragédia. Governantes de ocasião pensam que podem reprimir tudo o que não lhes agrada. O presidente usa sua métrica medíocre para classificar o que pode ser permitido ou o que é proibido com o dinheiro público. Como se fosse dele, o dinheiro. Os impostos são pagos por todos os brasileiros. O prefeito vira as costas para as festas da cidade. A professora Silvia Finguerut, coordenadora de projetos da Fundação Getúlio Vargas, diz que o estudo “Rio de Janeiro a Janeiro”, organizado pelo Ministério da Cultura no governo Temer com apoio técnico da FGV, deixou claro que as festas populares têm grande retorno econômico. Só no turismo, o carnaval do Rio teve um impacto de R$ 2,8 bilhões na economia. Ao todo, o evento levou aos cofres públicos tributos no valor de R$ 179 milhões.
— Quando o prefeito deixa de apoiar o carnaval, isso terá reflexo na estrutura necessária para o evento. E a festa tem grande efeito sobre o turismo, movimenta vários setores da economia. Petrobras, Caixa, Banco do Brasil sempre tiveram muita presença na área cultural. Desde que o Brasil se libertou da ditadura este é o momento mais ameaçador para a área cultural — diz a professora Silvia.
Nos vários estudos que o ex-ministro e deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ) coleciona, feitos entre outros pela FGV e a Firjan, a conclusão é sempre que o retorno de cada real investido na área cultural é muito grande. Em 27 anos de Lei Rouanet em cada R$ 1 de renúncia fiscal retornaram para a sociedade R$ 1,59. Mesmo quando se separa o núcleo cultural das outras atividades da economia criativa se vê que a cadeia produtiva é intensa e a criação de emprego é alta. Portanto, não é por perda fiscal que se persegue a cultura. É por autoritarismo.
— Temos tido censura às obras culturais com uma visão personalista, autoritária. Tudo está associado ao ataque às outras instituições que estamos vendo desde o início do governo. Bolsonaro quer assegurar que seu capricho prevaleça — diz Calero.
Há uma mistura explosiva: a censura ameaça a democracia, o ataque à cultura mina um setor econômico, os limites postos por este governo à arte fazem com que a sociedade não possa se ver de forma completa. O economista Leandro Valiati, professor visitante de economia da cultura nas universidades de Sorbonne e Queen Mary, explica que é um erro econômico banir segmentos da sociedade das manifestações culturais, como se tenta fazer com o grupo LGBT.
— A diversidade é um valor fundamental, você só estrutura mercados com diversidade. Não faz o menor sentido o controle governamental sobre o conteúdo, nem econômico nem politicamente. O Estado como regulador tem que fazer o oposto: garantir a diversidade e multiplicidade dos mercados — diz Valiati.
Nas colunas de ontem e de hoje trouxe o pensamento de quem tem estudado o assunto para mostrar que é burrice econômica querer encurralar a cultura. Ela tem um valor tangível e que tem sido estudado e medido. Para além disso, há o valor intangível das manifestações artísticas na vida de qualquer sociedade. A censura nós a conhecemos na ditadura. Ela é estéril e estúpida.
Merval Pereira: Retrocesso à vista
A anunciada mudança de posição do ministro Gilmar Mendes, que votou a favor da prisão em segunda instância e mostrava-se disposto a aceitar a proposta do presidente do STF Dias Toffoli de permitir a prisão somente a partir da terceira instância, pode involuir (ou evoluir, depende do ponto de vista) para o apoio à prisão só após o trânsito em julgado do processo. “Eu estou avaliando essa posição. Mas na verdade talvez reavalie de maneira plena para reconhecer (a possibilidade de prisão apenas depois de) o trânsito em julgado.”, disse ele à BBC.
Com essa guinada, se confirmada, ele acompanhará os votos dos ministros Celso de Melo, Marco Aurelio Mello, Ricardo Lewandowski, e pode provocar uma maioria nova no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). A ministra Rosa Weber sempre se declarou a favor do trânsito em julgado, mas vinha acompanhando a maioria a favor da prisão em segunda instância por entender que o tribunal deveria manter coerência em suas decisões.
Mas mostra-se disposta a voltar à posição original caso o tema venha a ser colocado para julgamento por ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs), o que deve acontecer ainda este ano. Para ela, “o postulado do estado de inocência repele suposições ou juízos prematuros de culpabilidade até que sobrevenha, como o exige a Constituição brasileira, o trânsito em julgado da condenação penal”.
Também o ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo, pode ser levado a apoiar o trânsito em julgado se sua proposta de permitir a prisão a partir da terceira instância (STJ) não for aceita. A nova maioria, que já se sabe ser contra a prisão em segunda instância, poderia, assim, decidir voltar à exigência de trânsito em julgado, encerrando a discussão sobre interpretações do espírito da Constituição.
Foi o que levou ao entendimento majoritário de que prisão após segunda instância se justifica porque nela se obtém a certeza de culpa do condenado. Nas instâncias superiores (Superior Tribunal de Justiça e STF), se avaliam questões jurídicas, sobre se houve aplicação correta da lei e da Constituição no processo, não havendo inclusão de novas provas.
Para derrotar a nova tendência, seria preciso que os cinco ministros que se colocaram a favor da prisão em segunda instância - Alexandre de Moraes, Luis Roberto Barroso, Luis Fux, Edson Fachin e Carmem Lucia - apoiassem a proposta de Toffoli, que assim derrotaria seus próprios aliados.
De qualquer maneira, a maioria do STF decidindo pelo trânsito em julgado, ou pela prisão após a terceira instância, todos os condenados em segunda instância que estão na cadeia, e não apenas os da Operação Lava Jato, serão libertados. E voltaremos ao tempo em que quase ninguém com dinheiro para contratar um bom advogado ia preso, devido aos inúmeros recursos até chegar ao final do processo.
Essa decisão pode ter ainda uma consequência eleitoral. Mesmo que o plenário decida pelo trânsito em julgado, Lula continuaria sem poder se candidatar, pois pela Lei de Ficha Limpa um condenado em segunda instância está inelegível por oito anos após o cumprimento da pena.
Se a Segunda Turma do STF não anular o julgamento que o condenou por corrupção no caso do triplex, só restará à defesa do ex-presidente tentar retomar uma estratégia jurídica para deslegitimar a própria lei. A defesa de Lula alegará que, se a condenação em segunda instância deixou de ser o final de um processo penal, não pode ser decisiva para uma candidatura eleitoral.
Vai ser outra disputa jurídica que se desenvolverá nos tribunais superiores, e acabará no STF. A exigência de não ter condenação em segunda instância para um candidato é igual à exigência da idade mínima ou ao domicílio eleitoral, não tem nada a ver com a legislação penal. Mesmo porque essa exigência foi aprovada em 1990, quando ainda vigia a exigência do STF do trânsito em julgado para a prisão de um condenado, o que foi substituído pela prisão em segunda instância somente em 2016.
Nunca é demais lembrar, porém, que o ministro Gilmar Mendes faz criticas severas à Lei da Ficha Limpa, e chegou a afirmar certa vez que ela parece ter sido escrita por um bêbado.
Ricardo Noblat: A direita expõe a sua divisão
Bolsonaro passa recibo
O apelo de Onyx Lorenzonni, chefe da Casa Civil da presidência da República, para que a direita permaneça unida só faz sentido como admissão velada de que ela está partida ou prestes a se partir. Ao formular o apelo durante encontro de conservadores promovido no fim de semana em São Paulo, Lorenzoni chegou a chorar.
Ou o ministro é muito emotivo ou a situação da direita brasileira inspira cuidados com menos de 10 meses de governo Bolsonaro. Podem ser as duas coisas. O descolamento do presidente da República da defesa candente que sempre fez do combate à corrupção provocou fissuras em sua base de apoio.
Ao nomear o ex-juiz Sérgio Moro ministro da Justiça e da Segurança Pública, Bolsonaro teve a intenção de reforçar seu compromisso com a luta contra a roubalheira de qualquer natureza e o crime organizado que catapultou o Brasil para a cabeceira da lista dos países mais violentos do mundo. Dela tão cedo sairá.
O Caso Queiroz obrigou Bolsonaro a dar meia volta. Por envolver seu filho Flávio, eleito senador, e as ligações entre a família e milicianos do Rio de Janeiro. Foi um golpe forte nas pretensões do presidente. Embora a investigação do caso esteja suspensa por decisão do ministro Dias Toffoli, ela poderá ser retomada em breve.
Bolsonaro tornou-se cedo demais refém da mais alta Corte de Justiça, pois é isso o que ele é e será até o fim do seu mandato. E o Supremo Tribunal Federal, por meio do seu presidente, conseguiu equilibrar o jogo disputado com um presidente recém-eleito que imaginava ter condições de subjugar os demais poderes.
A maioria dos devotos de Bolsonaro pode ainda não ter entendido o que se passa, mas a parcela menor e mais influente entendeu e não gostou. Daí a aflição de gente do tipo Lorenzoni, os garotos Carlos e Eduardo e o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho. Daí a euforia dos que abandonaram a nau dos Bolsonaros a tempo.
Aspirante a candidato a presidente em 2022, Wilson Witzel, o alucinado governador do Rio, é desde já uma pedra no sapato de Bolsonaro, que disso não cansa de passar recibo. Flerta com o PSL que Bolsonaro fustiga interessado em controlar seu caixa. E tenta tomar dele a bandeira da guerra ao crime.
Pela direita, com o cuidado de distanciar-se de sua ala extremista, trafegam João Doria (PSDB), governador de São Paulo, e o apresentador de televisão Luciano Huck. Moro a tudo observa como se não tivesse interessado. A sucessão de Bolsonaro foi precipitada por ele mesmo à falta de planos para governar.
Vera Magalhães: Pastiche de direita
Bolsonarismo imita alt right americana com dinheiro público e métodos do PT
A foto de Eduardo Bolsonaro abraçado a um mastro com a Bandeira do Brasil, copiando até o semblante “enternecido” de Donald Trump na mesma pose com a bandeira dos Estados Unidos, é o resumo do que é a direita bolsonarista hoje: um pastiche cafona da alt-right norte-americana, sem consistência filosófica e ideológica nenhuma, que se utiliza de dinheiro público do Fundo Partidário e dos métodos do PT para se financiar e se comunicar e envolta em brigas intestinas justamente pela falta de coesão política.
A semana foi tomada por uma crise provocada pelo presidente da República, que decidiu atirar contra seu partido, o PSL, ao tirar uma selfie com um admirador. A partir daí, ameaçou deixar a legenda, os parlamentares que o seguem ficaram que nem barata tonta sem saber para onde iam, mas, por enquanto, fica todo mundo onde está. E por quê?
Porque o PSL enriqueceu na esteira da febre bolsonarista. É ele, por meio da Fundação Índigo, que financia eventos como a versão brazuca da CPAC, feita sob medida para o filho do presidente e candidato a embaixador posar de especialista em relações internacionais e a plateia saudar Trump a plenos pulmões.
Portanto, a “nova direita” brasileira faz o que a velha política sempre fez: se financia com dinheiro público injetado em partidos sem nenhuma identidade programática, por pura conveniência. Também na semana que passou veio à tona em mais detalhes, por meio de reportagem da revista Crusoé, a conexão entre o comando bolsonarista e uma rede de blogueiros, youtubers, sites de propaganda e milicianos digitais, alguns com polpudos salários em cargos públicos e gabinetes, para fritar ministros, tutelar o presidente, assassinar reputações e plantar fake news.
Também nisso a direita bolsonarista bebe dos métodos da alt-right representada por Steve Bannon, que, a despeito de ter sido afastado pelo papai Trump pelo seu potencial tóxico, é idolatrado pela família e pelos assessores do presidente do Brasil.
Mas Bannon não é a única fonte de inspiração: afinal, foi o odiado PT que inaugurou a engenharia de financiar blogs e sites “alternativos” contra o “PIG”, então chamado por Lula e asseclas de Partido da Imprensa Golpista. Os extremos sempre se encontram num ponto: a demonização da imprensa como forma de banir o contraditório e tentar espalhar seu populismo, seja de direita ou de esquerda.
E o que o Brasil colhe em termos de política externa com sua casta dirigente fazendo cosplay do trumpismo para ficar bem na fita com os Estados Unidos? Na semana que passou o saldo foi um mico monumental. A expectativa de que tanta adulação fosse valer um fast track para a entrada brasileira na OCDE, o clube dos países ricos, sucumbiu diante da realidade pragmática: os Estados Unidos continuarão usando a retórica da boa vizinhança com o Brasil, mas na hora do “vamos ver” vão cuidar dos próprios interesses, sobretudo na pauta econômica e comercial.
Bolsonaro e os filhos vivem a ilusão de que sua chegada ao poder representa uma transformação súbita do Brasil – um País desigual social, econômica, cultural e regionalmente – numa pátria de direitistas empunhando a Bíblia e lendo Olavo de Carvalho.
El País: Audácia de invasores na Amazônia divide territórios e mantém rotina de assassinatos na floresta
Pará lidera onda de destruição da mata, onde homicídios fazem parte do dia a dia de cidades como Altamira. Agricultores são ameaçados por grileiros e indígenas assistem a madeireiros desmatarem suas terras sem reação do poder público
A destruição da Amazônia segue a pleno vapor, apesar dos holofotes nacionais e internacionais em torno do tema, incluindo os do Vaticano, que promove até o fim do mês um encontro sobre o bioma. As áreas com alerta de destruição já somam 7.853,91 quilômetros quadrados, 92% a mais que no mesmo período do ano passado, segundo dados do Deter, o sistema de alertas diário do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Em setembro, 1.447 quilômetros quadrados foram destruídos, 96% a mais em relação ao mesmo mês de 2018, ainda segundo o Deter. Em junho, o aumento foi de 90%; em julho, 278%; em agosto, 222%. Ainda que o ritmo do aumento dos alertas tenha diminuído em setembro, 2019 já registrou mais desmatamento que os três anos anteriores, mesmo faltando mais de dois meses e meio para o fim do ano.
Os maiores índices de desmatamento estão no Pará, que abriga imensas áreas de reservas naturais e indígenas cobiçadas por grileiros, garimpeiros e madeireiros. Uma dessas áreas na mira é o território dos Arara, conhecidos por serem guerreiros. Suas terras estão na bacia do rio Xingu e abrangem mais de 274.000 hectares da Amazônia e quatro municípios. Demarcadas em 1991, até hoje invasores colocam em xeque a sobrevivência da selva e dos próprios indígenas que nela habitam. Em fevereiro de 2018, quatro famílias dessa etnia deixaram a aldeia Laranjal, uma das cinco instaladas no interior da floresta, para se estabelecerem na fronteira do território com a rodovia Transamazônica. O cacique Turu, que levou consigo sua esposa, duas enteadas e seus pais, tinha um único objetivo: tentar coibir, até agora sem armas, apenas com sua presença, a ação de invasores que roubam madeiras valiosas. Quase todas as noites saem com caminhões carregados com jatobá, ipê, massaranduba ou angelim. "Já fizemos denúncias, mas até agora não tomaram providências", acusa o homem, de 37 anos.
A terra indígena dos Arara faz fronteira com 35 quilômetros da Transamazônica, entre os municípios de Uruará e Medicilândia – a cidade tem esse nome em homenagem ao ditador Emílio Garrastazu Médici, que governou o país de 1969 a 74. Da rodovia é possível ver dezenas de ramais na mata por onde entram e saem os caminhões e máquinas que, pouco a pouco, vão carcomendo o interior da floresta. "É triste", repete Turu a cada minuto, enquanto pisa nas marcas de pneu e pacotes de cigarro, o rastro dos invasores. Por fora, a mata parece intacta. Dentro há pedaços de tronco e árvores caídas por todas as partes. Muita destruição já foi feita. "É indignante ver que estão roubando algo que é nosso e não poder fazer nada. Nós sobrevivemos da mata, da caça de macacos, jabutis... A nossa briga é para que os brancos não desmatem tudo", explica o cacique, que já trabalhou em fazendas e, agora, pretende plantar cacau na floresta para ter uma fonte de renda. Para isso, precisa de segurança.
Viajar pela rodovia Transamazônica significa viajar no tempo. Enormes trechos permanecem com terra batida e esburacados desde que a ditadura militar decidiu abrir essa imensa rodovia transversal para o unir o Brasil de leste a oeste e colonizar a Amazônia. Pequenas motos ocupadas por até cinco pessoas — adultos e crianças — sem capacetes trafegam pela noite amazonense de faróis desligados em um acostamento que sequer existe. Enormes caminhões levantam a poeira da estrada. O perigo é constante. A impressão que se tem é que tanto a autopista como a população estão abandonadas há 50 anos. Uma constatação que não deixa de ser verdadeira: nessa região do Pará, o Estado peca por sua ausência e os conflitos por terra, ouro e madeira são sangrentos. Povos indígenas como os Arara estão entre os grupos mais vulneráveis. Além da própria floresta amazônica, que vai sendo destruída por serras elétricas e incêndios.


A tensão aumentou desde a eleição de Jair Bolsonaro. O atual presidente brasileiro vem dizendo desde a época da campanha eleitoral ser contra a demarcação de terras indígenas e promete liberar atividades econômicas, sobretudo mineração, nos territórios protegidos pelo Estado brasileiro. De acordo com a Rede Xingu +, formada por aldeias e comunidades da região do Xingu, somente no mês de julho 5.895 hectares de terras indígenas foram desmatadas, um aumento de 213% com relação a junho deste ano e 436% a mais que em julho de 2018. "Assim que o presidente ganhou, entraram nas terras e fizeram uma bagunça", recorda Turu. Os madeireiros já ameaçaram matar um de seus primos. Armados, muitas vezes disparam para o alto para assustar. A audácia desses invasores vem aumentando: da Transamazônica é possível ver estacas de madeira recém colocadas para dividir o território e ocupá-lo de vez.
Saindo da aldeia de Turu e seguindo 270 quilômetros pela Transamazônica está o município de Anapu. O centro urbano em si é pequeno, pobre e pacato. Em uma tarde de domingo de agosto há poucas almas vivas transitando pelas ruas, que abrigam casas humildes e pessoas que trabalham nos comércios ou fazendas da região. Em uma dessas vias está, quase escondido, um enorme depósito da prefeitura com imensas toras de madeiras, todas elas apreendidas pelo IBAMA duas semanas antes em uma das comunidades agricultores assentados pelo INCRA em Anapu. São muitas, centenas. Empilhadas uma sobre a outra, é preciso um breve exercício de escalada para caminhar sobre elas. Naquele mesmo domingo, a Polícia Civil havia encontrado três homens mortos perto de um trator. Pela característica do veículo, tudo indicava que trabalhavam com extração ilegal de madeira, mas as causas da morte ou a identidade dos rapazes não foram esclarecidas. As fotos dos cadáveres ensanguentados perto do veículo rodavam os celulares da população. Era apenas mais um dia normal em Anapu. O Pará se mantém como o quarto estado mais violento do país, com 54,5 mortes por 100.000 habitantes, contra 9,5 de São Paulo, segundo dados de 2018 divulgados recentemente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O município, vizinho a Altamira, abriga grandes propriedades de terra e é palco dos mais sangrentos conflitos dessa região do Xingu. Foi lá que a irmã Dorothy Stang, missionária norte-americana da Igreja Católica, desenvolveu os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), comunidades que abrigam centenas de famílias de agricultores que buscam conciliar o cultivo com a preservação da floresta. No início dos anos 2000, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) chancelou a criação dos assentamentos, contrariando os interesses de grandes fazendeiros. A líder religiosa acabou assassinada em 12 de fevereiro de 2005.
As suspeitas recaem para um consórcio maior de latifundiários. O então prefeito de Anapu, Luiz dos Reis Carvalho, e o fazendeiro Laudelino Délio Fernandes — assassinado no ano passado — chegaram a ser apontados como mandantes, mas a participação de ambos nunca foi provada. No final, dois fazendeiros próximos a ele — um deles se escondeu na casa de Délio depois da execução — foram condenados pela execução a tiros de Stang, que tinha 73 anos na época e militava na Comissão Pastoral da Terra (CPT). "Continuamos seu trabalho. Mas, desde sua morte, outras 17 pessoas foram assassinadas na região defendendo suas terras, que são públicas, da União", conta o padre José Amaro Lopes de Sousa, sucessor de Dorothy na CPT de Anapu. Os grandes proprietários da região nunca aceitaram a criação dos PDS, que abarcam áreas que eles dizem ser suas. A família Fernandes, que desembarcou em Altamira no final dos anos 70, adquiriu terras da União ocupadas por colonos que tinham uma espécie de título provisório, o qual deveria ser efetivado caso as terras se tornassem produtivas. Uma prática comum dos grileiros da época era vender essas terras improdutivas no momento em que o Governo retomava a posse dos terrenos. Os imbróglios judiciais com a União permanecem até hoje.

Desde que o INCRA decidiu assentar famílias nessas terras que a União considera que são suas, entre elas as de Délio Fernandes e seus irmãos, os conflito agrários se acirraram e os assentamentos vêm sofrendo invasões. As famílias vivem sob constante ameaça. Algo que parece ser tendência em todo o Pará, líder em assassinatos ligados a conflitos por terra: cerca de 20 pessoas morreram desde 2015, ainda segundo a CPT. Irmão de Délio, o todo-poderoso Silvério Fernandes, fazendeiro e pecuarista da região — ele diz que a família tem quatro propriedades que somam 12.000 hectares —, acusa a irmã Dorothy e o padre Amaro de estimular invasões ilegais. O sacerdote passou mais de 90 dias preso na penitenciária de Altamira, denunciado pelo fazendeiro por delitos como associação criminosa, ameaça, esbulho possessório (crime contra a propriedade), extorsão, lavagem de dinheiro, entre outros. Foi solto no final de junho e, desde então, reside na vizinha Altamira à espera da conclusão dos processos penais — uma das denúncias, de assédio sexual, já foi arquivada pelo Ministério Público.
Afastado de Anapu, diz ser vítima de uma perseguição política e judicial patrocinada por Silvério Fernandes — que preside dois sindicatos de produtores, foi vice-prefeito de Altamira por oito anos e tentou se eleger deputado estadual em 2018 — e outros latifundiários. "Quem grilou a região de Anapu foram eles, que venderam essa terra onde Dorothy foi morta. Eles vão pegando terras e vendendo. Precisam provar na Justiça que essas terras da União são deles mesmo", acusa o padre. No fim dos anos 90, Silvério e Délio Fernandes foram investigados no caso Sudam, esquema de desvios milionários do organismo responsável por apoiar o desenvolvimento Amazônia. Além disso, a família foi condenada por crimes ambientais que somam quase 30 milhões de reais em multas.
A grilagem à qual o sacerdote se refere é uma das principais atividades ilegais da região de Altamira e seus arredores. Mais de 80% dos produtores e agricultores não possuem os títulos definitivos de suas terras, algo que os próprios sindicatos do setor reconhecem, devido à falta de uma regulamentação fundiária que se arrasta desde que o regime militar começou a colonizar a região. Muitas compras de terra pública estão emperradas na Justiça. Os especialistas explicam que esse limbo legal estimula as invasões e vendas ilegais de terra. Um processo perverso, geralmente patrocinado por endinheirados e executado por trabalhadores pobres que buscam sua sobrevivência, que consiste em invadir áreas de conservação, territórios indígenas, comunidades tradicionais ou assentamentos de pequenos agricultores; desmatar grandes áreas de selva amazônica; incendiar os escombros da floresta; e, por fim, plantar capim e colocar cabeças de gado no lugar. O território passa a ter novos donos. E, com a expectativa de que um dia a situação seja regularizada pelo poder público, como vem sinalizando o Governo Bolsonaro, poderá ser vendido a um preço alto. A especulação imobiliária é, junto com a pecuária e o cacau, um dos principais negócios da região do Xingu.
O casal Edinaldo e Zelma Silva Campos, de 57 e 50 anos, respectivamente, contam estar sofrendo ameaças de grileiros e milícias armadas que há anos invadiram a comunidade onde vivem. "Homens armados encapuzados já invadiram barracos e colocaram famílias para fora. Somos todos ameaçados de morte", conta o homem, indignado com o grupo de cinco grileiros que "roubam madeira, jogam capim e vendem e revendem a terra" do local. Por ser o presidente da associação que reúne as 150 famílias — cerca de 750 pessoas — que tradicionalmente ocupam o lugar, diz ser alvo das ameaças mais graves. A última delas foi a de sequestrar o único filho do casal, de 15 anos. "Eles acham que só assim vão parar nossa luta", afirma a mulher.

Edinaldo pertence a uma família tradicional. Conta que seus pais e avós, que viviam da borracha e da pesca, migraram no começo dos anos de 1970, junto com outras sete famílias, para um território entre os rios Bacajaí e Xingu, no município de Senador José Porfírio. "É uma terra muito boa e muito fértil, com muita água, muita madeira, muito ouro, muita diversidade florestal... E muito cobiçada", explica. Devido à pressão de invasores, formou no começo dos anos 2000, depois que deixou o Exército, a associação de famílias. O Estado do Pará, dono daquele território de 28.000 hectares, reconheceu então que a ocupação e posse daquelas pessoas no lugar era legítima.
Tudo indicava que, ao final de todo o processo burocrático, concederia um título de propriedade coletivo aos associados e seus futuros herdeiros. "Foi a solução que encontramos para vivermos em paz. Mas ainda não nos deram o título", afirma o Edinaldo, enquanto mostra dezenas de documentos públicos e Boletins de Ocorrência que provam seu relato. Acredita que pressões políticas nos organismos públicos vêm impedindo a regularização final do lugar. Enquanto isso não acontece, a pressão da grilagem aumenta. "Eles já derrubaram 6.000 hectares, segundo os dados de 2018. Das 150 famílias, restaram 40 espremidas no cantinho. A maioria foi mandada embora. Estão aqui na cidade esperando para voltar", conta o homem, que vive em Altamira e não pisa em sua comunidade há seis meses.

Seu objetivo final é implantar um ambicioso projeto agroextrativista, desenvolver a agricultura familiar e formar uma cooperativa para conseguir crédito junto a bancos e vender os produtos ali desenvolvidos. Tudo isso conservando a floresta sob a promessa de seguir uma exploração sustentável. "A luta está emperrada por causa de uma morosidade tremenda do poder público. A cada verão a pressão aumenta e exaure o recurso natural para fazer dinheiro fácil. Podemos organizar pesquisas e viabilizar descobertas para a humanidade no território, que pode acabar virando um grande deserto com toda essa pressão", argumenta Zelma. "Esse projeto é minha vida. Já foram na minha casa me oferecer dinheiro, mas eu quero a terra. Temos que acreditar, mas não é fácil", encerra o marido.
É POSSÍVEL UM MODELO MAIS SUSTENTÁVEL?
Marcelo Salazar coordena o Instituto Socioambiental (ISA) em Altamira, uma ONG que promove o desenvolvimento de uma nova economia na região. Apesar de trabalhar principalmente com comunidades indígenas e extrativistas, fala da importância de que médios e grandes agricultores estejam envolvidos. "Há grandes fazendeiros que não apostam na predação a qualquer custo ou na especulação imobiliária. Muitos vêm investindo em consórcios florestais numa linha de diversificação da produção, conciliando com a preservação da floresta", explica. Ele cita o cacau como exemplo. Seu crescente cultivo fez com que a região de Altamira superasse Ilhéus, na Bahia, como produtora. "E as pessoas estão descobrindo que não precisava ter desmatado para plantar cacau. O produto mais valorizado é o cacau sombreado, plantado no meio da floresta. Os produtores mais modernos vão nessa direção, fazendo intervenções cirúrgicas na mata".
O grande problema, acrescenta, é a necessidade de mais tecnologia e canais de comercialização. "São coisas que faltam muito na região. Não necessariamente é algo caro, mas precisa de um ambiente favorável a isso. Seria o papel do Governo, algo que buscamos desempenhar aqui".
Mesmo tentando criar um ambiente de promoção de negócios da floresta, Salazar afirma que há obstáculos como a legislação e a grande quantidade de isenções e incentivos econômicos para a pecuária e a monocultura. "Os compradores estão distantes, então é preciso trazer incentivos para atrair indústrias cosméticas, alimentícias, da borracha, farmacêuticas...", afirma. Com a usina de Belo Monte veio a promessa de uma nova economia na região. "Mas a obra acabou reforçando o que já existia", opina Salazar. Mesmo quem trabalha no agronegócio tem dificuldades de se modernizar na região de Altamira. "Na Amazônia, apenas 13% das terras desmatadas possuem alta produtividade, incluindo as cidades amazônicas. O resto é área de baixa produtividade ou abandonada. É estarrecedor. Cai o discurso de que é preciso desmatar para produzir. É o velho discurso de quem, na verdade, quer ganhar dinheiro com a especulação, o grande mercado da região".