Jamil Chade: Cruzada ultraconservadora do Brasil na ONU
Após se aliar a Arábia Saudita contra inclusão de educação sexual em resolução, delegação brasileira veta expressão "saúde reprodutiva" em texto contra ablação, isolando país

É um mergulho ideológico sem precedentes na diplomacia brasileira. O Governo de Jair Bolsonaro, que já havia se aliado a países ultraconservadores como a Arábia Saudita para vetar a inclusão do termo “educação sexual” em uma resolução na ONU contra a discriminação de mulheres e meninas, agora se opõe a citar “saúde sexual e reprodutiva” num texto proposto por países africanos para banir a mutilação genital feminina. Ainda que o Governo brasileiro defenda lutar contra esse flagelo que atinge cerca de 3 milhões de meninas por ano, a conduta do Itamaraty vem sendo a de pedir a exclusão de qualquer referência ao acesso das mulheres à “saúde sexual e reprodutiva”. O temor da nova ultraconservadora representação do Brasil é que, no futuro, a expressão seja usada para justificar práticas de aborto. Os autores dos textos negam qualquer relação com a interrupção da gravidez e apontam que, no caso da mutilação, tal acesso pode significar a diferença entre a vida e a morte dessas mulheres.
O posicionamento do Governo brasileiro gerou a incompreensão de diplomatas estrangeiros e foi recebido com choque pelas demais delegações. Em Brasília, na sede do Itamaraty, as orientações dadas pela cúpula do ministério também causaram indignação dos próprios funcionários na capital federal. A conduta também vem isolando o Brasil na América Latina, já que o Itamaraty agora é visto como retrógrado pelos países africanos e como bárbaro pelos Governos europeus. O Governo do esquerdista Antonio Manoel López Obrador, do México, por exemplo, chegou a propor a garantia de direitos à saúde sexual para essas meninas submetidas à ablação genital, numa direção diametralmente oposta ao que os diplomatas brasileiros vem sugerindo.
O episódio que turva o debate da resolução contra a mutilação genital, prevista para ir a voto na semana que vem no Conselho de Direitos Humanos da ONU, está longe de ser inédito. A guinada ultraconservadora do Governo brasileiro vem sendo aplicada em diversas reuniões e propostas sob debate nas Nações Unidas. O Itamaraty passou a traduzir em sua política externa uma visão em que só existe o sexo biológico e que não existiria consenso sobre o acesso à saúde sexual e reprodutiva. Termos como “gênero” e “identidade” já tinham também sido questionados.
No entanto, o que surpreendeu os demais países é que, nesse caso, todos os estudos apontam para a importância do tema da saúde sexual e reprodutiva justamente no combate à mutilação genital, que é o corte ou a remoção deliberada de parte da genitália feminina externa —frequentemente lábios vaginais e o clitóris.
Segundo a OMS, 200 milhões de meninas e mulheres vivem em países que praticam a mutilação. A maioria das vítimas tem entre zero e 15 anos de idade e a prática é considerada violação de direitos humanos. Concentrada em países africanos e do Oriente Médio, estima-se que a mutilação poderia atingir 3 milhões de meninas por ano. A agência de Saúde das Nações Unidas explica que a mutilação é “visa assegurar a virgindade pré-matrimonial e a fidelidade conjugal”. “Em muitas comunidades acredita-se que a mutilação reduz a libido de uma mulher e, portanto, ajuda a resistir a atos sexuais extraconjugais”, segue a OMS .
Para a agência e para especialistas, o acesso de mulheres à saúde sexual e reprodutiva, a que o Brasil se opõe, é um importante instrumento para garantir o direito dessas meninas. Num estudo realizado em 2017, a Escola de Medicina Tropical de Liverpool indicou que “aumentar a saúde sexual e reprodutiva de mulheres afetadas pela mutilação só será possível se tomadores de decisão colocaram isso como prioridade”. Entidades como aInternational Planned Parenthood Federation (IPPF) defendem que acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutivos seja garantido a todas as mulheres que são submetidas a tal prática.
Contra a educação sexual
A indignação com a guinada da diplomacia brasileira já havia aparecido nos últimos dias. Numa resolução que propõe uma luta contra a discriminação contra mulheres, o Itamaraty também levantou sua placa para dizer que não estava de acordo com termos. O veto brasileiro, neste caso, foi apoiado por Governos ultraconservadores e acusados de violação aos direitos das mulheres. A mesma posição do Itamaraty foi adotada por Arábia Saudita, Catar, Bahrein, Iraque, Paquistão e Iraque. Já todos os ocidentais saíram em apoio ao projeto, proposto pelo México.
No caso da resolução sobre discriminação, o trecho sob disputa cita a garantia de acesso universal à educação sexual. Assim como nos demais casos, o Governo Bolsonaro não explicou o motivo de seu posicionamento.
O projeto toca em assuntos como a necessidade de “eliminar todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas”. A meta é a de reforçar a luta pela igualdade de gênero como um dos objetivos das metas de 2030. O texto também deve ir à votação na semana que vem.
Não é a única mudança no projeto solicitada pelo Brasil. Um outro trecho que o Governo quer sua exclusão completa reconheceria que “a gama completa de informações e serviços de saúde sexual e reprodutiva inclui planejamento familiar, métodos seguros e eficazes de contracepção moderna, anticoncepção de emergência, programas de prevenção da gravidez adolescente, assistência à saúde materna, tais como assistência qualificada ao parto e assistência obstétrica de emergência, incluindo parteiras para serviços de maternidade, assistência perinatal, aborto seguro onde não seja contra a legislação nacional, assistência pós-aborto e prevenção e tratamento de infecções do trato reprodutivo, infecções sexualmente transmissíveis, HIV e cânceres reprodutivos”.
A pressão dos Governos islâmicos e o Brasil, porém, não convenceu os autores do projeto a aceitar sua retirada do rascunho do projeto. Ao tomar a palavra, o Governo do México afirmou que seria “difícil” excluir o parágrafo inteiro e alertou que retirar o capítulo de saúde e acesso à saúde reprodutiva minaria o centro da resolução, que é lutar contra a discriminação sofrida por mulheres e meninas.
O impasse entre o bloco ultraconservador e o restante dos Governos deve levar o projeto a ser alvo de intensas negociações nos bastidores até a semana que vem. Num outro trecho do projeto, o Governo brasileiro ainda fez um pedido para que seja reconhecido o papel de entidades religiosas na formulação de políticas públicas para a defesa das mulheres e da igualdade de gênero.
Num outro trecho, o Brasil apoiou Afeganistão e Nigéria ao questionar uma referência no texto a “outros fatores de identidade”. A postura do Itamaraty de aproximação aos Governos mais conservadores tem sido alvo de polêmicas dentro da ONU, que considerava o Brasil como um dos aliados tradicionais no avanço dos direitos das mulheres.
A atitude do governo brasileiro voltou a surpreender ativistas de direitos humanos. “O Brasil mais uma vez dá um vexame internacional e se firma no grupo de países que adotam as posturas mais retrógradas nas discussões sobre gênero nas Nações Unidas”, afirmou Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos. “A postura do órgão não condiz com as políticas adotadas no Brasil há anos e com os compromissos internacionais assumidos pelo país em matéria de gênero e direitos sexuais e reprodutivos”, disse.
Durante a reunião na semana passada para apresentar seus vetos, o Governo brasileiro tomou a palavra e explicou que tais termos “geram controvérsias”. O Governo também insistiu que “rejeita a prática do aborto como um método contraceptivo. “Planejamento familiar é um assunto de liberdade do casal e o Estado é responsável por prestar recursos a esse direito, sem coerção”, completou.
William Waack: Meia-volta forçada
A crise inverteu prioridades econômicas do governo, mas falta um plano
O economista britânico John Maynard Keynes não era um dos autores da preferência do ministro da Economia, Paulo Guedes, quando ele estudou em Chicago. Ao contrário: no período da sua formação acadêmica, “Chicago” definia o polo oposto doutrinário e intelectual a Keynes, eternizado no templo de algumas escolas de economia como guardião da intervenção estatal (isso não é justo com Keynes, mas é assim que acabou ficando no imaginário).
Guedes parece seguir agora uma das frases pelas quais Keynes é lembrado: “Se os fatos mudam, eu mudo de opinião”. É exatamente a volta que Guedes deu nas últimas semanas, surpreendido por uma crise de saúde pública inédita e que tem como grande consequência o fato de tornar milhões de brasileiros pobres ainda mais pobres, e milhões de desempregados ainda mais distantes de conseguir trabalho. Descobrimos 38 milhões de invisíveis, resume Guedes. Ou seja, gente fora de qualquer mercado formal.
O governo Bolsonaro conquistou coração e mentes de agentes econômicos prometendo menos Brasília, menos intervenção e um rápido destravamento da economia via reformas estruturais. Não era bem um plano – era um conjunto de intenções, que coincidiam em grande medida com aspirações de vastos segmentos, especialmente empresariais. Assumia-se que renda e emprego viriam automaticamente com as reformas estruturantes e a consequente expansão da economia.
Agora é exatamente o contrário. Renda e emprego são o foco declarado das ações que Guedes pretende que o governo desenvolva da forma mais rápida e ampla possível. A crise jogou o governo e Guedes num intrincado dilema: precisa ao mesmo tempo salvar pessoas que caíram para baixo da linha da miséria, garantir programas emergenciais para empresas que estão demitindo e falindo, estender a mão para entes da Federação sufocados pelo buraco das contas públicas (que está aumentando), buscar não se sabe onde recursos para investir, atrair a iniciativa privada para minimamente compensar a perda da capacidade de investimento do Estado.
As razões políticas que levaram o governo e seu principal ministro a rever radicalmente orientações e ações são óbvias: Bolsonaro está também trocando de eleitorado, e o “dinheiro do Bolsonaro” (o coronavoucher) esclarece boa parte da forma com que seu prestígio pessoal supera as constantes crises que ele cria para si mesmo. Claro que Guedes percebeu como os fatos mudaram e, portanto, como também teria o governo de mudar de “opinião” – empurrado ou não pelo cálculo político eleitoreiro (totalmente legítimo, aliás) de curto prazo, o que se estabeleceu foi uma prioridade, e ela é social.
A questão central, porém, continua sendo a mesma do início do mandato em 2019. Há um conjunto de intenções que rimam perfeitamente com a percepção que se tem da realidade brasileira (combater miséria, doença e desemprego é a prioridade zero zero) em todos os setores, mas não está claro qual seria o “road map”, qual a sequência de ações que levariam o País a “aterrissar”, como gosta de dizer o ministro da Economia, numa situação de renda mínima para os mais necessitados e expansão da economia com empregos de qualidade.
As opções para agir se reduziram consideravelmente e hoje são basicamente arrombar os cofres públicos e tentar reformas que demoram para trazer resultados. Tendo de manobrar uma massa de parlamentares fisiológicos, conhecida como Centrão. E sem muito tempo, fator essencial que o cínico Keynes resumiu tão bem na mais conhecida de suas frases: “A longo prazo, estamos todos mortos”. Politicamente, pode-se morrer bem mais cedo ainda.
Deputado Luiz Paulo aborda crise fiscal no 7º webinar Reinventar o Rio de Janeiro
Parlamentar está em seu quinto mandato na Alerj; evento online tem transmissão ao vivo no site e página da FAP no Facebook
Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP
O deputado estadual Luiz Paulo Correa da Rocha (PSDB-RJ) vai discutir a crise fiscal do Rio de Janeiro com todos os internautas interessados, nesta terça-feira (7), das19h30 às 21h, em um debate online que busca contribuir para a melhoria da cidade maravilhosa. Realizado pelo Cidadania 23 do município com apoio da FAP (Fundação Astrojildo Pereira), o sétimo webinar da série Reinventar o Rio de Janeiro terá transmissão ao vivo no site da entidade e em sua página no Facebook.
Durante o webinar, Rocha vai abordar os principais assuntos e apontar saídas para a saúde financeira do município. Ele é engenheiro civil formado pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), com mestrado em transporte pelo Coppe. Foi, também, professor titular de Topografia da Faculdade de Arquitetura Silva e Souza. Iniciou sua vida pública há mais de 54 anos, no Departamento de Estradas e Rodagens da Guanabara.
Assista ao vivo!
Luiz Paulo está em seu quinto mandato na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). De acordo com o site da Casa, ele é defensor intransigente da democracia e de ações que se destinem a atrelar o desenvolvimento econômico ao social. Autor de mais de 100 leis, também tem se dedicado intensamente à luta contra a indústria das multas, à defesa dos servidores públicos, ao combate aos abusos e arbitrariedades do Estado e da iniciativa privada, nas situações de mediação de conflitos entre os Poderes e a sociedade com a ótica dos menos favorecidos.
A série de webinars Reinventar o Rio de Janeiro pretende também mobilizar lideranças para interferir nas discussões e possíveis intervenções sobre o futuro da cidade maravilhosa. A ideia é manter o comprometimento do partido de buscar sempre melhorias para a cidade, mesmo no período de isolamento social decorrente da pandemia do coronavírus. Webinar evita a aglomeração física de pessoas no mesmo local e possibilita grande participação online de interessados.
Veja vídeos de outros webinars da série Reinventar o Rio de Janeiro:
Vinicius Muller discute ética e política no sexto webinar Reinventar o Rio de Janeiro
Raul Jungmann avalia segurança pública em webinar Reinventar o Rio de Janeiro
Danielle Carusi discute desigualdade no quarto webinar Reinventar o Rio de Janeiro
Ligia Bahia aponta desafios da saúde no terceiro webinar Reinventar o Rio de Janeiro
Washington Fajardo discute cidade em webinar Reinventar o Rio de Janeiro
Confira a abertura da série Webinar Reinventar o Rio de Janeiro
Eliane Cantanhêde: Paus-mandados
Erros na Educação, Saúde, Itamaraty e Ambiente não são dos ministros, mas do presidente
Quem tem muitos candidatos a um ministério é porque não tem nenhum e é exatamente nesse impasse que o governo está, não em relação a um cargo qualquer, mas ao rico, estratégico, fundamental Ministério da Educação. Todas as frente de pressão – “ala ideológica”, “ala militar”, Centrão, evangélicos e empresários do setor – têm seus próprios nomes. O presidente Jair Bolsonaro não consegue se fixar em nenhum.
Motivos não faltam para a insegurança, depois de Vélez Rodríguez, Abraham Weintraub e Carlos Alberto Decotelli. Nenhum nome parece confiável e nenhum nome confiável aceita o abacaxi. MEC e Saúde têm os dois maiores orçamentos da Esplanada dos Ministérios – R$ 95 bilhões e R$ 125,6 bilhões, respectivamente, em 2020. Logo, são alvo de aliados em geral e bolsonaristas em particular. Para estes, 99% dos milhares dos quadros das duas pastas são esquerdistas articulando a revolução comunista.
Assim, a prioridade não é uma política para Educação ou uma ação estratégica de combate à pandemia da covid-19, mas, sim, “limpar a área” e “acabar com o aparelhamento”, sufocando políticas tradicionais e, com elas, os técnicos mais antigos, experientes e reconhecidos. Se há aparelhamento, seria trocar um por outro.
Resultado: o MEC teve três ministros nomeados e nenhum programa para os três níveis de ensino em um ano e meio de governo, enquanto a Saúde enxotou seu primeiro time de médicos, inclusive sanitaristas e epidemiologistas, em meio a milhares de mortes (mais de 65 mil até ontem) e mais de um milhão de contaminados (1,6 milhão).
Não poderia dar certo Bolsonaro delegar a escolha do ministro da Educação ao tal guru da Virgínia e aos filhos – que passam a quilômetros da área acadêmica. No caso de Vélez, a surpresa foi ter sido derrubado pelos próprios “olavistas” do MEC. No caso de Weintraub, foi que ele era muito mais louco e perigoso do que se poderia imaginar.
Já Decotelli foi uma indicação bastante razoável da “ala militar”, pois tinha experiência, títulos, interlocução com o setor. O perfil era ótimo, pena que se revelou uma fraude. Reaberta, a sucessão virou uma arena de digladiadores e o professor e empresário Renato Feder, duas vezes favorito, antes e depois de Decotelli, achou prudente cair fora. Quem pode condená-lo por isso?
Na Saúde, para que tirar os médicos? Para pôr três dezenas de militares e um general da ativa como ministro interino, com uma única função: bater continência cegamente na pandemia a uma política anticientífica e ameaçadora que está numa única cabeça, a de Bolsonaro.
Assim, é o próprio Ministério da Saúde que rechaça o isolamento social, reconhecido no mundo inteiro como a única “vacina” contra a covid-19, e que adota a cloroquina, descartada por dezenas de trabalhos científicos em diferentes pontos do planeta. Que médico, em sã consciência, aceitaria ser tão imprudente e na contramão da Ciência?
O negacionismo e a guerra à racionalidade não param aí. A novidade é que o presidente, que se recusa a usar máscara, maior aliada do isolamento social, agora veta a obrigatoriedade de que os brasileiros a usem em locais fechados, como lojas, escolas e igrejas, e acaba de vetar também em presídios. Vai morrer muito mais gente… Às dezenas, às centenas ou, o mais provável, aos milhares? A história dirá.
Mais calado, menos beligerante, Bolsonaro faz um favor ao seu governo e ao País, mas tem de nomear ministros à altura para Educação e Saúde e reavaliar a política externa e o Meio Ambiente. Com uma ressalva: assim com Vélez, Weintraub e o general Eduardo Pazuello, também Ernesto Araújo e Ricardo Salles são só paus-mandados. O dono das políticas – logo, o responsável pelos erros – é o próprio Bolsonaro.
El País: A era do ‘vale-tudo’ nas redes sociais está acabando
Decisões importantes do Youtube, Facebook, Reddit e Twitch demonstram que não é mais permitido todo discurso político
Nos últimos dias houve novidades impactantes para o futuro das redes sociais. Nenhuma decisão por si só é brutalmente inovadora. Mas seu fluxo incessante indica o caminho que as redes adotaram: o discurso de ódio não é permitido e a linha vermelha ficará cada vez mais clara. A guerra sobre onde está o limite marcará o futuro da Internet.
Em ordem de importância, as decisões foram estas quatro: primeiro, o Twitch removeu temporariamente o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de sua plataforma. O Twitch é uma rede de transmissões ao vivo dedicadas principalmente a videogames. Mas seu crescimento é contínuo e os streamings são cada vez mais variados. O conteúdo que aparentemente provocou a suspensão temporária de Trump é um streaming de um comício dele em 2015, no qual dizia que o México estava enviando estupradores para os Estados Unidos, além de outros comentários racistas em um recente comício em Tulsa, Oklahoma.
O Twitch parece que passou a levar a sério as repetidas acusações de mulheres de que permite o assédio em sua plataforma. A importância primordial da decisão do Twitch é que cancelou a voz do presidente dos Estados Unidos. Outras redes sempre optam por mantê-lo, com a desculpa do discurso político e de sua importância informativa, na melhor das hipóteses chamando a atenção com avisos ao lado de suas mensagens. O Twitch, de propriedade de Jeff Bezos, com quem Donald Trump tem uma relação complicada, foi um passo além.
A decisão do Twitch se soma à do Snapchat no início de junho, quando decidiu deixar a conta de Trump intacta, mas não a destacar mais em sua página principal, para impedir que seus comentários promovam violência.
O segundo é o Reddit, que removeu mais de 2.000 comunidades de sua plataforma por promoverem discurso de ódio. O motivo foi a atualização de suas políticas: “A regra 1 estabelece explicitamente que as comunidades e os usuários que promoverem o ódio baseado em identidade ou em vulnerabilidade serão suprimidos”. O Reddit é uma rede social estruturada em torno de milhares de comunidades de interesse às quais os usuários se unem ―de questões políticas a peculiaridades como bricolagem, culinária ou arquitetura― e que têm seus próprios moderadores voluntários.
Desde a sua criação, em 2005, o Reddit se caracterizava como um dos fóruns mais transgressivos da Internet. Isso acabou. O Reddit agora baniu canais que violam sua nova norma de ódio, de todas as ideologias, mas um se destaca: r/The_Donald. Chama-se assim por seu apoio ao presidente. O Reddit tentou, durante anos, sem sucesso, fazer com que os moderadores do r/The_Donald restringissem os posts ao que é permitido. As punições e sanções da empresa contra a comunidade fizeram com que os usuários mais ativos migrassem para um fórum próprio: TheDonald(.)win.
Terceiro, o Facebook designou o movimento Boogaloo como uma “organização perigosa”, o que resulta em ações contra seus promotores. A empresa excluiu 220 contas do Facebook, 95 contas do Instagram, 28 páginas do Facebook e 106 grupos, além de outros 400 grupos e 100 páginas vinculadas.
O Boogaloo é uma dessas coisas impossíveis que não existiriam sem a Internet. O nome vem de um filme dos anos 80 e era usado em fóruns remotos como 4chan e 8chan. Seus membros são aparentemente filiados à tradição de milícias armadas nos Estados Unidos e sua suposta intenção é provocar uma segunda guerra civil nos Estados Unidos. No final de maio, um extremista que dizia pertencer ao grupo matou um policial em Oakland, Califórnia. Seu local preferido de coordenação era supostamente o Facebook.

Parece natural para o Facebook perseguir grupos que usam sua plataforma para matar policiais, mas o Boogaloo é um desafio em si mesmo. Seu esquema de organização consiste em usar outros nomes como referência, dissimular suas opiniões e enganar a rede. O esforço que o Facebook deverá dedicar à caça de grupos organizados para combater ferramentas de inteligência artificial que eles adotam será enorme e uma novidade.
Quarto, o YouTube fechou alguns canais que considerava racistas. De novo, não é a primeira vez. Mas seus tentáculos se expandem. Um dos canais é de Stefan Molyneux, que lamentou no Twitter a “censura” imposta pela plataforma. Para gente como ele, o desaparecimento do YouTube pode causar problemas de subsistência. A possibilidade de crescimento que o YouTube lhe dava é difícil de encontrar em outro lugar. Molyneux tentou o Twitch, com pouco sucesso. A personalidade e os usuários de cada rede são únicos.
A Internet não é mais a mesma
Estas medidas são importantes por vários motivos, mas há um mais do que evidente: a Internet não é mais o espaço livre e aberto onde todos nós nos conectamos com todos, sem que ninguém intervenha. Isso pode continuar a ser feito, é claro: na maioria dos países, ninguém impede a abertura de um site nem que se conte a barbaridade que se desejar, desde que isso não seja um crime. O problema será como ficar conhecido, disseminar e propagandear esse conteúdo.
As principais plataformas são aquelas onde as pessoas estão. Um grupo de fanáticos poderá continuar criando seu fórum supremacista na Internet, mas como recrutarão novos usuários? Onde encontrarão milhões de almas cândidas dispostas a rir de seus memes agressivos? O r/The_Donald se beneficiava da página inicial do Reddit ―”a capa da Internet”― que milhões de pessoas acessavam para ver o que estava acontecendo, qual era a tendência. Ali, as piadas poderiam atrair a atenção de usuários que acabariam entrando no r/The Donald para ver o que mais havia. Agora, The_Donald é um site na Internet. Lá podem conversar, rir e se organizar, até crescer, mas devagar. Eles não têm mais um lugar fácil para recrutar adeptos.
O pesquisador Savvas Zannettou, do Instituto Max Planck, de Berlim, analisou a influência na conversa na Internet do antigo canal r/The_Donald no Reddit. Era impactante. Agora ele se empenha em analisar como o fim de sua relação com o Reddit repercutiu no peso desse grupo. A investigação não está terminada, mas ele é cético: "Nossos resultados preliminares mostram que apenas uma fração dos usuários ativos no r/The_Donald migrou para a nova casa, mas esses usuários estão mais ativos agora do que quando estavam no Reddit", explica. Embora o trabalho não esteja concluído, a intuição de Zannettou indica que seu peso caiu. "Suspeito que a influência da nova casa será substancialmente menor em comparação com a anterior, pois agora eles têm plataforma/fórum próprios e não podem facilmente alcançar o grande número de usuários que passavam pelo Reddit", acrescenta.
O nervosismo do ano eleitoral nos EUA, a pressão desencadeada pelo movimento Black Lives Matter e as evidências, com a pandemia, de que as informações que circulam nas redes têm consequências reais facilitaram a absorção dessas decisões. Mas é uma tendência que parece clara há anos. O fundador e CEO do Reddit, Steve Huffman, refletiu no The New York Times sobre sua mudança de opinião: “Quando começamos o Reddit, há 15 anos, não proibíamos coisas. E era fácil, como para muitas outras pessoas, dizer coisas assim porque, primeiro, eu tinha crenças políticas muito mais rígidas, e segundo, me faltava perspectiva e experiência do mundo real”, diz ele. A tradução é simples: os fundadores dessas redes não são mais tão jovens e viram que as consequências de permitir tudo são extraordinárias.
Mas Huffman prossegue: “Aqui estamos agora, acreditando que a liberdade de expressão é muito importante e que é uma das coisas que torna o Reddit especial, mas, ao mesmo tempo, vendo que permitir tudo é trabalhar contra a nossa missão”. Até agora, a linha vermelha do que as redes permitiam era feita de tinta borrada e desgastada, mas, com o tempo, está se tornando um muro sólido para deixar de fora o que acreditam ser ódio, assédio e violência. Parece uma decisão lógica e fácil, mas há tribunais que discutem os limites há décadas.
Bruno Carazza: ‘O povo’ contra Zuckerberg
Redes sociais enfrentam resistência regulatória
Durante a segunda metade da década de 1990, a internet se popularizou e um mundo de possibilidades parecia se abrir. O índice Nasdaq, a bolsa de valores onde a maioria das pequenas e médias empresas de tecnologia emitiam seus títulos, saltou de 1.288,37 em janeiro de 1995 para 7.092 pontos cinco anos depois, quando nos demos conta de que o mundo não havia acabado por causa das profecias religiosas e nem pelo bug do milênio. Mas logo depois a bolha pontocom estourou.
Uma série de motivos levou a uma forte desvalorização das ações de empresas de tecnologia, como o aperto monetário promovido pelo Fed entre 1999 e 2000, a conscientização dos investidores de que muitas daquelas startups não tinham fôlego para transformar em lucros as promessas miraculosas de valorização e escândalos corporativos em que empresas forjavam seus resultados para atrair novos aportes de recursos.
A primeira menção ao Facebook nas páginas do Valor Econômico foi numa reprodução de uma reportagem da BusinessWeek que tratava justamente do renascimento das empresas do Vale do Silício. O texto trazia uma lista de novas firmas que poderiam ser alvo de aquisições pelas gigantes da época, como Microsoft, HP, SAP e (veja só!) Yahoo. Nele, especulava-se que “o site Facebook, especializado em confraternização de estudantes universitários, poderia ser atraente para uma empresa como a News Corp”.
Mark Zuckerberg e seus colegas de quarto em Harvard haviam lançado o TheFacebook em 4 de fevereiro de 2004. Quando o Valor publicou essa matéria, em setembro de 2005, a empresa havia acabado de perder o “The”, e o que se viu nos anos seguintes foi a pequena “rede social de estudantes” passar de caça a predadora, lançando-se numa sequência de aquisições de mais de 80 negócios, sendo as mais famosas o Instagram (2012) e o WhatsApp (2014).
Movimento similar foi realizado pelas outras quatro tech giants (Google, Microsoft, Apple e Amazon), que deglutiram criações promissoras como YouTube, Skype, Waze, LinkedIn, Picasa e GitHub. Somando essas incorporações aos produtos desenvolvidos internamente, esses conglomerados controlam hoje a forma como nos informamos, comunicamos, consumimos e até mesmo nos movimentamos por aí.
No mês passado Cielo e Facebook anunciaram ao mercado que pretendem lançar no Brasil uma ferramenta de pagamento diretos por meio do WhatsApp. Mas a associação entre a empresa líder em operações por cartões (com 40% do “market share” nacional) com o principal aplicativo de mensagens do mundo (que possui mais de 120 milhões de usuários ativos só no Brasil) foi suspensa preventivamente pelo Cade e pelo Banco Central - embora na última semana o órgão de defesa da concorrência tenha revisto provisoriamente sua posição.
Na queda de braços entre empresas e órgãos reguladores, são bilhões de reais em jogo e um dilema de princípios e objetivos de política econômica: de um lado, promessas de comodidade e facilidade para o usuário, com a possibilidade de realização de transações por um meio simples e acessível por todas as classes sociais; de outro, a preocupação em preservar o ambiente concorrencial, garantir a eficiência do sistema de pagamentos.
Esta não é a única frente de batalha do Facebook. Depois das acusações de quebra de privacidade e fornecimento de dados para a consultoria Cambridge Analytica desenvolver estratégias eleitorais para políticos como Donald Trump, a empresa de Zuckerberg agora é o principal alvo do movimento #StopHateForProfit. Uma mobilização de organizações sociais questiona o Facebook e outras mídias de serem lenientes com o discurso de ódio e o extremismo, em troca de cliques e tempo de tela de seus usuários. Sensibilizadas pela repercussão, grandes anunciantes como Pfizer, Microsoft, Starbucks e Unilever suspenderam a compra de espaço nas redes sociais durante o mês de julho numa tentativa de forçá-las a rever seus algoritmos e melhorar a política de moderação de comentários.
Aqui no Brasil, além dos ecos dessa mobilização nos Estados Unidos, há a discussão em torno do projeto de lei das “fake news”. De autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e batizada com o pomposo nome de Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, a proposta acabou de ser aprovada no Senado e deve mobilizar os debates nas próximas semanas.
A leitura do artigo 3º do projeto revela o quão complexo é esse assunto. Afinal de contas, é virtualmente impossível equilibrar, na letra fria da lei, princípios e direitos tão fluidos e muitas vezes conflitantes como liberdade de expressão, respeito às preferências políticas individuais, privacidade, acesso universal aos meios de comunicação e informação e transparência.
Na sua essência, o projeto amplia a responsabilidade dos provedores de redes sociais (como Facebook, Instagram, Twitter, TikTok etc) e de mensagens privadas (WhatsApp, Telegram e Messenger, entre outros) em relação a identificação dos titulares das contas, restrições à atuação dos famosos “bots” que amplificam o alcance de mensagens e criação de procedimentos para a retirada de conteúdos ofensivos.
Enquanto a pandemia acelera uma tendência que já parecia irreversível de inserção dos negócios e das relações profissionais no mundo virtual, o projeto de lei nº 2.630/2020 determina que os provedores dos serviços devem limitar o envio de mensagens e adotar políticas de transparência quanto aos conteúdos impulsionados e à veiculação de publicidade. E nestes tempos em que os políticos elegem as redes sociais como o fórum para se comunicar com eleitores e representados, medidas ainda mais restritivas são direcionadas à propaganda política.
Não há dúvidas de que nossa vida se tornou bem fácil com o advento das maravilhas desse mundo tecnológico. Mas à medida que nossos relacionamentos, negócios e expressões políticas acontecem predominantemente no ambiente virtual, mais difícil se torna equilibrar interesses, objetivos e princípios divergentes - é alto o preço que temos de pagar por esse admirável mundo novo.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Geraldo Brindeiro: A Constituição e a defesa do regime democrático
Os ministros do STF são os guardiães da vontade do povo expressa na Assembleia Constituinte
A Constituição estabelece que todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido, por intermédio de representantes eleitos ou diretamente. A soberania popular é norma constitucional. E o voto direto, secreto, universal e periódico é cláusula pétrea. Na democracia representativa, contudo, as maiorias são eventuais. Daí a importância da preservação das liberdades e dos direitos fundamentais – não apenas no período eleitoral, mas durante todo o mandato dos eleitos. O eleitorado – sobretudo as novas gerações de eleitores – precisa ter garantida a plenitude das liberdades e do acesso às informações dos governantes para avaliar seu desempenho e votar livremente nas eleições seguintes.
No regime presidencialista – adotado no Brasil desde o início da República, nos moldes do presidencialismo originário dos Estados Unidos da América – a maioria elege o presidente da República e os membros do Congresso Nacional para exercerem o poder durante os respectivos mandatos. Na República e na democracia, portanto, por definição, o poder político é temporário e limitado. Deve ser exercido, durante o mandato eletivo, com o devido respeito à Constituição e às leis do País e observado o princípio da separação dos Poderes – que é também cláusula pétrea, assim como a Federação e os direitos e garantias individuais.
Na célebre obra De l’Esprit des Lois, em 1748, Montesquieu criou a doutrina da separação dos Poderes exatamente para evitar a concentração de poder e preservar as liberdades e os direitos fundamentais. E nos The Federalist Papers, escritos durante o período de realização da Convenção de Filadélfia, que deu origem ao presidencialismo e à Constituição americana de 1787, James Madison foi além e preconizou a adoção do sistema de freios e contrapesos (checks and balances) para realizar o controle recíproco dos Poderes no exercício de suas funções constitucionais, evitando abusos e excessos do que denominou majority tyranny (Federalist n.º 51). Finalmente, Alexander Hamilton observou ainda que a garantia da supremacia da Constituição é responsabilidade do Poder Judiciário em razão da natureza de suas funções: “… the judiciary, from the nature of its functions, will always be the least dangerous to the political rights of the Constitution” (Federalist n.º 78).
O Poder Executivo dirige a administração pública (“holds the sword”), o Poder Legislativo controla as finanças do Estado (commands the purse) e prescreve as normas legais (“prescribe the rules”…) e o Poder Judiciário julga de acordo com a Constituição e as leis (“The interpretation of the laws is the proper and peculiar province of the courts”).
Os ministros do Supremo Tribunal Federal – tal como os justices da Suprema Corte americana – não são eleitos pelo voto popular. São, todavia, os guardiães da vontade do povo expressa na Assembleia Constituinte e formalizada na Constituição. E sua nomeação transcende o mandato do presidente que os nomeou após prévia aprovação do Senado. A vitaliciedade garante sua independência para realizar os julgamentos. A vedação de atividade político-partidária lhes confere isenção e imparcialidade ao interpretar a Constituição e as leis do País, sem estar adstritos às contingências de mandato eletivo, o que assegura a estabilidade jurídica e a promoção do bem comum, e não de interesses de facções políticas.
No livro A Preface to Democratic Theory, Robert Dahl observa que James Madison, ao referir-se ao princípio republicano, preconiza a necessidade de instituição “that will blend stability and liberty” de maneira a assegurar os interesses comuns e permanentes da comunidade (Federalist n.º 63). Alexander Bickel, professor de Yale, na obra The Least Dangerous Branch – The Supreme Court at the Bar of Politics, argumenta que, desde Marbury versus Madison em 1803, quando a Suprema Corte criou o judicial review, esta tem a última palavra sobre a interpretação da Constituição. E observa que a Suprema Corte tem mantido contínuo colóquio com as instituições políticas para alcançar acomodação e compromisso sem abandono de princípio, destacando o caráter contramajoritário do seu papel. Laurence Tribe, professor de Harvard, no livro On Reading the Constitution argumenta que interpretar a Constituição não é reescrevê-la. E a despeito de teorias de interpretação e hermenêutica com alto grau de abstração dos princípios e normas constitucionais, é preciso estabelecer linha divisória entre o que a Constituição diz e o que o intérprete deseja que ela diga, sob pena de violação da vontade do povo manifestada na assembleia constituinte. Alexander Hamilton já observara que não se deve supor que o Judiciário seja superior ao Legislativo, mas sim que o poder do povo expresso na Constituição é superior a ambos.
O governo democrático deve respeitar a liberdade de expressão e de imprensa, admitir críticas e garantir o acesso de todos às informações governamentais. Não há democracia sem liberdade, pluralidade de ideias e de partidos políticos e tolerância recíproca na convivência e na diversidade. E a Constituição estabelece que compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição. E ao Ministério Público, a defesa da ordem jurídica e do regime democrático.
*Doutor em Direito por Yale, professor da UNB, foi Procurador-Geral da República (1995-2003)
Merval Pereira: Os inocentes
“Os inocentes do Leblon”, poesia de Carlos Drummond de Andrade de 1940, poderia ter sido escrita ontem, quando os bares do bairro carioca encheram-se de “inocentes” sem medo do amanhã. Aglomerados, sem máscara, “os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram/mas a areia é quente, e há um óleo suave/ que eles passam nas costas, e esquecem”.
Excitados pela liberação açodada e irresponsável dos bares e restaurantes por governantes fracos e oportunistas, os inocentes saíram às ruas para comemorar o quê? Quase 70 mil mortes? Mais de um milhão e meio de contaminados pela Covid-19?
Em vários lugares do mundo, e não apenas no Leblon, multidões saíram às ruas depois de pelo menos três meses de quarentena, e muitos locais já estão tendo que retroceder, com certas áreas na Espanha, e o toque de recolher imposto em Miami.
Em Paris, um festival de música que atraiu milhares de jovens pode ter provocado um aumento da contaminação. Estados Unidos, México e Brasil são responsáveis por mais da metade das mortes mundiais por Covid-19, não por acaso governados por dirigentes negacionistas.
Em plena ascensão da praga, o presidente Bolsonaro dá-se ao desplante de vetar a obrigatoriedade de máscaras no comércio e nas igrejas, e governadores populistas mudam de posição pensando na eleição de novembro.
Como será “o mundo pós-pandemia”? O advogado e escritor José Roberto Castro Neves reuniu um grupo de especialistas para imaginarem o que acontecerá em seus respectivos campos de atuação, e o resultado, editado pela Nova Fronteira, já está nas livrarias.
São prognósticos otimistas, outros nem tanto, em áreas como Medicina, Economia, Humor, Educação, Meio-Ambiente, Cinema, Saúde, e assim por diante. Coube-me escrever sobre política, não a partidária, mas a que rege nossa vida em sociedade.
Fui otimista, mas diante dos roubos de respiradores, de obras superfaturadas em hospitais de campanha, dos primeiros comportamentos no pós-pandemia antecipado, temo ter sido ingênuo. Aí vão alguns trechos:
“A natureza produziu uma cruel metáfora ao nos enviar um vírus mortal que sufoca ao mesmo tempo que provoca uma limpeza no meio-ambiente pela necessidade de ficarmos em casa para tentar salvar-nos.
(…) A peste escancarou também a extrema pobreza e, sobretudo, a desigualdade com que convivemos cotidianamente como se fossem coisas da vida. Milhões de “invisíveis” surgiram do nada para assombrar os governantes, que não os detectavam nem mesmo nos programas sociais.
(…) Se a palavra “política”, do grego “politéia”, que trata das relações sociais na “polis” (Cidade-Estado), define a atuação das diversas camadas de uma sociedade nessa perspectiva, é plausível imaginar que uma sociedade que tenha passado pelo choque que a nossa está passando reveja suas prioridades e torne-se mais interessada em temas que têm sido relegados, como saneamento básico, saúde pública, educação.
(…) Não ser contaminado pela Covid-19 depende de uma decisão individual, mas também do entendimento de que, se protegendo, protegem-se também as demais pessoas que nos circundam.
(…) Entre nós, temas incontornáveis passam a ser o sistema de saúde pública como o SUS, um avanço democrático que mostrou ser essencial no combate à Covid-19, mesmo com suas deficiências e limitações, que devem ser corrigidas a partir do financiamento público reforçado.
(…) A inevitabilidade da morte não significa que ela não deva ser retardada o mais possível, através de uma vida saudável e dos meios de atendimento à população mais carente. A valorização da ciência e da tecnologia é inevitável como política pública de um mundo pós-pandemia.
(…) não haverá espaço para políticas retrógradas e fisiológicas se quisermos participar de um mundo que ganhará uma ressignificação depois do sofrimento provocado por um vírus que nos mostrou nossa pequeneza diante do universo, ao mesmo tempo em que a grandeza do ser humano emergiu da solidariedade planetária.
Vera Magalhães: Quem sabe sabe
Pragmáticos superam Guedes, militares e ideológicos e fazem a cabeça de Bolsonaro
Quando a coisa fica feia, quem você chama para resolver? Se o problema é de natureza política, o risco é um impeachment e ao seu redor só há neófitos no assunto, alguns claramente perturbados por delírios ideológicos, é melhor você chamar os profissionais do ramo.
Foi o que Jair Bolsonaro fez, quando a insensatez com que vinha conduzindo o País desde janeiro ameaçava de fato desaguar numa interdição de seu mandato, por alguma das muitas frentes abertas para conter seu ímpeto autoritário e genocida.
Foi buscar logo os mais experientes. Convencionou-se falar em “Centrão”, mas é bom dar nomes aos bois. Hoje, quem faz a cabeça do presidente em primeiro lugar não são os militares, alquebrados pela forma como as Forças Armadas foram desgastadas pelo delírio golpista do presidente, nem Paulo Guedes, cuja agenda liberal foi solapada pela crise da pandemia e pelo populismo que o chefe vai adotando sem cerimônia, nem os malucos ideológicos, dos quais o “capitão” parece que vai se cansando.
O conselheiro-geral da República se chama Gilberto Kassab, preside o PSD, avalizou dois ministros em um mês, ajudou a calar a matraca presidencial e – milagre dos milagres – ainda escapa incólume da artilharia dos filhos e dos fanáticos da internet.
Surpreendente, mas não para o personagem em questão. Kassab foi vice de José Serra na chapa para a Prefeitura de São Paulo em 2004 e virou prefeito quando o tucano foi disputar o governo, dois anos depois. Contra todas as apostas, foi reeleito em 2008, derrotando a ex-prefeita Marta Suplicy e o ex-governador Geraldo Alckmin, cuja teimosia em disputar o cargo rachou a aliança PSDB-DEM.
Dessa fissura começou a ser gestado o plano de Kassab de ter o próprio partido, ao qual dedicou seu segundo mandato. Se em 2010 ainda manteve a aliança com Serra, passou os quatro anos do primeiro mandato de Dilma Rousseff num processo de aproximação com o PT que lhe rendeu o Ministério das Cidades no segundo mandato da petista.
Dali saiu em 15 de abril de 2016, exatos dois dias antes de o impeachment ser aberto na Câmara. Um mês depois, assumia o Ministério de Ciência e Tecnologia de Michel Temer, a mais rápida metamorfose política até para a exótica política brasileira.
Em 2018, se aliou ao antes arqui-inimigo Alckmin e se aproximou de João Doria, de quem recebeu logo na transição a Casa Civil, pela lealdade. Virou alvo de inquérito na Lava Jato e a nomeação foi “congelada”, em outra peripécia desse personagem sui generis na política nacional: está há 550 dias licenciado sem vencimentos de uma pasta que nunca ocupou! Isso no governo do maior adversário atual do novo “brother”, o presidente Bolsonaro.
Graças a Kassab, Bolsonaro nomeou Fábio Faria para as Comunicações, neutralizando as bobagens que o voluntarioso Fábio Wajngarten vinha fazendo. Faria já começou um trabalho silencioso de aproximação com os veículos de mídia que o presidente se esmerou em ter como inimigos. Também foi do novo ministro o conselho para que o presidente diminuísse suas declarações, que quase sempre produziam uma nova crise para si mesmo em meio à maior pandemia do século.
Percebendo o efeito concreto da aproximação com o Centrão em geral e com Kassab em particular, Bolsonaro acelera no caminho que, a seu ver, pode evitar sua única preocupação como presidente: a de perder o mandato.
A escolha de Renato Feder vai nessa linha, e os olavistas fazem piti para tentar derrubá-lo antes de assumir. Se Bolsonaro ceder ao lobby da ala histérica e começar a rifar o Centrão pragmático, voltará a correr riscos. Esse pessoal, Kassab à frente, não esquenta lugar em governo condenado a cair e sente o gosto de sangue na água.
Lourival Sant'Anna: Golpes à democracia
Rússia, China, Brasil e EUA assistem a processos de enfraquecimento da democracia ao longo do ano
A democracia sofreu golpes na Rússia, China e Estados Unidos na semana que passou, mas recebeu alentos na Europa e no Brasil.
Um referendo aprovou mudanças constitucionais que permitem a Vladimir Putin se eleger para mais dois mandatos de seis anos, a partir de 2024, quando termina o atual. Muitos russos gostam de Putin, que identificam com a estabilidade, depois das rupturas traumáticas dos anos 90. Mas muitos não votaram exatamente pela sua perpetuação no poder. A consulta era sobre um pacote de emendas, que atrela o salário mínimo a um cálculo de renda mínima, corrige as aposentadorias pela inflação e declara casamento união entre homem e mulher. As opções eram sim ou não para o pacote todo.
A propaganda em torno do referendo focou nos benefícios salariais e no ataque ao casamento de homossexuais, numa Rússia que se tornou mais conservadora nas últimas duas décadas sob Putin, aliado da Igreja Ortodoxa. Ele governa a Rússia desde 1999. Em 2036, terá 83 anos.
O regime chinês emendou a Lei Básica de Hong Kong, introduzindo normas de segurança que, essencialmente, criminalizam os protestos, com prisões perpétuas por motivos vagos, como “subversão” ou “vinculação com estrangeiros”. Centenas de pessoas já foram presas. Na prática, deixa de existir o status de semiautonomia, e o modelo de “um país, dois sistemas”, consagrado no acordo da devolução do território à China pelo Reino Unido, que deveria durar 50 anos, até 2047.
O presidente Donald Trump deixou claro que investirá na divisão dos americanos para tentar se reeleger em novembro. Em um tuíte, por exemplo, ele disse que pode revogar uma lei que beneficia moradia de negros nos subúrbios, porque ela “desvaloriza” o patrimônio de “grandes americanos”. Noutro, afirmou que a frase “Vidas Negras Importam”, pintada pela prefeitura de Nova York na 5.ª Avenida, onde ele tem escritório, “denigre uma avenida luxuosa”.
Em contrapartida, a vitória dos Verdes nas eleições municipais francesas, domingo passado, representa um alento para a democracia: trata-se de uma corrente da esquerda europeia que se atualizou, entendeu a importância do papel das empresas na preservação ambiental, e se prontifica a fazer alianças com grupos conservadores. Essas alianças já aconteceram em seis Estados alemães, no governo da Áustria e, há uma semana, no da Irlanda. Os ambientalistas se tornam, assim, uma alternativa à extrema direita e à esquerda estatizante, na formação dos governos europeus.
A Alemanha assumiu a presidência de turno da União Europeia. No que poderá ser a última grande missão da chanceler Angela Merkel antes de se aposentar, a UE tem três desafios este semestre: levar adiante a discussão sobre o aprofundamento de sua integração, cujas falhas ficaram evidentes na gestão desigual e descoordenada da pandemia; repartir os custos das políticas de mitigação frente à crise sanitária; e negociar os termos finais da saída do Reino Unido, cujo prazo termina no fim do ano.
O liberalismo, a expressão da democracia na economia, também ganhou um ânimo, na reunião de cúpula do Mercosul. Brasil, Paraguai e Uruguai mantiveram-se alinhados no projeto de reduzir as tarifas do bloco e negociar acordos de livre-comércio com Canadá, Coreia do Sul, Cingapura, Índia e Líbano. A voz dissonante foi a do presidente argentino, Alberto Fernández.
A democracia brasileira demonstra vitalidade, com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal retomando a iniciativa, para colocar limites às extrapolações de integrantes do governo federal. O cuidado maior com as palavras no círculo do presidente Jair Bolsonaro e a demissão de Abraham Weintraub do Ministério da Educação sugerem um reconhecimento da força dos freios e contrapesos.
Nada está jamais garantido para a democracia. Ela é uma construção cotidiana.
Bernardo Mello Franco: A derrocada de Serra e o declínio do PSDB
Demorou seis anos, mas aconteceu. Na sexta-feira, a Lava-Jato denunciou o primeiro figurão do PSDB de São Paulo. O senador José Serra foi acusado de receber propina da Odebrecht durante as obras do Rodoanel. Os repasses somaram R$ 191 milhões em valores atualizados, informou o Ministério Público Federal.
Os procuradores dizem ter identificado crimes de corrupção, fraude a licitação e formação de cartel. Como a investigação andou a passo de tartaruga, a maior parte das acusações prescreveu. Mesmo assim, Serra e a filha Verônica foram denunciados por lavagem de dinheiro transnacional.
Também na sexta, a Polícia Federal fez buscas em endereços do senador e do ex-deputado Ronaldo Cezar Coelho, que já admitiu ter recebido caixa dois na Suíça. A operação recebeu o nome de Revoada. Homenagem singela ao tucano, símbolo do partido que governou o país entre 1995 e 2002.
Ex-prefeito, ex-governador e ex-ministro, Serra foi quase tudo, menos o que sempre quis ser. Chegou ao segundo turno de duas eleições presidenciais, mas foi derrotado por Lula e Dilma Rousseff. Sua derrocada abre um novo capítulo na história de declínio do PSDB. O partido passou incólume pela Lava-Jato enquanto pontificava na oposição. Consumado o impeachment, viu sua blindagem desmoronar.
Candidato ao Planalto em 2014, Aécio Neves escapou por pouco da cadeia. Os ex-governadores Beto Richa e Marconi Perillo não tiveram a mesma sorte. Até Eduardo Azeredo, precursor do valerioduto, acabou em cana. Ele havia se tornado um símbolo da impunidade: denunciado por crimes na campanha de 1998, conseguiu adiar por duas décadas o encontro com o xadrez.
Os escândalos derreteram a imagem da sigla que liderava o coro contra os desmandos do PT. Desiludido, o eleitor que confiou na pureza dos tucanos bateu asas e pousou no ombro de Jair Bolsonaro. Em 2018, Geraldo Alckmin teve míseros 4% dos votos. Foi o pior resultado do PSDB em oito corridas presidenciais.
Depois do massacre nas urnas, o que restou do partido caiu no colo de um preposto de João Doria. O governador de São Paulo sonha com o Planalto, mas esbarra na pecha de elitista. Há dois dias, sua mulher disse que não se deve doar marmita aos desabrigados porque eles “gostam de ficar na rua” e precisam “se conscientizar”.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não disfarça a antipatia pelo casal. Prefere inflar o balão de Luciano Huck, animador de auditório e aspirante a salvador da pátria.
O PSDB de Doria tem pouco a ver com o partido social-democrata de Covas, Montoro e FH. Para marcar a guinada à direita, o governador mudou até o logotipo da sigla. Saiu o tucano e entrou a bandeira verde e amarela, emblema dos seguidores do capitão. Ele ainda franqueou a legenda a dissidentes do bolsonarismo, como o deputado Alexandre Frota e o empresário Paulo Marinho.
Em 2022, essa turma enfrentará uma raia congestionada. Apesar de todos os pesares, a direita brucutu se mantém fiel ao Mito. Correndo por fora, o ex-juiz Sergio Moro ameaça dividir ainda mais o campo conservador.
Hélio Schwartsman: A nova face do racismo
Racismo contemporâneo se materializa principalmente no chamado racismo implícito
O texto que escrevi sobre a possibilidade de o racismo ter contribuído para a queda do professor Carlos Alberto Decotelli do comando do MEC ensejou vários questionamentos de leitores, de modo que volto ao tema hoje.
O racista clássico, do tipo que xinga negros, diz que são uma raça inferior e veste um lençol na cabeça para caçá-los, é, felizmente, uma espécie em extinção —exceto, talvez, em alguns departamentos de polícia. Aliás, a rapidez com que, no Ocidente, passamos de um contexto em que a discriminação estava sacramentada nas leis de vários países para um em que é vista como falha moral intolerável representa uma grande conquista da civilização, que nem sempre é reconhecida como tal.
Não obstante, o racismo continua aí, como se pode verificar em uma miríade de estatísticas sociais e experimentos psicológicos. Uma explicação para o fenômeno é dada por Mahzarin Banaji (Harvard) e Anthony Greenwald (Universidade de Washington), autores do excelente “Blindspot” (ponto cego), que já comentei aqui.
Para a dupla, o racismo contemporâneo já não se materializa tanto em atos explícitos de discriminação (o que não significa que nunca ocorram), mas principalmente no chamado racismo implícito, que é aquele do qual os próprios autores não se dão conta, mas que pode ser acessado através de testes psicológicos.
Na vida prática, isso se traduz não numa rejeição aberta ao negro, mas em sua exclusão dos gestos de benevolência que as pessoas reservam àqueles aos quais se sentem de alguma forma próximas.
Estamos falando da professora que deixa de dar uma atenção extra ao aluno negro por percebê-lo, ainda que inconscientemente, como um caso perdido, ou do policial que não alivia as coisas para o adolescente negro pego com alguns cigarros de maconha, mas livra a barra do garoto branco flagrado na mesma situação. No agregado, esses detalhes fazem enorme diferença.