Bruno Boghossian: Atalho de Guedes para retomada do emprego pode oficializar trabalho precário

Plano para estimular contratações aumenta risco de desigualdade e de desmanche de redes de proteção

Assim que o governo anunciou a prorrogação do auxílio emergencial do coronavírus, Paulo Guedes voltou a fazer propaganda do programa Verde e Amarelo. O ministro aproveita a pressão econômica da pandemia para driblar leis trabalhistas e permitir a contratação de empregados com menos proteções.

“O Verde e Amarelo são esses 30 milhões de brasileiros que estão por aí e que só querem o direito de trabalhar sem ser impedidos pelo governo”, disse o economista, na terça (30).

No dia seguinte, entregadores de aplicativos tomaram a avenida Paulista na contramão do ministro. Na paralisação, que já estava programada, eles cobraram das empresas melhores condições de trabalho, taxas mais justas e itens de proteção.

O governo Jair Bolsonaro não entendeu o recado. A equipe econômica continua em busca de um choque liberal nas relações entre empregadores e empregados. No caso dos trabalhadores informais, as medidas sugeridas podem fazer com que eles continuem desprotegidos.

A ideia é reduzir encargos sobre os empregadores. O programa Verde e Amarelo deve isentar empresários de cobranças do FGTS e do INSS. O projeto prevê ainda o pagamento por hora trabalhada.

Ao Valor Econômico um auxiliar de Guedes tentou pintar a precarização com tintas coloridas: “A pessoa trabalha duas horas num lugar, marca-se o valor. Depois, três horas em outro lugar, apresenta a carteira e marca. Ele pode ser empregado de oito pessoas ao mesmo tempo”.

Embora o custo de contratação no país seja considerado alto, o atalho apenas oficializa a informalidade, aumenta os riscos de desigualdade e desmancha uma rede de proteção que existe justamente para amortecer os efeitos de crises econômicas.

Ao defender o plano, Guedes disse que as leis trabalhistas são “o céu para alguns, mas com muito desemprego”, e descreveu a informalidade como “esse inferno do anonimato”. Após a crise, muitos trabalhadores não terão alternativa. O governo só se compromete a rezar a missa.


Dorrit Harazim: Desmascarados

A sociedade de consumo responde, sôfrega, para voltar a respirar num shopping center e se sentir viva

O índice de estupidez de quem abarrotou bares e ruas do Leblon na noite de quinta-feira merece atenção para além de um simplório filtro por classe social. Nas franjas das periferias e comunidades, bailes funk também rolam adoidado ao arrepio de qualquer quarentena. Esses bolsões de incivilidade tampouco são coisa só nossa. Nos Estados Unidos, matriz brasileira de gestão irresponsável do coronavírus, exemplos de insensatez social ostensiva pipocam emNova York e Houston, lotam Miami Beach e assustam Los Angeles. A novidade é desafiar o amanhã embarcando em “Covid parties” sem proteção, propósito ou culpa.

À primeira vista, essa sofreguidão irreprimida pode evocar “A noite dos desesperados”, filme ambientado na Grande Depressão de 1929 com Jane Fonda em papel memorável. Mas só à primeira vista. Na obra do diretor Sydney Pollack, o grupo à deriva que desce aos infernos para vencer uma maratona de dança e conquistar um prêmio em dinheiro é arrastado pela necessidade. No filme, incentivados por um promotor sem escrúpulos e oportunista, eles arriscam tudo para sobreviver, inclusive a autodestruição. Já os festeiros afoitos de hoje jogam sobretudo com a vida alheia. E de graça, sem ganhar nada. São paspalhos.

Mas há um elo em comum entre a trama ficcional e o momento coronavírus atual: a figura do promotor oportunista. Em sua versão 2020 ele é tanto o prefeito que reabre sem ter fechado quanto o governador que rouba respirador ou o presidente que achincalha o uso da máscara. Impulsionados por estreiteza de visão, aposta negacionista ou pura irresponsabilidade, esses agentes do devaneio estão levando o país à neurastenia. E a sociedade de consumo responde, sôfrega, para voltar a respirar num shopping center e se sentir viva.

Virou notícia a iniciativa de um shopping da cidade de Botucatu, no interior paulista, que liberou a circulação de automóveis pelos corredores, no interior do prédio. O cliente precisa estar de máscara, não pode sair do veículo, mas retira suas encomendas diretamente na porta das lojas. Tudo seguindo as normas sanitárias vigentes na cidade, que foi rebaixada para a chamada fase 1 (vermelha) do Plano São Paulo, portanto de quarentena mais restritiva — apenas serviços essenciais podem permanecer abertos. Motos e carros movidos a diesel têm acesso vetado ao local, mas havia limite de velocidade para a circulação dos muitos SUVs que se enfileiraram no primeiro dia. Um sucesso. As imagens do chamado “drive-thru in door” são estupefacientes.

Se para uns consumir é pretender que nada mudou, para quem foi condenado a confundir cidadania com consumo voltar a comprar é necessidade. Em shoppings populares já abertos legalmente, o afluxo é quase desesperado.

O ativista ambiental britânico George Monbiot descreve assim o sistema falido em que vivemos, que depende de crescimento contínuo e exige que percamos nossa capacidade de tomar decisões ponderadas: primeiro satisfazemos nossas necessidades reais, depois nossos desejos intensos e vontades de ocasião. Por fim, somos induzidos a continuar a adquirindo bens e serviços de que não precisamos nem queremos. É quando abandonamos nossas faculdades discriminatórias e sucumbimos ao mero impulso, tragados por um ciclo de compulsão ao consumo. Monbiot cita como exemplos a existência de uma torradeira capaz de imprimir a imagem do dono no pão, de um porta-papel higiênico que envia mensagem a seu celular informando que o rolo está acabando e de uma escova de cabelo (para adultos) que informa se você sabe escovar corretamente o cabelo. O autor alerta para o fato de o meio ambiente não responder a sinais da Bolsa e do mercado.

Pandemias também não.

Dias atrás coube ao atual diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC), dr. Robert Redfield, apresentar-se perante uma inquieta Comissão Parlamentar de Comércio e Energia. Indicado por Donald Trump, Redfield surpreendeu a todos na franqueza. Informou aos deputados que o governo americano “provavelmente vai gastar US$ 7 trilhões com esse viruzinho”. E acrescentou: “A realidade é que [a pandemia] botou esta nação de joelhos.” A última vez que se ouviu falar da nação de joelhos foi após o ataque terrorista às Torres Gêmeas de 2001.

No Brasil as contas ainda estão muito longe de fechadas — nem o custo em vidas, nem o financeiro. Mas o país já está firmemente alinhado à matriz como nação pária no combate civilizado à pandemia. Na Europa que se entreabre, brasileiro não entra por enquanto. Por pertinente, copia-se aqui trecho de entrevista do historiador John M. Barry, autor do aclamado “A Grande Gripe”, concedida esta semana a Ana Lucia Azevedo, no GLOBO:

— Como o senhor vê o posicionamento de líderes que negam a Ciência, como os presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro?

— Serei diplomático. Eles são idiotas perigosos.


Vinicius Torres Freire: Mercado supõe que 2021 terá vida que segue e Bolsonaro quieto

Mercado supõe que gasto e política econômica voltem ao que eram no pré-pandemia

O país estará mais pobre e o governo estará mais endividado, mas depois da calamidade do vírus o plano de política econômica não deve mudar: não se admite nem é provável que mude. É o que parece implícito nas projeções de economistas do setor privado, do “mercado”, e explícito na conversa do governo. Não deixa de ser uma espécie de otimismo, um “vida que segue”, apesar do desastre.

Na média, as estimativas econômicas parecem pressupor que o gasto extra do governo federal neste ano (“Orçamento de guerra”) será quase eliminado no ano que vem: auxílios emergenciais e de salário, adiamentos de impostos, ajuda a estados e municípios, despesas com saúde. É um talho da ordem de R$ 450 bilhões. É algo equivalente à despesa anual com salários de servidores, benefícios para idosos e deficientes (BPC), Bolsa Família e investimento.

Está previsto que a economia crescerá uns 3,5% e implícito ainda que o teto de gastos será mantido e que a receita do governo federal praticamente volta ao nível de 2019. É o que se depreende das estimativas da praça para o déficit federal, dando-se de barato que “o mercado” não prevê aumento de impostos, bidu.

Para que se respeite o teto, não será possível nenhum programa de renda básica que eleve despesas. Se sair um “Renda Brasil”, esse novo pacote teria de ser pago com cortes de gastos em outras áreas, o que demanda alterações em leis ainda neste ano.

Manter o teto reduziria ainda mais o investimento público “em obras”; deixaria os gastos com saúde e educação no piso. A fim de compensar o aumento inevitável de certas despesas obrigatórias, seria preciso limitar outro gasto, provavelmente salário de servidores.

Parece pressuposto que o fim do auxílio emergencial e complementos de salário será compensado por aumento da soma dos rendimentos do trabalho (“massa”) a partir do terceiro trimestre. Imagina-se que estados e municípios conseguirão pagar salários e fornecedores em 2021.

Plausível? Um corte de quase meio trilhão de reais no gasto público seria compensado por aumento de despesa privada? Isto é, pelo gasto derivado do aumento do total de salários e do crédito, além daquele que sobreviria por causa do consumo represado, pois a poupança de parte das famílias aumentou (não perderam renda e gastaram menos).

A dívida pública teria crescido para um nível horrível, mas ficaria estável pelos próximos anos, dadas as previsões de crescimento, manutenção do teto e taxa básica de juros baixa —ficaria baixa porque o programa fiscal seria o mesmo e haveria “reformas”.

Na saída da recessão de 2014-16, o nível de emprego (pessoas ocupadas) levou três anos para ir do fundo do poço ao pico anterior. O emprego formal jamais se recuperou, assim como a receita do governo (como proporção do PIB, descontado o maná do leilão de petróleo de 2019). Setores que mais ajudaram na recuperação do emprego depois da recessão são ainda os mais afetados pela epidemia (serviços).

É muito incerto se auxílio emergencial ainda fará efeito na economia depois de acabar, em setembro (quando houve o caraminguá do FGTS, ajudou, mas passou rápido).

A baixa do investimento público vai arruinar ainda mais nossa infraestrutura (deve limitar algum investimento privado também). A longa e mortífera epidemia deve limitar a confiança de trabalhar e consumir.

Enfim, parece pressuposto que Jair Bolsonaro continuará quieto, que haverá acordão político-judicial para deixá-lo no cargo e que o povo aceitará mais pobreza em paz.


Affonso Celso Pastore: Propostas sem sentido

Quando ficou claro que a pandemia produziria uma recessão profunda, não faltou quem propusesse a redução da Selic a zero e o uso de uma “operação twist”, com o Banco Central comprando títulos públicos no ramo longo e vendendo no ramo curto da curva de juros, reduzindo sua inclinação. Porém, não somente o BC vem fazendo pouco (ou nada) para reduzir a inclinação da curva de juros, como vem questionando se no Brasil o limite inferior da Selic seria tão baixo quanto nos EUA e na Europa. De onde vem esta divergência?

Ainda que não tivéssemos um termômetro saberíamos qual é a diferença de temperaturas entre o verão carioca e o inverno do Alasca, e ainda que não existissem as cotações do CDS, saberíamos que o salto de 78% para 100% da nossa relação dívida/PIB eleva o risco de insolvência do governo. Atualmente o Brasil tem um “nível de risco” mais elevado do que antes da pandemia, e ele aparece expresso nos preços dos ativos na forma de um “prêmio de risco”, que nada mais é do que o equivalente à medida da temperatura em um termômetro. No mercado de títulos de dívida soberana em Nova York, por exemplo, ele se expressa na cotações do CDS, no mercado de juros ele se manifesta na inclinação da curva de juros, e no mercado de câmbio aparece na volatilidade e na depreciação do real acima da dos demais países emergentes.

Suponhamos que o governo não faça nada para reduzir o “nível de risco”, mas peça ao BC que estimule a atividade econômica inundando a economia de liquidez com a Selic a zero. O primeiro efeito será a elevação dos preços das ações, mas isto não ocorre porque cresceram as expectativas de aumento dos lucros das empresas, que seria impossível diante da recessão, e sim porque caiu a taxa de desconto à qual o valor presente dos lucros esperados (que é o preço da ação) é calculado. Dado que os investidores não são indiferentes ao risco, que permanece elevado, para evitar perdas futuras e para não perder a oportunidade de um ganho, eles buscam um hedge através da compra de um ativo cujo preço tenha uma correlação inversa com os preços das ações, como é o caso do dólar norte americano. Se um erro do governo reduzir os preços das ações ele também tende a depreciar o real. Embora tal depreciação possa ter ocorrido simultaneamente a uma queda da taxa de juros, neste caso ela não decorre de um desestímulo ao ingresso de capitais devido ao diferencial de taxa de juros entre Brasil e EUA. É apenas a consequência de um aumento do risco que permitiu utilizar o real como hedge contra movimentos inesperados de queda dos preços das ações.

Mas o prêmio de risco não se manifesta apenas no câmbio. Taxas de juros mais baixas no contexto de uma política fiscal desajustada aumentam a inclinação positiva da curva de juros, mas não devido a um prêmio de inflação, que está contida devido à recessão, e sim a um prêmio de risco. O desequilíbrio fiscal leva ao aumento do déficit primário, obrigando o Tesouro a aumentar a oferta de títulos públicos cujos prêmios de risco são tanto maiores quanto mais distante for o seu vencimento. Se decidir vender títulos mais longos o Tesouro elevará a taxa de juros média sobre a dívida pública, piorando a dinâmica da dívida, o que o leva a reduzir o prazo médio dos títulos, colocando de preferência as LFTs. Se fosse pedido que o Banco Central operasse um twist na curva de juros isto apenas esconderia o risco, que não desapareceu, e que migrará de um ativo para outro. Provavelmente iria mais para a taxa cambial, pressionando ainda mais o real.

Finalmente, suponhamos que o Banco Central optasse por evitar as depreciações cambiais aumentando as intervenções no mercado à vista, vendendo reservas. Se estivéssemos diante de um “nível de riscos” baixo – isto é, um pequeno desajuste fiscal –, a consequência seria uma venda pequena de reservas que poderia ser perfeitamente suportada por um país com um estoque próximo de US$ 300 bilhões. Mas se estamos falando de um “nível de riscos” alto, a venda seria maior e, o que é pior, estaria reduzindo o custo da saída de capitais incorrido por parte de não residentes que têm no Brasil posições em títulos públicos e em ações, sinalizando dificuldades no balanço de pagamentos.

Meu conselho dirigido a quem prefere rotas simples é que pare de pedir à política monetária resultados que ela não pode entregar.

*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados


Fernando Henrique Cardoso: Tempos confusos

Se não souber falar, se tiver dúvidas, que o presidente se cale. Como na última semana

Tempos confusos os que temos vivido. A tal ponto que estranhamos o que aconteceu no meio da semana: chamou a atenção o fato de o governo não haver arranjado nenhuma confusão nova. Isso depois de, sem se dar ao luxo de explicar melhor ao País as razões, o presidente haver dispensado vários ministros nas pastas da Educação e da Saúde. Pelo menos até a última sexta-feira, quando escrevo este artigo, não demitiu ninguém ou ninguém se sentiu na obrigação de abandonar o Ministério. Nem mesmo se viu o presidente ou seus porta-vozes atribuírem à oposição ou a alguém mais notório o estar “conspirando”. Daí a calmaria.

É assim que vai andando o atual governo, meio de lado. Sem que os “inimigos” façam qualquer coisa de muito espetacular contra ele, é ele próprio que se embaraça com sua sombra. De repente, quando não há nenhum embaraço novo, nenhuma “crise”, o presidente não se contém: fala e cria uma confusão.

É verdade que o governo federal não teve sorte. Não foi ele que criou a pandemia que nos aflige nem a paralisação da economia, que já vinha de antes. Mas a confusão política, desta ele se pode apropriar: foi coisa inventada pelo próprio presidente e seus fanáticos.

Por certo ela se agrava com a crise econômica e a da saúde pública. Mas o mau gerenciamento das crises e da política é o que caracteriza os vaivéns do governo Bolsonaro. No Congresso Nacional e nos tribunais (apesar de tão malfalados nos comícios pelos adeptos presidenciais) tem havido resistências à inação governamental e a suas investidas contra as instituições.

Comecemos pelo que mais importa, a saúde pública e a de cada um de nós. O governo federal desconsiderou os riscos da situação epidêmica no início e, depois, passou o bastão às autoridades locais. Compreende-se que sejam estas, mais perto das populações, a gerenciar o dia a dia. Mas o papel simbólico é sempre, para o bem e para o mal, de quem exerce a Presidência da República, tenha ou não culpa no cartório. Além disso é o que prescreve a Constituição, no seu artigo 23, sobre as competências comuns, entre as quais está a de zelar pela saúde pública, como deixou claro o Supremo Tribunal Federal (STF) em sua decisão a esse respeito.

Da mesma maneira é inacreditável que em tão pouco tempo o governo haja substituído dois ministros na pasta da Educação e que o País ainda não saiba quem será o próximo ministro. Os anteriores o pouco que fizeram foi suficiente para darmos graças por se terem afastado. Mas quem virá? E logo numa área crucial para o País.

Governo que não tem rumo nas principais áreas sociais dificilmente encontrará a lanterna mágica para nos levar a bom porto. Não são apenas pessoas mal escolhidas. É a falta de projetos, de esperança, o que nos sufoca.

Talvez esteja aí a falta maior do presidente: ele fala como qualquer pessoa, o que pode parecer simpático. É um [ ]uomo qualunque[/ ]. Diz o que lhe vem à cabeça, como qualquer mortal. Mas esse é o engano: o papel atribuído pelas pessoas ao presidente, qualquer deles, exige que ele, ou ela, mesmo sendo simples (para não dizer simplório), não pareça ser tão comum na hora de decidir ou de falar ao povo sobre os destinos da Nação.

Em certos momentos muita gente no País pode até apreciar a semelhança entre si e o chefe de Estado. A maioria mesmo: pois não foi ele quem ganhou as eleições? Afinal o presidente, dirão, é uma pessoa como qualquer outra. Mas quando há crises é quando mais se precisa que haja comando, rumo. Talvez por isso os “homens comuns” no poder acabem por ser incomuns, singulares na sua incapacidade de definir um rumo. Quando têm personalidade autoritária, investem e esbravejam contra as instituições democráticas. No Brasil, elas têm respondido bem ao desafio.

Onde iremos parar? Não tenho bola de cristal, mas é melhor parar logo. Se pudesse eu lhe diria: presidente, não fale; ou melhor, pense nas consequências de suas falas, independentemente de suas intenções. Sei que é difícil, afinal eu estava em seu lugar quando houve o “apagão” e também durante algumas crises cambiais. Não adianta espernear: vão dizer que a “culpa” é sua, seja ou não. E, no fundo, é sua mesma. Não se trata de culpa individual, mas política. Quem forma o governo (sob circunstâncias, é claro) é o presidente. A boca também é dele. Logo, queiramos ou não, sempre haverá quem pense que o presidente é responsável. Vox populi, dir-se-á…

É assim em nosso sistema presidencialista. E talvez seja assim nas sociedades contemporâneas. Com a internet as pessoas formam redes, tribos, e saltam as instituições. Por isso é mais necessário do que nunca que haja lideranças. Em nossa cultura e em nosso regime, já de si personalistas, com mais forte razão os líderes exercem um papel simbólico, falam pela comunidade. O líder maior é sempre o presidente, pelo menos enquanto continuar lá. Por isso é tão importante: se não souber falar, se tiver dúvidas, que o presidente se cale. Como nesta última semana.

Melhor, contudo, é que se emende e fale coisas sensatas, que cheguem ao coração e façam sentido na cabeça das pessoas razoáveis.

*Sociólogo, foi presidente da República


Alon Feuerwerker: Um desfecho pouco glorioso

Outro dia num bate-papo informal e algo provocativo propus uma solução meio piadista e meio séria para a polêmica que divide a oposição: se a aliança contra Jair Bolsonaro deve ser uma frente ampla democrática ou uma frente de esquerda. “Façam como no Uruguai: criem uma frente de esquerda e chamem de Frente Ampla.”

Claro que não solucionaria o cisma, hoje distante de solução, mas seria um truque do tipo que Tancredo Neves e Magalhães Pinto operaram na passagem dos anos 1970 para os 80. Criaram um partido de centro-direita e chamaram do nome que na época era cogitado para rotular uma eventual frente de esquerda: Partido Popular. Roubaram a marca. Acontece.

A história conta que depois o presidente João Figueiredo e seu PDS, sucessor da Arena, impuseram o voto vinculado, e na urna de 1982 o eleitor seria obrigado a votar de vereador a governador em candidatos do mesmo partido. Aí os liberais sentiram-se traídos e a maioria deles reagruparam-se no PMDB, que sucedera o MDB do bipartidarismo.

Essas histórias hoje já antigas ajudam a compreender que o dito centro tem esse nome exatamente porque pendula conforme a circunstância, mas sem nunca perder a identidade, que aponta mais para a direita que para a esquerda. Aliás esse locus político tem como vocação principal não exatamente apoiar outros, mas recolher apoio.

A frente ampla até vinha razoavelmente bem, daí Bolsonaro resolveu jogar mais o jogo da política. Como se pode notar a partir dos fatos, esses teimosos, as defecções nela agora têm sido mais frequentes. Vão desde os que caíram fora da live do “Direitos Já” até quem de repente mudou de ideia e passou a defender que não, não é hora de pensar em impeachment.

Mas a prova de fogo vai ser mesmo nas eleições. O que vai prevalecer, em especial onde terá segundo turno? A frente contra a esquerda ou a frente contra a direita? Ou não vai ter uma regra, uma tendência? Ou vai predominar, dentro de cada campo, a guerra fratricida de olho na necessidade de atrapalhar o fortalecimento excessivo de algum “aliado”?

Na real, não existe frente sem programa político. Frentes “de resistência” são frágeis, também porque são óbvias. Uma ampla frente político-social opõe-se, por exemplo, aos movimentos que pedem o fechamento do Congresso Nacional e do STF. E do mesmo modo que facilmente se agrupa, desmancha-se quando o “que fazer?” é colocado na mesa.

O MDB e depois o PMDB dos idos do regime militar tinham objetivos programáticos claros. O principal era, no caso do primeiro, a revogação da legislação excepcional. Do segundo, a volta das eleições diretas em todos os níveis. Ambos foram vitoriosos, o AI-5 acabou em 1978 e as diretas voltaram em duas etapas: 1982 e 1989.

Depois o PMDB teve um momento brilhante, no Plano Cruzado que lhe deu safra gorda na eleição de 1986. Daí produziu uma Constituição, que hoje agoniza, e entrou em declínio.

No momento, seus diversos spin-offs misturam-se aos derivados da velha Arena para formar a constelação que a imprensa chama de centrão, quando não aceita que negociem com o governo de turno. E que chama de “partidos de centro” quando um governo que ela apoia precisa negociar para obter apoio no Congresso.

Não chega a ser um desfecho glorioso.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


O Estado de S. Paulo: Após beneficiar oficiais, governo abre negociação com militares de baixa patente

Planalto tenta conter desgaste com praças após ameaças de panelaço e convoca reunião

Felipe Frazão, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – O presidente Jair Bolsonaro abriu negociações para contornar o desgaste com militares de baixa patente, reservistas e pensionistas. Um dia depois do pagamento do reajuste que beneficiou principalmente os oficiais, o governo teve de convocar uma reunião de última hora com representantes dos praças, porque o grupo ameaçava protestar com panelaços na frente dos palácios presidenciais.

O encontro com líderes de associações da categoria foi promovido anteontem pelo ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, no Palácio do Planalto, e também contou com a presença de parlamentares. Na tentativa de conter a revolta, Ramos escalou para a audiência a cúpula dos ministérios da Defesa, da Economia e da Casa Civil.

O pagamento de adicionais que elevam o salário de militares está no centro de uma insatisfação não debelada na base das Forças Armadas. Os praças reclamam de aumento desigual no “adicional de habilitação”, complemento que incide sobre o soldo e sobe à medida que o militar conclui cursos e atinge patentes mais altas na carreira. Pensionistas, por sua vez, se queixam de redução nos vencimentos por causa de contribuições compulsórias ao fundo de saúde.

Uma lei sancionada em maio proibiu reajustes no funcionalismo até o fim de 2021, por causa da pandemia do novo coronavírus. Aprovado antes, o aumento dos adicionais para oficiais militares escapou desse congelamento. O Ministério Público de Contas, porém, pede sua suspensão em um momento de cortes de salários e dificuldades enfrentadas para pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 para a população mais afetada pelos efeitos da covid-19.

Fragilizado por investigações e pedidos de impeachment, Bolsonaro busca aplacar o descontentamento em seu celeiro eleitoral. As associações cobram o envio de um novo projeto de lei ao Congresso, com mudanças salariais. Na prática, se o governo ceder às pressões e ampliar acesso dos praças a “penduricalhos” que elevam a remuneração e favorecem mais os oficiais, haverá um novo aumento de despesas com o funcionalismo militar. 

Atualmente, o impacto do reajuste previsto para este ano é de R$ 1,3 bilhão apenas com o “adicional de habilitação”. Até 2024, a despesa anual com esse “penduricalho” chegará à casa de R$ 8 bilhões anuais. Em cinco anos, serão gastos R$ 26 bilhões, como revelou o Estadão.

Os praças cobram a equiparação no porcentual de 41% sobre o salário, previsto no novo adicional de “disponibilidade militar” dos generais. As patentes mais baixas recebem no máximo 32%. A criação desse “penduricalho” pelo governo Bolsonaro custou R$ 2,7 bilhões por ano.

Em reunião de mais de três horas com representantes da categoria, no sábado, os senadores Major Olímpio (PSL-SP) e Izalci Lucas (PSDB-DF), vice-líder do governo, passaram a estimular os protestos. Interlocutores do grupo, eles afirmaram que o Planalto “enrolava” e “tripudiava” sobre militares de baixa patente. 

“Se esse negócio não for resolvido, quando voltar (a votação) presencial no Congresso, a primeira coisa que eu faço é abandonar a vice-liderança. Como vou falar em nome de um governo que não cumpre a palavra? Não dá”, disse Izalci. “Na política, o que a gente tem de precioso é a palavra. Acordo se cumpre”.

A mobilização da baixa patente, em dezembro, chegou a emperrar a aprovação da reforma das Forças Armadas. Para não atrasar o reajuste e as mudanças previdenciárias, o governo pediu a retirada de alterações no projeto de lei, sob o compromisso de resolver eventuais “injustiças” depois, mas não houve mais conversa.

“Vamos pressionar politicamente. Tornou-se uma questão política, não uma questão de caserna”, afirmou Major Olímpio. “Em 2018, nós batemos palma, nós votamos e dissemos ‘mito’ (para Bolsonaro), mas, se começar com uma coisa dessas, vamos provocar o desgaste devido.”


Marcus Pestana: Fakenews, liberdade e cidadania

O mundo contemporâneo foi profundamente impactado pelos avanços, no final do século XX, da computação eletrônica e do surgimento da Internet. A verdadeira revolução introduzida por essas inovações tecnológicas produziu mudanças radicais nas relações financeiras, no comércio, nas comunicações, no entretenimento, nas relações interpessoais, e, como não poderia deixar de ser, no funcionamento da democracia e da vida política.

Nesta semana o tema veio à tona com imensa força no Brasil e no mundo. Grandes empresas como Coca-Cola, Microsoft, Unilever, Adidas, Ford, Starbucks, HP e outras 160, interromperam sua publicidade nas redes sociais cobrando das plataformas Youtube, Facebook, Twiter e Instagram regras claras para a exclusão de postagens racistas, de promoção da violência e das tristemente famosas fakenews.

O presidente da maior potência global, Donald Trump, teve publicação no Twiter marcada como “mídia manipulada” em função da adulteração de um vídeo envolvendo duas crianças, uma branca e outra negra. E recebeu uma condenação geral ao reproduzir um vídeo onde um casal branco aponta armas contra manifestantes antiracistas, claramente estimulando a violência política e a intolerância. Já o Facebook retirou do ar um anúncio da campanha de Trump que utilizava um símbolo nazista – o triângulo vermelho invertido.

No Brasil, tivemos a votação de afogadilho no Senado Federal da polêmica Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, de autoria do competente senador Alessandro Vieira (Cidadania/SE) e relatado pelo senador Angelo Coronel (PSD/BA).
As inovações tecnológicas são o motor das grandes mudanças nas economias capitalista como estudaram exaustivamente Marx e Schumpeter. Os computadores e a Internet revolucionaram a vida humana, e, como toda inovação, não carregam, em si, padrões éticos e morais, podendo servir ao bem ou ao mal.

Na política, o impacto foi profundo. As instituições e os partidos políticos democráticos tradicionais perderam seu papel central de canalização das expectativas, esperanças e inquietações sociais, já que na Internet todo mundo fala com todo mundo.

Este novo mundo foi abordado pioneiramente pelo sociólogo espanhol, Manuel Castells, em sua obra seminal “A Sociedade em Rede” de 1996. Vale a leitura. Recentemente, fiquei profundamente impactado ao assistir na Netflix o documentário “Privacidade Hackeada”, que desnuda o papel da empresa Cambridge Analytica na invasão não autorizada nas informações do Facebook de 87 milhões de usuários, e através do uso de Big Data e algorítimos, manipular a opinião pública na eleição de Donald Trump. A estratégia já tinha sido testada no plebiscito do Brexit.

Qual não foi a surpresa ao descobrir através do livro “Os Engenheiros do Caos” que o laboratório pioneiro foi a Itália, no nascimento do movimento anarco-populista “5 Estrelas”. O que parecia uma rebelião espontânea da base da sociedade italiana e o surgimento de um partido descentralizado, democrático e inovador, foi na verdade uma maquinação científica usando as modernas ferramentas das redes sociais, com uma empresa especializada e manipuladora por trás e o comediante Beppe Grillo como sua face pública, aproveitando o desgaste da chamada “velha política”.

Voltarei ao tema na próxima semana.


José Márcio Camargo: O pós-pandemia – ‘os anos loucos’

Só o tempo dirá se os fatores que dominaram o mundo após a gripe espanhola se repetirão

Pandemias são eventos raros. A última grande pandemia foi a gripe espanhola dos anos 1918/1919. Matou 50 milhões de pessoas, 3% da população mundial. Se o mesmo se repetir hoje, o que parece pouco provável, teremos cerca de 300 milhões de mortes.

A pandemia começou no início de 1918, desapareceu em novembro do mesmo ano, sem vacinas ou remédios, e teve uma segunda onda no início de 1919. Coincidiu com o fim da 1.ª Guerra Mundial.
A gripe espanhola atingiu fortemente o Brasil, inclusive vitimando o presidente eleito, Rodrigues Alves. Imagens e relatos de caixões se acumulando nas portas das casas e falta de vagas em hospitais e cemitérios foram uma constante nos jornais da época.

Prever como a sociedade vai se comportar quando a pandemia acaba é muito difícil. Vários fatores afetam o comportamento das pessoas diante de tragédias desta magnitude e, a priori, é impossível saber que fator será dominante.

O sentimento que tem prevalecido entre analistas hoje é de que, como agentes que tinham mais reservas quando a pandemia começou têm maior capacidade de superar a tragédia que agentes com menos reservas, o fator dominante será mais cautela e precaução. Medo do futuro. Do ponto de vista econômico, mais poupança e menos consumo, o que significa uma retomada lenta da economia.

Além disso, como, para evitar a disseminação da doença, foi necessário diminuir o contato entre as pessoas, as relações de trabalho e comerciais foram quebradas, capital físico e humano foi destruído. O resultado é que a retomada pode se tornar lenta e difícil.

Entretanto, o que ocorreu após a pandemia da gripe espanhola sugere exatamente o oposto. A década de 20 do século passado foi bastante positiva tanto em termos econômicos quanto culturais, no Brasil e no mundo. A economia mundial cresceu a taxas elevadas, a economia americana se tornou economicamente hegemônica e a economia brasileira cresceu a taxas relativamente altas.

Foi, também, uma década caracterizada por movimentos importantes nas artes (surrealismo, dadaísmo), na música (jazz, Charleston, blues), na literatura e no teatro (Scott Fitzgerald, Sinclair Lewis, Eugene O’Neill) e no cinema (cinema falado, Charlie Chaplin, Luís Buñuel). No Brasil, foi uma década fértil nas músicas popular e erudita (Noel Rosa, Heitor Villa-Lobos) e na literatura (Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira). A Semana de Arte Moderna revolucionou a literatura e a arte brasileiras (Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti). E houve muita liberdade na pauta de costumes. Diante de tamanha efervescência, entrou para a História como “os anos loucos”.

Por outro lado, provavelmente como reação ao liberalismo, preparou o terreno para um forte retrocesso nas liberdades individuais na década seguinte. No Brasil, várias tentativas de golpe de Estado, presidentes governaram em estado de sítio, culminando com a ditadura Vargas em 1937. No mundo, a ascensão do nazismo e do fascismo, que resultou na 2.ª Guerra Mundial.

Que fatores poderiam explicar este comportamento? Do ponto de vista econômico, em episódios como estes, em geral, são os mais eficientes e produtivos que sobrevivem, o que aumenta a produtividade da economia após a pandemia.

Pandemias são cisnes negros, cuja probabilidade de existir, antes que surjam, é percebida como sendo zero. Quando um cisne negro aparece, fica claro que ele existe, o que aumenta a probabilidade de que poderá reaparecer no futuro. No caso da pandemia, isso significa uma redução da expectativa esperada de sobrevida das pessoas. A consequência é uma diminuição da poupança e aumento do consumo desejados.

Após meses de confinamento, as pessoas estão ávidas para retomar o convívio social, frequentar eventos culturais e artísticos. Estes parecem ter sido os fatores dominantes após a gripe espanhola. Que fatores vão dominar a retomada desta vez, só o tempo dirá.

*Professor do departamento de economia da PUC/Rio, é economista-chefe da Genial Investimentos


Merval Pereira: Qual caminho?

Escolha do quarto ministro da Educação de sua gestão pode ser também a definição do que será o governo Bolsonaro

A escolha do quarto ministro da Educação de seu governo pode ser também a definição do que será o governo Bolsonaro no tempo que lhe resta. Esse tempo não depende unicamente dele, mas o comportamento, digamos assim, recatado dos últimos dias pode lhe dar mais fôlego, ou pelo menos não apressar o fim do mandato.

Amordaçado pelas circunstâncias nada favoráveis depois da prisão de Queiroz e do processo contra seu filho Flávio, o presidente encontra-se fragilizado diante da mudança de postura. A escolha de Renato Feder, atual secretário de Educação do Paraná, leva em conta aspectos técnicos que não agradam a setores importantes de apoiadores, embora cada um tenha razões distintas para esse incômodo.

Os militares têm candidato próprio, o reitor do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA) Anderson Ribeiro Correia, e consideram que a escolha de um secretário com ambições políticas será prejudicial. Esses assessores palacianos, que ganharam mais espaço nos últimos tempos, querem um governo, se não de “notáveis”, como na tentativa de salvar Collor do impeachment, pelo menos técnico, e não militarizado.

A escolha do reitor do ITA junta essas duas coisas: dirige uma instituição de ensino militar de alta qualificação, e não é militar. A excelência do ITA vem de sua reconhecida qualidade de ensino, sendo uma instituição em que não é preciso querer ser militar para nela ingressar.

Os evangélicos querem alguém da mesma linha política que Bolsonaro vinha mantendo no MEC desde o início de seu governo, mas Anderson Correia também é evangélico. Não parece ser do tipo histriônico de um Weintraub, embora já o tenha elogiado em tuíte que depois apagou. Os olavistas fazem campanha contra Fader por ter financiado João Dória na eleição para governador de São Paulo, e tanto evangélicos quanto olavistas o “acusam” de ser ligado a Jorge Paulo Lehman, que tem interesse em projetos educacionais, como se isso fosse defeito. Querem que o sucessor de Weintraub seja um de seus assessores, de igual calibre ideológico.

O presidente Bolsonaro, desde que teve que deixar amortecido seu gênio “incontrolável” para se enquadrar nas normas e regras democráticas, procura um caminho intermediário entre os bolsonaristas radicais – que representariam apenas cerca de 15% do seu eleitorado segundo o Datafolha – e outros setores que o apóiam, como empresários e políticos do centrão.

Nesses setores, Feder tem boa acolhida, mas ao convidá-lo o presidente Bolsonaro pediu que só aparecesse em Brasília na segunda-feira. Provavelmente para testá-lo na frigideira da opinião pública durante o fim de semana. Renato Feder ficou numa situação constrangedora, preterido na escolha para o ministério da Educação após ter sido recebido pelo presidente Jair Bolsonaro.

Pareceu que não tinha passado no teste. Pelo menos é uma pessoa que se dedica à educação, e o seu pensamento econômico e político combina com o liberal do ministro da Economia Paulo Guedes. É co-autor de um livro sobre como se livrar do peso do Estado para o país se desenvolver, e cita muito Margareth Tatcher, Ronald Reagan e outros liberais.

Escreveu esse livro quando tinha menos de 30 anos, e hoje reescreve seus pensamentos com menos liberalismo e mais realismo. Bom, porque ao se referir à sua proposta polêmica sobre financiamento da educação através de vouchers do governo, para permitir que os alunos menos favorecidos pudessem cursar escolas privadas de boa qualidade, usou uma frase infeliz para defender a superioridade da iniciativa privada sobre a governamental. Disse que assim como é melhor a iniciativa privada fritar hambúrgueres, a mesma coisa acontece com a educação.

Ele defendia um caminho até a privatização total do ensino, inclusive das universidades, tese que já abandonou. Hoje, diz estar convencido de que o ensino público pode ser de qualidade, e se preocupa com problemas concretos, como evasão escolar, melhoria do aprendizado que se refletiria favoravelmente nos exames internacionais como o Pisa, onde o Brasil invariavelmente vai mal, melhoria da gestão das escolas.

Seria representante de uma ala ideológica não radicalizada, ao contrário de seus antecessores, responsáveis por uma inércia educacional nesses primeiros meses de governo Bolsonaro que só fez piorar o estado já precário de nossa educação.


Adriana Fernandes: Apagão de dados

Uma lei de silêncio tem sido imposta a tudo que é relacionado aos militares

O apagão de dados sobre o auxílio emergencial de R$ 600 é muito grave. É obrigação do Ministério da Cidadania começar a abrir com detalhes essas informações para entendermos a real necessidade de prorrogação do benefício para além das duas parcelas anunciadas essa semana pelo presidente Jair Bolsonaro.

A proposta do Renda Brasil, como está sendo chamado o programa social do governo que vai substituir o Bolsa Família, não poderá ser bem avaliada se os especialistas não tiverem a real dimensão do seu alcance após os efeitos da pandemia, que ampliou a pobreza no País e vai tirar emprego de milhões de brasileiros.

O desenho inicial do programa social planejado pelo Ministério da Economia, como mostrou o Estadão, revela que o ministro da Economia, Paulo Guedes, pretende ampliar de R$ 32 bilhões para R$ 51,7 bilhões a destinação de recursos após o fim do auxílio. Maior espaço fiscal está sendo buscado para ampliar a verba, mas a equipe econômica quer que tudo fique dentro do teto de gastos, que é no momento a sua principal âncora fiscal.

Especialistas no tema, porém, avaliam que o aumento nos recursos é pouco para a realidade pós-covid. Eles fazem as contas: 60 milhões de brasileiros, que recebem hoje o auxílio, devem ficar de fora do Renda Brasil.

Como fazer uma apuração detalhada se o governo não abre a caixa-preta que se tornou o auxílio? Nem mesmo informações solicitadas pela Lei de Acesso à Informação (LAI) estão sendo respondidas. Na maioria dos casos, os pedidos da imprensa profissional são atendidos de forma protocolar, com respostas até mesmo desconectadas com as perguntas.

Quantas pessoas foram aprovadas a receber o auxílio? Quantas efetivamente receberam? Quantas tiveram os pedidos negados? Quais os motivos? Quantos pedidos estão em análise e, até mesmo, quantas famílias foram cortadas do próprio Bolsa Família, contrariando o período de suspensão dos cancelamentos determinado por portaria ministerial? Quais os Estados e municípios dessas pessoas, para que se possa preparar a Defensoria Pública e até mesmo os gestores? Perguntas ainda sem respostas.

Enquanto faltam dados precisos, alertas de organizações sociais têm chamado a atenção para a decisão do governo de passar todos os beneficiários para a poupança digital criada automaticamente pela Caixa Econômica Federal, mesmo que tenham indicado conta já existente em outro banco na solicitação do auxílio.

Essa restrição provocou distorções e, até mesmo, o roubo criminoso que permitiu a movimentação indevida do valor do auxílio emergencial, trocando o e-mail e o telefone cadastrados. Casos sobre fraudes são expostos todos os dias, enquanto pelo menos 10 milhões de pessoas ainda aguardam resposta para receber o auxílio, mesmo depois de 80 dias do início dos pagamentos.

O ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, só divulga o que quer e esconde os dados mais importantes sobre o programa de transferência de renda para os desassistidos na pandemia do coronavírus. Nem mesmo justifica a falha de cruzamento para detectar pessoas muito ricas aprovadas para receber a renda emergencial. Ou estão sonegando ou o sistema é muito falho mesmo?

O cronograma estendido até meados de setembro para a liberação do dinheiro da terceira parcela indica que o pagamento das outras duas poderá ir até dezembro. Um grande problema para um programa que é emergencial.

Muito se tem falado sobre a falta de transparência de dados no governo Bolsonaro. O episódio mais dramático foi a tentativa do Ministério da Saúde de esconder os números das mortes e dos contaminados pela doença.

Esses casos não são pontuais. Pelo contrário, se alastram na Esplanada. Uma lei de silêncio tem sido imposta a tudo que é relacionado aos militares. O Ministério da Economia, que deveria cuidar do impacto nas contas públicas, tem recorrentemente evitado comentar quando o assunto é relacionado aos militares. Até mesmo sobre informações publicadas no Diário Oficial ou notas técnicas preparadas pelo próprio ministério.

Reportagem do Estadão mostrou o impacto de R$ 26,5 bilhões em cinco anos de apenas um dos penduricalhos salariais aprovados pelo Congresso com as bençãos do presidente Bolsonaro. É quase um ano de Bolsa Família apenas com uma bonificação salarial dada aos militares que fizeram cursos ao longo da carreira.

O governo não quis explicar. Assim como também não quer revelar quantos militares da reserva estão trabalhando hoje no Executivo recebendo um adicional de 30%. Por que será?


Miguel Reale Júnior: A questão social

No primeiro ano deste governo aumentou a miséria, que crescerá mais com a pandemia

Para os sequazes do presidente, ou se é bolsonarista ou se é de esquerda. Pior, “comunista”. Essa dicotomia radical decorre da devoção a líder atleta salvador da pátria.

É assustador que falar de justiça social seja tido como tema esquerdista em país onde parcela imensa da população vive abaixo da linha de pobreza. Em notícia do Jornal da USP, no início do mandato de Bolsonaro, segundo os indicadores sociais do IBGE, 54,8 milhões de brasileiros estavam abaixo da linha da pobreza, ou seja, um quarto da população nacional tem renda domiciliar por pessoa inferior a R$ 406 por mês, de acordo com os critérios adotados pelo Banco Mundial.

Em novembro de 2019, passado um ano de governo Bolsonaro, a situação não melhorara, conforme o IBGE: a extrema pobreza aumentou no Brasil, somando 13,5 milhões de pessoas sobrevivendo com renda mensal per capita de até R$ 145, recorde em sete anos, e quase um quarto da população brasileira, 52,5 milhões de pessoas, ainda vivia com menos de R$ 420 per capita por mês.

A desigualdade social é secular, em grande parte herança da escravidão, pois a abolição jogou os ex-escravos, destituídos de qualificação, no mercado de trabalho sem condições de competição e possibilidades de progredir por ausência de educação e saúde. Daí (desculpem o uso dessa expressão), a constatação de que “a pobreza atinge sobretudo a população preta ou parda, que representa 72,7% dos pobres, em números absolutos, 38,1 milhões de pessoas”.

A questão social já fora abordada por Rui Barbosa em famoso discurso no Teatro Lírico no Rio de Janeiro na campanha presidencial de 1919, no qual pergunta: “Mas o que fizeram dos restos da raça resgatada os que lhe haviam sugado a existência em séculos da mais ímproba opressão?”. Rui conclui ter sido a abolição uma ironia atroz, pois “ao dar liberdade ao negro, desinteressando-se, como se desinteressaram, absolutamente de sua sorte, não vinha a ser mais do que alforriar os senhores”. E aponta o mestre: “Nem instrução, nem caridade, nem a higiene intervieram de qualquer modo”.

A questão social foi objeto de largos estudos ao longo do tempo. Cabe destacar a atenção dada ao problema pelo fórum nacional organizado por Reis Velloso. O estudioso Roberto Cavalcanti de Albuquerque tem por critério não apenas os níveis de rendimento, mas indicadores sociais como educação, saúde, trabalho, rendimento e habitação. Mostra, então, ter havido declínio do crescimento anual nos anos 1980, fruto da crise do petróleo, da dívida externa e da inflação.

Propõe, de conseguinte, em 2004, programa de redução da pobreza para “capacitar os pobres a serem sujeitos de suas próprias inclusões econômico-sociais”. Atendido esse programa, calculou que a extrema pobreza, no porcentual de 12,87% da população, poderia reduzir-se a 4,4% em 2015 (Cinco décadas de Questão Social, Rio de Janeiro, José Olympio, 2004, pág. 141). Enganou-se.

O desastroso segundo governo Dilma jogou o Brasil na recessão e o primeiro ano do governo Bolsonaro no campo social e econômico foi também negativo, proporcionando um aumento da miserabilidade, como antes assinalado.

Medida de grande alcance social, tornada evidente na pandemia, consiste na alteração da legislação relativa ao saneamento básico. O Projeto de Lei n.º 3.261 de 2019, de autoria do senador Tarso Jereissati, baseado em medida provisória de Michel Temer, altera a Lei n.º 11.445, de 5 de janeiro de 2007 (Lei do Saneamento Básico), buscando dar condições estruturais do saneamento básico no País. No caso, todavia, a iniciativa foi do Congresso.

Dos indicadores sociais, portanto, destacam-se: a saúde e a educação. Na área da saúde, o governo federal, em plena pandemia, só conspirou em desfavor das medidas de precaução da disseminação do vírus. Hoje o ministério está militarmente ocupado. No campo da educação o desastre foi total: Weintraub, centurião do bolsonarismo, pretendendo prender os “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal. Agora se chegou a nomear um pretenso pós-doutor reprovado no doutoramento: fake currículo.

Mas, para os bolsonaristas raiz, criticar o chefe é ser esquerdista e “comprometedor” preocupar-se com justiça social e direitos das minorias. Essa narrativa nada tem que ver com o impeachment de Dilma, quando se buscou livrar o País do desastre econômico, que se aprofundaria se ela ficasse no poder, e do aparelhamento do Estado viabilizador da corrupção sistêmica em benefício do PT e de outros partidos.

A corrupção não é de esquerda ou de direita, é negativa. A busca de redução da desigualdade social também não tem lado, é medida de justiça.

Posso concluir com Rui Barbosa, para quem o egoísmo deve ceder frente à solidariedade humana, para se admitir a democracia social visando a reparar os agravos sofridos pela classe miserável, que, infelizmente, crescerá com a pandemia.

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça