Almir Pazzianotto Pinto: O sofisma do Poder Moderador
Conferir seu exercício às Forças Armadas significa abrir largas portas ao arbítrio
Na ausência de motivos para levarem a efeito a ideia do golpe, as hostes bolsonaristas recorrem à figura do Poder Moderador. Invocam a aplicação forçada e torta do artigo 42 da Constituição de 1988.
Poder Moderador existiu, mas na Carta Imperial de 1824, outorgada por Sua Majestade o imperador dom Pedro I. Dizia o artigo 98: “O Poder Moderador é a chave de toda organização política e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação e seu primeiro representante, para que, incessantemente, vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos poderes políticos”.
Para a regime monárquico era aceitável que ao imperador coubesse a prerrogativa de velar, ou seja, de fiscalizar a preservação do equilíbrio e da harmonia entre os Poderes Legislativo e Judiciário. Afinal, a ele pertencia a chave da organização política. Registre-se, ademais, que Sua Majestade era pessoa inviolável e sagrada, não se encontrando sujeita “a responsabilidade alguma”, conforme prescrevia o artigo 99.
Proclamada a República, as coisas deixaram de ser assim. O presidente da República, chefe do Poder Executivo, não é inviolável ou sagrado. Responderá, se for o caso, pela prática de crimes de responsabilidade e comuns, conforme determinam os artigos 85 e 86 da Lei Fundamental.
Há algum tempo registrei que a Constituição de 1988 é a única, entre oito, que não resultou de golpe militar. Sucedeu à Constituição de 17/10/1969, conhecida como Emenda n.º 1, editada pelos ministros Augusto Hamann Rademaker Grünewald, da Marinha, Aurélio de Lira Tavares, do Exército, e Márcio de Souza Melo, da Aeronáutica. Haviam assumido a chefia do governo com a doença do presidente Costa e Silva. Para fazê-lo afastarem o vice-presidente Pedro Aleixo, seu sucessor natural de conformidade com o artigo 79 da Constituição de 1967. A História aí está para não nos esquecermos.
O dr. Tancredo Neves foi eleito em 5/1/1985, pela pressão popular. O colégio eleitoral apenas ratificou a vontade do povo, cansado de duas décadas de autoritarismo. Unida em torno dos partidos de oposição, a Nação reivindicava, em grandes manifestações públicas e pacíficas, o restabelecimento das eleições diretas e a restauração do Estado Democrático de Direito.
A doença que vitimou o dr. Tancredo quase pôs tudo a perder. Na noite de 14 de março, ao ser divulgada a notícia da internação no Hospital de Base começaram a circular em Brasília boatos de intervenção militar para impedir a posse de José Sarney. A rápida interferência do general Leônidas Pires Gonçalves, futuro ministro do Exército, teria assegurado ao vice-presidente o exercício interino da Presidência até a morte de Tancredo, em 21 de abril.
A Constituição de 1988 não é produto de crise ou de golpe militar. Resultou de Assembleia Nacional Constituinte, convocada e eleita como compromisso da campanha pela redemocratização. Tem defeitos. O maior, talvez, decorrente de irrefreável prolixidade.
Contém, entretanto, os instrumentos necessários à defesa do regime democrático. Às Forças Armadas – constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na disciplina e na hierarquia, sob a autoridade suprema do presidente da República – incumbe a defesa da Pátria, a garantia dos Poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, a defesa da lei e da ordem. A Constituição não as investe do Poder Moderador. Não são elas “a chave de toda a organização política”. Tampouco lhes compete velar pela manutenção da independência, do equilíbrio e da harmonia dos demais Poderes políticos, prerrogativa dos imperadores.
Para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social, ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional, ou atingidas por calamidades de grandes proporções da natureza, o presidente da República pode se valer da decretação do estado de defesa. Nos casos de comoção nacional ou de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa, ou de declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira, tem ao seu dispor o estado de sítio. No primeiro caso, o decreto deverá ser submetido de imediato ao Congresso Nacional, para validá-lo ou não. No segundo, o Congresso deverá ser consultado antes (artigos 136/141 da Constituição).
Em ambas as situações, para preservação do Estado Democrático de Direito o Congresso Nacional permanecerá em atividade, sendo assegurada a divulgação dos pronunciamentos dos parlamentares nas correspondentes Casas Legislativas, desde que liberados pelas respectivas Mesas Diretoras. Pelas mesmas razões, o estado de defesa e o estado de sítio não impedirão o acesso à tutela do Poder Judiciário.
Conferir às Forças Armadas o exercício de Poder Moderador, instituto estranho ao arcabouço constitucional, significa abrir largas portas ao arbítrio.
*Advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, é autor de ‘A falsa República’
Eliane Cantanhêde: Devassa
A guerra da PGR contra a Lava Jato está só começando e pode virar uma devassa
A guerra da Procuradoria-Geral da República (PGR) com a força-tarefa da Lava Jato está só começando, com troca de críticas em público e de acusações nos bastidores. Vem aí uma devassa numa operação anticorrupção que ganhou fama mundo afora, mobilizou o Brasil e, com a prisão de um ex-presidente, ex-governadores, ex-presidentes da Câmara e os maiores empreiteiros do País, gerou a esperança de que a lei valeria para todos.
Segundo o procurador-geral, Augusto Aras, em conversa ontem com a coluna, “não se trata de linchar quem quer que seja, até porque isso seria cair nos mesmos vícios”. Ele, porém, admite: “Mas é preciso corrigir rumos e seguir regras universais para todos os procuradores. Não podemos ter animais que são mais iguais do que os outros, como em A Revolução dos Bichos (George Orwell)”.
Aras não diz isso tão claramente quanto outros integrantes da PGR, mas a avaliação é de que a Lava Jato foi ótima, até “virarem a chave”. Ou seja, até os procuradores de Curitiba passarem a ultrapassar limites e driblar a falta de provas. Assim, há um “esgotamento” do modelo e é preciso transparência e tirar o excesso de poder e voluntarismo da Lava Jato, garantindo compartilhamento de dados e a participação da PGR. “Eu sou procurador-geral e não tenho o direito de saber o que acontece em Curitiba?”, reclama Aras.
Isso cria mais uma situação estranha num ambiente político já tão estranho. A PGR de Aras, acusado de “bolsonarista”, faz um discurso semelhante ao do PT quando o foco é Lava Jato e Curitiba, algozes do ex-presidente Lula. Como ficam os petistas? Contra Aras, mas a favor da intervenção na Lava Jato? Ou contra tudo e todos?
Aliás, pouco se fala sobre isso, mas o procurador-geral tem tomado sucessivas decisões que contrariam o Planalto. Exemplos: no combate à pandemia; na denúncia contra o deputado Arthur Lira (PP), do Centrão e aliado do presidente Jair Bolsonaro; nas “apurações preliminares” sobre declarações do deputado Eduardo Bolsonaro e do general Augusto Heleno (GSI) com viés antidemocrático. O seu teste de fogo, porém, será denunciar ou não Bolsonaro por intervenção política na PF.
O fato é que as acusações da PGR contra a Lava Jato, e da Lava Jato contra a PGR, vão piorar, com forte questionamento a ações e decisões de Curitiba. Na lista, as delações premiadas. Na avaliação da PGR e outros órgãos de controle, as multas aplicadas aos delatores não chegam a 10% de um valor razoável e eles estão leves, livres, soltos – e nadando em dinheiro desviado.
Na versão da Lava Jato, a intenção da PGR e do próprio Aras é destruir não só a operação, mas o próprio combate à corrupção. Eles dizem que é o oposto: retomar e aprofundar o combate à corrupção, que parou, em novas bases e práticas. Eles acusam a força-tarefa de ter engavetado 1.450 relatórios prontos, sem nenhuma consequência.
A lista da Lava Jato divulgada pelo site Poder 360, camuflando investigações indevidas contra os presidentes da Câmara (“Rodrigo Felinto”) e do Senado (“David Samuel”), foi só um aperitivo para tentar provar o uso de “métodos heterodoxos” da força-tarefa. Eles também não usavam simples gravadores, mas sim interceptadores. Ou seja: a PGR suspeita que grampeavam seus alvos sem autorização judicial.
Nessa guerra, ninguém está totalmente certo nem errado, mas a previsão é de que, entre mortos e feridos, os mais atingidos sejam os líderes da Lava Jato que tanta esperança trouxeram ao Brasil. Aí se chega a Sérgio Moro, o inimigo número um do PT, que passou a ser também dos bolsonaristas e agora corre o risco de ver a Lava Jato, a maior operação de combate à corrupção da história, virar um sonho de verão – ou um pesadelo.
Hélio Schwartsman: O racismo contribuiu para derrubar Carlos Alberto Decotelli?
Meios acadêmicos têm justificado viés antibolsonarista e foram implacáveis com ele
O racismo contribuiu para derrubar Carlos Alberto Decotelli do comando do Ministério da Educação?
A essa altura não há dúvida de que ele inventou para si títulos que não obtivera, o que é um dos pecados mais graves que se pode cometer na vida acadêmica, além de ilícito penal, caso a mentira seja registrada em documentos públicos como a plataforma Lattes. E isso, creio, é mais do que suficiente para desqualificá-lo para o cargo, que nem chegou a assumir. Ainda assim, é possível que o chamado racismo institucional tenha dado uma ajudinha.
Como quase ninguém admite ser racista, a melhor forma de constatar o fenômeno é recorrer às estatísticas, em busca de desfechos diferenciados para negros e não negros que tenham logrado os mesmos êxitos ou incorrido nos mesmos erros. Trocando em miúdos, não negros que também falsificaram seus currículos tiveram o mesmo tratamento dispensado a Decotelli?
Numa análise perfunctória das histórias de políticos que pregaram mentiras curriculares, a resposta é negativa. O próprio governo Bolsonaro abriga dois ministros que já turbinaram seus CVs, Damares Alves e Ricardo Salles.
Se expandirmos um pouco mais o círculo, temos os casos do governador Wilson Witzel, da ex-presidente Dilma Rousseff e do ex-chanceler Celso Amorim. Nenhum deles chegou perto de ter sua carreira ameaçada pela imaginação fértil. Nosso número de casos é pequeno demais para autorizar conclusões científicas, mas basta para deixar a suspeita no ar.
Também seria possível argumentar que o que atrapalhou Decotelli, mais do que o fato de ser negro, é o fato de ser bolsonarista. Os meios acadêmicos têm um forte e justificado viés antibolsonarista e por isso foram implacáveis com o ex-quase-ministro. De qualquer forma, o embelezamento curricular é um fenômeno maciço.
Levantamento de 2019 da DNA Outplacement mostrou que 75% dos CVs enviados aos RHs de 500 empresas no Brasil continham informações distorcidas. Os pontos sobre os quais os candidatos mais mentem são salário (48%) e fluência no inglês (41%). Escolaridade e títulos acadêmicos são deturpados por 10% dos profissionais. Uma das razões por que se mente tanto, acredito, é que se checa pouco.
Que um RH de uma empresa pequena deixe essas coisas passarem é mais ou menos esperado. Mas, quando quem come mosca é um governo que conta com vários serviços de informação, civis e militares, já entramos no terreno da incompetência estrutural.
Bruno Boghossian: Planalto sabotou combate ao coronavírus ao saber de projeção de 100 mil mortes
Na última sexta-feira de março, Jair Bolsonaro apareceu na TV e disse o que pensava sobre o aumento de casos de coronavírus no país: "Alguns vão morrer? Vão, ué. Lamento. Essa é a vida, é a realidade".
O presidente adotou a negligência como política oficial durante a pandemia. O desdém se tornou a principal marca do desempenho ruinoso do Brasil, que agora ganha contornos ainda mais perturbadores.
Ex-secretário do Ministério da Saúde, o epidemiologista Wanderson Oliveira contou à repórter Natália Cancian que o Palácio do Planalto foi avisado de uma projeção que estimava em 100 mil o número de mortes por coronavírus em seis meses. Segundo ele, os dados chegaram à cúpula do governo já em março.
Desde o início, a equipe de Bolsonaro tinha elementos sobre a gravidade da doença. Naquele mês, o presidente dizia que a Covid-19 faria menos de 800 vítimas. A previsão fraudulenta desabou em três semanas.
Bolsonaro sonegou informações e implantou uma sabotagem contínua às ações de combate à pandemia. Demitiu um ministro e forçou a saída de outro. Quando o país bateu 30 mil mortes, não deu bola: "A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo".
O governo também sabia que a cloroquina era um método duvidoso de tratamento, mas estimulou o uso do remédio. O Exército estocou mais de 1 milhão de comprimidos. Procuradores querem saber por que os insumos para o medicamento custaram mais do que o normal.
Os conflitos fabricados por Bolsonaro em torno das medidas de distanciamento, defendidas pelos técnicos da área, ajudaram a empurrar o país para o buraco. "Perdemos um tempo precioso com um debate improdutivo que acabou resultando numa confusão para a população muito grande", afirmou Oliveira.
O presidente liderou o país com a mesma habilidade do prefeito de Itabuna, na Bahia. Nos últimos dias, o alcaide disse que abriria o comércio mesmo que os casos na cidade disparassem, "morra quem morrer".
Reinaldo Azevedo: Brasil afunda, e Lava Jato se desnuda
À diferença do procurador Deltan Dallagnol, acredito no sistema de Justiça
Sei o que me custou a fama de “inimigo da Lava Jato”. Afinal, os procuradores e o então juiz Sergio Moro passaram a encarnar o bem, o belo e o justo. Pouco importava que mandassem o Estado de Direito e o devido processo legal às favas. Nunca pensei coisas lisonjeiras sobre esses varões de Plutarco. E eles ainda conseguem me surpreender. Mas não ao FBI. Vamos ver.
Deltan Dallagnol, coordenador da Lava Jato em Curitiba, resolveu subir nas tamancas porque a subprocuradora-geral Lindora Araújo, da PGR, cobrou o compartilhamento de dados de investigações lá em curso. Acusou interferência indevida, apresentou denúncia à Corregedoria do MPF —a diligência está aberta— e omitiu do público que há uma decisão de 2015 determinando esse compartilhamento. Ele não quer papo com a PGR. Só com o FBI.
Com o intuito de se descolar do governo naufragante, especialmente depois que Moro deixou o Ministério da Justiça, os valentes fizeram mira em Augusto Aras, procurador-geral da República. Tentam uma vaguinha entre aqueles, tão desiguais entre si, que enfrentam a barbárie liderada por Jair Bolsonaro, que eles ajudaram a eleger.
No embate com Aras, diga-se, receberam o apoio de Moro. Afinal, não é só o presidente que está de olho em 2022. Com o levante, pretendem explorar a proximidade do procurador-geral com o presidente, colando no primeiro a pecha de inimigo da Lava Jato e, em ambos, a de lenientes ou promotores da corrupção. É grande a chance de o dito “Mito” não concluir seu mandato, mas por outros malfeitos, sem nenhuma relação com a operação. Até Bolsonaro pode ser alvo de críticas por maus motivos.
Dallagnol está me processando. Não usarei a coluna para fazer proselitismo. Tanto o processo como a conjuração anti-Aras antecedem informações do balacobaco. Reportagem da Agência Pública, em parceria com o site The Intercept Brasil, evidencia a colaboração entre a Lava Jato e o FBI ao arrepio do Ministério da Justiça. Não é teoria da conspiração. Havendo conspiração, é fato que antecede a teoria.
Num diálogo com o também procurador Vladimir Aras (primo de Augusto, mas sem vínculos políticos), informa a reportagem, Dallagnol deixa claro que está em contato direto com o FBI para cuidar da extradição de um brasileiro. Para espanto do interlocutor, o rapaz informa que tudo se fará em parceria com a PF, mas à revelia do Ministério da Justiça e da própria PGR.
Ouve do colega tratar-se de flagrante ilegalidade. Dallangol ironiza: “Obrigado Vlad por todas as ponderações. Conversamos aqui e entendemos que não vale o risco de passar pelo executivo, nesse caso concreto. Registra pros seus anais caso um dia vá brigar pela função de autoridade central rs. E registra que a própria PF foi a primeira a dizer que não confia e preferia não fazer rs.”
Nesta quarta, o site Poder 360 informou que “os presidentes da Câmara e do Senado aparecem como ‘Rodrigo Felinto’ e ‘David Samuel’ numa extensa denúncia de dezembro de 2019”. Uma aberração: autoridades com foro especial, tudo indica, eram investigadas pela primeira instância do MPF, sem que a própria PGR tivesse ciência. E mais: “Haveria até nomes incompletos de ministros do STF, que podem ter tido seus sigilos quebrados de maneira irregular”. A operação nega irregularidades, claro.
Em conversa com colegas e com Moro, revelou reportagem da Folha e do The Intercept Brasil, Dallagnol disse que a Lava Jato precisava investir em marketing. Sugeriu a criação de um monumento em Curitiba em homenagem à operação: “A minha primeira ideia é esta: algo como dois pilares derrubados e um de pé, que deveriam sustentar uma base do país que está inclinada, derrubada. O pilar de pé simbolizando as instituições da justiça. Os dois derrubados simbolizando sistema político e sistema de justiça…”
Deveria ser processado no Tribunal da Anticafonice. Mas é ele quem me processa. Pede uma nota! À diferença do procurador, acredito no “sistema de Justiça”. Aposto que ainda há juízes no Paraná e em Brasília.
Claudia Safatle: Na economia o pior já passou, diz o governo
Para os economistas oficiais, as projeções do FMI estão erradas
Para os economistas do governo, as projeções do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial para o nível de atividade do país este ano estão simplesmente “erradas”. O FMI divulgou, na revisão do World Economic Outloock, uma queda de 9,1% do PIB e o Bird calculou em 8% a recessão no Brasil. Os técnicos do FMI consideraram uma retração de 0,6% no Produto Interno Bruto (PIB) para cada semana de isolamento social, mais que o dobro do estimado pelo Ministério da Economia (- 0,27%) e por um período maior do que o preconizado pelos economistas locais.
Nas contas do Fundo Monetário, depois do tombo levado pela atividade econômica doméstica, que atingiu o fundo do poço em abril, não haveria praticamente nenhuma recuperação, segundo o relato de assessores da área econômica que estiveram com os enviados do Fundo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, qualificou os prognósticos do FMI de “chute”.
A Secretaria de Política Econômica (SPE) do ministério continua apostando em uma recessão próxima a 4,7%. No Banco Central, a última revisão do Produto Interno Bruto (PIB) aponta para um desempenho pior: queda de 6,4% este ano. Ambos, contudo, convergem no entendimento de que o pior já passou e buscam nos dados de alta frequência as informações que sustentam a avaliação de que a economia já começou a reagir.
“Em relação ao que se esperava em abril, que eram dados muito ruins, eles estão vindo só ruins”, pontuou um dos secretários do ministério, para deixar claro que apesar de alguma perspectiva melhor não há razão para grandes comemorações. Isso é o que estariam mostrando as informações sobre emissão de nota fiscal e de vendas no cartão, dentre outras.
Os demais indicadores que chamam a atenção dos técnicos da área econômica e que apontam para o início de um processo de retomada da atividade, embora esta ainda esteja bem abaixo do período pré-pandemia, são:
Emplacamento de veículos: depois de uma retração de mais de 70% entre fevereiro e abril, o número de veículos emplacados em maio e junho aumentou, respectivamente, 12% e 84%, ajustados os efeitos sazonais. O dado desagregado revela forte aumento no emplacamento de caminhões, superando em junho os patamares pré-crise, segundo informações da Fenabrave (Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores).
Consumo de energia elétrica: após recuar 16%, em meados de abril confrontado com igual período do ano passado, o consumo de energia aumentou nas últimas semanas, segundo informações do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico). Dados do fim de junho indicam que o consumo se encontra apenas 5% abaixo de igual período de 2019. “O dado é volátil, e apresenta heterogeneidade regional, mas a tendência é robusta: há uma melhora consistente nesse indicador nas últimas semanas”, atestam os economistas oficiais.
Faturamento do varejo (ICVA -Indice Cielo do Varejo Ampliado): o faturamento nominal do varejo teve queda de mais de 50% no fim de março, quando começou o isolamento social. É possível notar, porém, uma recuperação nas últimas semanas. Na ultima semana de junho constata-se um recuo de 24% em relação a período comparável antes da pandemia. “Há diferenças setoriais importantes, mas os dados sugerem recuperação consistente em diversos setores”, asseguram os técnicos.
Dados de mobilidade do Google: o Google elaborou um relatório para identificar os impactos que a pandemia da covid-19 causou no distanciamento social e nas tendências de mobilidade. A base de comparação é um valor médio das cinco semanas entre o dia 3 de janeiro e 6 de fevereiro de 2020 (pré-pandemia). Os últimos dados disponíveis são do dia 27 de junho e apontam uma melhora expressiva na mobilidade para locais de trabalho e mercearia e farmácia. “Já os dados de varejo e recreação são mais heterogêneos por região e encontram-se em patamares ainda baixos”, ponderam.
A SPE elaborou um indicador proprietário que sintetiza os dados do Google e revela que após recuar aproximadamente 55% em abril, o indicador encontra-se atualmente próximo de 30% negativos.
Confiança empresarial: depois de passar por uma queda de mais de 40% entre março e abril, a confiança voltou a subir, informa a Fundação Getúlio Vargas (FGV). Os meses de maio e junho mostraram avanço de 8.2% e 19.1% na margem, respectivamente, com ajuste sazonal.
Incerteza econômica: o indicador da FGV começou a recuar na margem em maio (-9.6%) e junho (-8.8%), depois de acumular uma alta de 83% no período entre o início da pandemia e abril. Mesmo com as quedas, a incerteza continua elevada.
A ampliação, por mais dois meses, do auxílio emergencial para os trabalhadores informais, desempregados e microempreendedores individuais (MEI) e o impacto dessa ajuda na expansão da massa salarial, assim como o aumento da oferta de crédito para as médias, pequenas e microempresas, devem ajudar na retomada da atividade.
O auxílio deverá ser pago em três parcelas de R$ 500, R$ 400 e R$ 300 e vai disputar o peso dessa renda no PIB com o risco fiscal que o gasto com esses pagamentos traz embutido.
Entre os economistas oficiais não há grandes esperanças de que os bancos em geral vão se engajar, efetivamente, em conceder crédito para o universo de micro e pequenas empresas - cujo risco de falência aumentou muito nesta crise - apesar das garantias asseguradas pelo Tesouro Nacional. Até agora, apenas a Caixa, por ser um banco 100% estatal, está operando com a linha do Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte).
Do ponto de vista do comportamento do PIB é melhor um abre e fecha do comércio de bens e serviços, pautado pela evolução da doença, do que manter um estrito isolamento social em que funcionam somente supermercados e farmácias.
Bernardo Mello Franco: O país do "morra quem morrer"
Quando o Brasil registrou 5 mil mortes pelo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro disse o seguinte: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”.
Agora que a pandemia ultrapassa as 60 mil vítimas, o prefeito de Itabuna informa: “Mandei fazer o decreto que no dia 9 abre. Morra quem morrer”.
A frase de Fernando Gomes choca pela sinceridade, não pelo conteúdo. De norte a sul, o país assiste a uma reabertura geral do comércio. A doença ainda está fora de controle, mas muitos políticos resolveram fingir que o vírus sumiu.
É o caso do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha. Em abril, ele tornou obrigatório o uso de máscaras. Nesta quinta, descumpriu o próprio decreto e desfilou de cara limpa em agenda oficial.
O governador se elegeu com o discurso da “nova política”, mas age como o prefeito de Itabuna, no poder desde a ditadura. Quando Gomes estreou no cargo, em 1977, o Brasil ainda era governado pelo general Ernesto Geisel. Aos 81 anos, ele exerce o quinto mandato municipal.
A biografia do prefeito é recheada de fatos notáveis. Em 1991, a revista “Veja” o descreveu como o “marajá dos marajás”. Ele recebia o equivalente a US$ 17.600, seis vezes mais que o então governador da Bahia. Além disso, empregava cinco parentes na prefeitura.
Orgulhoso, Gomes abriu a casa e posou diante da piscina, decorada com uma cascata artificial de quatro metros de altura. A reportagem conta que ele cativava eleitores com a distribuição de dinheiro vivo.
O prefeito já tentou dividir a Bahia e criar o estado de Santa Cruz. Para barganhar votos no Congresso, prometeu ceder um trecho do litoral a Minas Gerais, que finalmente ganharia saída para o mar. O objetivo, claro, era candidatar-se a governador. A ideia naufragou, mas ele continuou a dominar a política municipal.
Itabuna tem 213 mil habitantes e um desempenho trágico na educação. Entre 5.570 municípios brasileiros, amarga o 5.184º lugar na avaliação do fim do ensino fundamental. A cidade já registrou 67 mortes e está com todos os leitos de UTI lotados. No vídeo do “morra quem morrer”, o prefeito aparece de máscara no queixo.
César Felício: Algo precisa ser feito
“Fake News” ameaçam destruir a vida em sociedade
Com todos os atropelos que traz à privacidade do cidadão, o projeto de lei aprovado pelo Senado esta semana e apelidado de “Lei das Fake News” poderá ser melhor para a democracia do que não fazer coisa alguma. A chance dele vingar, contudo, é muito pequena, quase nula, dada a forma como passou.
Os que criticam a proposta munidos de boa fé deveriam se sentir motivados a apresentarem uma alternativa política plausível ao parecer do senador Angelo Coronel. Pode ser que ainda o façam, já que há discussões na Câmara que devem levar a uma revisão profunda do projeto. A ver.
Não há pior situação do que a atual, em que o fenômeno das “fake news” corrompe o sistema democrático não apenas no plano institucional, enganando legiões na hora do voto, mas no universo de direitos: a convivência entre diferentes é minada e até questões que afetam a sobrevivência da espécie, como o combate à pandemia ou a preservação do meio ambiente, têm o debate desvirtuado.
O direito à privacidade e à liberdade de expressão não pode se sobrepor a regras que garantam a existência da vida em sociedade. É o paradoxo de Karl Popper: a tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância.
O debate sobre o projeto produziu até o momento uma coalizão tão insólita quanto involuntária. Combatem a proposta tanto expoentes do libertarianismo digital quanto os ferrabrazes do bolsonarismo, muitos dos quais alvos do inquérito que cursa no Supremo Tribunal Federal.
Faltou ao Senado a percepção de que era preciso negociar mais o texto para se desmanchar esta frente. Transferir a responsabilidade de fazer esta negociação para a casa revisora - no caso em questão a Câmara - e levar a voto a proposta com tamanho grau de dissenso foi um erro, porque vai atrasar a tramitação no Legislativo já que, alterado, o texto terá que voltar para o exame dos senadores.
Os fomentadores de “fake news”, os que fazem da mentira um método de ação política, jogam nesta questão com o tempo. Enquanto o impasse permanecer, a liberdade de expressão e o direito à privacidade estarão resguardando um mundo paralelo que prega contra vacinas, diz que o desmatamento não aumentou, que não houve ditadura militar, que a Lava-Jato foi uma conspiração do governo americano, que há um plano da China para dominar o pensamento acadêmico brasileiro e por aí vai. E esses são os exemplos mais suaves, porque o que corre nas redes sociais é mais pesado: vai na pessoa física, visa destruir o oponente, desmoralizando-o.
Veterano no acompanhamento da cena política, o presidente do Conselho Científico do Ipespe, Antonio Lavareda, mostra-se alarmado. “O Brasil soube administrar bem a corrupção no sistema eleitoral. Com todos os problemas que acarretou a nova norma, a proibição de doação de empresas a candidatos conteve o problema. Agora o vírus que ameaça à política está nas redes sociais. É melhor pecar por excesso do que ceder a um principismo ingênuo.” Em resumo, “o risco que as fake news representam impõem o sacríficio de algumas liberdades. Não há direito absoluto”, comenta.
O debate a ser feito, portanto, é até que ponto deve-se abrir mão de determinados direitos (privacidade e liberdade de expressão) para a preservação social. Esta é a dimensão da decisão que a Câmara deve encaminhar.
A polarização política muito potencializada pelas redes já cobrou a fatura no filtro que o brasileiro busca ao se informar. A internet tornou-se a porta da entrada da informação, sem ter os mecanismos de autocontrole que existem em todas as plataformas tradicionais de mídia.
Segundo uma pesquisa comparada da Reuters em parceria com a Universidade de Oxford, com 2.058 entrevistas, feitas entre janeiro e fevereiro deste ano, nada menos que 43% dos pesquisados no país preferem ler notícias de fontes que compartilhem o seu ponto de vista. Nos Estados Unidos, onde a penetração da internet é maior e a polarização política é enorme, a proporção é de 30%. No Reino Unido, 13%.
Já os que preferem ler noticias imparciais no Brasil somam 51%, ante 65% na Itália e 80% na Alemanha. Entre 2013 e 2020, o percentual que se informa por meio do jornal impresso recuou de 50% para 23% e pela televisão caiu de 75% para 67%. Já os que consomem notícias por redes sociais subiram de 47% para 67%. Fica patente que o Brasil é uma terra fértil, em que se plantando tudo dá.
Eleição
A eleição deste ano tem tudo para entrar para a história política brasileira como uma completa anomalia, não apenas por ser a primeira a acontecer em novembro desde 1989. O palanque eletrônico se converterá no único possível. A campanha se desenrolará em clima de absoluto desinteresse, porque é incontroverso que a pandemia monopoliza a atenção. De quebra, passou a vigorar a regra que proíbe coligações eleitorais, o que estimula os partidos a lançarem chapa completa nos grandes centros.
Para Lavareda, a televisão volta a ter um papel central no processo político, mais do que exerceu em 2018, com a população confinada em suas casas. “Isso vai acontecer não apenas por causa do horário eleitoral, mas porque a TV ganhou credibilidade com a pandemia.”
Bolsonaro não terá partido, mas será impossível o bolsonarismo não estar presente na disputa. No cardápio das opções locais, haverá o candidato que vai procurar colar na imagem do presidente para captar a simpatia de seus irredutíveis apoiadores. E os seguidores do presidente estabelecerão suas afinidades eletivas.
Dificilmente, contudo, a nacionalização da eleição será uma marca este ano. A campanha em confinamento tolhe a oposição aos prefeitos. Se o administrador local conseguir driblar a penúria financeira, - algo que ficou mais fácil, com a negociação estabelecida no Congresso - as chances de superar os problemas causados pela catástrofe sanitária são grandes. Largam em grande vantagem.
Ricardo Noblat: Bolsonaro enfrenta uma crise de abstinência
O aperto de uma camisa de força
Acendeu a luz amarela no entorno do presidente Jair Bolsonaro. Ele está mais nervoso do que de costume, mais irritado, tanto ou mais explosivo do que sempre foi. Contraditoriamente, às vezes permanece calado quando dele se esperava uma palavra ou reação. Se antes já não dormia bem, agora dorme menos ainda. Por vezes, parece deprimido, desanimado.
São sintomas que caracterizam a síndrome de abstinência, uma vez interrompido de sopetão o consumo de determinado remédio ou droga do qual dependia o humor do paciente. No caso de Bolsonaro, sua droga era o palavrório. Ou melhor: a liberdade para dizer o que quisesse sem medir as consequências. Estava também acostumado com plateias à espera de ouvi-lo.
De repente, tudo isso lhe foi cortado. É como se tivesse perdido ao mesmo tempo dois direitos que sempre lhe foram especialmente caros: o de expressar sem medo o que pensava; e o de ir e vir livremente. Devotos no cercadinho à entrada do Palácio da Alvorada não há mais. Aparições de surpresa no comércio de Brasília, tampouco. Manifestações políticas de rua, só em sonhos.
E até quando ele suportará viver submetido a tão draconianas regras? Não que elas lhe tenham sido impostas sem a sua concordância. Sim, era necessário que parasse de esticar a corda que ameaçava romper-se – afinal, depois da saída de Mandetta e de Moro do governo e da aposta errada na “gripezinha”, Queiroz foi preso e apertou o cerco judicial aos seus três filhos zeros.
Bolsonaro sente-se como se estivesse metido numa camisa de força, e já disse. Ministros militares, atentos a sinais de perigo, registraram os primeiros e os transmitiram aos seus antigos chefes. Em pelo menos um ministério, às escondidas do seu titular, corre um bolão sobre o número de dias que Bolsonaro resistirá à tentação de atravessar a rua para pisar numa casca de banana.
Façam suas apostas.
Uma mão lava a outra e as duas podem ficar sujas
Ibaneis chama o Covid-19 de gripezinha e quer dinheiro
Uma coisa é uma coisa, outra é outra. Complicado muitas vezes é quando uma coisa é o oposto da outra e você é obrigado a se explicar. É a situação que vive o governador Ibaneis Rocha (PMDB) depois de ter decretado, na última segunda-feira, Estado de Calamidade no Distrito Federal, e anunciado no dia seguinte a reabertura de todas as atividades econômicas apesar da pandemia.
Ibaneis foi o primeiro governador do país a adotar medidas de isolamento para limitar a circulação de pessoas. No dia 28 de fevereiro, antes mesmo da confirmação do primeiro caso da doença, decretou emergência nos seus domínios. No dia 11 de março, suspendeu aulas e proibiu eventos. Foi elogiado por isso pelas autoridades médicas. O que deu nele agora?
O Estado de Calamidade facilita a obtenção de verbas que dependem do Ministério da Saúde. Ibaneis jantou com o general Eduardo Pazuello, ministro interino da Saúde, e defendeu sua efetivação no cargo. “Quem entende de guerra é general, e o que estamos travando é uma guerra contra o coronavírus”, afirmou. Quanto a acabar com o isolamento social e logo agora…
No final da semana passada, médicos advertiram que haveria um novo crescimento da doença no Distrito Federal e que mais de 90% dos leitos de UTIs da rede pública estavam ocupados. Sugeriram a Ibaneis decretar o fechamento total das atividades econômicas. O governador negou que houvesse risco de colapso do atendimento médico. O colapso aconteceu na terça-feira.
Sob a pressão do governo federal e de empresários para que ajudasse a salvar a economia, Ibaneis finalmente cedeu, jogando a culpa na população que teria desobedecido à sua ordem de ficar em casa. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, chegou a chamar o Covid-19 de “gripezinha” que, como tal, deveria ter sido tratada desde o início. E avisou aos seus eventuais críticos:
– Não adianta querer colocar nas minhas costas o sofrimento dos outros.
De resto, Ibaneis sente-se em dívida com o presidente porque mandou a polícia fechar acampamentos de bolsonaristas espalhados pelo Distrito Federal e proibiu manifestações de natureza antidemocrática na Esplanada dos Ministérios. De Bolsonaro, ele aguarda o reconhecimento, se possível em dinheiro, por ter procedido até aqui com a melhor das intenções.
Vladimir Safatle: O Brasil e sua engenharia da indiferença
O principal esforço até agora não consistiu em se mobilizar para evitar as mortes durante a pandemia, mas em banalizá-las
Talvez fosse o caso de começar lembrando que a substância ética de um povo é definida através da maneira com que ele lida com a morte. Este é um tema maior presente entre os gregos, a saber, como uma sociedade se destrói a partir do momento em que ela não dá aos mortos o direito ao luto. Pois o luto mobiliza questões vinculadas à memória, à universalidade, ao reconhecimento, à suspensão do tempo e ao intolerável. Se uma das maiores tragédias que os gregos nos legaram ―Antígona―, é exatamente sobre a defesa incondicional do direito ao luto, mesmo para o “inimigo do Estado”, era porque ela expressava a consciência tácita de que a banalização do apagamento dos corpos sem vida representava o caminho mais seguro para dissolução da própria comunidade. Estes dois pontos estão ligados de forma indissolúvel: o destino dos vivos e o destino dos mortos, o governo dos vivos e o governo dos mortos.
Para uma sociedade como a brasileira, fundada no binômio genocídio/esquecimento, sociedade construída sobre os escombros do genocídio indígena e negro, lembrar da força política do luto é uma operação decisiva. Nós fomos formados a partir da fantasia originária da “tabula rasa”. Aqui, não haveria povos com grandes estruturas estatais, como os maias, astecas e incas. Toda tomada de posse seria processo civilizatório tendo em vista retirar essa terra de seus arcaísmos, o arcaísmo das sociedades sem Estado. Por isto, o genocídio indígena não seria genocídio algum, apenas a marcha violenta, porém necessária, do desenvolvimento histórico. No Brasil, “desenvolvimento” significa uma forma de “desaparecimento”, de apagamento. Uma sociedade que começa desta forma sem nunca conseguir olhar para trás e recuperar aquilo que foi destroçado, só pode terminar como catástrofe.
Pois essa indiferença bruta do esquecimento é um verdadeiro projeto de governo. Governar é gerir circuitos de afetos. Só assim é possível definir o que visível e invisível, sensível e insensível, perceptível e imperceptível. E controlar os regimes de sensibilidade, de visibilidade e percepção é controlar o fundamento daquilo que pode afetar a vida social. É definir a velocidade das urgências, a determinação do tolerável, estabelecer quais conflitos deverão ser reconhecidos e quais não deverão.
Neste sentido, este cozinhar os afetos sociais no fogo brando da indiferença é a base de toda uma engenharia social. E não há fundamento mais forte da produção da indiferença do que a indiferença à morte. Lembremos das condições libidinais para que a tese da banalização do mal pudesse funcionar. Era necessário que os carrascos nazistas fossem capazes de naturalizar a desafecção. Só assim o assassinato em massa poderia se transformar em um problema de logística. Só assim ele poderia se tornar um problema de como os trens chegarão aos fornos, em quanto tempo, com quanto custo, estejam eles transportando pessoas a serem eliminadas ou mercadorias a serem entregues.
Vale a pena lembrar isto porque o verdadeiro projeto político com força transformadora, aquilo que deveria nos unir, é a luta por uma mutação de afetos que passe pela compreensão da desafecção como base de nossa verdadeira miséria. Temos, até o momento, mais de 60.000 pessoas mortas pela pandemia, isto se acreditarmos em números subnotificados. Mas o principal esforço até agora não consistiu em mobilizar os esforços e riquezas do país para evitar as mortes. O principal esforço consistiu em banalizá-las. Afinal, não é verdade que morre todo o ano mais de 60.000 pessoas por violência neste país? Qual a razão então para todo esse alarmismo? Como se os números da violência não fossem por si alarmantes, nos provocando indignação a todo momento. Números estes, diga-se de passagem, que descrevem, principalmente, a violência policial: peça maior da gestão social desse país.
Mas notem como essa desafecção é peça fundamental para o tipo de laboratório que o Brasil se tornou: um laboratório mundial para o neoliberalismo autoritário. Porque esse programa econômico que se impõe a nós, com ou sem pandemia, tem uma economia libidinal que lhe e própria. Para ele funcionar, é necessário que a sociedade exploda toda possibilidade de solidariedade genérica, essa solidariedade, que obriga a realização social de princípios estritos de igualdade e redistribuição. Entre nós, a crítica do Estado corrupto aparece apenas como exigência de dessolidarização final. Não se trata de exigir do Estado que ele se volte à defesa do bem comum, mas que ele desapareça de vez para que qualquer obrigação de solidariedade não tenha mais voz. Se a sociedade implode qualquer forma transversal de solidariedade, então a via estará aberta para o retorno final à acumulação primitiva.
A solidariedade, desde o direito romano, é um tipo de obrigação contraída com vários na qual um pode quitar a dívida de todos. Ela é um sistema de obrigação na qual a ação de um tem o efeito da ação de todos, o que explicita sua natureza radicalmente implicativa. Neste sentido, ela traz a ideia de um corpo social que se organiza sob as bases do mutualismo. Um mutualismo que tem força transformadora porque se trata de compreender como dependo de pessoas que não se parecem comigo, que não tem minha identidade, que não fazem parte de meu lugar.
Por isto, a verdadeira solidariedade nada tem a ver com empatia. Temos uma tendência, muitas vezes, de psicologizar o campo social porque não queremos ver a força real de conceitos eminentemente políticos. Empatia é um tipo de implicação limitada: tenho empatia por você, o que não significa que terei empatia por outro. Há traços seus que provocam minha empatia, enquanto em outro é a repulsa que fala mais alto. Já a solidariedade não pressupõe empatia alguma pois não é um modo de relação entre sujeitos, mas entre o sujeito e o corpo social. Posso não ter empatia alguma por você, o que não implica que serei incapaz de ter solidariedade por ti. Pois a solidariedade é o regime de comprometimento com o corpo social do qual fazemos parte. É a compreensão de que o corpo social defende todos os que dele fazem parte, sem perguntar-se pelos sentimentos particulares de um para com os outros. Sua força transformadora vem exatamente daí, a saber, da sua capacidade de criar mutualidade entre diferenças.
Seria bom lembrarmos disto a fim de se perguntar sobre as razões pelas quais assistimos, nestes últimos meses, a um verdadeiro cortejo macabro de expressões de desprezo pelos mortos, de exercício de desafecção e indiferença. Como disse anteriormente, isto é uma forma de governo que nada tem de gratuito. Foi assim que este país foi criado. Esse é seu eixo central. Por isto, não se trata de recuperar esse país marcado em seu seio pela brutalidade da violência sem voz. Trata-se de terminar com ele, de uma vez por todas. O país no qual podemos habitar ainda não existe. Seria mais fácil se assumíssemos, de uma vez por todas, que precisaremos criá-lo. E o primeiro passo para criá-lo é se recusar a aceitar mais um genocídio.
Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo
Everardo Maciel: Um imperativo de responsabilidade
Corrupção e a violência se inscrevem num contexto marcado por difamações recíprocas e intolerância
Tomo emprestado conceito desenvolvido pelo filósofo Hans Jonas (1903-1933) para, em meio às enormes incertezas que pairam sobre a humanidade em vista da pandemia, seguir explorando caminhos para enfrentar problemas que se acumulam. Infelizmente, esse imperativo de responsabilidade, no Brasil, é embaraçado por um ambiente estigmatizado por múltiplas torpezas.
É certo que esse ambiente não é de origem recente. Ao contrário, há muito a corrupção e a violência criaram raízes profundas em nossa sociedade, projetando-se sobre o Estado. Erradicá-las de nosso convívio é missão que requer muita energia política, o que não se vislumbra em horizonte próximo.
Mais grave é que a corrupção e a violência se inscrevem num contexto marcado por difamações recíprocas, tagarelice perniciosa, linguagem chula, intolerância abjeta até mesmo contra a intolerância, sobrevalorização de questiúnculas, “militância” política de financiamento escuso,
vilanias veiculadas nas redes sociais. Perdemos a amabilidade, reconhecido traço cultural brasileiro. Exilamos a moderação, a discrição e o autocontrole, que os gregos identificavam na figura mítica de Sofrósina (Sobriedade, para os latinos). Essas dificuldades não podem, entretanto, converter-se em óbice intransponível, mas desafio a ser enfrentado, que deve animar os que assumem a responsabilidade de refletir e propor.
É alentador ver prosperarem proposições que, sem pretensões megalomaníacas ou salvacionistas, ferem, de forma pragmática e consistente, temas de interesse público. No campo tributário, regozijo-me com a apresentação do Projeto de Lei n.º 3.566 de 2020, na Câmara dos Deputados, que dá concretude à proposta de moratória tributária, que suscitei em artigo (Moratória), veiculado no Jota em 24/3/2020.
A proposta é focalizada nos optantes do Simples, inclusive os microempreendedores individuais, e abrange todos os tributos devidos entre 1.º de abril e 30 de setembro deste ano, nos termos do art. 152, inciso I, b, do Código Tributário Nacional (CTN).
O montante devido poderá ser parcelado e, subsequentemente, liquidado mediante pagamento correspondente a 0,3% do faturamento mensal, o que propicia um permanente ajustamento ao fluxo de caixa do contribuinte. Aos microempreendedores individuais, será facultado liquidar o débito em 60 parcelas mensais e iguais.
Essa iniciativa parlamentar revela discernimento em relação à crise vivida pelas micro e pequenas empresas e interpreta corretamente o tratamento tributário que para elas prescreve a Constituição. Contrapõe-se, também, àqueles que, desarrazoadamente, condenam o Simples, no pressuposto de que se trata de renúncia fiscal, sem considerar que o regime decorre de mandamento constitucional e que, se fosse extinto, nenhuma receita existiria, porque esses contribuintes se encaminhariam para a informalidade, gerando por consequência um genocídio tributário.
São alentadoras, também, as reflexões consistentes dos juristas Hamilton Dias de Souza e Gustavo Brigagão que, se convertidas em projetos, darão adequado disciplinamento tributário, respectivamente, aos trusts no exterior e à exportação de serviços.
Além disso, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.446, o voto da ministra relatora Cármen Lúcia admitiu a constitucionalidade do parágrafo único do art. 116 do CTN. Pondera, contudo, que a norma, para lograr eficácia plena, demanda fixação, em lei, de procedimentos que até hoje inexistem.
A prevalecer o entendimento da relatora, já acompanhado por quatro outros ministros, serão grandes as repercussões, inclusive em relação a julgamentos já realizados na esfera administrativa. Daí se impõe, como se buscou sem êxito na Medida Provisória n.º 66 de 2002, instituir por lei os referidos procedimentos, adotando, em relação às situações pretéritas, a transação prevista no art. 171 do CTN. Tal medida, ao resolver e prevenir litígios, seria, afinal, proveitosa tanto para o Fisco quanto para o contribuinte.
*Consultor Tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)
Zeina Latif: Vamos falar de trabalho?
Será necessário redirecionar recursos para abertura de novas empresas
O s números do mercado de trabalho preocupam. Houve uma redução de 7 milhões de pessoas ocupadas no trimestre encerrado em maio em relação ao mesmo período do ano passado. Os informais são, de longe, os mais afetados (menos 5,7 milhões).
As medidas do governo para conter a queda do emprego com carteira, no entanto, ajudaram a evitar um quadro bem pior. O programa de redução temporária de salários e de suspensão de contratos beneficiou 11,7 milhões de trabalhadores até o dia 26 de junho.
Os dados do emprego com carteira do Caged reforçam essa avaliação, pois o 1,4 milhão de vagas líquidas fechadas na mesma comparação decorreu muito mais da baixa geração de vagas do que de demissões.
Comparações mundiais são particularmente complexas, até porque as diferentes legislações trabalhistas têm impacto na flexibilidade para contratar e demitir. Mesmo assim, vale citar que, de uma lista de 32 países com informações disponíveis em maio último, o Brasil está no grupo de países mais preservados em termos de aumento da taxa de desemprego (12,9% ante 12,3%), em que pese o fato de partir de uma base elevada, das piores no mundo, sofrendo as consequências da recessão passada e do baixo crescimento.
Esse resultado, no entanto, camufla uma dura realidade, que é o desalento daqueles que não buscam trabalho, pois sabem que não terão sucesso, inclusive por conta do isolamento social. Não fosse isso, a taxa de desemprego estaria em 20,3%. Isso significa que em um possível cenário de lenta geração de vagas e elevação paulatina da procura por trabalho, a taxa de desemprego poderá subir muito nos próximos meses. Ações são necessárias.
A situação de outros países da América Latina – que também sofrem muito com a informalidade elevada – é bem pior: tiveram alta expressiva da taxa de desemprego, apesar da redução da procura por trabalho até mais forte do que a ocorrida no Brasil. O desemprego na Colômbia está em 21,4% ante 10,5%; Peru, com 13,1% ante 6,7%; e Chile com 11,2% ante 7,2%. Em todos esses casos, a queda de ocupados foi bem mais expressiva do que no Brasil.
Quanto aos informais, mais penalizados, medidas de socorro não têm faltado. O auxílio emergencial de R$ 600 beneficia em torno de 65 milhões de pessoas, cifra sensivelmente acima da soma de informais (40 milhões) e microempreendedores individuais (10 milhões) – nem todos elegíveis.
O governo prorrogou por mais dois meses o benefício por conta do isolamento social. Contabilizando os cinco meses totais, o custo do programa deverá ultrapassar R$ 250 bilhões, valor muito além da renda gerada pela metade mais pobre da população, que não ultrapassa R$ 150 bilhões.
A transferência de renda é uma medida relativamente simples de ser implementada e tem grande apelo político, mas não convém perder de vista a necessidade de preparar a mão de obra para o retorno ao mercado de trabalho e estimular a geração de vagas em um quadro de fechamento de negócios. São pautas tecnicamente mais difíceis e menos sedutoras politicamente, mas que precisam ser enfrentadas.
Rever e focalizar os vários programas sociais de transferência de renda entrou no radar do governo. A reavaliação de políticas públicas tornou-se ainda mais urgente.
Não há dúvidas que, mesmo no curto prazo, passado o isolamento social, é necessário ir além da transferência de renda. Não só pelo elevado custo do auxílio emergencial, mas pelo impacto na oferta de trabalho dos indivíduos.
Ricardo Paes de Barros recomenda a “inclusão produtiva”. A renda dos indivíduos decorreria da prestação de serviços, notadamente aqueles essenciais em tempos de pandemia, como os associados a saúde, medidas sanitárias e assistência social. Avalio que também será necessário redirecionar recursos para a abertura de novas empresas e modernização das atuais por meio da redução de renúncias tributárias ineficientes e injustas.
Além disso, deveria se reduzir obrigações que oneram a contratação de trabalhadores, como a contribuição do Sistema S. Precisamos estimular o trabalho. Isso sim.
*Consultora e doutora em economia pela USP