Merval Pereira: Reforma necessária
Agora que a reportagem da Rede Globo sobre funcionários fantasmas na Assembléia Legislativa do Rio foi indicada para o Emmy, o maior prêmio internacional da televisão, ao mesmo tempo que a investigação sobre o sistema de “rachadinha” salarial dos funcionários de diversos gabinetes de deputados estaduais, entre eles o hoje senador Flavio Bolsonaro, vai chegando a resultados concretos, é mais que hora de repisar a necessidade de uma revisão da organização dos gabinetes parlamentares em todos os níveis, do federal ao municipal.
Por sua própria natureza, a “rachadinha” demonstra que os parlamentares têm assessores em excesso, cujos salários são também supervalorizados diante do praticado pelo mercado profissional. O assessor Fabricio Queiroz era, segundo está sendo demonstrado nas investigações, o responsável por receber e redistribuir parte dos salários dos funcionários do gabinete de Flavio Bolsonaro.
O valor total da soma dos vencimentos mensais de cada gabinete da Assembléia Legislativa do Rio é de R$ 160 mil, para ser distribuído entre possíveis 40 assessores. Até mesmo auxílio-alimentação é fraudado, segundo denunciou o deputado Luiz Paulo. Segundo ele, seria melhor adotar o ticket-refeição, para evitar o que muitos servidores fazem: devolvem o dinheiro referente ao auxílio-alimentação aos deputados que os empregam, ou para a “caixa” do partido.
A reportagem da Globo mostrou que vários assessores não aparecem para trabalhar, alguns foram flagrados pela reportagem em casa em dia de semana, e uma funcionária mora em Orlando, na Flórida. Depois de a reportagem ser exibida, foram abertas duas investigações, uma da própria Assembléia e outra do Ministério Público estadual, e até agora, oito meses passados, nada foi resolvido. Marli Regina de Souza Costa continua vivendo na Flórida e, mesmo à distância, trocou de deputado, mantendo a mordomia de R$ 23 mil mensais.
Dois dos servidores denunciados aposentaram-se, ganhando mais do que na ativa e com uma vantagem, não precisam mais dar parte de seu salário para ninguém. Na Câmara dos Deputados em Brasília o valor mensal da verba de gabinete é R$ 111.675,59, e cada deputado pode contratar de 5 a 25 secretários parlamentares para “prestar serviços de secretaria, assistência e assessoramento direto e exclusivo nos gabinetes dos deputados, em Brasília ou nos estados”.
Foi num desses cargos que Nathalia Melo, filha de Queiroz foi registrada no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro, embora trabalhasse no Rio como personal trainer. No Senado, a questão é mais complicada, um “emaranhado de leis” segundo o secretário-geral da Associação Contas Abertas, Gil Castello Branco, que impede que se tenha noção clara dos critérios e salários.
A Transparência Brasil dividiu estados e capitais em grupos de maiores e menores PIBs per capita, e confrontou os tamanhos das economias com os gastos parlamentares – que incluem salários, verbas e auxílios diversos a deputados estaduais e vereadores. “O que se revelou foi uma inversão lógica: segundo dados coletados junto a Assembléias e Câmaras, estados mais pobres gastam em média 20% mais do que os ricos; capitais mais pobres, 16% a mais”.
O Pará, por exemplo, que tem um terço do PIB per capita de São Paulo, gasta 30% a mais por deputado estadual. “A irracionalidade é a mesma quando se comparam as capitais: Natal tem a metade do PIB per capita de Curitiba, mas empenha com seus vereadores o dobro da capital paranaense. No entanto, as Câmaras Municipais destas gastam por vereador 16% a mais com salários, auxílios e verbas indenizatórias do que as capitais com os maiores índices de PIB per capita”.
O mesmo ocorre, segundo o relatório da Transparência Brasil, nas Assembleias Legislativas. Enquanto os 12 estados da base seus gastos com salários e verbas são 20% mais altos do que os dos 12 estados do topo.
Na reforma administrativa que se pretende fazer, este seria um tema prioritário, não apenas para impedir que esse sistema de “rachadinha” se perpetue com o desvio do dinheiro público para os partidos políticos ou o bolso do parlamentar. Também como exemplo de que prevalecerá entre os representantes do povo a postura ética que lhes é exigida pelos cargos para os quais foram eleitos.
Ricardo Noblat: Na Venezuela e no México, como no Brasil
Qualquer semelhança não é mera coincidência
Na Venezuela, o chavismo contaminou a imagem de isenção dos militares como o bolsonarismo tenta fazer por aqui. No México, eleito depois de prometer moralizar a vida pública, o presidente Andrés López Obrador, um político de esquerda, está às voltas com denúncias que o embaraçam e à sua família. Lembra algo?
Vídeos divulgados na última quinta-feira mostram um dos irmãos de Obrador, Pío Lopes, recebendo dinheiro de David León, diretor da nova distribuidora estatal de medicamentos. As imagens são de 2015. Os pagamentos já eram feitos há um ano e meio. Foram cerca de dois milhões de pesos, o equivalente a 500 mil reais.
Em um dos vídeos, León, que na época trabalhava como consultor, vai à casa de Pío López para lhe entregar um milhão de pesos (250 mil reais). E pede que informe ao seu irmão sobre a origem do dinheiro: “Avise o advogado […] que nós o estamos apoiando”. Pío responde: “Irmão, irmão. Já sabe, já sabe perfeitamente bem”.
López Obrador afastou David León: “Vamos procurar outra pessoa enquanto isso é esclarecido e ele fica limpo.” E disse que não sabe se o dinheiro foi declarado à Justiça, algo obrigatório. Esquivou-se: “Só sei que muitas pessoas contribuíram com recursos para a campanha.” No México, caixa 2 também é crime.
A divulgação dos vídeos ocorre em meio ao chamado Caso Lozoya. Uma gravação mostra um grupo de políticos recebendo subornos e a denúncia do ex-diretor da Pemex (a Petrobras mexicana) Emilio Lozoya que implica três ex-presidentes da empresa e 14 outros políticos em episódios de corrupção.
Foi López Obrador quem bancou a divulgação do Caso Lozoya para “purificar a vida pública”. Serviu para que comparasse os valores envolvidos nas duas situações: o equivalente a 90 mil dólares, entregues ao seu irmão, e o equivalente a 200 milhões de dólares, que ele tratou como “corrupção do dinheiro público”.
No mesmo dia em que o presidente mexicano tentava se apartar de mais um escândalo que abala seu governo, no Brasil a defesa do senador Flávio Bolsonaro recorreu da decisão da Justiça que autorizou o prosseguimento das investigações sobre seu eventual envolvimento no crime de lavagem de dinheiro.
O novo procurador-geral da Justiça do Rio será escolhido em dezembro próximo. Comandará o órgão que investiga Flávio e também seu irmão Carlos, vereador. Ameaçado de impeachment, o governador Wilson Witzel admite negociar a indicação de um nome ao gosto de Flávio, desde que não perca o cargo.
Flávio parece preferir negociar a indicação com Cláudio Castro, o vice de Witzel, e que assumirá a vaga se o governador for derrubado. Nada disso seria necessário se o próprio Flávio tivesse convencido da sua e da inocência do irmão. Não é verdade?
Vinicius Torres Freire: Bolsonaro soma vitórias e se revigora no caos que criou
Tolhido pelo que resta de razão no país, presidente se revigora no caos que cria
Jair Bolsonaro lembra um daqueles monstros ou vilões de filmes juvenis de ação, que se fortalecem quanto mais tiros levam, que se revigoram no caos e na destruição e assim se reerguem das ruínas. Parece a mão do morto-vivo que rebrota da terra na madrugada do cemitério nevoento.
Seus adversários e inimigos têm ficado pelo caminho: os panelaços, os manifestos dos letrados, a “frente ampla”, as torcidas de futebol nas ruas, os pedintes de impeachment, os cientistas, os ambientalistas, Luiz Mandeta, Sergio Moro, os indignados com o morticínio.
Quem impõe limites a Bolsonaro e impede seus atos maiores de desgoverno acaba por ajudá-lo. Em meados de junho, no pico da sua impopularidade e da onda de comícios golpistas, prenderam o gerente da boca de rachadinha da família, Fabrício Queiroz. Acabou por ser uma vitória acidental.
O caladão que lhe foi em parte imposto pelo que resta de República, os dinheiros dos auxílios emergenciais e a reabertura avacalhada da economia recuperaram Bolsonaro. Além da complacência de Justiça e polícia, apareceram mais boas notícias.
O emprego formal está no nível mais baixo desde que se tem registro, desde 2013, mas voltou a subir em julho. A massa (soma) de salários também. Quanto mais aumentar, menos notável e dramático será o fim do auxílio emergencial, lá pelo fim do ano. Nesta segunda-feira, todos os shoppings do país estarão reabertos.
A semana que passou começara com o que parecia uma derrota no Senado. Mas a Câmara ratificou a decisão do presidente de vetar qualquer reajuste de servidores até o final de 2021. Deu-lhe 316 votos, quase o bastante para aprovar um remendo da Constituição. Ou seja, “o sistema” quer governar para Bolsonaro, tocar esse programa reformista do establishment. O presidente atrapalha, mas se beneficia.
O governo era contra auxílios emergenciais em geral (dizia que a economia decolaria contra o vento contrário cheio de vírus do mundo). Bolsonaro queria liberar reajustes para certos servidores, em particular policiais. Jamais defendeu ou entendeu controle de gastos; na miúda, tenta burlá-lo.
O país se acostumou aos mil mortos por dia. Até pela natureza bárbara das epidemias duradouras, o número de doentes e mortes deve diminuir a partir de setembro. A doença comprida terá prejudicado a retomada mais precoce da economia, mas isso é uma abstração para o povo na rua. Daqui em diante, a carnificina será cada vez menos notada, embora atroz. O Brasil voltará a sua rotina de violência aberrante, com uma causa mortis a mais, apenas. A indiferença ao morticínio é uma vitória da mentalidade bolsonariana.
O juro baixo do mundo rico nos ajuda. Na média, o comércio volta ao azul, apesar da destruição imensa em vários setores. O real desvalorizado faz o progresso de regiões exportadoras. Até o gasto menor em viagens internacionais ajuda a movimentar partes da economia.
Sim, estamos na pior recessão da história, a convalescença terá sequelas e ninguém sabe dizer como reagirá a economia a um ajuste fiscal abrupto em 2021. Mas centenas de bilhões de reais e auxílios, cortesia de sociedade, atenuaram e atenuarão dores e horrores. Ponto, porém, para Bolsonaro.
O presidente já foi descrito como um parasita político pelo filósofo Marcos Nobre, nas páginas desta Folha. Quer destruir o “sistema”, a “velha política” e a “esquerda”, todos que discordam dele, a quem atribui as desgraças do país. Mas se vale do “sistema” que resiste e funciona, apesar do seu desgoverno.
Janio de Freitas: Fachin vê, como todos, e diz, como poucos, sobre futuro contaminado por despotismo
Ministro do STF faz diagnóstico forte e destemido ao tratar da escalada do autoritarismo no Brasil após eleições de 2018
A repercussão negada pelos jornalistas não nega ao exame da atualidade pelo ministro Edson Fachin, do Supremo, a condição de mais importante pronunciamento de um integrante das altas instituições brasileiras, ao menos desde iniciado o governo Bolsonaro, se não desde a queda de Dilma Rousseff.
A “recessão democrática” ainda não recebera nada no nível adotado por Fachin, exceto em parte pelo ministro Celso de Mello.
Objetivo como os magistrados evitam ser, claro e simples como os magistrados detestam ser, franco e lúcido como deveriam ser as considerações necessárias dos magistrados, Fachin advertiu que “as eleições de 2022 [as presidenciais] podem ser comprometidas se não se proteger o consenso em torno das instituições democráticas”. Proteger de quê ou de quem?
O diagnóstico é forte e destemido: há “uma escalada do autoritarismo no Brasil após as eleições de 2018”, gerada pela existência de “um cavalo de Troia dentro da legalidade constitucional” do país.
“Esse cavalo de Troia apresenta laços com milícias e organizações envolvidas com atividades ilícitas. Conduta de quem elogia ou se recusa a condenar ato de violência política no passado”. O
que inflama o presente com “surtos arrogantes e ameaças de intervenção”.
Fachin vê, como todos, e diz, como poucos: “O futuro está sendo contaminado por despotismo”.
No Supremo, a ministra Cármen Lúcia pareceu dar eco às palavras de Fachin no Congresso Brasileiro de Direito Eleitoral. Considerou triste a volta forçada do tribunal, diante do dossiê do Ministério da Justiça contra antifascistas, “a este assunto quando já se acreditava ser apenas”, ou ter sido, “uma fase mais negra da nossa História”. Nada a ver com o dito por Fachin, se até agora Cármen Lúcia tinha tal crença. Mesmo a tristeza soa irrealista.
Não faltaram ocasiões em que o Supremo e o TSE foram chamados a sustar a candidatura que atacou a democracia com a defesa da ditadura e da tortura, atacou as instituições constitucionais, prometeu acabar com os petistas e outros, anunciou uma população armada, transpirou ódios preconceituosos e vocação homicida. Isso tudo expelido por uma perturbação mental indisfarçável e com histórico comprovado.
Hoje não faltam crimes de responsabilidade acumulados. Como não faltam mortes pela Covid, não combatida de fato e inocentada para os incautos. E nem é só o figurante principal que continua inatingível pela defesa da ordem constitucional e do devido à população.
Flávio Bolsonaro não precisa controlar as revelações que se sucedem sobre sua delinquência, porque controla a passividade do Senado e o vagar dos seus inquéritos. Carlos Bolsonaro nem interesse demonstrou pelas revelações que o atingem. Fabrício Queiroz e seus contatos milicianos estão protegidos.
A instauração e a ameaçadora continuidade do descrito por Edson Fachin, como ninguém ousou fazer nas altas instituições, têm corresponsabilidades no Judiciário e no Congresso. Mas aí mesmo, na impossibilidade de negar o exposto pelo ministro, ficará mais difícil não ver o que está vendo, para não fazer o que deve.
OS BONS MOÇOS
Desde que passou de senador a deputado, para que seus processos saíssem de Brasília rumo à sua Minas, Aécio Neves não cessa de receber benesses.
Agora é o desaparecimento de delações premiadas integrantes dos seus processos, que por isso param… na Justiça (sic) de Minas.
O que importa é poder usufruir bem, com sua vocação de playboy, os milhões que extorquiu por aí com a irmã. Enquanto Geraldo Alckmin e José Serra seguem suas vidas discretas e bem providas. Aos bons moços do PSDB correspondem bons moços no Ministério Público e nos tribunais.
Bruno Boghossian: Promotores veem rastro da rachadinha em dados das contas de Flávio Bolsonaro
Saques e depósitos sincronizados reforçam suspeitas sobre senador no caso Queiroz
Os promotores que investigam as rachadinhas na Assembleia Legislativa do Rio perguntaram a Flávio Bolsonaro se ele usou dinheiro vivo para comprar dois apartamentos, em 2012. A suspeita surgiu porque, no mesmo dia, o vendedor dos imóveis depositou R$ 638 mil em espécie num banco próximo ao cartório onde foi registrada a transação.
No papel, a compra foi lançada por R$ 310 mil. Em notas de R$ 100, esse valor caberia numa sacola pequena, mas está longe de ser irrisório. Flávio, entretanto, foi incapaz de negar categoricamente o episódio. “Que eu me recorde, não. Se eu não me engano, foi por transferência”, respondeu, segundo o jornal O Globo.
O avanço do caso pode refrescar a memória do senador. A apuração sobre os rolos de Fabrício Queiroz e sobre as movimentações nas contas de Flávio revelaram uma enxurrada de operações em espécie e uma cadeia de acontecimentos que reforça os vínculos entre os dois personagens. Os promotores enxergam indícios claros de lavagem de dinheiro.
Os dados obtidos pelo Ministério Público mostram uma sincronia nas datas de saques efetuados por Queiroz e depósitos realizados em favor de Flávio, de acordo com a revista Crusoé. Em setembro de 2016, o ex-assessor fez cinco retiradas num valor total de R$ 26 mil. Dias depois, a mesma quantia entrou na conta do então deputado, em 14 parcelas.
Há outras operações desse tipo durante o período investigado. Os promotores acreditam que o dinheiro tinha origem ilícita e que o autor dos depósitos era mesmo Queiroz. A defesa de Flávio nega que ele tenha ficado com parte dos recursos operados pelo ex-assessor.
Tudo indica que o Ministério Público tem elementos suficientes para denunciar Flávio e Queiroz. Os promotores ainda aguardam decisões sobre os recursos em que o senador pede foro especial no caso.
Para os investigadores, o uso de dinheiro vivo tinha o objetivo de esconder rastros dessas movimentações e “não decorre de acidente, nem de mera coincidência”. É bom lembrar.
José Roberto Mendonça de Barros: Encontro marcado para setembro (2)
Nunca estivemos tão perto de perder o controle da política fiscal
“O futuro do governo Bolsonaro e o comportamento da economia em 2021/2022 serão determinados pelo resultado de um grande embate que deverá ocorrer a partir de setembro, quando vários vetores relevantes tendem a se encontrar.”
Esses foram o título e o início de meu artigo de 14 de junho neste espaço. Pode-se dizer, hoje, que o embate continua marcado, mas será muito maior que o antes imaginado.
“Em primeiro lugar, por volta de agosto teremos mais clareza quanto ao tamanho da recessão, do desemprego e da insolvência de empresas.”
Hoje, podemos ver uma melhora no desempenho da indústria e do comércio, de junho em diante, mas modesta na área de serviços. Com isso, a expectativa de queda no PIB para 2020 está melhor, com a maioria das estimativas correndo na faixa de 5% a 5,5%. Ainda assim, um tombo enorme.
A pesquisa do IBGE, por outro lado, revela que 715 mil empresas quebraram, até o início de junho, o que pressiona bastante o emprego. De fato, temos um quadro bastante difícil com 12,8 milhões de desempregados, 19 milhões de pessoas que não procuraram emprego por conta da pandemia e 16,3 milhões de pessoas que assinaram acordos com redução de jornada e de salários. A volta a uma certa normalidade no mercado de trabalho será lenta.
“Também é, neste momento, que teremos uma noção mais precisa do enorme custo humano da pandemia.”
Aqui subestimamos o impacto da covid-19. Até o dia 20 de agosto, ocorreram mais de 110 mil óbitos, e não os 80 mil que havíamos indicado dois meses atrás. O número de casos e de óbitos parece estar querendo começar a cair pela primeira vez, o que significa que a pressão será grande pelo menos até outubro.
“Neste momento, a política econômica e as propostas para os próximos dois anos terão de ser repaginadas e se traduzirão no orçamento fiscal (embora não apenas aí).”
Dois meses depois do texto original, está claro que o embate será ainda mais difícil, uma vez que três movimentos se consolidaram:
- A mudança do discurso público do presidente Bolsonaro (mas não suas convicções e práticas);
- A percepção que o coronavoucher atingiu mais gente que o inicialmente esperado (64 milhões de pessoas), o que explica a redução da queda do PIB acima mencionada e que implicou elevação da aprovação do governo;
- Consolidação de uma forte ala “desenvolvimentista” dentro do governo, que batalha para elevar gastos de investimento em obras públicas paralisadas, como forma de acelerar a retomada da economia.
Assim, temos uma formidável força a favor do gasto: o presidente quer consolidar sua campanha à reeleição, as Forças Armadas querem acelerar seus projetos de reequipamento, os ministros militares no Palácio, bem como aqueles ligados à infraestrutura e ao desenvolvimento regional, querem retomar obras públicas e a base política do governo adora e aplaude tudo isso.
Do outro lado, fica o Ministério da Economia, apenas com o apoio efetivo do presidente da Câmara e o suporte indireto da maioria dos agentes econômicos do setor privado.
Pergunta-se: quem vai ganhar o embate?
Desde já, é preciso que se diga que o grupo expansionista não desconhece nossa situação fiscal e, portanto, admite alguns ajustes, como transposição de verbas do abono salarial. Entretanto, o mais importante é o sinal verde para aprovação da nova CPMF (ops, imposto digital), como forma de elevar a receita e diminuir o conflito.
Além disso, não haverá pedalada fiscal a seco, porque não se repetem grandes erros do passado recente (isso não se aplica ao passado antigo, como pretendido pelo novo PND do governo Geisel). Logo, o furo do teto deverá ter base legal, mesmo que necessite de uma PEC.
Por conta do apertado do calendário político e da questão central acima esboçada, três baixas podem ser anunciadas: a reforma tributária, qualquer reforma administrativa que busque elevar a eficiência do Estado e a revolução liberal tão alardeada desde a campanha de 2018. A recente saída de importantes secretários do Ministério da Economia assim sinaliza.
Considerando-se que a dívida pública chegará, na melhor das hipóteses, a 95% do PIB no fim do ano, é imperioso reconhecer que nunca estivemos tão perto de perder o controle da política fiscal.
A explosão do dólar nesta última quarta-feira mostra o que poderá acontecer.
Têm ocorrido coisas extraordinárias no Brasil desses tempos. Descobrimos que o Amapá passou a pertencer ao Vale do São Francisco. Pelo menos é o que se depreende da mudança efetuada na Codevasf, e aprovada pelo Senado, que agora inclui áreas daquele Estado entre suas atribuições (PL 4731).
*Economista e sócio da MB Associados. Escreve quinzenalmente
Rolf Kuntz: Não culpem só a pandemia. O Brasil já ia muito mal
A crise industrial começou no País bem antes de chegar a covid-19
A pandemia forçou o governo a cuidar da economia real e até dos pobres, mas falta um plano para consolidar a retomada, combiná-la com o conserto das contas públicas e, sobretudo, reconduzir o País ao desenvolvimento. Falta um governo do tipo necessário a um país emergente. O Brasil já ia muito mal antes do novo coronavírus. Com o desastre ocasionado pela covid-19, muita gente parece haver esquecido aquele quadro sombrio. O desafio imediato é sair do buraco e retomar as condições anteriores ao grande tombo. Mas o problema real é muito maior e qualquer discussão séria – sem populismo e sem jogadas eleitorais – tem de partir desse ponto. Para onde rumava o País antes da tragédia de 2020?
Sinais vitais do comércio e da indústria têm melhorado, mas em junho a produção industrial continuou abaixo do nível de fevereiro. Se tivesse voltado àquele nível, ainda estaria 16,6% abaixo do pico alcançado em maio de 2011. A partir desse topo o declínio da indústria, até a recessão de 2015-2016, é bem visível nas séries do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Houve alguma reação em 2017 e 2018, mas o impulso acabou no primeiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro.
Depois de três anos de queda, a produção da indústria avançou 2,5% em 2017 e 1% em 2018, mas declinou 1,1% em 2019. Bolsonaro e equipe tiveram uma estreia desastrosa – mesmo sem contar a vergonha diplomática e o vexame da política ambiental. O produto interno bruto (PIB) cresceu 1,1% – menos que em cada um dos dois anos anteriores – e o desemprego permaneceu na faixa de 12% a 13%. De novembro a fevereiro, antes, portanto, da nova crise, a produção industrial foi sempre menor que no mês correspondente do ano anterior.
Com a pandemia, a partir de março ficou menos visível a diferença entre os novos desafios econômicos e os velhos problemas estruturais, exceto pelos detalhes mais chocantes. Quando foi preciso pensar em prevenção, isolamento, contenção do contágio e, enfim, socorro aos mais vulneráveis, mais luz foi lançada sobre a pobreza extrema e as condições de saneamento e de habitação de milhões de famílias. Dados abstratos, como o coeficiente de Gini, transformaram-se de repente em cenas assustadoras ao vivo e em cores.
A desigualdade passou de mero indicador a fato escancarado. A realidade confirmou a advertência do Fundo Monetário Internacional (FMI): para executar as políticas emergenciais os governos latino-americanos precisariam chegar a segmentos sociais ainda intocados pelas políticas públicas. A experiência brasileira comprovou de forma chocante essa previsão.
Mas nem seria preciso chegar às cenas de pobreza extrema para perceber o enorme desafio. Bem antes da pandemia e da recessão no primeiro semestre de 2020, o desenvolvimento brasileiro havia sido travado. A baixa qualidade do emprego, a informalidade e os níveis escandalosos de pobreza eram os sinais mais claros da interrupção de um longo processo.
Tinha havido alguma redução da desigualdade nas últimas décadas e crescente inclusão, embora os indicadores sociais continuassem ruins. A crise da indústria, visível antes da recessão de 2015-2016, realçou problemas cada vez mais graves: baixa produtividade, formação deficiente de capital humano, pouca inovação, ampla predominância dos segmentos de baixa tecnologia e escassa competitividade.
Protecionismo excessivo e insuficiente participação nas cadeias globais foram facilmente identificados, há anos, como entraves importantes. Burocracia, insegurança jurídica, tributação disfuncional e financiamento escasso também têm sido apontados, há muito tempo, como obstáculos à eficiência e à competitividade.
No mesmo período o agronegócio brasileiro se consolidou como potência mundial. A trajetória começou há décadas. Foi essencial a ação do setor público, por meio do trabalho da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e de sua cooperação com outras instituições. Também houve boas estratégias de financiamento, de logística, de zoneamento e de difusão de tecnologia. Com eficiência, em 30 anos a produção cresceu muito mais que a área ocupada. Poupando terras, o agronegócio tem garantido a segurança externa da economia brasileira.
Por que a agropecuária cresceu e ocupou espaços no mercado global, enquanto a indústria, com exceção de alguns segmentos e grupos empresariais, emperrou e até regrediu? Como programar a retomada industrial? Como ordenar as ações? Essas perguntas poderiam abrir um reexame do crescimento, da modernização e das funções das políticas públicas.
É inútil propor esse tipo de assunto ao presidente Bolsonaro. Ele repassará a questão ao seu “posto Ipiranga”, o ministro da Economia. Mas será uma surpresa se ele responder com algo diferente de seu discurso habitual. Aprovada a reforma da Previdência, ele se concentrou em duas missões, aparentemente essenciais, em sua opinião, para a prosperidade brasileira: eliminar os encargos da folha salarial e recriar com nova cara a CPMF. Para que complicar a conversa?
*Jornalista
Eliane Cantanhêde: Guedes, o mágico
Bolsonaro abre o cofre e está no seu melhor momento, mas tem muito o que explicar
Depois de calar a boca, mergulhar na campanha no Nordeste e subir nas pesquisas, o presidente-candidato Jair Bolsonaro dá aval ao ministro Paulo Guedes para assumir o governo e atuar em duas direções conflitantes: manter formalmente o teto de gastos, tão caro ao mercado, e jorrar dinheiro em alvos específicos, fundamentais para a reeleição em 2022.
Encontrar o ponto de equilíbrio entre economia e política passa por uma terceira área: a jurídica. É preciso desbravar as brechas da legislação para estourar o teto sem dar na cara e despejar recursos no Nordeste, nos desempregados, nas faixas de menos escolaridade e renda, nas pequenas e médias empresas. A atração de investimentos privados é uma das chaves nesse processo. O corte de gastos públicos é outra.
A inteligência disso tudo é ficar imune a críticas. Quem pode ir contra o auxílio a pessoas, empresas, empregos? A oposição não tem como atacar. Nem o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que é crítico de Bolsonaro, mas aliado da política liberal de Guedes. E não pode condenar investimentos justos e neste momento absolutamente essenciais.
Com isso, Guedes promete a mágica de manter o teto, mas soltando a grana, e ganha a guerra interna no governo. Lança um pacote de renda e obras nesta semana, com um anúncio de grande repercussão política na terça-feira: o Renda Brasil, confirmando que, também em política, nada se cria, tudo se transforma. Fernando Henrique lançou o Bolsa Escola, Lula atualizou para Bolsa Família e Bolsonaro rebatiza de Renda Brasil. Tem sido tiro e queda para reeleições.
Há uma avalanche de anúncios isolados que se somam: auxílio emergencial para informais e desempregados até dezembro, mais dois meses de redução de jornada e de renda para beneficiar empresas e trabalhadores da iniciativa privada, o pacote de R$ 60 bilhões para Estados e municípios durante a pandemia, o veto de Bolsonaro, devidamente mantido pela Câmara, ao aumento de salário do funcionalismo público em tempos de guerra contra o vírus. Tudo isso enquanto a vacina salvadora da Pátria não vem.
Jair Bolsonaro, portanto, está no seu melhor momento, pronto para colher manchetes positivas. Fechou a boca – em boca fechada não entra mosca –, já foi a cinco dos nove Estados do Nordeste e reabasteceu o Posto Ipiranga, mas dando gás à ala gastadora do governo. Na sexta-feira, foi ao Rio Grande do Norte com o gastador-mor, o potiguar Rogério Marinho.
O Nordeste é estratégico para Bolsonaro porque tem 27% do eleitorado do País e foi a única região onde perdeu em 2018. Todos os Estados são governados pelo PT, seus aliados e apêndices. Para combater o PT ali, as armas do próprio PT: distribuição de bolsas e vales na veia. Com excessiva dependência do Estado, a base nordestina sustentou a Arena e o PDS do regime militar, migrou para Sarney, Collor e FHC, um atrás do outro, e concentrou-se no PT. É a vez de Bolsonaro?
Se tudo parece ir tão bem, não custa lembrar que são mais de 114 mil mortos de covid, com desdém do presidente e sem coordenação federal; Amazônia, cerrado, Ibama, ICMBio e Ministério de Meio Ambiente estão em chamas; líderes e aldeias indígenas estão ameaçados; a Cultura é uma vergonha; a Educação não existe; o Centrão está com tudo e está prosa.
Mais: o Ministério da Justiça faz dossiê contra policiais e professores, as Forças Armadas atraem holofotes na hora errada, da forma errada, pelas causas erradas e a reeleição de Trump nos EUA balança. Logo, Bolsonaro melhorou sua posição, mas não está no paraíso. E tem aqueles probleminhas: fantasmas, rachadinhas, lojas de chocolate, milicianos, nuvens de dinheiro vivo. Não é só no Nordeste que Bolsonaro replica a “velha política”.
Vera Magalhães: Democracia acima de tudo
Firmeza dos democratas nos Estados Unidos deveria inspirar os brasileiros
“Este presidente e aqueles no poder estão contando com o seu cinismo. (…) E é assim que nossa democracia murcha, até não ser mais democracia. Não deixe isso acontecer. Não permita que nos tirem nossa democracia.”
O discurso, dito olhos nos olhos por um Barack Obama bem mais grisalho e com semblante muito mais grave que aquele que incendiou os Estados Unidos em 2008, já nasceu histórico.
Foi a primeira vez que um ex-presidente do país se referiu ao seu sucessor, ao presidente em exercício, com palavras tão duras e diretas. Obama chamou Donald Trump textualmente de incompetente, que encara a presidência “como outro reality show”.
No próprio discurso, o democrata deixou explícito por que resolveu romper a liturgia e chamar as coisas pelos nomes que têm: “O que nós fizermos nos próximos dias vai ecoar pelas gerações que virão”.
A mesma falta de meias-palavras esteve presente nas falas de Michelle Obama, Bill e Hillary Clinton e dos candidatos a presidente, Joe Biden, e a vice, Kamala Harris. Sim, são todos do mesmo partido, mas estão longe de ocupar as mesmas casas no tabuleiro ideológico, de ter as mesmas origens, de concordar em muitas políticas públicas.
A democracia emerge da convenção democrata como um bem inegociável. Porque ela é fundamental, e não um mero detalhe.
Corta para o Brasil. Na mesma semana em que o Supremo Tribunal Federal teve de dar mais uma reprimenda no Executivo por vilipendiar a democracia, desta vez produzindo dossiê contra 579 adversários, os mesmos ministros trataram de dar aquela aliviada para o ministro responsável pela excrescência, André Mendonça. E a Polícia Federal comandada por ele acaba de convocar um jornalista a depor com base na Lei de Segurança Nacional, um resquício da ditadura, por uma coluna de opinião.
Aqui a democracia é um apêndice, um adereço contra o qual o presidente investe diuturnamente sob um dar de ombros preguiçoso dos políticos, dos juízes, dos procuradores e da sociedade entre anestesiada e cúmplice da barbárie.
Adversários de Bolsonaro estão mais preocupados em criar uma narrativa para si que em se unirem na defesa incondicional de princípios inegociáveis e dizer com todas as letras que Bolsonaro é, sim, uma ameaça ao estado democrático de direito. Como Trump também é.
Em seu novo livro, O Tempo dos Governantes Incidentais, o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches se debruça sobre esse novo tipo de mandatário eleito em circunstâncias excepcionais (daí por que “incidentais”) e que, recorrendo à desinformação, a um passado falsamente idealizado e ao populismo barato, além da estratégia de aniquilação dos adversários, corroem as instituições por dentro.
Os democratas perceberam que não se combate um adversário descompromissado com a ética, a verdade e as responsabilidades do cargo com palavras vazias. E foram ao ponto ao apontar também que Trump não faz o seu trabalho, não lidera o país em seu momento mais grave no século.
Bolsonaro também passou meses sem fazer o seu trabalho: comandando claques golpistas, no lombo de cavalos, mostrando cloroquina para a ema e mais preocupado em lotear os órgãos de Estado que em dirigir o País na pandemia.
E ainda assim os presidentes da Câmara e do Senado não o chamam à responsabilidade, e os postulantes a seu lugar em 2022 seguem cometendo os mesmos erros e se preparando para repetir a polarização nefasta que o elegeu.
Há tempo de os políticos brasileiros acompanharem os artifícios de que Trump vai lançar mão, de teorias da conspiração à sabotagem dos Correios, para se preparar para enfrentar um presidente que não hesitará em lançar mão de todos os expedientes para se perpetuar no cargo, sua única preocupação genuína.
Alon Feuerwerker: E depois de dezembro?
Há uma explicação fácil para a resiliência de Jair Bolsonaro: ele estaria sobrevivendo às más notícias porque a boa vontade do povão vem sendo comprada por meio do auxílio emergencial. Diz o ditado que para toda questão complexa há sempre pelo menos uma explicação simples, e errada. Parece ser o caso aqui.
A aprovação a Bolsonaro é sim maior entre os beneficiários do auxílio, mas isso não explica por que o presidente resiste em torno de um terço de bom e ótimo e uns 40% de aprovação. Talvez seja mais útil inverter a pergunta: por que exatamente o eleitor de Bolsonaro deveria ter desistido dele após um ano e meio de governo?
Sim, porque a fatia dos que o consideram ótimo ou bom corresponde grosso modo ao eleitorado que votou no presidente no primeiro turno, e o percentual de “aprova” cobre o apoio no segundo turno. Houve alguma troca, de alguns "ricos" por pobres, de alguns mais escolarizados por outros menos, mas nenhum terremoto político-eleitoral.
Verdade que um pedaço se agastou na demissão de Sérgio Moro. Mas as pesquisas, todas elas, são cristalinas: o sofrimento político de Bolsonaro com a cisão morista não esvaziou a base social de apoio ao presidente da República. A principal dificuldade de um eventual candidato Moro não estaria no segundo turno, mas no primeiro.
O bolsonarismo é hoje um exército de ocupação desde o centro até os confins da direita. Mas ainda faltam dois anos e tanto para a eleição, e tem água para correr sob a ponte. O desafio mais imediato do governo é encontrar um jeito de pousar o avião do auxílio emergencial de um jeito suave. O contrário provavelmente terá, aí sim, efeito negativo, e não apenas no universo de quem hoje recebe o dinheiro.
A explicação simples, e errada, diz que o governo comprou a simpatia do eleitor por 600 reais ao mês. Talvez a explicação certa seja mais sofisticada. O auxílio ajudou a evitar um colapso econômico e social com repercussões muito além da população que recebe o benefício. Pois a economia continuou rodando e a recuperação parece mais rápida que o esperado.
O desafio do governo é ir retirando o auxílio sincronizadamente com a retomada da atividade e, principalmente, do emprego. Este, aliás, já vinha capengando mesmo antes da Covid-19. Como o governo vai fazer, só ele sabe, se é que sabe. Mas é uma operação estratégica, a não ser que o Planalto queira repetir as experiências de José Sarney e Fernando Henrique Cardoso.
Ambos surfaram em planos econômicos que melhoraram o poder aquisitivo da massa, e foram esticados para influir em eleições. Fizeram a colheita eleitoral, mas precisaram dar um choque de realidade na sequência. A popularidade deles foi ao buraco e só resistiram na cadeira por terem amplíssima base política e simpatia irrestrita no establishment. Coisas que Jair Bolsonaro não tem.
E talvez o mais importante: eram tempos em que ou não tinha internet (Sarney) ou ela era tão incipiente que nem fazia cosquinha nos políticos e nos governos (FHC). Definitivamente, não é o caso agora.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
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Publicado originalmente na revista Veja 2.701, de 26 de agosto de 2020
Paul Krugman: As ações estão subindo. Assim como a miséria
A economia real, ao contrário dos mercados financeiros, ainda está em péssimas condições
Na terça-feira, o índice de ações S&P 500 registrou uma alta recorde. No dia seguinte, a Apple se tornou a primeira empresa americana da história a ser avaliada em mais de US $ 2 trilhões. Donald Trump está, claro, tentando nos convencer de que o desempenho do mercado de ações comprova que a economia se recuperou do coronavírus. Uma pena para os 173 mil americanos que morreram, mas, como ele diz, “essas coisas acontecem”.
Mas a economia provavelmente não está parecendo assim tão bem aos olhos dos milhões de trabalhadores que ainda não conseguiram seus empregos de volta e que acabaram de ver seu auxílio-desemprego cortado. O benefício suplementar de U$ 600 por semana promulgado em março expirou, e a substituição que Trump propôs é, em essência, uma piada de mau gosto.
Mesmo antes do corte da ajuda, a quantidade de pais de família relatando dificuldades para dar de comer aos filhos estava crescendo rapidamente. Esse número com certeza aumentará nas próximas semanas. E também estamos prestes a ver uma enorme onda de despejos, porque as famílias não estão mais recebendo o dinheiro de que precisam para pagar o aluguel e porque a proibição temporária aos despejos, assim como o auxílio suplementar ao desemprego, acabou de expirar.
Mas como pode haver essa desconexão entre a subida das ações e o crescimento da miséria? Os caras de Wall Street, que adoram letras e siglas, estão falando de uma “recuperação em forma de K”: valorização das ações e aumento da riqueza individual no topo da pirâmide, queda da renda e forte sofrimento na base. Mas isto é uma descrição, não uma explicação. O que está acontecendo de fato?
A primeira coisa a notar é que a economia real, ao contrário dos mercados financeiros, ainda está em péssimas condições. O índice econômico semanal do Federal Reserve de Nova York sugere que, embora tenha atingido seu ponto mais baixo alguns meses atrás, a economia ainda se encontra em uma depressão mais profunda do que em qualquer momento da recessão que se seguiu à crise financeira de 2008.
E, desta vez, as perdas de empregos se concentram entre os trabalhadores com salários mais baixos – ou seja, precisamente os americanos sem recursos financeiros para enfrentar tempos difíceis.
Mas e as ações? A verdade é que os preços das ações nunca se ligam intimamente ao estado da economia. Como diz uma velha piada de economistas, o mercado previu nove das últimas cinco recessões.
As ações sofrem, sim, o impacto de crises financeiras, como as rupturas que se seguiram à quebra do Lehman Bros. em setembro de 2008 e o breve congelamento dos mercados de crédito em março. Fora isso, os preços das ações seguem bastante desconectados de coisas como emprego ou mesmo PIB.
E, hoje em dia, a desconexão está ainda maior do que de costume.
Pois a recente ascensão do mercado foi amplamente impulsionada por um pequeno número de gigantes da tecnologia. E os valores de mercado dessas empresas têm muito pouco a ver com seus lucros atuais, muito menos com o estado da economia em geral. Em vez disso, esses valores refletem as percepções dos investidores sobre um futuro bem distante.
Veja o exemplo da Apple, com sua avaliação de US $ 2 trilhões. A Apple tem um índice preço/lucro – a relação entre sua avaliação de mercado e seus lucros – de cerca de 33. Uma maneira de olhar para esse número é dizer que apenas 3% do valor que os investidores colocam na empresa reflete o dinheiro que eles esperam ganhar ao longo do próximo ano. Eles esperam que a Apple seja lucrativa daqui a alguns anos, mas pouco se importam com o que acontecerá na economia americana nos próximos trimestres.
Além disso, os lucros que as pessoas esperam que a Apple obtenha daqui a alguns anos estão especialmente grandes porque, afinal, onde mais elas vão botar seu dinheiro? Os rendimentos dos títulos do governo americano, por exemplo, estão bem abaixo da taxa de inflação projetada.
E a avaliação da Apple na verdade está menos exagerada do que a de outras gigantes da tecnologia, como Amazon ou Netflix.
Portanto, as ações das gigantes da tecnologia – e as pessoas que as possuem – estão em alta porque os investidores acreditam que se sairão muito bem no longo prazo. A economia em recessão pouco importa.
Infelizmente, os americanos comuns obtêm muito pouco de sua renda com ganhos de capital e não podem viver de projeções otimistas sobre suas perspectivas futuras. Não adianta muito dizer ao proprietário do apartamento que você aluga para não se preocupar com sua atual incapacidade de pagar o aluguel, porque você com certeza terá um ótimo emprego daqui a cinco anos. Esse argumento só fará com que você seja expulso do apartamento e jogado na rua.
Então, esta é a atual situação dos Estados Unidos: o desemprego ainda está extremamente alto, em grande parte porque Trump e seus aliados primeiro não quiseram levar o coronavírus a sério, depois pressionaram por uma reabertura antecipada da economia em um país que não atendia a nenhuma das condições para a retomada dos negócios – e até agora se recusam a apoiar estratégias básicas de proteção, como o uso generalizado de máscaras.
Apesar desse fracasso épico, os desempregados ficaram com a cabeça fora da água durante meses graças ao auxílio federal, que ajudou a evitar uma catástrofe humanitária e econômica. Mas agora a ajuda acabou. E Trump e aliados estão encarando o iminente desastre econômico com a mesma seriedade com que encararam o iminente desastre epidemiológico.
Tudo sugere que, mesmo que a pandemia enfraqueça – o que não é, de forma alguma, uma certeza –, estamos prestes a ver um grande aumento na miséria nacional.
Ah, mas as ações estão em alta. Então por que deveríamos nos preocupar?
* Tradução de Renato Prelorentzou.
Marcus Pestana: Irresponsabilidade e fakenews também têm limites
Volto hoje ao tema do confronto entre liberdade de manifestação e controle social sobre abusos e crimes cometidos nas redes sociais. Confesso que escrevo com uma ponta de revolta e indignação. Por um lado, porque uma fakenews fez a mim e muitas pessoas sofrerem com a antecipação da morte de um grande amigo. Por outro lado, chegamos ao limite da atrocidade, desrespeito e crueldade no caso da criança grávida de 10 anos, que desde os seis é vítima de abuso sexual, exposta publicamente pela suposta líder protofascista Sara Winter. Felizmente, a Justiça, o Ministério Público e o próprio YouTube já tomaram providências para punir exemplarmente os algozes de uma indefesa criança.
No dia 7 de agosto, fiz entrevista no perfil do Instagram @amatutina, sobre os “Engenheiros do Caos” do suíço-italiano Giuliano da Empoli. Há uma vasta literatura recente sobre a crise da democracia. Mas o livro de Empoli desnuda como as plataformas digitais foram manipuladas ilegitimamente no nascimento do movimento italiano “5 Estrelas”, no plebiscito do Brexit, na campanha de Trump e como isto chegou ao Brasil pelas mãos do estrategista-chefe da Casa Branca no início da administração de Donald Trump, Steve Bannon.
A crise da democracia tem como pano de fundo as mudanças da economia capitalista que resultaram numa sociedade mais complexa e fragmentada, os sucessivos escândalos de corrupção mundo afora que desmoralizaram as elites dirigentes tradicionais e o surgimento de novos movimentos fora da órbita do sistema como o ambientalista, o feminista, o LGBT, o antirracista, o evangélico, etc. E o advento das redes sociais que jogaram lenha nesta fogueira permitindo a individualização da participação política e social.
Os “Engenheiros do Caos” patrocinaram, em escala global, o “populismo autoritário”. A revolução digital não carrega, em si, valores éticos e morais. A qualidade do uso das ferramentas digitais está nas mãos de quem as usa.
Giuliano da Empoli mostra em seu livro que os “Engenheiros do Caos” não se preocupam com a verdade ou a mentira, o real ou o irreal, a coerência. Querem apenas e a qualquer custo instrumentalizar as redes, prender audiência, mobilizar seguidores e criar uma corrente de opinião a favor de determinadas ideias e candidatos. Empoli cita um senador americano que disse certa vez: “cada um tem o direito às suas próprias opiniões, mas não aos seus próprios fatos”. Os “Engenheiros do Caos” criam seus próprios fatos.
Como as forças democráticas e progressistas podem enfrentar este monstro sem precisarem se igualar em práticas condenáveis e ilegítimas? Primeiro, como sugeriu um dos nossos maiores youtubers, Felipe Neto, educação digital. Em segundo lugar, construir a rede dos algorítimos e atores do bem e da verdade. Sem fakenews, sem agressividade e promoção do ódio, privilegiando o debate democrático e a promoção de consensos. E usar uma linguagem mais leve, transgressiva, bem humorada, como sugeriram o próprio Empoli no debate com Fernando Gabeira no “Sempre um Papo” de Afonso Borges, com base em experiência de Taiwan na pandemia e dos jovens que esvaziaram comício de Trump através do aplicativo TikTok, e o humorista Marcelo Adnet no Roda Viva. Por último, uma boa Lei de controle social sobre as redes, sem afetar a liberdade de opinião e a privacidade das pessoas.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB – MG))