Sérgio Augusto: Dedo podre
Só deixei de torcer pelo ministro Porcina (aquele que foi sem nunca ter sido) ao ver entrevista
Circunscrito a um reduzido círculo de conhecimentos (infestado de ineptos, inaptos e bandidos) e à mercê das preferências de dois grupos de pressão superficialmente conflitantes – os militares e os olavistas – Bolsonaro continua fazendo as escolhas mais calamitosas inimagináveis. Além do dedo podre, repito, não tem quadros.
A cada ministro ou secretário demitido, ninguém mais se pergunta “quem será o sucessor?”, mas “que outro estupor ele irá convidar?”. Um estrupício caitituado pela militância ou sugerido pela milicância, favorecido pela ala ideológica ou pela ala verde-oliva? Essa distinção em alas, aliás, é uma lereia. Por que só alas e não facções e grupelhos? Ala, só a das baianas; mais respeito com elas e o carnaval.
Deveria ter soado alvissareira a escolha do professor Carlos Alberto Decotelli. Não fora indicado pelos apparatchiks da ultradireita da Virginia, parecia homem sério, preparado e equilibrado, um antípoda do Weintraub. A negritude, até então apenas representada no governo por Hélio Negão, um Lothar sem Mandrake, noves fora o défroqué noir Sérgio Camargo, também contava a seu favor. Afinal seria o primeiro afrodescendente alçado a ministro da Educação desde a criação do ministério na República Nova. Acabou sendo, coitado, o único ministro da Educação demitido antes de tomar posse.
Mesmo convicto de que qualquer pessoa se desmoraliza ao aceitar integrar o atual governo, torci para Decotelli conseguir provar os doutorados e distinções que dizia ter.
É que sua figura me trouxe à lembrança um professor de Latim do Colégio Pedro II, José Pompílio da Hora, sujeito preparadíssimo, também mestre em grego, filosofia e história, formado em direito pela Universidade de Nápoles, daí o leve sotaque italianado que nunca perdeu e lhe conferia um ar meio solene, quase pedante.
Pompílio da Hora era negro e por duas vezes no início da década de 1950 teve sua entrada no Itamaraty frustrada pelo que então chamavam de “preconceito de cor”. Não guardou rancor, nem se entregou à autocomiseração. Esse episódio de racismo marcou minha adolescência, de maneira indelével, como se pode notar.
Prof. Pompílio protegia descaradamente as meninas da turma, descascava os rapazes, e me fez decorar e traduzir, de castigo, os primeiros versos da Eneida (“Arma virumque cano…”, canto as armas e o varão), enquanto lubrificava a garganta com pastilhas Valda, seu único vício público. Pensei nele, no racismo do Itamaraty e só fui deixar de torcer pelo ministro Porcina (aquele que foi sem nunca ter sido) ao assistir àquela fatídica entrevista que ele deu à Globo News no início da semana.
Achei-o antipático, presunçoso, pernóstico e enrolador. Cheguei a desconfiar que a mídia o estivesse tratando com mais rigor que o dispensado aos cascateiros brancos do governo (Ricardo “Yale” Salles, Damares, o próprio Weintraub), com seus turbinados currículos acadêmicos, mas, em vez de ficar ruminando sobre um eventual viés racista da imprensa (e da Fundação Getúlio Vargas) em relação a Decotelli, preferi assuntar a presença dos negros na carreira diplomática e o comportamento deplorável de antigos ministros da Educação.
Nosso primeiro embaixador negro, Raimundo Sousa Dantas, foi uma ousada invenção de Jânio Quadros. Sua nomeação para representar o Brasil em Gana (África), em 1961, gerou resistência entre diplomatas e intelectuais brasileiros. Se hoje ainda só temos 5% de negros na carrière, assim mesmo graças a uma política de cotas e bolsas de estudos relativamente recente, imagine 60 anos atrás. Hoje Pompílio da Hora seria até embaixador, como Jackson Luiz Lima Oliveira, que já nos representou em Zâmbia e na Nigéria, e conhece a fundo a influência do racismo estrutural no Itamaraty.
Como teria sido Decotelli à frente da Educação é curiosidade que jamais será satisfeita. Pior do que seus dois antecessores (Ricardo Vélez Rodriguez e Abraham Weintraub) não seria, mas não consigo imaginá-lo ao nível do que Ney Braga e Eduardo Portella, sobretudo o segundo, conseguiram ser no governo Geisel.
É possível entender as razões do estado deplorável do ensino, e não só do ensino, no Brasil pela trajetória dos que assumiram o ministério da Educação desde sua criação em 1930. Seu primeiro ocupante, Francisco Campos, foi quem redigiu, em 1937, a Constituição do Estado Novo e, em 1964, os dois primeiros atos institucionais da ditadura militar.
Em 20 anos de ditadura, tivemos 10 ministros da Educação e dois interinos, nenhum naturalizado (como o colombiano Vélez), nem palhaço (como Weintraub), uns mais, outros menos afinados com os “ideais revolucionários” do regime. Os quatro primeiros (Luiz Antônio da Gama e Silva, Flávio Suplicy de Lacerda, Moniz de Aragão e Tarso Dutra) foram de lascar.
Gama e Silva ganhou o cargo pela limpeza ideológica que fizera, quando reitor da USP, banindo de seu corpo docente os professores Florestan Fernandes, Mario Schenberg, Octavio Ianni, Paul Singer, Fernando Henrique Cardoso e outros “esquerdistas”. Quatro anos depois poria sua sapiência jurídica a serviço da redação do AI-5.
Suplicy de Lacerda notabilizou-se por um acordo de cooperação do MEC com a Agência de Desenvolvimento dos EUA (Usaid), que visava transformar o ensino brasileiro num projeto tecnocrático e foi levado adiante por Tarso Dutra, que pegou pela proa as revoltas estudantis de 1967-69, motor e flecha da Passeata dos 100 Mil e outras decisivas manifestações de repúdio à ditadura. Por ser jurista, como Gama e Silva, encarregaram-no de revisar o texto do AI-5.
Não podia dar muito certo um ministério historicamente mais preocupado com a repressão do que com a educação.
Julianna Sofia: Ibaneis se aproxima de Bolsonaro no genocídio
Governador do DF determinou reabertura total
Na largada da pandemia, Ibaneis Rocha (Distrito Federal) ousou ser o primeiro governador do país a fechar escolas e impor medidas restritivas de circulação de pessoas para conter o vírus. O DF registrava apenas um caso da doença, e a prontidão da medida suscitou críticas sobre sua precocidade.
Contrastava com o negacionismo do Palácio do Planalto. Por vezes, Ibaneis censurou Jair Bolsonaro pela participação em manifestações na Esplanada. "Atrapalha. Traz uma informação de cenário político dividido e, para a população, sinaliza de forma errada."
Tanta cautela e ainda assim o DF era considerado em fase de aceleração descontrolada do vírus. Com o surto aparentemente contido após semanas e com a baixa ocupação de leitos para Covid-19 (25%), o Palácio do Buriti voltou a ousar. Foi uma das primeiras unidades da federação a flexibilizar as regras de isolamento. Simultaneamente lançou um amplo programa de testagem.
Mas os frutos da impertinência brotaram. O relaxamento fez o quadro se deteriorar e, mesmo com o aumento da oferta de leitos, a ocupação de unidades exclusivas se aproxima do limite. Na rede privada, o índice supera 90%, e na pública, 64%; as UTIs registram 75%.
Com alta taxa de transmissão, a capital federal se torna um dos eixos do novo epicentro da pandemia —Sul e Centro-Oeste. Relatos médicos viralizam, alertando para iminente colapso do sistema, ao passo que surgem investigações sobre fraudes nas compras públicas de testes.
Um tresloucado Ibaneis declarou, na segunda (29), estado de calamidade (por mais verbas federais?). Na quinta (2), porém, editou decreto para reabertura total, inclusive das escolas, em um abreviado cronograma até agosto. Em espasmos doidivanas, agora declara que restrições à circulação "não servem mais para nada" e que é preciso tratar a doença "como uma gripe".
Emula Bolsonaro, de quem se aproxima cada vez mais politicamente, para empilhar mortos.
Hélio Schwartsman: Desigualdade na morte durante a pandemia
É preciso monitorar de perto os pacientes para reduzir a mortalidade na rede pública
A Covid-19 funciona em muitas situações como uma enzima, acelerando processos que já estão em curso. Isso é particularmente notável na economia (aumento da desigualdade), mas também na política (governos autoritários acumularam superpoderes) e até no comportamento (expansão do home office).
A saúde não é exceção. Um bom exemplo disso está no levantamento feito pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira, que revela que a mortalidade de pacientes de Covid-19 em UTIs públicas é quase o dobro da das privadas (38,4% contra 19,5%). Os dados foram obtidos de 16.399 pacientes de Covid-19 que passaram por UTIs de março a maio.
A principal explicação para a diferença é que os pacientes da rede pública já chegaram às UTIs em pior estado. Numa das escalas que mede a gravidade, a Sofa, usuários do sistema público apresentaram um índice que é quase o dobro do dos serviços privados. E isso apesar de a taxa de comorbidades dos dois grupos ser a mesma e de a concentração de idosos ser maior nos hospitais privados.
Uma possibilidade é que a superlotação tenha retardado a ida dos pacientes da rede pública para a UTI. Isso pode ter acontecido em alguns casos, mas não parece ser o panorama geral, já que a média de ocupação das UTIs não excedeu muito os 75% em nenhum dos dois sistemas.
Também é interessante notar que a diferença na mortalidade foi bem menor entre os pacientes ventilados (70,5% contra 63,6%) do que entre os que precisaram de UTI, mas não de suporte respiratório mecânico.
Disso tudo, parece lícito concluir que a melhor maneira para reduzir a mortalidade na rede pública é monitorar de perto os pacientes, internados ou não, para levá-los à UTI ao primeiro sinal de agravamento e postergar ao máximo a intubação, investindo em pronação e fisioterapia. O maior quadro de equipes multiprofissionais é um dos traços que distingue a rede privada da pública.
Ricardo Noblat: A guerra particular de Bolsonaro contra o uso de máscaras
Na contramão do resto do mundo
Devido à pandemia, era para que as pessoas obrigatoriamente usassem máscaras em estabelecimentos comerciais e industriais, templos religiosos, unidades de ensino e demais locais fechados onde pudessem se aglomerar, segundo lei aprovada pelo Congresso em 9 de junho último.
Não é mais. O presidente Jair Bolsonaro, ao sancionar, ontem, a lei, vetou a obrigatoriedade do uso de máscaras em templos religiosos, nas escolas e no comércio.
A lei previa o pagamento de multa em caso de descumprimento das normas por ela estipuladas. Bolsonaro vetou o pagamento de multa.
Os estabelecimentos comerciais que não oferecessem álcool em gel em locais próximos a suas entradas, elevadores e escadas rolantes poderiam ser multados. Bolsonaro vetou o artigo.
Como vetou outro – o que obrigava estabelecimentos que funcionassem durante a pandemia a fornecer gratuitamente a seus trabalhadores as máscaras de proteção individual.
E não satisfeito, vetou mais outro artigo – o que obrigava órgãos públicos a fornecerem máscaras a funcionários e colaboradores.
Havia na lei um trecho que determinava a remoção, nos estabelecimentos comerciais e nos órgãos públicos, de pessoas sem máscara, sendo que, nesses casos, o equipamento de proteção deveria ser oferecido antes da ordem de saída do local.
Bolsonaro vetou o trecho, mas não ficou só por aí.
O poder público deveria fornecer máscaras às populações mais vulneráveis, dizia a lei. Foi dispensado por Bolsonaro de fornecer. Como foi dispensado também de veicular campanhas publicitárias para incentivar o uso de máscaras durante a pandemia.
Bolsonaro sabe que o Supremo Tribunal Federal reconheceu que cabe aos Estados estabelecer regras sobre o uso de máscaras em seus territórios. E daí? Pouco liga.
No que depender dele, as pessoas ficarão desprotegidas e ao alcance mais fácil da gripezinha. Bolsonaro continua convencido de que o coronavírus só será detido depois que contaminar 70% da população. De onde ele tirou isso? Ninguém sabe.
Em breve, deputados e senadores decidirão se aceitam ou se derrubam os vetos de Bolsonaro. O mau exemplo dado por ele está sendo copiado por grande parcela dos brasileiros na contramão do resto do mundo.
Pedro Doria: O boicote vai fazer sucesso?
Será que agora o gigante – Facebook – enfim se move para enfrentar de vez a questão do discurso de ódio e da desinformação?
Para atacar o problema, o Facebook só tem um jeito: mexer em seu algoritmo.
Em meio à campanha de boicote à publicidade no mundo digital em curso, há uma confusão que precisa ser esclarecida. A campanha promovida por ONGs contra racismo como a Liga Anti-Difamação (contra antissemitismo) e NAACP (que enfrenta preconceito contra negros) não tem por foco todas as redes sociais. O que propõe é que grandes negócios não anunciem no Facebook e no Instagram, que pertence à holding. Mais de 500 companhias já se juntaram, incluindo-se na lista a Unilever, segunda maior anunciante do mundo.
Será que agora o gigante enfim se move para enfrentar de vez a questão do discurso de ódio e da desinformação?
Não está claro. Segundo informações obtidas pelo site The Information, que costuma acompanhar com lupa os bastidores do Vale do Silício, o CEO Mark Zuckerberg está desafiante. “Nós não vamos mudar nossas políticas por conta da ameaça a uma pequena parcela de nosso faturamento”, ele afirmou a um grupo de funcionários. De fato, são companhias gigantes com verbas publicitárias enormes, mas o negócio dos anúncios na maior de todas as redes sociais é muito fragmentado. Segundo uma estimativa, os 100 maiores anunciantes representam 6% do faturamento. Ou seja: é dinheiro, mas o Facebook pode perfeitamente viver sem isto.
Só que este jogo não se conta em dinheiro. Se conta em reputação. As companhias economizam com o dinheiro que gastariam e, mais de um analista já observou, a decisão de deixar a plataforma faz bem a sua imagem. É deste jeito que Zuckerberg está avaliando o tabuleiro: como um jogo no qual estas empresas estão ganhando reputação às custas de sua rede. “Minha aposta”, ele disse, “é de que estes anunciantes retornam à plataforma logo.”
Pode ser que retornem. O Facebook fez alguns gestos, como o de anunciar que informará que é discurso de ódio, quando for o caso, postagens de gente graúda, como o presidente americano Donald Trump. Para as ONGs, é muito pouco, quase nada. Como desde então mais e mais empresas se juntaram ao boicote, parece que pequenos gestos não serão o suficiente.
Só que não é simples o que as companhias estão pedindo de Zuck. E o problema é ele, sempre ele, o algoritmo. Um software movido a inteligência artificial que tem uma única missão: fazer com que os usuários fiquem a maior quantidade de tempo possível dentro da rede. E o que o software descobre todos sentimos na pele. Basta nos deixar indignados. Quanto mais indignados, mais retornamos. E retornamos. Para comentar, protestar, ler avidamente tudo o que há.
É neste cenário que políticos agressivos crescem e políticos amistosos desaparecem. É também um cenário propício à manipulação de opiniões, pois um número pequeno de pessoas publicando em ritmo de bombardeio ideias pesadas ganham muito mais distribução do que outras. Criam a ilusão de consenso e passam, quais pescadores, um arrastão levando os incautos. A sociedade se torna mais agressiva em todos os lados. Mais extremista.
É neste ambiente que racismo, homofobia, agressões de toda sorte que eram consideradas coisas a se esconder há poucos anos ganham a luz do dia impunes, ditas por uma gente que ainda sorri sarcástica e fala: ‘só não sou politicamente incorreto’. O termo é outro. É desumano. Incapaz de compaixão, de empatia.
Só que para atacar o problema só tem um jeito, mexer no algoritmo. Fazer com que os posts distribuídos apelem não para o que há de pior em nós mas para qualquer outro critério. E isto terá resultados. Estaremos menos viciados em redes sociais. O Facebook fará menos dinheiro.
Só que se o boicote se estende, aquelas companhias ganham boa reputação. E o Facebook perde. Neste caso, merecidamente.
Demétrio Magnoli: A cor como ideologia
O racismo degrada a todos, fazendo ver raças onde existem indivíduos
Nos Estados Unidos, correntes minoritárias do Black Lives Matter deploram a vasta adesão de brancos aos protestos antirracistas, alegando que eles estariam se divertindo com uma nova moda. No Brasil, setores do movimento negro acusam o ex-quase-ministro Carlos Decotelli de ser algo como um "negro falso", por não seguir a cartilha política e cultural que eles defendem. Lá, cor define ideologia; aqui, ideologia define cor.
A acusação parte de várias vozes, mas é melhor ilustrada por um artigo de Dodô Azevedo (Folha, 1° de julho). Decotelli seria um "negro conveniente", um "desertor". Mas como identificar esse personagem abominável?
Primeiro, por desvios de caráter derivados do desejo de assimilação. "Esses negros começam a agir como se desfrutassem dos mesmos privilégios que os brancos" e, por isso, "roubam, matam, mentem". Ficamos sabendo, assim, que os indivíduos desapareceram, convertendo-se em meras representações raciais. Se Decotelli fosse um "negro inconveniente", seria necessariamente reto, justo e puro. Tudo, inclusive o caráter pessoal, depende da ideologia.
Segundo, pela fé religiosa. Decotteli, "cristão batista, é um negacionista do sistema de crenças de suas avós e bisavós e tetravós". A liberdade de escolher uma fé está aberta a todos, menos aos negros. Isso porque "mentira e injustiça não seriam toleradas" nas religiões de matriz africana. François Duvalier, sanguinário ditador do Haiti, fez do vodu o pilar de seu poder, em nome da "autenticidade" africana. Martin Luther King era pastor batista —e, portanto, segundo Dodô, um monstro potencial.
Terceiro, pela carreira. Decotelli teria escolhido a carreira militar "para tentar não ser negro". Se, como Dodô, tivesse optado pelo jornalismo, o cinema, a história e a filosofia, talvez se aproximasse do pódio de "negro legítimo". Nessa linha, como fica o marinheiro João Cândido, líder da Revolta da Chibata? E o jornalista, filho de escritor e irmão de músico Sérgio Camargo, presidente ultrabolsonarista da Fundação Palmares?
"Se fosse de esquerda…": Elizabeth Guedes, presidente da associação das universidades particulares e irmã do ministro da Economia, reclama do movimento negro a defesa de Decotelli. Dodô replica: um "negro inconveniente" jamais inflaria seu currículo, pois saberia que, se ousasse "mentir como um ancestral de imigrantes", não teria o privilégio do perdão social concedido a ele. A implicação lógica do argumento é que o racismo opera como ferramenta positiva, moldando negros virtuosos. A política identitária precisa da discriminação racial que alega combater.
"Um negro que migra para um país assimilacionista esquece a que matriz pertence", escreve Dodô. O atacante Eusébio, nascido na Moçambique colonial, artilheiro de Portugal na Copa de 1966, identificava-se como português. O escritor moçambicano Mia Couto não o reprovou. "Se existem brancos que são africanos, se existem negros que são americanos, por que os pretos africanos não podem ser europeus?"
E segue: negros de origem africana, como Eusébio, terão filhos e netos nascidos na Europa e "não podem cair na armadilha de reivindicar um gueto, uma cidadania de segunda classe". Mas o "gueto", a "matriz", é exatamente o que exige Dodô, sob pena de excomunhão eterna.
"Nós dois lemos a Bíblia dia e noite, mas tu lês negro onde eu leio branco." (William Blake). A obsessão essencialista pela tradição é o traço crucial que aproxima Dodô de Damares Alves. A ministra, pastora evangélica, também teme o "assimilacionismo", o esquecimento das "raízes", das "crenças ancestrais". Os dois, donos da régua do Bem e do Mal, falam em nome de cruzadas purificadoras simétricas.
Ainda bem que brancos engajaram-se nos protestos antirracistas nos EUA. O racismo degrada-nos a todos, fazendo-nos ver raças onde existem indivíduos.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Webinar do Igualdade 23 e FAP analisa desafios da cultura afro-brasileira
A Fundação Astrojildo Pereira transmite o webinar por meio de seu perfil no Facebook, o facefap e também por meio meio de seu site e canal no Youtube
*Texto atualizado às 12h de 02/07/2020 em função da mudança do horário, que passou das 19h30 até as 21h para 20h até as 21h30.
Contexto e desafios da cultura afro-brasileira será o tema de webinar que o Coletivo Igualdade 23, do Cidadania, em parceria com a Fundação Astrojildo Pereira (FAP), vai promover virtualmente nesta sexta-feira (3), das 20h às 21h30.
Para debater o tema, foram convidados ex-presidentes da Fundação Cultural Palmares e o diretor executivo da FAP, Miguel Ribeiro.
Em seu site, na sua página no Facebook e em seu canal no Youtube, a FAP fará a transmissão do webinar.
Assista ao vídeo!
A cultura afro-brasileira como expressão de um segmento populacional que reúne mais de 50% da população do país, de acordo com indicadores de institutos de pesquisa como IBGE e IPEA, naturalmente é vasta e complexa.
Há também o conteúdo referente ao combate ao racismo e promoção da igualdade racial que, embora sejam do campo das políticas públicas, também dialogam em alguma medida com as expressões artísticas pertinentes à população afrodescendente no Brasil.
O seminário acontece num momento bastante simbólico. A partir da morte do cidadão norte-americano Goerge Perri Floyd Jr, ocorrida em 25 de maio, deste ano, em Minneapolis nos Estados Unidos da América, ondas de protesto de cunho racial passaram a ocorrer naquele país e em outras nações.
Esse fenômeno de manifestações contra o racismo tem recebido o conceito de “Primavera Negra”, em alusão à Primavera Árabe, um onda revolucionária em prol da liberdade e da cidadania que repercutiu na Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Omã, Marrocos, Kwait, Líbano, Mauritânia, Arábia Saudita, Suddã e Iémen – todos países do Oriente Médio.
A “Primavera Negra” iniciou-se nos EUA e avançou para nações da Europa. O Brasil também tem tido manifestações dessa natureza.
No caso brasileiro, os protestos questionam a violência policial, a desigualdade racial e em alguma medida também fazem referência a atual gestão da Fundação Cultural Palmares, sob o comando do presidente Sérgio Camargo, considerado polêmico. O gestor tem se declarado contra a pauta do Movimento Social Negro e se proposto a fazer uma revisão histórica com propostas de combater a imagem de Zumbi dos Palmares, considerado ícone na luta contra a opressão durante o Século 17 em Alagoas, na Serra da Barriga.
Livro de Machado de Assis é discutido em webinar da Biblioteca Salomão Malina
Histórias sem data, originalmente publicado em 1884, é título que tem justificativa do próprio autor
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
Mantida pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira) em Brasília, a Biblioteca Salomão Malina realiza, nesta segunda-feira (6), das 18h30 às 20h, webinar mensal do Clube de Leitura Eneida de Moraes para discutir o livro Histórias sem Data, de Machado de Assis. Público em geral poderá participar do evento online, que terá transmissão ao vivo na página da biblioteca no Facebook. O site da FAP e a página da entidade no Facebook fazem a retransmissão em tempo real.
Assista ao vídeo!
O webinar será mediado pelo escritor Paulo Souza e pela coordenadora da biblioteca, Thalyta Jubé, que, por meio do whatsapp (61) 98401-5561, vai compartilhar o link do aplicativo de videoconferência a todos que quiserem participar diretamente do webinar, para aparecer no vídeo e interagir com os demais participantes, virtualmente. Perguntas e comentários também poderão ser enviados na página da unidade de leitura no Facebook.
Histórias sem data é reunião de 18 contos de Machado de Assis publicados em periódicos cariocas. A escolha do título do livro é explicada pelo próprio escritor no prefácio de advertência da 1ª edição da obra.
“De todos os contos que aqui se acham há dois que efetivamente não levam datas expressas; os outros a têm, de maneira que este título Histórias sem Data parecerá a alguns ininteligível, ou vago”, escreveu, para continuar: “Supondo, porém, que o meu fim é definir estas páginas como tratando, em substância, de cousas que não são especialmente do dia, ou de um certo dia, penso que o título está explicado. E é o pior que lhe pode acontecer, pois o melhor dos títulos é ainda aquele que não precisa de explicação.”
À primeira vista, como em um prefácio normal, Machado de Assis anuncia sua independência de seu tempo. Com efeito, mais de um século decorrido, verifica-se que o tempo atua a seu favor. Fato indiscutível é que o autor não quer seus leitores presos a qualquer data, nem sequer à descrição que faz de seus próprios personagens.
Histórias sem Data foi publicado, originalmente, em 1884, três anos depois de Memórias póstumas de Brás Cubas e quando o autor provavelmente já idealizava o romance Quincas Borba. Este quarto livro de contos tem todos os ingredientes que fazem de Machado de Assis um contista referência para os demais escritores.
A Biblioteca Salomão Malina tem três exemplares do livro disponíveis para empréstimo. Durante o período da pandemia, é oferecido ao público em geral, sem qualquer custo, o serviço de empréstimo delivery. A solicitação deve ser realizada por meio do whatsapp da biblioteca.
Leia também:
Biblioteca Salomão Malina oferece empréstimo de livro em casa, de forma gratuita
Folha de S. Paulo: Sem medo nem filtro, João Saldanha foi controverso e craque no que fez
André Iki Siqueira, Colaboração para a Folha de S. Paulo
Ele era o João sem medo. Polêmico e irreverente, só chamava Pelé, carinhosamente, de crioulo, e era contra o futebol feminino. Em tempos do politicamente correto, certamente saberia driblar o patrulhamento e seria deliciosamente imbatível usando as ferramentas digitais.
João Alves Saldanha ou João Alves Jobim Saldanha nasceu no Rio Grande do Sul - em Porto Alegre ou no Alegrete, as controvérsias começam desde o nascimento. Em 73 anos de vida intensa, rodou por boa parte do planeta, ora como celebridade esportiva, ora com militante clandestino, quando utilizou codinomes para escapar da perseguição da polícia política.
Admirado e amado por jogadores e amigos e odiado e respeitado pelos adversários, João Saldanha era um personagem controverso. Craque multimídia e jornalista mais popular de sua época, foi comunista histórico. Fichado no DOPS desde 1947, participou da guerrilha de Porecatu (Paraná), virou treinador da seleção brasileira durante a ditadura, montou o time das "feras" da Copa do Mundo de 1970, não aceitou imposições dos militares e nunca abriu mão de seus ideais.
O João Saldanha apaixonado por futebol foi apenas uma parte da biografia de quem esteve com a vida em jogo em vários momentos. João foi muitos e sempre corajoso. Não era fácil desafiá-lo para um combate físico ou ideológico.
Filho de líder maragato, conviveu com a revolução ainda criança. Defendeu a liberdade e a democracia até os últimos dias e se revoltava contra as injustiças com argumentos ou com tiros. Era de paz, mas afirmava: "Eu tive que me defender algumas vezes".
Extremamente solidário e leal até com inimigos, Saldanha não levava desaforo para casa e pontuava: "Eu não brigo para ganhar. Eu brigo porque tenho razão".
Como era bom ler, ouvir e ver o João comentando uma partida de futebol de maneira simples, objetiva, fazendo com que pessoas de todas as classes sociais pudessem entender o que rolava durante um jogo. Saldanha construiu uma carreira de grande audiência no rádio e na televisão e de milhares de leitores diariamente nos jornais. Popularidade comprovada por quem andava pelo anel do Maracanã e ouvia sua voz de rádio em rádio.
João fez escola. Escrevia como falava, com a linguagem do povo. Incorporou palavras do cotidiano e revolucionou a crônica esportiva. O locutor Waldir Amaral anunciava: "E agora com vocês, aquele banho de comentários". E lá vinha João: "Meus amigos..."
A cada intervalo de transmissão, ele criava uma sintonia entre a cabine de rádio e a geral do Maracanã. Conversava com geraldinos enquanto esculhambava cartolas como Caixa D'Água, impagável apelido de Eduardo Vianna, então presidente da Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro. Elogiava os craques e detonava os "cabeças-de-bagre".
Como imaginar que um treinador não recebesse salário para dirigir um clube? Assim foi João Saldanha no seu Botafogo -paixão máxima desde a chegada ao Rio de Janeiro nos anos 1930. Campeão do Carioca de 1957, comandando um timaço que tinha Nilton Santos, Garrincha, Didi, Paulo Valentim e Quarentinha, João foi carregado nos ombros de torcedores eufóricos, após a goleada de 6 a 2 contra o Fluminense do ponta Telê Santana.
Imprevisível, surpreendeu a todos quando aceitou ser técnico da seleção em plena ditadura militar. E continuou quebrando regras inimagináveis ao escalar seu time de feras sem consultar a comissão técnica repleta de militares. Surpresa maior aconteceu quando, na fase eliminatória, classificou o Brasil para a Copa do México vencendo todas as partidas.
O êxito do comunista assustou o regime e ameaçava, então, o uso do futebol pela ditadura como cortina de fumaça aos crimes e incremento ao ufanismo do "Brasil, ame-o ou deixe-o".
A cena da Taça Jules Rimet nas mãos de Médici jamais existiria com João na seleção. Vítima de forte campanha para desestabilizar seu sucesso, Saldanha reagiu. Diziam que Médici queria convocar Dadá, atacante do Atlético-MG. João respondeu: "Nem eu escalo ministério e nem presidente escala time!".
Dias depois, João foi derrubado da seleção, mas seguiu vibrando e torcendo pela vitória do time que tinha a sua alma e genialidade.
Homem sério e de tolerância zero para perguntas sem fundamento, Saldanha era hilário até de mau humor. Em debate numa universidade do Rio, a estudante desavisada perguntou sobre a proposta do Partido Comunista Brasileiro para os índios. João devolveu de bate-pronto: "Índio na Cidade do Rio de Janeiro, só se for do Cacique de Ramos! [tradicional bloco carnavalesco]"
O João da Portela e da Banda de Ipanema aprendeu a manha dos cariocas quando conheceu o lendário Neném Prancha, de quem foi jogador no famoso time da praia de Copacabana.
Neném inspirou o gaúcho na criação de frases antológicas e repetidas até hoje: "Se concentração ganhasse jogo, o time da penitenciária seria campeão invicto".
Em 1990, mesmo com a saúde debilitada, João Saldanha driblou os médicos e, escondido, pegou um avião para trabalhar na Copa da Itália. Viveu seus momentos finais fazendo o que gostava. O guerreiro resistiu o quanto pode, escreveu sua última coluna na cama do hospital, criticou a "burrice siderúrgica" do técnico Lazaroni. Partiu no dia 12 de julho de 1990.
Por tudo que protagonizou, João Saldanha merece todas as homenagens e a saudade eternizada nas palavras do seu grande amigo e camarada Oscar Niemeyer: "João, quanta falta você nos faz!"
ANDRÉ IKI SIQUEIRA é jornalista, autor da biografia "João Saldanha uma vida em jogo" e codiretor do documentário "João Saldanha"
Eliane Brum: Mães Yanomami imploram pelos corpos de seus bebês
A indignidade com que os indígenas são tratados na pandemia de covid-19 abriu um novo e pavoroso capítulo de violação dos direitos dos povos originários pelo Estado brasileiro
Três mulheres vivem um horror para o qual será preciso inventar um nome. Elas são Sanöma, um grupo da etnia Yanomami, e sua aldeia, Auaris, fica no que os brancos chamam de Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Elas não compreendem a ideia de fronteira, para elas a terra é uma só —e não tem cercas. Elas não falam português, elas falam a sua língua. Em maio, essas mulheres e seus bebês foram levados para Boa Vista, capital de Roraima, com suspeitas de pneumonia. Nos hospitais, as crianças teriam sido contaminadas por covid-19. E lá morreram. E então seus pequenos corpos desapareceram, possivelmente enterrados no cemitério da cidade. Duas das mães estão com covid-19, amontoadas na Casa de Saúde Indígena (CASAI), abarrotada de doentes. Lá, corroídas pelo vírus, elas imploram pelos seus bebês.
Com a ajuda de várias pessoas, uma delas conseguiu me enviar uma mensagem, gravada, em Sanöma. Ela conta o que vive. E diz: “Sofri para ter essa criança. E estou sofrendo. Meu povo está sofrendo. Preciso levar o corpo do meu filho para a aldeia. Não posso voltar sem o corpo do meu filho”. Eu escuto a mensagem antes da tradução. Não entendo as palavras. Mas compreendo o horror. A linguagem universal daquela que está sendo arrancada do mundo dos humanos.
Ser arrancada de uma aldeia no interior da floresta amazônica porque seu filho tem sintomas de uma doença, a pneumonia, transmitida pelos primeiros brancos que dizimaram parte da população Yanomami, no século passado, é uma violência. Passar deste mundo para o espaço de um hospital, e de um hospital superlotado por conta da covid-19, é outra violência. Ter seu bebê contaminado por uma segunda doença, quando estava ali para ser curado da primeira, que ainda era uma hipótese, é mais uma violência.
E então ela perde o filho. Cada uma delas perde o filho.
As mães Sanöma não entendem o português. Apesar de Roraima ser o Estado mais indígena do Brasil e quase duas centenas de Yanomami já terem sido contaminadas pelo novo coronavírus, não há tradutor para essa população. Ninguém explica nada a elas. As mulheres não entendem o que os brancos falam. E os corpos de seus filhos desaparecem. Uma das lideranças da comunidade, que entende português, explica que os três bebês podem ter sido enterrados no cemitério. Mas não há certeza. Ninguém dá certeza nem a elas nem às lideranças.
O procurador da República em Boa Vista Alisson Marugal enviou um ofício ao Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y) para obter informações sobre o paradeiro dos corpos dos bebês. “A situação é muito complicada, especialmente com relação à população Yanomami. Tivemos quatro óbitos oficiais e, em todos eles, tivemos problemas. O primeiro foi o caso do adolescente de 15 anos. Tivemos problemas de atendimento, tivemos falta e desencontro de informações e estamos também apurando se houve falta de assistência médica”, afirma. “O caso dos bebês Sanöma só começamos a apurar agora. Não sabemos se houve o diagnóstico de covid-19 e, se houve, qual protocolo foi aplicado e qual foi o local de enterro.”
Marugal assumiu o posto em plena pandemia, conta estar trabalhando de segunda a segunda para enfrentar um cenário com grandes desafios. “Não descarto a possibilidade de, futuramente, ingressar com uma ação civil pública pedindo danos morais não só para os pais, mas para toda a etnia yanomami”, afirma.
Enterrar o corpo de um Yanomami é arrancá-lo do mundo dos humanos
A quantidade de violência contida nessa série de atos infligidos às mulheres Sanöma é enorme até mesmo para os padrões do Estado brasileiro, um histórico agente de agressões contra os povos indígenas. Mas a violência avança para muito mais, porque se, para um branco, a dor é a que tantas famílias estão vivendo, nesta pandemia, sem poderem se despedir daqueles que amam, sem poderem sepultá-los devidamente, devido ao protocolo de biossegurança, para uma mulher Yanomami, para um homem Yanomami, enterrar um dos seus é incompreensível —e inaceitável.
Os Yanomami não são enterrados. Nunca, sob nenhuma hipótese se enterra um corpo. Os corpos são cremados e há um longo ritual para que o morto possa morrer para si e para a comunidade. Os Yanomami não são indivíduos, como um branco que vive no Brasil ou na Espanha ou nos Estados Unidos é. Um Yanomami se compreende como parte de uma comunidade e se entrelaça com várias dimensões de mundos visíveis e invisíveis em relações mediadas pelos xamãs. Os rituais de morte devem ser seguidos em todos os detalhes e levam meses e até anos para se concluírem. Várias aldeias vão até a comunidade do morto para participar da cremação, num primeiro momento. As cinzas então são guardadas.
Meses depois haverá a segunda parte, quando os visitantes mais uma vez retornam para as celebrações. O morto então será lembrado em seus feitos, em suas desavenças, em todas as marcas importantes de sua trajetória. Será lembrado para então poder ser esquecido, suas marcas serem apagadas e a comunidade seguir adiante. No último ato, as cinzas dos mortos são diluídas em mingau de banana para que aquele que morreu se dissipe no corpo de todos.
O ritual faz o morto morrer também como memória, para que os vivos possam viver. Se o ritual não for realizado, o morto não poderá ser esquecido nem se deixará esquecer, o que provoca muito mal a seus parentes e a toda a comunidade. O ritual de morte dos Yanomami é de uma extrema complexidade e sabedoria em sua simbologia. O rito é coletivo e é também momento de estabelecer relações sociopolíticas e até amorosas. Ao final, há apenas um morto, o que morreu —e não vivos que seguem mortos por não terem sido capazes de fazer o luto, como acontece tantas vezes no mundo dos brancos, que já não têm tempo nem espaço para fazer a transmutação da falta em ausência de que falava Carlos Drummond de Andrade.
Enterrar o corpo de um morto é um horror absoluto para o povo Yanomami. É arrancá-lo do mundo dos humanos. “Para essas mães, saber que seus filhos estão enterrados no cemitério da cidade é equivalente a uma mulher branca ter que conviver com a ideia de que o corpo de seu filho está jogado e exposto em praça pública”, diz Sílvia Guimarães, professora de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), que faz pesquisa junto ao povo Sanöma há muitos anos. Ela é uma das 40 pesquisadoras e apoiadores da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, formada para enfrentar a invisibilidade dada ao sofrimento dos Yanomami, durante a pandemia, a partir da divulgação de análises qualificadas.
Sem um plano emergencial, 40 % do povo Yanomami pode ser contaminado
A Terra Indígena Yanomami abarca uma área de cerca de 9,6 milhões de hectares na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, nos Estados do Amazonas e de Roraima. Mais de 26.000 indígenas se distribuem em mais de 300 aldeias. O subgrupo Sanöma é composto por 3.164 pessoas, segundo dados de 2018 do Instituto Socioambiental. Alguns grupos vivem em isolamento voluntário, o que significa que preferem não conviver com os brancos. Desde que os Yanomami tiveram os primeiros contatos, a partir de 1910, eles vêm sendo dizimados por doenças, que chamam de xawara, e também a tiros, pelos garimpeiros que invadem suas áreas em busca de ouro.
Davi Kopenawa, o grande intelectual e líder Yanomami, tem denunciado ao mundo que seu povo corre o risco de genocídio. Ele chama os brancos de " povo da mercadoria”. Seu filho, Dario Kopenawa, da Hutukara Associação Yanomami, lidera a campanha “Fora Garimpo! Fora Covid!”. Em plena pandemia, há mais de 20.000 garimpeiros na terra Yanomami, considerada a mais vulnerável ao novo coronavírus na Amazônia. Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais, pelo Instituto Socioambiental e pela Fundação Oswaldo Cruz mostrou que, caso não exista um plano de contingência emergencial para a transmissão entre os Yanomami, 40% da população que vive em aldeias próximas ao garimpo poderão ser contaminados.
Segundo o boletim mais recente da Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, de 21 de junho, há 168 contaminados e cinco mortos. A Casa de Saúde Indígena (Casai), onde ficam os Yanomami levados à cidade, tornou-se um dos principais focos de contaminação. Segundo a rede de pesquisadores, mais de 80 indígenas já foram infectados ali, 48% dos casos de covid-19 entre os Yanomami e Ye’kwana. Há casos de pacientes Yanomami que tiveram alta de outras doenças e aguardavam há mais de dois meses seu retorno à Terra Indígena. Acabaram sendo infectados por covid-19 na Casai.
Desde que o primeiro adolescente Yanomami, de 15 anos, morreu de covid-19, em 9 de abril, o desespero se multiplicou. Vítimas de massacres de todos os tipos perpetrados pelos brancos, parecia impossível que houvesse alguma forma de violência ainda desconhecida. Mas sempre há. E então os Yanomami começaram a ver os corpos desaparecerem, seguidos de explicações vagas de enterros por parte de autoridades que mal conseguem entender. “É um enorme desrespeito com a nossa cultura. Os corpos são enterrados sem que ninguém explique nada, sem que as famílias sejam consultadas, sem que peçam autorizações para as mães. Elas não sabem onde seus filhos estão enterrados, eu, que sou representante, não tenho nenhuma ideia de onde estão enterrados”, diz Dario Kopenawa. “Queremos saber onde estão e quando poderemos desenterrar os corpos para levá-los para a aldeia, onde nasceram e cresceram, onde seus pais, seus tios, seus primos estão morando, onde a alma das crianças pode ser feliz. Entendemos a necessidade dos protocolos [de biossegurança], mas precisamos ter informação e compreender o que vai acontecer. Precisamos saber quando os corpos serão devolvidos. Queremos saber quanto tempo o vírus sobrevive no corpo. Se os infectologistas nos explicam, a gente entende e pode respeitar. E podemos transmitir essa informação para a comunidade.”
O protocolo de biossegurança, segundo a Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, determinaria três anos para a exumação do corpo, mas até agora não há nem mesmo comprovação de que as crianças tinham a doença. “Por que três anos? Por que não mais? Por que não menos? Quem explica às mulheres Yanomami?”, questiona Sílvia Guimarães, em entrevista ao EL PAÍS.
Braulina Baniwa é uma das mulheres indígenas que, apesar de pertencer à outra etnia, se solidarizou com as mães Sanöma: “Essas mulheres estão sofrendo uma violência sem tamanho. É uma parte de cada uma delas que vai ficar fora do território”, diz. “Além de tudo o que estão vivendo, elas não falam português e não há sensibilidade para entendê-las.” Antropóloga, ela faz parte do Laboratório Matula, criado a partir do grupo de pesquisa do CNPq “Sociabilidades, diferenças e desigualdades”.
Em carta pública, o Matula afirmou: “No caso das mulheres Sanöma, sobressai aqui a dor da indígena mulher nesta pandemia, que deixa os corpos de seus filhos sem a possibilidade de negociar os termos das cerimônias de encerramento desta vida, o que viola seus direitos enquanto povo. Essa cena se repete em vários locais do Brasil, mas, qual é o peso desta dor para uma indígena mulher, que não domina o português, encontra-se distante de sua rede de apoio e aguarda para saber se está contaminada? Qual é a possibilidade de ter sua fala ouvida, de ter sua experiência sobre a morte compartilhada e decidida? Concordamos que as formas de contágio são múltiplas e de grandes riscos, mas há ainda algumas perguntas a serem feitas: é possível ser transparente, se abrir para o diálogo, compartilhar conhecimento e decisões? Que critérios éticos iremos viver nesta pandemia? Essa pandemia escancara a desigualdade social e o que era normalizado. A infraestrutura dos serviços públicos se omitiu para essa parcela da população, os riscos das mortes dos filhos e suas mães indígenas se agudizam. E vigora a paralisia para a ação. As mulheres Sanöma são a força dessa mulher indígena, do território, da floresta, da roça, do alimento, dos rios, que manejam para cuidar da vida e merecem respeito, cuidado e admiração por parte do Estado”.
As lideranças Yanomami reivindicam um protocolo indígena para os mortos por covid-19. “Queremos que possa haver uma higienização dos corpos ou, se isso não for possível, que eles sejam cremados. Então poderemos levar as cinzas para as aldeias”, diz Dario Kopenawa. Não há crematório em Boa Vista. E parece também não haver vontade de compreender o drama dos indígenas numa sociedade em que impera o racismo contra os povos originários —896.917 pessoas, o equivalente a 0,47% da população total do Brasil, segundo o Censo do IBGE de 2010. A riqueza cultural que representam é expressada por 256 povos que falam mais de 150 línguas diferentes. Dizimados por vírus e por balas há cinco séculos, eles resistiram até hoje. E então chegou a covid-19. O Governo Bolsonaro, que tem como um dos principais projetos abrir as terras indígenas para exploração privada, nada faz de efetivo para barrar a doença que já atravessa a floresta amazônica produzindo um novo massacre.
Segundo Dario Kopenawa, os Yanomami foram contaminados de covid-19 pelos garimpeiros. Em Boa Vista, os garimpeiros não só circulam e entranham-se no setor público, por vários portas, como também viram monumento em praça pública. Essa realidade cotidiana expressa a tensão entre os povos originários e os brancos que lá chegaram levados por projetos de Estado, no início, depois pelos próprios pés. “Antes da pandemia nós já tínhamos a doença do garimpo, nossos rios estavam sendo contaminados por mercúrio, nosso povo morria de tuberculose e de pneumonia. Agora eles nos trouxeram também a covid-19”, diz ele. Com os garimpeiros, a malária também está se alastrando e fazendo vítimas entre os indígenas por todo o território. “E depois de tudo isso, eles nos enterram”, diz Dario Kopenawa. “Nunca houve um Yanomami enterrado antes. Nunca. Penso que é, sim uma violência. Mas penso que não nos consultarem nem pedirem nossa autorização é também um crime.”
Ao saber qual era o tema da reportagem, o coordenador interino do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami, Antonio Pereira, alegou ao EL PAÍS, por telefone, que não poderia responder às perguntas porque estava em reunião. Comprometeu-se a procurar a reportagem ao final de seus compromissos. Diante da insistência para marcar um horário, passou o telefone a um assessor, que afirmou que ligariam. Até a publicação desta reportagem, não foi possível restabelecer contato com o responsável pelo DSEI Yanomami.
O bebê que nasceu, morreu e desapareceu
Há ainda uma quarta mulher Yanomami, doente de coronavírus, que foi levada para ter o parto no hospital e nunca mais viu o corpo do bebê. O recém-nascido, segundo o procurador Alisson Marugal, teria morrido de complicações não conectadas com a covid-19, mas um servidor do hospital teria colocado no documento, indevidamente, uma suspeita por coronavírus. Segundo informações obtidas pelo EL PAÍS, a família pertence a um outro grupo Yanomami, que vive na região chamada Missão Catrimani, na aldeia Nara Uhi. Nascido prematuro de sete meses, o menino nasceu e morreu em 28 de abril. E também desapareceu.
O relato do pai deste bebê à Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana mostra como o vírus começou a dizimar os Yanomami —e também como o Estado se tornou um perpetuador de violência ao produzir novos sofrimentos. Este Yanomami é conhecido entre os brancos como Remo:
“Foi assim que aconteceu. Primeiro, o xamã André apresentou os sintomas de covid. Ele é mais velho, foi o primeiro a adoecer. Então, Miguel fez xamanismo para curar o pai e também adoeceu. Um dia depois que Miguel começou a se sentir mal, ele foi caminhando até o posto de saúde na Missão Catrimani. A terceira pessoa a adoecer na nossa comunidade foi minha mulher, Zita Rosinete, que estava grávida. Teve tosse, diarreia, febre, dor de cabeça, dor no peito e muita dor na barriga. Os xamãs não fizeram trabalho pra ela, porque ficaram com medo de adoecer, já que essa doença é muito forte.
No dia seguinte, depois que a Zita Rosinete teve febre, caminhamos até o posto da Missão. Eu fiquei muito triste lá. A Rosinete desmaiou três vezes. Estava muito fraca e com muita febre. No dia 27 de abril, fomos removidos de avião da Missão Catrimani para a maternidade em Boa Vista. Quando chegamos no hospital, ela desmaiou de novo e eu fiquei segurando ela... Então, talvez eu tenha Covid dentro de mim. Mas eu fiz o exame pelo nariz e pela boca, deu negativo. [Mais tarde Remo infectou-se na Casa de Saúde Indígena e teve um teste positivo para covid-19].
Minha mulher estava com muita dificuldade de respirar, estava muito fraca e quase morreu! E eu perguntei para o médico: ‘Será que ela vai morrer?’. ‘Não. Ela está um pouco forte por dentro ainda’, disse. Na maternidade, nos colocaram para dormir separados de outras pessoas.
Meu filho morreu. No dia 28 [de abril] mesmo, no dia em que nasceu, ele morreu. Nasceu de manhã e à tarde morreu. Zita Rosinete estava muito fraca, mas estava um pouquinho forte ainda, porque ela não queria morrer. Se tivesse pensado em morrer, ela morreria.
Eu não vi meu filho. A Zita Rosinete fez nascer o bebê, os médicos pegaram e disseram: ‘Levem para o hospital, para a UTI’. Então, ele morreu. Eu fiquei muito triste. Eu estou triste ainda. O médico não disse por que ele morreu. Só me perguntou: ‘Ei, você é papai?’. ‘Sim, eu sou papai’. ‘Desculpa aí, seu filho morreu. Ele estava com muita dificuldade de respirar e por isso morreu’.
Ele morreu acho que às 14h, mas não sei… Só tem no documento. Eu disse para o enfermeiro: ‘Eu quero visitar meu filho!’. Mas ele disse: ‘Espera, só depois. Os médicos estão examinando ainda’. Aí eu esperei, esperei, esperei e depois chegou informação: ‘Seu filho morreu de dia’. O corpo, acho que está lá ainda na UTI, eu não sei onde está. Na Casai [Casa de Saúde Indígena], eles também não disseram onde está o corpo do meu filho. Eles não dão informação sobre onde está o corpo. Eu tenho um papel que fala sobre o meu filho [declaração de nascido vivo] e aqui na Casai a enfermeira perguntou: ‘Onde é que está o seu filho?’. Eu disse: ‘Morreu!’. ‘Onde está o documento falando que ele morreu no hospital maternidade no dia 28?’. ‘Não sei! Os médicos não me deram!’”.
Remo e Rosinete só conseguiram voltar em 19 de junho para a sua aldeia. Sem o corpo do filho. E assim se abriu mais um rasgo de violência no povo Yanomami. O Ministério Público Federal está investigando o caso e também o de outras mortes de adultos cujo corpo é reclamado pelos Yanomami
O antropólogo francês Bruce Albert compara “o enterro secreto e compulsório (‘biosseguro’!)” das vítimas Yanomami da covid-19″ com o “‘desaparecimento” dos corpos das vítimas dos torturadores na ditadura militar (1964-1985). “Roubar os mortos alheios e negar o seu luto sempre foi o estágio supremo da barbárie, no desprezo e na negação do Outro (étnico e/ou político”, afirma em entrevista ao EL PAÍS. Albert escreveu, junto com Davi Kopenawa, um livro que é um marco na história da Antropologia: A queda do céu (em português, publicado pela Companhia das Letras).
Em 1993, o episódio conhecido como “Massacre de Haximu”, em que 16 indígenas foram assassinados por garimpeiros, mostra a importância inegociável que o povo Yanomami dá aos seus rituais funerários. “Mesmo com o terror de estarem sendo caçados pelos garimpeiros, eles não hesitaram em colocar sua vida em risco para recuperar seus mortos, chorá-los e queimá-los devidamente em seu caminho de fuga”, lembra Albert. “Para os Yanomami, mais vale a pena morrer do que deixar seus mortos sem sepultura.”
Nas guerras antigas, os Yanomami sempre davam uma trégua para que as mulheres dos seus inimigos pudessem recuperar seus mortos na floresta e chorá-los devidamente. Fazer “desaparecer” os inimigos mortos, segundo o antropólogo, era considerado “uma desonra e uma manifestação de hostilidade literalmente inumana: digna dos animais ferozes ou dos espíritos maléficos da floresta”.
Ao final da entrevista, Bruce Albert ainda diz: “Espero que seja útil para que seus leitores entendam: não há pior afronta e sofrimento para os Yanomami do que fazer ‘desaparecer’ seus mortos”.
O caso dos bebês Sanöma expressa a abertura de um novo capítulo de violência de Estado contra os povos originários. O desrespeito e a indignidade com que a morte é tratada pelas autoridades públicas são os mesmos da vida. Não basta matar pela contaminação por vírus, há ainda que torturar mulheres e também homens. Este capítulo está só começando, mas as vítimas já deram a ele um título: genocídio.
George Gurgel: Brasil sustentável - Qual a Política Sanitária? Uma perspectiva pós pandemia
Os desafios da Política Sanitária no Brasil é reverter a triste e desoladora realidade de mais da metade da população não ter acesso ao saneamento básico, como um compromisso permanente do Estado, do mercado e de toda a sociedade brasileira.
Como construir esta nova perspectiva pós-pandemia?
A pandemia deu maior visibilidade à nossa tragédia social: são mais de 100 milhões de pessoas sem instalações sanitárias nas suas residências, demonstrando a ineficiência do atual sistema sanitário brasileiro, agravado com o isolamento social e a crise política vivida por todos nós.
Questões mais amplas e estratégicas são partes desta nossa reflexão: a situação das nossas bacias hidrográficas, a qualidade e os usos múltiplos da água para a geração de energia, a produção agrícola, industrial, residencial, o turismo e o lazer, fundamentais para a vida e a sustentabilidade econômica, social e ambiental brasileira e de uma parte significativa da população mundial, dependente das exportações nacionais de papel e celulose, de minérios e de alimentos.
Em relação à Política Sanitária em si, devemos vê-la como parte integrante do Sistema Único de Saúde (SUS). O saneamento básico no SUS é o caminho para uma melhoria efetiva da saúde e da qualidade de vida dos brasileiros. Esta concepção deve ser fundamento de uma nova Política Sanitária a ser construída no País.
O Município como foco da Política Sanitária
Os municípios devem ser o foco da Política e da Gestão Sanitária e das políticas públicas em geral. São nos municípios que as pessoas vivem e realizam suas vidas.
Atualmente, o Brasil possui 5.570 municípios distribuídos pelos 26 estados da Federação (IBGE, 2014). Minas Gerais concentra o maior número deles (853), seguida de São Paulo (645). No outro extremo, os estados localizados na região norte são os que possuem o menor número, apesar da grande extensão territorial: Amazonas (62), Rondônia (52), Acre (22), Amapá (16) e Roraima (15). O mais populoso é São Paulo com mais de 11 milhões de pessoas e o de menor população é Borá, também em território paulista, com apenas 805 habitantes. A maioria dos nossos municípios enfrentam problemas de custeio e contam apenas com as cotas constitucionais.
Assim, a maioria das administrações municipais não conseguem atender às expectativas de suas populações, excluídas dos seus direitos básicos constitucionais, a saber: trabalho, moradia, segurança pública, saúde e educação. Portanto, a questão sanitária é parte integrante desta realidade.
Quais as razões dessa crise permanente dos municípios, incluindo a crise sanitária? Qual o papel dos governos, do mercado e da sociedade civil no enfrentamento desta crise?
A questão sanitária e o novo marco regulatório de saneamento básico devem ser avaliados considerando estas questões.
Devemos dimensionar os desafios de uma política pública sanitária, em cada município brasileiro, relacionando-a com a realidade econômica, social e ambiental regional e nacional.
A pandemia e a crise política vividas pelo Brasil não apontam caminhos para a melhoria da política de saneamento básico. As relações dos governos municipais com os estaduais e com o governo federal ficam muito a desejar.
Assim, há que se discutir a realidade sanitária e o novo marco regulatório de saneamento básico, associados às mudanças necessárias no caminho de um novo pacto político, econômico e social entre o governo federal e os dos estados e municípios.
Quais as questões estruturantes a serem consideradas neste contexto frente a essa realidade sanitária brasileira?
Há que se considerar que a maioria da população brasileira vive nas cidades. A vida social é predominantemente urbana. As cidades dão a tônica das regiões onde estão inseridas. Assim, a qualidade da Política Sanitária a ser construída será definida pelo pacto entre estes diversos atores políticos, econômicos e sociais em questão.
Quais seriam os desafios de uma Política Sanitária nesse contexto?
A Política Sanitária deve construir mecanismos de elaboração, participação e avaliação permanentes da cidadania, através de Planos, Programas e Projetos que venham a atender a demanda sanitária municipal, em sintonia com as outras políticas públicas municipais, no caminho da sustentabilidade econômica, social e ambiental.
Portanto, deve-se discutir a questão sanitária como parte integrante da sustentabilidade do município de uma maneira mais ampla, com foco na região onde está inserido e suas respectivas áreas urbanas, concentradoras de populações, violências e desigualdades sociais.
A crise dos municípios e das suas administrações reflete um conjunto de distorções, disfuncionalidades e limites das atuais estruturas político-administrativas que são responsáveis pela formulação e implementação das políticas públicas municipais, tanto na esfera do próprio município, quanto nas áreas estadual e federal. Esta crise pode ser resumida na insuficiência de receita, na falta de visibilidade em relação às decisões sobre despesas e investimentos, na insuficiência de recursos técnico-administrativos e, ainda, na falta de participação da população na política e na gestão municipal.
Neste contexto, urge realizar as reformas política, administrativa e tributária que não mudem apenas os critérios de redistribuição de recursos entre União, Estados e Municípios, melhorando a situação atual da maioria dos municípios, como também garantir aos Estados e à União recursos que viabilizem a implementação de políticas públicas, particularmente nas áreas de educação, saúde e saneamento básico, criando as condições para o enfrentamento da difícil realidade econômica e social da maioria dos municípios brasileiros.
Qual regulação?
Um dos desafios fundamentais de uma nova Política Sanitária é que a agência reguladora setorial funcione com autonomia.
No Brasil, falta às agências reguladoras a devida autonomia frente aos atores políticos, econômicos e sociais. O modelo de regulação, inspirado na experiência das democracias europeias, não funciona de maneira satisfatória frente à realidade brasileira. Aqui, desde quando foram criadas as agências reguladoras na década de 1990, a atuação das agências nas áreas de energia, telecomunicações e saúde, entre outras, fica muito a desejar.
A questão democrática aqui se coloca de maneira contundente. A sociedade civil e a cidadania brasileira estão desafiadas a construir relações de maior autonomia das agências reguladoras frente às relações entre o Estado e o mercado. O funcionamento do Estado e do mercado no Brasil não atendem às demandas históricas e atuais da maioria da população. São os nossos dilemas permanentes a serem superados para a ampliação da democracia brasileira, com a inclusão desta maioria excluída da população, não apenas na falta de saneamento básico, como também de educação, moradia, saúde, segurança, mobilidade e trabalho, condições elementares para a dignidade da vida social.
Em geral, as agências reguladoras, em suas diversas áreas de atuação, sofrem forte pressão de lobbys políticos e econômicos, prejudicando a defesa dos interesses mais amplos da sociedade, impactando, na maioria das vezes, os socialmente excluídos. Caso explícito do saneamento básico no Brasil: os 100 milhões de excluídos não podem pagar o serviço de saneamento e os governantes não criaram as condições políticas e econômicas para enfrentar e superar esta situação.
A autonomia da agência reguladora, em relação ao Estado e ao mercado, é o desafio fundamental da nova política de saneamento do Brasil. A regulação feita, nas últimas décadas, pela Agência Nacional de Saúde (ANVISA), não avançou de maneira efetiva para a melhoria do saneamento básico brasileiro. No novo marco regulatório, a responsabilidade é da Agência Nacional de Águas (ANA), desafiada a enfrentar e apontar caminhos de inclusão da maioria da população brasileira sem água tratada e saneamento básico.
A participação de empresas estatais e privadas, inclusive internacionais, já faz parte do modelo de saneamento brasileiro, desde os anos 1990. A participação privada, inclusive internacional, não trouxe os resultados esperados para a melhoria da política de saneamento neste período.
Portanto, além dos investimentos necessários – que devem ser procurados, independente da natureza do capital –, o que se deve trabalhar frente aos nossos gigantescos desafios sanitários é um Plano Nacional de Saneamento, com metas a serem alcançadas nos próximos anos e devidamente acompanhado pelos governos, pelas agências reguladoras, pela comunidade científica e por organizações empresariais e da sociedade civil, comprometidos com a Política Sanitária Nacional.
Além disso, devem-se criar mecanismos institucionais para acompanhar e avaliar as relações entre a agência reguladora com as próprias empresas a serem reguladas e as relações destas empresas e da própria agência reguladora com os atores políticos, econômicos e sociais nacionais e regionais.
Assim, a eficiência de uma Política Sanitária está relacionada com os seus resultados efetivos, no tempo e no espaço. A saber: seus resultados obtidos através do Plano Nacional de Metas a serem perseguidas, considerando os custos e objetivos econômicos, sociais e ambientais; também a qualificação profissional e a base técnica utilizada para atingir os resultados almejados. A natureza do capital não influi diretamente nos resultados de nenhuma organização empresarial. São inúmeros os exemplos na história do capitalismo de organizações na Europa, EUA, no Brasil ou em qualquer parte do mundo, estatais, privadas ou mistas, bem sucedidas ou não. Todas elas sempre precisam do Estado, em tempos de crise ou não. O inverso também é verdadeiro: o Estado democrático de Direito precisa de todas as organizações e da sociedade para o funcionamento da economia e das políticas públicas em geral, isto acontece também na área de saneamento básico.
Estes são os dilemas permanentes e os desafios das sociedades democráticas – a necessidade de pactuar entre os diversos atores políticos, econômicos e sociais. A experiência europeia avançou na inclusão social, com conquistas efetivas para a cidadania, nos momentos em que foi possível uma maior taxação do capital, garantindo políticas públicas inclusivas para a maioria da população.
Assim, uma política de saneamento básico deve ser parte integrante de uma visão mais ampla da realidade econômica, social e ambiental do município e estar comprometida com a reorganização do espaço urbano a favor do público, melhoria das condições de moradia, educação, saúde, segurança, mobilidade urbana e ampliação da renda familiar em função dos que mais necessitam.
Finalmente, é importante destacar os limites impostos pelo atual pacto federativo para a construção de uma Política Sanitária Nacional, em função das crises política, econômica, social e de valores, nestes tempos de pandemia, vivenciados pela sociedade brasileira, particularmente na área federal. Portanto, a Política Sanitária é uma questão nacional, que se realiza em cooperação e conflito entre os interesses do Estado, do mercado e da sociedade civil, com a participação proativa da cidadania.
*Professor da Universidade Federal da Bahia e do Instituto Politécnico da Bahia
Merval Pereira: Desmilitarização
O núcleo duro da ala militar quer firmar a ideia de que não existem ministros militares, mas de origem militar
A prisão de Fabrício Queiroz foi a gota d´água que faltava para que o bom senso prevalecesse no entorno do presidente Bolsonaro, levado a um silêncio obsequioso diante da realidade que lhe batia à porta do Palácio do Planalto.
Os ministros de origem militar, que no início do governo eram vistos como anteparos aos arroubos totalitários da ala radical do governo, venceram pela exaustão. Uns, como o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, General Augusto Heleno, abandonaram a moderação para aderir à radicalização. Outros, como o General Santos Cruz, não resistiram às intrigas palacianas e deixaram o governo.
O núcleo duro da ala militar permanece firme no desejo de desmilitarizar sua presença para firmar a idéia de que não existem ministros militares, mas de origem militar. Um que foi para a reserva no dia 1º deste mês foi o General Luiz Eduardo Ramos. Ele já havia anunciado sua decisão dias antes, como registrado aqui na coluna, maturada desde o dia em que recebeu críticas de diversos setores, inclusive militares, por ter participado de uma daquelas manifestações políticas em frente ao Palácio do Planalto, onde a defesa de medidas antidemocráticas, como intervenção militar, eram feitas abertamente.
Sentiu-se incomodado, admitiu que como General de Exército da Ativa, recém-saído do Comando Militar do Leste, membro do Alto Comando do Exército, mesmo se não houvesse a defesa de ações totalitárias, que minimizou como sendo de uns poucos, não deveria participar de manifestações políticas. Conversou com o presidente, que se disse contrário, mas realizou seu desejo para poder ajudar o governo mais à vontade, como revelou em entrevistas.
O general Braga Netto, da Casa Civil, está na reserva já há algum tempo, tendo permanecido na ativa durante curto período como ministro, e o ministro da Defesa, General Fernando Azevedo pretende evitar situações dúbias como a que o levou a sobrevoar de helicóptero junto com o presidente Bolsonaro uma manifestação política, como se a estivesse apoiando, quando alega que estava ali para averiguar as condições de segurança da Praça dos Três Poderes.
A vontade é de não misturar mais, ou não dar motivos para que assim sejam percebidas, as ações de ministros de origem militar com a dos militares da ativa. Por isso, há uma tentativa de homogeneizar o comportamento, fazendo com que sigam o exemplo o ministro interino da Saúde, General de Brigada Eduardo Pazzuello e o chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) Almirante de Esquadra Flávio Rocha, que foi promovido este ano, quando já trabalhava no Palácio do Planalto.
Foram muitas idas e vindas nesse primeiro ano e meio de governo, em que os assessores mais próximos ganharam ou perderam importância ao sabor dos ventos políticos, que radicalizaram como quando Bolsonaro decidiu enfrentar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), ou amainaram como agora, quando a força das decisões institucionais prevaleceu sobre o espírito “incontrolável” do presidente.
Os vários inquéritos no Supremo abrangendo não apenas seus seguidores mais radicais, alguns presos, mas ele próprio, os inquéritos do Ministério Público e da Polícia Federal sobre seus filhos Flavio e Carlos, a prisão do Queiroz na casa do advogado da família, tudo levou a que Bolsonaro se dispusesse a arrefecer os ânimos, aceitando finalmente, não se sabe até quando, que não tem condições políticas para tentar enquadrar as instituições que lhe limitam o poder presidencial, como acontece nas democracias.
Uma vitória marcante dos assessores militares foi acabar com o cercadinho em que apoiadores de Bolsonaro constrangiam os jornalistas e incentivavam as bravatas do presidente. Hoje, ele os recebe separadamente, nos jardins do Alvorada, e seus arroubos ficam restritos a essa platéia.
Os relatos são de que o presidente oscila, há dias em que está mais calmo, outros mais agitado. Essa situação serviu também para confirmar o que os ministros de origem militar sempre garantiram: não existe possibilidade de as Forças Armadas apoiarem uma aventura ditatorial.