Elio Gaspari: Foi fácil entrar na ditadura, difícil foi sair

Estabilidade se deveu à primeira conciliação nacional partida da oposição, graças à genialidade de Tancredo

O primeiro general entrou no Palácio do Planalto em 1964 e o último (o quinto) saiu por uma porta lateral em 1985.

Contada assim, a ditadura durou 21 anos, mas ela se diferenciou de outras latinoamericanas, comunistas, africanas e até mesmo de algumas europeias.

Sua maior singularidade esteve na rotação da Presidência. Enquanto pelo mundo afora os ditadores só deixavam o poder mortos ou depostos, no Brasil todos tiveram mandatos. O regime intitulava-se “revolução”.

Disso resultou que o governo do marechal Castello Branco (1964-1967) pouco se parece com o de Arthur da Costa e Silva (1967-1969).

A Presidência de Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) pouco teve a ver com a de Ernesto Geisel (1974-1979). Foi Médici quem escolheu Geisel para sucedê-lo e anos depois diria que, “se arrependimento matasse, eu já teria morrido”.

Nenhum dos quatro se pareceu com João Baptista Figueiredo (1979-1985). Quando ele saiu pela porta lateral do Palácio, estava afastado de Geisel, o país estava quebrado, o regime havia perdido a credibilidade.

A estabilidade política foi salva pela primeira conciliação nacional partida da oposição, graças à genialidade de Tancredo Neves. (Ele viria a ser eleito indiretamente, mas morreu sem tomar posse.)

As duas décadas de ditadura produziram progresso e pleno emprego, bancarrota e recessão, ordem pública, censura e torturas, moralidade e corrupção (numa escala centesimal).

O coronel-deputado Costa Cavalcanti, que construiu a hidrelétrica de Itaipu, morreu com patrimônio irrelevante.

Até hoje, as viúvas da ditadura fingem que as ruínas não aconteceram, e seus adversários relutam em admitir que algumas coisas deram certo.

Fulanizando: o general Augusto Heleno disse em 2018 que “a Colômbia ficou 50 anos em guerra civil porque não fizeram o que fizemos no Araguaia.”

E o que fizeram no Araguaia? Entre outubro de 1973 e o segundo semestre de 1974, a tropa do Exército combatia uma guerrilha do Partido Comunista do Brasil na região do Araguaia.

Matou cerca de 40 combatentes, inclusive aqueles que atenderam aos convites para que se rendessem.

Presos, eram interrogados e em seguida, assassinados. Uma guerrilheira achada debaixo de uma árvore à míngua foi presa, alimentada, ouvida e executada.

A ditadura teve períodos de relativa liberdade de imprensa e de severa censura. A repressão política exacerbou-se a partir de 1968 e declinou depois de 1977. Praticada em nome do combate a um surto terrorista que foi debelado em 1971, gerou uma força militar indisciplinada.

A bomba que explodiu na casa do jornalista Roberto Marinho em 1976 foi colocada por oficiais. Eram militares lotados no DOI-Codi o capitão e o sargento que em 1981 levaram outra bomba para o estacionamento do Riocentro na noite em que se realizava um espetáculo musical. (O sargento morreu quando ela explodiu no seu colo.)

Como os cinco presidentes foram generais, uma memória seletiva do período finge que a disciplina militar deu ordem ao regime. Falso.

Em 35 anos de regime democrático, o Brasil ainda não teve um só episódio significativo de anarquia militar. Durante a ditadura, registraram-se pelo menos cinco episódios relevantes (em 1965, 1968, 1969, 1977 e 1981).

Castello Branco era um general de tintas francesas. Recusou-se a suspender os direitos políticos do jornalista Carlos Heitor Cony e escreveu:

“Não vejo razão para cassar-lhe o mandato [Cony não tinha mandato, seria o caso de tirar-lhe os direitos políticos]. É, às vezes, insolente, e quase sempre, mentiroso. Tem atacado desabridamente o ministro da Guerra e enuncia ideias que desrespeitam as Forças Armadas. Contra mim, formula insultos: o presidente é um ‘pau-mandado’ na mão de seus subordinados. Em vez de retirar-lhe os direitos políticos, o que muito o valorizaria, prefiro deixá-lo com seus artigos. A revolução sairá ganhando”.

O general francês foi emparedado por seu ministro do Exército, Costa e Silva. Eleito presidente em 1967, o marechal autoemparedou-se em 1968 e baixou o Ato Institucional nº 5, fechando o Congresso, emasculando o Judiciário e criando o mecanismo processual que facilitava a tortura de presos.

Para isso suspendeu o instituto do habeas corpus para crimes contra a segurança nacional e garantiu a incomunicabilidade dos presos por dez dias.

Em 1969, Costa e Silva teve uma isquemia cerebral que o deixou mudo e semiparalítico.

Seu vice era um civil, o deputado Pedro Aleixo, prontamente impedido com a posse de uma Junta Militar. A censura proibia o uso dessa expressão, mas os três ministros militares foram chamados de “Os Três Patetas” pelo general Ernesto Geisel (em conversas privadas) e pelo presidente do MDB, Ulysses Guimarães (mais tarde, em declaração pública).

À isquemia de Costa e Silva sucederam-se semanas de anarquia militar enquanto um conclave de generais escolhia o novo presidente. “Elegeu-se”, não se sabe como, o general Médici. Dias depois a escolha foi ratificada pelo Congresso reaberto.

O mito da ordem da ditadura pode ser avaliado a partir de dois episódios. Durante o governo de Costa e Silva, o general Ernesto Geisel, que havia chefiado a Casa Militar de Castello Branco e se opusera à sua escolha, estava no Superior Tribunal Militar.

Quando alguém lhe telefonava para tratar de política, mesmo sendo uma pessoa que habitualmente não usava palavrões, fazia o seguinte preâmbulo:

“Cuidado, que tem uns filhos da puta aí que andam empoleirados nos cargos públicos aí que querem ouvir a minha conversa. De maneira que vão à merda”.

A esse tempo, Antonio Delfim Netto (que não trabalhava com grampos), mandava na economia. Foi o ministro da Fazenda mais poderoso da história republicana.

Anos depois, Geisel estava na Presidência e impediu-o de ser governador de São Paulo. Como preferia tê-lo na administração, desde que ficasse longe, em junho de 1974 Delfim chegou discretamente a Brasília para uma conversa com o general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil de Geisel. Entrou na sala da Granja do Ipê e o anfitrião indicou-lhe o lugar onde deveria sentar.

Eram dois os microfones ocultos e o devia ser ligado debaixo de uma armário da cozinha. “Eu desconfiei quando ele apontou a cadeira”, contaria Delfim mais tarde.

A anarquia militar chegou ao seu ponto culminante no segundo semestre de 1977, quando o ministro do Exército, general Sylvio Frota, embandeirou-se para suceder Geisel.

Adversário da política de abertura “lenta, segura e gradual” do presidente, em suas memórias Frota viria a atribuir-lhe “tendências socialistas” 11 vezes. No dia 12 de outubro de 1977, Geisel demitiu-o.

O ministro foi para a audiência em que foi dispensado achando que demitiria Geisel, com a autoridade que lhe teria sido conferida pelos integrantes do Alto-Comando do Exército, algo como o Conselho de Administração de uma empresa trocando seu executivo.

Enganou-se, e ao prevalecer, Geisel restabeleceu o primado da Presidência sobre as Forças Armadas.

A abertura iniciada por Geisel foi conduzida e concluída por Figueiredo, um cavalariano cardiopata, que cultivava um folclore de vulgaridade. A sorte faltou-lhe. Explodiram no seu colo três bombas.

Em 1981, deu-se o atentado do Riocentro. Meses depois, suas coronárias entupiram, e no ano seguinte a dívida externa levou o país à bancarrota.

Seu governo foi ruinoso, mas, salvo seus maus hábitos pessoais, não foi ele quem provocou as desgraças. As ruínas eram do regime.

Se a ditadura certamente começou em 1964, não é fácil dizer quando ela terminou. O AI-5 foi extinto em 31 de dezembro de 1978.

Figueiredo assinou a Lei da Anistia em agosto de 1979, e em 1982 realizaram-se eleições diretas para os governos dos Estados. Leonel Brizola, exilado e vigiado desde 1964, voltou ao Brasil e elegeu-se governador do Rio de Janeiro.

Castello Branco dizia que era fácil entrar numa ditadura, mas era difícil sair dela. Vem daí a dificuldade para se dizer quando acabou a “revolução” de 1964.

Ela acabou aos poucos e aos solavancos. O Brasil ficou devendo a Tancredo Neves a costura dos atos finais desse processo. Ele ajudou a construir uma coisa que ainda hoje muita gente acha que não aconteceu: uma conciliação vinda da oposição.


Elio Gaspari: A blindagem tabajara de Queiroz no sítio de Atibaia

Fabrício Queiroz estava guardado no sítio de Atibaia do doutor Frederick Wassef, o “Anjo”, da família Bolsonaro

A blindagem que protegia Fabrício Queiroz foi coordenada por Asmodeu. Em 2019, quando um passarinho da Polícia Federal fez chegar aos Bolsonaro a informação de que havia gente de olho no chevalier servant do capitão, ele foi protegido pelos sete lados. De saída, Queiroz e sua filha foram demitidos dos gabinetes da família em que estavam lotados. Em seguida, tratou-se da sua defesa. O primeiro nome que entrou na roda foi o do advogado Antônio Pitombo. Não era conveniente, porque ele defendia Jair Bolsonaro. Numa segunda hipótese o caso iria para Christiano Fragoso. Profissional renomado, estaria acima das posses de Queiroz. Tratava-se de arrumar um advogado que não desse na vista. Nessa altura, Queiroz sumiu das vistas do público, e Jair Bolsonaro paralisou toda operação, chamando-a a si.

Na quinta-feira, o vexame: Fabrício Queiroz estava guardado no sítio de Atibaia do doutor Frederick Wassef, o “Anjo”, da família Bolsonaro.

Wassef gosta de holofotes, fez fama e tornou-se figurinha carimbada em Brasília e vistosa presença em eventos oficiais. O que foi uma operação para afastar Queiroz da família, virou uma pajelança tabajara que resultou no oposto. Pior, só se ele estivesse no Alvorada.

Queiroz estava sem advogado desde dezembro do ano passado. Seu novo defensor é Paulo Emílio Catta Preta. Até fevereiro ele cuidava dos interesses do miliciano Adriano da Nóbrega, que estava foragido e foi morto pela polícia no interior da Bahia, num sítio do vereador Gilsinho da Dedé, eleito pelo PSL, partido a que pertenceu Jair Bolsonaro. A mãe e a mulher de Adriano estiveram lotadas no gabinete de Flávio Bolsonaro, sob o patrocínio de Fabrício Queiroz.

Preso, Queiroz vê a realização de suas premonições. Em 2018 ele perguntou a um advogado quantos anos ia pegar. Meses depois, assustado, dizia que “o Ministério Público está com uma pica do tamanho de um cometa para enterrar na gente e não vem ninguém agindo.”

Pelo visto, o “Anjo” Wassef agia. Passaram-se dois anos do aviso dado pelo passarinho da Polícia Federal, a questão, piorada, voltou ao ponto de partida: o Ministério Público não tem pressa, só tem perguntas.

Tormentas à vista
A família Bolsonaro tem quatro tormentas pela frente:

A Câmara do Tribunal de Justiça do Rio onde cairá um pedido de revogação da prisão preventiva de Fabrício Queiroz é severa.

O senador Flávio Bolsonaro não tem foro privilegiado no caso das “rachadinhas”, pois a trama ocorreu quando ele era deputado estadual.

O Ministério Público do Rio está com a faca nos dentes.

Qualquer recurso que vá ao Superior Tribunal de Justiça cairá na relatoria do ministro Felix Fischer, que come abelha.

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota, come alho cru com cloroquina e acha que se instalou um clima de histeria diante de uma gripezinha

Com governadores e prefeitos aliviando o isolamento, um milhão de casos de Covid e mais de 40 mil mortos, ele acredita que os doutores interpretaram mal uma conversa que teve com um amigo.

O cidadão contou ao cretino que tinha um raro distúrbio urinário. Às 10h de Greenwich, estivesse onde estivesse, urinava-se. Foi a cinco médicos, inclusive três urologistas, e nada.

Eremildo aconselhou-o:

— Acho que você deve procurar um psicanalista.

Passaram-se algumas semanas e o cretino encontrou o amigo.

— E aí? Como vai aquele seu problema?

— Resolvido. Fui ao psicanalista, são 10h15m, estou todo molhado, mas estou feliz.

Autocombustão
O doutor André Mendonça fez boa fama como advogado-geral da União. Foi empossado no Ministério da Justiça numa cena de programa de auditório, durante a qual a deputada Carla Zambelli aplaudia-o assobiando e ele, num lance esquisito, deu continência ao capitão Bolsonaro duas vezes, chamando-o de “profeta”.

Passaram-se poucos meses e ele pediu que investigasse o chargista Aroeira por ter associado Bolsonaro a uma cruz gamada do nazismo e o repórter Ricardo Noblat, por tê-la veiculado.

Quem se mete com chargista, de duas uma, ou não tem o que fazer ou faz o que lhe mandam. Dezenas de profissionais replicaram o trabalho de Aroeira. E agora?

Indo-se para o campo jurídico, a revista americana “Hustler” publicou uma paródia de um anúncio do rum Bacardi, no qual brincava-se com a “primeira vez” de personagens famosos e a vítima foi o pastor Jerry Falwell. Sua “primeira vez” teria sido incestuosa.

Falwell processou a revista, pedindo US$ 45 milhões de indenização. Perdeu por 8x0 na Corte Suprema. Como diria o capitão Bolsonaro, o Judiciário toma decisões abusivas.

Sendo advogado, Mendonça poderia dar uma lida na decisão da Corte, redigida pelo seu presidente William Rehnquist. Acompanhando-o, estava Antonin Scalia. Ambos ajudaram a ressuscitar o conservadorismo americano servindo ao Direito.

Fábrica de crise
De quem já viu de tudo no Palácio do Planalto:

Houve presidentes em cujos mandatos a crise entrava no palácio e saia menor: Michel Temer, Lula e Fernando Henrique. Com a Dilma ela entrava pequena e saia maior.

Com o Bolsonaro ela não precisa nem entrar. Ele vai para o cercadinho do Alvorada e fabrica a encrenca.

Virou bagunça
O general Eduardo Pazuello povoou o Ministério da Saúde com militares. Direito dele. A repórter Camila Mattoso revelou que ele está inovando os métodos de gestão pública. O empresário Airton Soligo, ex-deputado federal por Roraima, conhecido como “Cascavel”, intitulou-se “parceiro de missão” do general, assumiu poderes de facilitador no ministério. Reuniu-se com governadores e tratou de assuntos oficiais com secretários de Saúde.

“Cascavel” não é médico, nem servidor público.

Para quem acha que militares levam critérios de racionalidade e disciplina para a administração civil, a memória ensina que jamais na História das Forças Armadas um paisano meteu-se na administração de um quartel. Na burocracia civil, quando um transeunte se mete na administração, isso é sinal de que algo de ruim pode acontecer.

Onde fica a saída?
As Forças Armadas levaram 25 anos para se afastar da administração civil. De uma hora para outra, o capitão e alguns generais as levaram de novo para o meio de redemoinho.

Começou-se a pensar como sair dessa.

Vera Lynn
Militares da ativa ou da reserva podem ter uns momentos de alegria nostálgica ouvindo a voz de Vera Lynn, a favorita dos combatentes ingleses durante a Segunda Guerra. Ela morreu, aos 103 anos.

No ano do seu centenário saiu um álbum das melhores canções, com nova orquestração.

Filha de um operário com uma costureira, sua voz deu às tropas um estímulo só comparável à do primeiro-ministro Winston Churchill, até porque o rei George VI era gago.


Elio Gaspari: A desastrada canetada militar do capitão

Como colocou um general no Ministério da Saúde, presidente deveria escolher um médico para aconselhá-lo em assuntos militares

Tendo colocado um general no Ministério da Saúde, Jair Bolsonaro deveria escolher um médico para aconselhá-lo em assuntos militares. Fazendo isso, evitaria lambanças como a que produziu assinando um decreto que permitia ao Exército operar com aeronaves de asa fixa. Assinou o decreto no dia 2 e revogou-o uma semana depois. No escurinho de Brasília e na confusão da pandemia, passava-se uma boiada que criaria a aviação do Exército.

A incorporação de aeronaves às forças de terra e de mar é uma velha encrenca doutrinária. Caxias usou balões fixos na Guerra do Paraguai, antes do voo do primeiro avião. O Exército teve uma aviação, e seu patrono é o tenente Ricardo Kirk , que em 1915 morreu ao cair em Caçador (SC), combatendo os revoltosos do Contestado.

A Força Aérea não gosta da ideia de aviões com a Marinha ou com o Exército. Em 1964. o marechal Castelo Branco teve que descascar o abacaxi da aviação embarcada que tripularia o navio aeródromo Minas Gerais. Nessa crise, um capitão da FAB metralhou o rotor de um helicóptero da Marinha que pousou na base gaúcha de Tramandaí. Esse foi o único incidente em que os desentendimentos militares ocorridos durante a ditadura tiveram tiros. Em todos os outros as questões foram resolvidas por telefone. O presidente Castelo Branco viu no episódio “um deplorável estado de espírito” de “vários elementos da Marinha e da FAB”. Em poucos meses caíram dois ministros da Aeronáutica e um ministro da Marinha.

Finada a ditadura, durante o comando do general Leônidas Pires Gonçalves, sem quaisquer atritos, o Exército organizou uma força de helicópteros que vai muito bem, obrigado. Iam assim as coisas até que alguém teve a ideia do decreto que daria aviões à tropa terrestre. Como era previsível, a FAB incomodou-se e certamente a Marinha também não gostou. Se uma iniciativa desse tamanho tivesse sido tomada com algum debate público, cada lado teria bons argumentos. Depois da canetada, o melhor caminho foi pegar a Bic para revogá-la.

Bolsonaro fala em “minhas Forças Armadas”. Elas não são suas, mas o capitão precisa saber o que fazer com elas. Vá lá que batalhe pela cloroquina, que ouvisse seu ministro da Educassão e tentasse passar a boiada das nomeações de reitores. A ideia de equipar a aviação do Exército é velha. Tratar essa questão com uma canetada foi um despropósito, tanto assim que nunca havia sido tentado.

Se Bolsonaro tivesse consultado um médico antes de assinar o decreto, certamente teria sido dissuadido.

Estupidez e sabedoria
Está em curso um momento de cretinismo das massas inebriadas pela paixão política. Nos Estados Unidos. decapitaram uma estátua de Cristóvão Colombo. Na Inglaterra, jogaram num rio o bronze de um comerciante de escravos do século XIX. Estupidez nada tem a ver com manifestação política, é apenas estupidez.

Racistas vandalizaram estátuas de Martin Luther King e, em 1871, a Comuna de Paris derrubou a coluna da Praça Vendôme que celebrava a vitória de Napoleão na batalha de Austerlitz. (Felizmente ela foi reconstruída).

Dói ver a polícia protegendo a magnífica estátua de Winston Churchill em Londres e em Praga, em cujos pedestais picharam que ele era racista. Era, mas ajudou salvar a civilização ocidental quando parecia que o nazifascismo dominaria o mundo.

O traficante de escravos não deveria ser homenageado e sua estátua não deveria ter sido jogada no rio. Não era preciso. Os russos ensinaram ao mundo como lidar com esse problema. Depois do colapso da União Soviética, as estátuas dos dirigentes comunistas foram retiradas de seus pedestais e colocadas num parque. (Um dos bons negócios do início do século foi comprar a preço de banana quadros de alguns pintores do realismo socialista soviético.)

Na Cidade do México, há uma estátua do rei espanhol Carlos IV e, no seu pedestal, uma placa informa que ela está ali pelo seu valor artístico.

Fizeram melhor os brasileiros. Dona Maria I, rainha de Portugal, mandou enforcar o alferes Joaquim José da Silva Xavier. Seu neto homenageou o pai (D. Pedro I) com uma linda estátua equestre na praça da Constituição. Veio a República e a Casa dos Bragança foi desterrada, mas a estátua de D. Pedro ficou lá, na praça à qual foi dado um novo nome, o de Tiradentes.

Trump derrete
Donald Trump achou que teve uma boa ideia quando ameaçou botar as Forças Armadas americanas nas ruas diante dos atos de vandalismo praticados durante os protestos contra o racismo. A ideia parecia tão boa que o general Mark Milley, a mais alta autoridade do serviço ativo, acompanhou-o numa de suas palhaçadas.

Passados alguns dias, Milley desculpou-se: “Eu não deveria estar lá”.

Esse episódio poderá vir a ser um marco no derretimento da candidatura de Trump à reeleição.

Freixo e Witzel
O deputado Marcelo Freixo disse tudo:

“Alçado ao poder com apoio do Bolsonaro, Witzel cai como um aprendiz do Sérgio Cabral.”

Reitores janeleiros
O ministro da Educassão, Abraham Weintraub, convenceu Bolsonaro e tentou criar a figura do reitor janeleiro.

Em vez de chegar ao cargo pela escolha de seus pares, ele entraria pela janela. Faz tempo, os alunos da Faculdade Nacional de Direito mobilizaram-se para impedir que um professor mal concursado assumisse a cátedra.

À época, o movimento estudantil tinha senso de humor. Os jovens expressaram seu descontentamento murando uma das janelas do velho prédio, onde havia funcionado o Senado do Império.

Os Invisíveis
A última reunião do Ministério podia ser transmitida para casas de família. Nela, o ministro Paulo Guedes revelou que a pandemia ensinou muitas coisas ao governo e disse o seguinte:

“Aprendemos durante toda essa crise que havia 38 milhões de brasileiros invisíveis e que também merecem ser incluídos no mercado de trabalho.”

Ninguém aprendeu que existiam milhões de brasileiros sem proteção. Todo mundo sabia disso, inclusive Paulo Guedes. O que a epidemia poderá ensinar é que esse tipo de sociedade não funciona direito.

A nova moda é fingir que esse problema foi revelado pela pandemia. Passada a crise sanitária, vai-se fingir que ele também se foi. Quando isso acontecer, o capitão poderá repetir: “E daí?”

PT assustado
O PT começa a acordar para um pesadelo: terminada a eleição municipal, estará fora do segundo turno no Rio e em São Paulo.

Saudades de Teich
Era pedra cantada que o ministro Luiz Henrique Mandetta deixaria saudade.

O que ninguém esperava era sentir saudades do doutor Nelson Teich.


Elio Gaspari: Com Bolsonaro, país corre risco de virar Venezuela

Presidente, como Chávez e Maduro, produz uma crise por semana

Quando os professores José Arthur Giannotti, Denis Lerrer Rosenfield e a deputada Joice Hasselmann (PSL-SP) dizem uma mesma coisa, é bom que se preste atenção. Afinal, cada um com suas qualificações, eles têm pouco em comum.

Giannotti disse: "Bolsonaro dá um passo além, em seguida dá um passo recuando. Aos poucos, vai instalando o Estado de modo em que ele possa se transformar em uma Venezuela".

Rosenfield: "No caso da experiência venezuelana, considerada por Lula um exemplo de democracia, processou-se a subversão da democracia por meios democráticos. As instituições democráticas foram inicialmente preservadas, enquanto o seu interior foi progressivamente minado. A imprensa e os meios de comunicação em geral foram, passo a passo, calados, o Legislativo perdeu suas funções, com o presidente passando a legislar por decretos, e o Supremo Tribunal, após ser atacado, foi cooptado. Milícias foram criadas e passaram a violentar e controlar os cidadãos. No Brasil, estamos vivendo um processo semelhante nos seus inícios, só que de sinal trocado".

Joice Hasselmann, ex-líder do governo Bolsonaro no Congresso: "Antes que o Brasil caia num chavismo de verdade com o sinal trocado, eu propus o processo de impeachment".

Antes da eleição presidencial de 2018 havia gente assustada com a possibilidade de o Brasil virar uma Venezuela na mão do PT. Deu-se o imprevisível e surgiu o risco de uma venezuelização com Bolsonaro.

Ele foi um capitão indisciplinado, Hugo Chávez foi um coronel golpista. Ambos foram eleitos e ambos eram paraquedistas. Uma vez no poder, Chávez aparelhou-o com militares e, nas palavras do vice-presidente Hamilton Mourão, "existe uma corrupção muito grande nas Forças Armadas venezuelanas. Elas perderam a mão em relação à missão que têm no país".

Bolsonaro nomeou centenas de militares da reserva e da ativa para cargos na sua administração. No Ministério da Saúde há ao menos 21. Seu governo mostrou-se tolerante com policiais militares amotinados, mas não mexeu com a disciplina dos quartéis. O chavismo firmou uma base numa milícia popular, enquanto a milícia bolsonarista é sobretudo eletrônica. As militâncias de Bolsonaro e do chavismo assemelham-se na hostilidade aos meios de comunicação, ao Congresso e ao Judiciário.

Bolsonaro repete que respeita a Constituição e nunca falou em referendos, enquanto Chávez atropelou as instituições durante seu primeiro mandato. Bolsonaro, como Chávez e Nicolás Maduro, produz uma crise por semana. A seu modo, tornou-se um excêntrico na comunidade internacional.

A grande diferença entre os dois países está nas suas economias. A brasileira é seis maior que a venezuelana. Além disso, Pindorama tem empreendedores no andar de cima, enquanto a elite da Venezuela vivia nas tetas da riqueza do petróleo. A sociedade brasileira tem uma complexidade que a venezuelana nunca teve.

Essas ressalvas valem pouco. Se o passado explicasse tudo, o nazismo teria surgido na Grécia, não na Alemanha, e Cuba nunca teria virado um país comunista.

Assim como Paris encheu-se de nobres russos nos anos 20 do século passado, Miami está cheia de cubanos e venezuelanos que não acreditavam que seus países virassem o que viraram. Eles não deram atenção ao que diziam pessoas como Giannotti, Rosenfield e Hasselmann.

*Elio Gaspari é jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".


Elio Gaspari: Do Central Park a Alphaville

Duas cenas, uma em cada um desses lugares, chamaram atenção nos últimos dias

Adiante vão duas cenas dos últimos dias. Uma aconteceu no Central Park, em Nova York. A outra no bairro de Alphaville, em São Paulo (R$ 5.700 por metro quadrado).

25 de maio: Amy Cooper, com MBA pela universidade de Chicago, chefe do setor de seguros de uma firma de investimentos (US$ 70 mil anuais) passeava seu cachorro, solto, pelo parque. Christian Cooper (nenhum parentesco) disse-lhe que devia prender a coleira do bicho. Negro, ele vinha com um binóculo e observava os passarinhos. Ela se descontrolou, sacou o celular e chamou a polícia, dizendo que “um afro-americano está ameaçando minha vida”. Christian diplomou-se por Harvard em Ciencia Política. Também sacou o celular e gravou a cena. (O vídeo seria visto por 40 milhões de pessoas.)

No dia 28 Amy foi demitida. Desculpou-se, mas Christian recusou-se a encontrá-la.

Nesse mesmo dia o cabo Edson, da PM paulista, foi enviado a uma casa de Alphaville, atendendo a uma denúncia de violência doméstica. Enquanto conversava com a mulher, apareceu o marido, o joalheiro Ivan Storel. Em bolsonarês castiço, que repeliu o cabo:

“Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville, mano”,

“Eu ganho R$ 300 mil por mês”, “você é um merda de um PM que ganha R$ 1 mil.”

“Tenho uns 50 caras pra enfrentar você.”

Uma policial (que também foi insultada) registrou a cena.

Seis dias depois, Storel gravou um vídeo, reconheceu seu erro, revelou que está em tratamento psiquiátrico e que agiu sob o efeito de álcool e remédios. Disse que se envolveu “numa polêmica” com a polícia e pediu “perdão” a todos os policiais, inclusive aos que ofendeu.

Fica combinado assim. Tanto Amy Cooper como Ivan Storel vocalizaram preconceitos. Ela, de cor. Ele, de classe. Como o vírus, são preconceitos transmissíveis e estão por aí.

Entrevistado no programa de Fátima Bernardes, o cabo Edson mostrou-se surpreso pela viralização do vídeo e revelou que “não quis mostrar para a minha esposa e nem para os meus filhos porque não sabia como ia ser a reação deles”.

Intervenção militar
Num país com os mortos da Covid passando de 30 mil, mais de 12 milhões de desempregados, numa recessão histórica, “lunáticos” (palavras de Gilmar Mendes, falam em intervenção militar.

Tudo bem, mas vale lembrar uma cena ocorrida há alguns anos em Brasília.

Um çábio defendia seu projeto e tirou da manga o que supunha ser um grande argumento:

“Se fizermos isso, o Paraguai fica na nossa mão”.

Respondeu-lhe um sábio:

“E você faz o que com ele?”

Cansaço
Se o ministro da Esducassão reclamar de cansaço e pedir para ir embora, seu motivo será entendido.

Cerco
O governador Wilson Witzel (Harvard Fake ‘15), deve se preocupar com possíveis confissões premiadas de pessoas que trabalharam no seu governo, ou mesmo de gente que bicava no entorno.
Seu nome está na roda desde janeiro, colocado por um atravessador de negócios paraibano.

Profeta armado
O doutor Pedro Guimarães, presidente da Caixa, é um homem valente e tem 15 armas em casa.

O benefício de R$ 600 para os invisíveis foi aprovado no fim de março e só no fim de junho a Caixa se comprometeu a providenciar cadeiras para as pessoas que vão para as filas diante de suas agências.

E levaram três meses para perceber que os bípedes sentam.

As cores de Aras
O procurador-geral Augusto Aras fará história pelas suas falas e pelos seus silêncios, mas já conseguiu animar Brasília pela policromia de suas gravatas.

Com um presidente que usa casaca de gola redonda, a única curiosidade da indumentária dos hierarcas estava nos patacões que carregam nos pulsos. Os ministros Braga Netto e Augusto Heleno têm relógios de astronauta. O embaixador Ernesto Araújo carrega um patacão que parece ter até horóscopo. Chique, só o da ministra Tereza Cristina, de aço, que parece ser um Cartier.

Duas faces
Existem empresários e empresários. O restaurante La Casserole, tradicional casa de pasto do andar de cima, está comemorando seu 66º aniversário com uma campanha para arrecadar recursos, destinandos a fornecer refeições para 6.600 necessitados do Centro de São Paulo. Cada R$ 20 doados servirão para cobrir os custos de uma refeição. A iniciativa ajudará também as famílias de 50 funcionários, parceiros e fornecedores.

Com 192 doadores, já conseguiram R$ 52 mil. Um freguês deu R$ 4 mil.

Na outra ponta fica a Enel, concessionária de energia de São Paulo. Tendo retirado das ruas os funcionários que liam os relógio do consumo, cobrou R$ 7 mil ao Casserole, que está parado. A conta não deveria ter chegado a R$ 100, mas ela se baseou no consumo médio do último ano. Apanhada, ela promete compensar suas vítimas.

Astro rei
Lula recusou-se a assinar os manifestos em defesa da democracia e explicou: “Eu, sinceramente, não tenho condições de assinar determinados documentos com determinadas pessoas”.

Gleisi Hoffmann, presidente do PT, deu nome aos bois: Lula não poderia assinar um manifesto junto com Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer, que não assinou coisa alguma.

Cada um assina o que quer, mas em 1941, quando a Alemanha invadiu a União Soviética, o primeiro ministro inglês Winston Churchill aliou-se imediatamente a Stalin e disse:

“Se Hitler invadisse o inferno, eu diria uma boa palavra a respeito do Diabo na Câmara dos Comuns.”

Churchill tinha horror aos comunistas e, uma semana depois, proibiu que a BBC tocasse seu hino, a Internacional.

Quem fez o edital?
Depois do vexame da nomeação e da exoneração do presidente do Banco do Nordeste do Brasil, Bolsonaro e sua Nova Política entregou ao Centrão as presidências da Fundação Nacional da Saúde e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Juntos, movimentam R$ 57 bilhões.

Com menos de dois anos de governo, o capitão está no quarto presidente do FNDE e até agora ninguém explicou quem preparou o edital viciado para a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e notebooks ao custo de R$ 3 bilhões. Pelo seu desenho, os 255 alunos de uma escola da rede pública mineira receberiam 300.020 laptops.

Outro dia o vice-presidente Hamilton Mourão defendeu as negociações com o Centrão e disse que “compete aos organismos de fiscalização cumprir seu papel e o ministro da área ficar em cima disso aí, para que está aí a Controladoria-Geral da União?”

Bingo. Foi a CGU que sentiu cheiro de queimado no edital e provocou a sua revogação. Continua faltando contar quem e como botou aquele jabuti na forquilha.


Elio Gaspari: Uma reunião patética

Chega a ser um exercício pedagógico, sobretudo num tempo de horas vagas

A leitura da transcrição da patética reunião do ministério de Jair Bolsonaro exige algum tempo, mas chega a ser um exercício pedagógico, sobretudo num tempo de horas vagas. Descontem-se os palavrões (37). Esqueçam-se as tolices (um dos maganos dizendo que o pico da epidemia parecia ter passado). Deixem-se de lado os delírios presidenciais. Sobra o quê? O ministro da Economia, Paulo Guedes, dizendo que leu o economista inglês John Maynard Keynes no original, insistindo nas suas “reformas estruturantes” e colocando duas propostas na mesa.

A primeira foi criativa, caso inédito de colocação do maoísmo a serviço dos cânones da universidade de Chicago. Ele propôs uma mobilização de jovens para que se formassem como aprendizes. Quantos? “Duzentos mil, trezentos mil”. Nas suas palavras: “O cara de manhã faz calistenia, canta o hino, bate continência”, ajuda a abrir estradas e “aprende a ser cidadão”. O doutor lembrou que a “Alemanha fez isso na reconstrução”. Em 1945 a Alemanha estava destruída e faminta, mas deixa pra lá.

Afora a ingenuidade dessa proposta de militarização do andar de baixo, Guedes expôs outra avenida para o progresso e novamente inspirou-se na Ásia. Nas suas palavras:

“O problema do jogo lá… nos recursos integrados [provavelmente ele disse “resorts”]. Tem problema nenhum. São bilionários, são milionários. Executivo do mundo inteiro. O cara vem, é… fazem convenções … olha, a … o … o turismo saiu de cinco milhões em Cingapura pra 30 milhões por ano. (…) Macau recebe 26 milhões hoje na … na China. Só por causa desse negócio. É um centro de negócios. É só maior de idade. O cara entra, deixa grana lá que ele ganhou anteontem, — ele deixa aquilo lá, bebe, sai feliz da vida. Aquilo ali num … atrapalha ninguém. Aquilo não atrapalha ninguém. Deixa cada um se foder. (…) O presidente fala em liberdade. Deixa cada um se foder do jeito que quiser. Principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário. Deixa o cara se foder, pô! Não tem … lá não entra nenhum, lá não entra nenhum brasileirinho”.

No meio de uma epidemia e de uma recessão, o ministro da Economia oferece a legalização da jogatina em resorts turísticos. Esse é um velho sonho de Bolsonaro, desde sua conversão à ideia pelo magnata americano Sheldon Adelson, dono de resorts em Las Vegas, Cingapura e Macau. De fato, nos cassinos de Adams, “brasileirinho” não entra. Guedes conhece o Rio de Janeiro. Ele ganha um mês de férias em Macau se realmente acredita que alguém operará um cassino por lá sem que o crime organizado (e a milícia) entrem na operação. Sem cassinos, três governadores do Estado foram para a cadeia e um continua lá. (Na China, o hierarca que ocupou cargos equivalentes à presidência da Petrobras e ao Gabinete de Segurança Institucional está trancado).

O aspecto patético da reunião presidida por Bolsonaro é que ela não leva a lugar nenhum. E não leva porque o presidente não tem a menor ideia do que fazer, salvo sair por aí arrumando brigas.

Alô, alô Faria Lima
Um trecho das falas de Paulo Guedes, para a turma do papelório pensar na vida.

“Ô presidente, esses valores e esses princípios e o alerta aí do Weintraub é válido também, como seu… sua evocação é que realmente nós estamos todos aqui por esses valores. Nós tamos aqui por esses valores. Nós não podemos nos esquecer disso. Nós podemos conversar com todo mundo aqui, porque é o establishment, é porque nós precisamos dele pra aprovar coisa, mas nós sabemos que nós somos diferentes. Nós temos noção que nós somos diferentes deles”.

O Centrão no FNDE
Jair Bolsonaro prometeu governar com a boa vontade daquilo que chamava de “bancadas temáticas”. Nem ele, que acredita em “resfriadinho”, acreditava nisso. O deputado Alceu Moreira (MDB-RS), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária avisava: “Quem disser que sabe qual é o resultado que esse novo modelo produzirá, de duas uma: ou é adivinho ou está mentindo”. Deu-se o inevitável e a “nova política” do capitão desembocou num acordo com o velho centrão. Nem sempre o inevitável precisa ser tóxico, os governos anteriores mantiveram padrões variáveis de moralidade nas suas negociações com essa bancada de interesses difusos, mas Bolsonaro exagerou. No primeiro toma-lá-dá-cá entregou o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas. No segundo, terceirizou uma diretoria do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, entregando-a ao chefe de gabinete da liderança do Partido Liberal, onde reina o inesgotável Valdemar Costa Neto. Com um caixa de R$ 55 bilhões o FNDE não é coisa que possa ficar dando sopa.

Em menos de dois anos do governo de Bolsonaro, esse fundo já teve três presidentes e vida acidentada. Com pouco mais de uma semana, em janeiro de 2019, descobriu-se que uma mão invisível havia mudado um edital, permitindo a inclusão de publicidade nos livros didáticos. A burocracia explicou-se dizendo que “houve um erro operacional no versionamento”. O que é isso, não se sabe. Em agosto passado o FNDE publicou um edital para a compra de 1,3 milhão de computadores, notebooks e laptops para a rede pública de ensino. Coisa de R$ 3 bilhões. A Controladoria Geral da União sentiu cheiro de queimado. E não era para menos, 355 escolas receberiam mais laptops que seu número de alunos. Uma delas, em Itabirito (MG) receberia 30.030 laptops. Como tinha 255 alunos, disso resultaria que cada um deles receberia 117 pequenos computadores.

O edital foi suspenso, o presidente do FNDE foi trocado e a peça foi revogada. Pouco depois,sem qualquer aviso, caiu o segundo gestor do fundo. O que seria um caso clássico de bom funcionamento dos órgãos de controle da máquina do Estado, tornou-se também um exemplo da falta de transparência de um governo que faz uma nova política. Ninguém sabe quem botou o jabuti no edital de agosto.

O ministro da Educassão, Abraham Weintraub, perdeu a oportunidade de lustrar sua biografia. Em vez de sugerir a prisão de ministros do Supremo, poderia ter mostrado o caminho da Procuradoria à turma que concebeu o edital do FNDE.

Brazil?
De um empresário que opera internacionalmente:

"Do jeito que vai a reputação do Brasil pelo mundo afora, daqui a pouco eu só conseguirei ser atendido pelas secretárias eletrônicas".

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e não acredita em denúncias.

A única coisa que ele não entende é por que os Bolsonaro demitiram Fabrício Queiroz e sua filha Nathalia.

Tendo demitido o chevalier servant os Bolsonaro não deveriam ter se interessado pela sua defesa.

Proeza
O governo do Rio conseguiu uma proeza: antecipou os escândalos em torno da construção dos hospitais de campanha e adiou suas inaugurações.


Elio Gaspari: Weintraub, ministro da educassão, é uma ameassa a ceguranssa nacional

Ministro sugeriu que fossem mandados para a cadeia ministros do Supremo Tribunal Federal

Segundo o ministro Augusto Heleno, a divulgação integral da conversa de botequim ocorrida na reunião do conselho de ministros de 22 de abril pode ser um “ato impatriótico, quase um atentado à segurança nacional”. De fato, é possível que tenham sido tratados assuntos sensíveis e seria razoável mantê-los embargados, assim como foi elegante abreviar o verbo fornicante da fala do presidente. Se de fato o ministro da Educassão, Abraham Weintraub, sugeriu que fossem mandados para a cadeia ministros do Supremo Tribunal Federal, seria um ato patriótico expô-lo, para que responda pela sua proposta na forma da lei.

Pedir a volta do AI-5 e o fechamento do Supremo numa manifestação popular é uma coisa. Sugerir a prisão de ministros do Supremo numa reunião ministerial é bem outra.

Esse tipo de arbitrariedade não tem precedente. O marechal Floriano Peixoto ameaçou, mas não prendeu ministros. Nas ditaduras seguintes, o tribunal foi coagido e três ministros foram aposentados compulsoriamente, mas nenhum foi preso.

É o caso de se perguntar como é que se faz isso. Só há um caminho, o da ditadura, enunciado há dois anos por Eduardo Bolsonaro: “Para fechar o Supremo bastam um cabo e um soldado”. Junto com isso, viriam o fechamento do Congresso e a censura à imprensa. Daí à reabertura dos DOIs, seria um pequeno passo.

A divulgação do que se disse na reunião permitirá o conhecimento das exatas palavras do ministro. Sua colega Damares Alves, a quem se atribuiu a proposta de prisão de governadores e prefeitos, esclareceu que se referia aos larápios que desviavam recursos e equipamentos. Weintraub fechou-se em copas.

A JBS fez, e nós?
Um dia a Covid será passado e o Brasil se lembrará de que quadrilhas de larápios bicavam as compras emergenciais. Felizmente, restará também a lembrança de grandes empresas que olharam para o andar de baixo. O Itaú-Unibanco, com sua doação de R$ 1 bilhão, e a Vale, fretando aviões ou distribuindo equipamentos, fizeram história. A eles juntou-se, pelo tamanho da iniciativa, a JBS. Ela anunciou uma doação de R$ 400 milhões. A maior parte desse dinheiro irá para a construção de hospitais e para a distribuição de leitos e equipamentos. R$ 50 milhões irão para pesquisas da área de saúde, e R$ 20 milhões, para organizações sociais sem fins lucrativos. O ervanário será gerido por três comitês de médicos, professores e administradores. Entre eles, Roberto Kalil Filho (Incor) e Henrique Sutton (Einstein) e Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas.

A JBS ficou famosa pelos seus malfeitos mostrados na Lava-Jato e fechou um acordo de leniência com a Viúva comprometendo-se a desembolsar R$ 2,3 bilhões para projetos sociais. Os irmãos Wesley e Joesley Batista resolveram renunciar ao direito que tinham de usar a doação de R$ 400 milhões para abater o que deviam.

Com 130 mil colaboradores diretos, a JBS passou por todos os seus perrengues sem demitir um só trabalhador.

Profecia
A investigação pedida a partir da denúncia de Sergio Moro tende a virar limonada por dois motivos: primeiro porque espremendo o caso, não há como demonstrar que houve crime. Além disso, pode-se intuir que a vontade do procurador-geral Augusto Aras de apresentar uma denúncia contra Bolsonaro é próxima de zero, com viés de baixa.

A zona de conforto dos Bolsonaro termina quando se mexe com dois fios desencapados: a CPI das Fake News e a investigação conduzida pelo ministro Alexandre de Moraes no Supremo Tribunal Federal, relacionada com as mesmas “alopranças”.

Farra elétrica
As concessionárias de energia elétrica levaram uma pancada com a pandemia. O consumo caiu em cerca de 10%, a inadimplência cresceu em outros 10% e o dólar encostou nos R$ 6, encarecendo o custo da energia de Itaipu.

Com toda razão, as empresas estão pedindo socorro ao governo. A conta acabará nas costas dos consumidores.

Até aí, tudo bem, mas o doutor Paulo Guedes está condicionando as ajudas aos estados à entrega de contrapartidas. Seria razoável que as concessionárias de energia também oferecessem contrapartidas. Por exemplo: limitações na remuneração dos diretores e na distribuição de dividendos aos acionistas. Essa tunga duraria o tempo da outra, que penalizará os consumidores.

A exigência de contrapartidas teria o efeito colateral de inibir a voracidade das empresas.

Dólar a R$ 6
No início de março, quando o dólar estava a R$ 4,65, o ministro Paulo Guedes disse que “se fizer muita besteira”, poderia ir a R$ 5. Foi, bateu nos R$ 5,91 e poderá ir a R$ 6.

O sujeito da frase de Guedes estava oculto e ficou no ar quem precisaria fazer “muita besteira”. Uma coisa deve ser reconhecida: até agora, não foi ele.

Moro na muvuca
O juiz aposentado Vladimir Passos de Freitas, que foi um dos principais colaboradores de Sergio Moro no Ministério da Justiça, disse que ele foi para o governo sem que “tivesse ideia de como seria a vida comum ali”.

O doutor pode achar isso, mas ninguém vai para ministério, em governo algum, sem ter ideia de como será a vida ali. Moro, assim como Nelson Teich, sabia quem era Bolsonaro e Bolsonaro sabia quem eram Moro e Teich.

Com uma diferença: Moro não se ofereceu para a cadeira.

Faz tempo, quando o presidente João Figueiredo expandiu seu temperamento errático e explosivo, dois de seus colaboradores diretos conversavam dentro de um automóvel e deu-se o seguinte diálogo.

— Depois que ele operou o coração, virou outra pessoa.

O outro, que entendia de medicina, respondeu:

— O problema não está no hardware. É coisa do software.

Ajuda aos estudantes
A gloriosa Faculdade Nacional de Direito do Rio tem 244 alunos que precisam de ajuda, quer para o transporte (R$ 250 mensais), quer para continuar estudando (R$ 900). De cada quatro, um mora na Baixada Fluminense.

Os ministros Luiz Fux (STF), Luís Felipe Salomão e Benedito Gonçalves, bem como o desembargador Cezar Rodrigues Costa, organizaram um webinar para ajudar esses jovens que, como eles, se formaram na rede pública. O debate se chama “A Covid e o futuro das Cortes de Direito”.

A inscrição custa R$ 200. Mas quem quiser, pode fazer a doação inscrevendo-se, mesmo que não os ouça.

Bolsonaro fashion
Além das camisetas de clubes de futebol, Jair Bolsonaro tem um lado fashion. Em outubro passado, vestiu uma casaca com gola redonda no Palácio Imperial de Tóquio, sacrilégio para quem usa essa fantasia de pinguim.

Na marcha de lobistas que liderou, sobre o Supremo Tribunal Federal, o capitão usava um paletó com um bolsinho sobressalente do lado direito.

Esse adereço espalhou-se pelo mundo no século passado, graças a Lord Halifax, o famoso rival de Winston Churchill. Ele era um inglês esguio e vestia-se de forma conservadora, porém amarfanhada.

O bolsinho de Halifax nada tinha a ver com estilo. Ele havia nascido sem a mão esquerda.


Elio Gaspari: Os palavrões no Conselho de Governo

O bolsonarês humilha aqueles que votaram no capitão em nome dos bons costumes

Quando Sergio Moro pôs na roda a questão do vídeo da reunião do Conselho de Governo de 22 de abril, sabia que havia ali uma bala de prata capaz de provar que Jair Bolsonaro queria trocar o diretor da Polícia Federal para blindar os interesses políticos de sua família. Ele sabia também que a bala continha outro material. Ao chegar ao Planalto, com pompa monarquista, o capitão chamou de Conselho de Governo aquilo que se conhecia como reunião do Ministério. Reunindo-o, ele presidiu uma conversa de botequim, e Moro mostraria isso.

A divulgação desse vídeo será também um espetáculo de falta de compostura e de asneiras. Outro dia a secretária de Cultura, Regina Duarte, disse que parou de ler os livros de Olavo de Carvalho porque ele usa muitos palavrões. No governo que ela louva, o vocabulário do doutor Olavo é o de um sacristão.

Alguns presidentes respeitavam seus interlocutores. Michel Temer, Fernando Henrique Cardoso e José Sarney falam como frades. Não se pode dizer o mesmo de Dilma Rousseff e Lula, mas nenhum deles disse palavrão em reunião ministerial. Conhecem-se os áudios das reuniões do Conselho de Segurança Nacional que decidiram baixar o Ato Institucional nº 5 (Costa e Silva) e o Pacote de Abril (Ernesto Geisel). Neles não há palavrões.

O primitivismo de Bolsonaro vai além do uso de expressões chulas, transborda para a própria maneira como preside uma reunião de ministros e como lida com sua equipe de renomados “técnicos”. Em certa ocasião ele manifestou tamanha curiosidade por detalhes de casos de violência que um dos titulares achou melhor mudar de assunto. O clima de feijoada permite que o chanceler Ernesto Araújo exponha (em bom português) suas teorias lunáticas em relação à China ou que alguém resolva qualificar a genealogia de ministros do Supremo Tribunal Federal. É a bagunça bolsonariana. Nela o presidente libera o funcionamento de academias de ginástica e salões de beleza sem ouvir seu ministro da Saúde. Afinal, ambos sabem com quem lidam.

O vídeo da reunião de 22 de abril é um exemplo da capacidade de autocombustão do governo. Já com Moro fora do governo, Bolsonaro disse que divulgaria seu conteúdo: “Mandei legendar e vou divulgar”. Falou o que lhe veio à cabeça, mas dias depois a Advocacia-Geral da União pediu ao ministro Celso de Mello que reconsiderasse a decisão de pedir a gravação porque na reunião foram tratados “assuntos potencialmente sensíveis e reservados de Estado”. Parolagem, pois podia ter pedido para embargar esses trechos. Essa é a prática de governos sérios, mas quem embarga trechos assina embaixo e se responsabiliza pelo ato.

Diante da blindagem absurda, a AGU recuou e disse que se contentava em entregar uma versão com trechos embargados. Não deu certo. Sergio Moro e seus advogados não aceitaram o atalho, argumentando que não compete ao governo selecionar provas. Caberá ao ministro Celso de Mello decidir se torna público todo o vídeo ou partes dele.

Se Moro quisesse apenas provar que Bolsonaro pressionou-o para trocar o diretor da Polícia Federal, o embargo seria neutro e justificável. Ele também queria mostrar como funciona a muvuca em que se meteu.


Elio Gaspari: A fila única para a Covid está na mesa

Rede privada tem 15.898 leitos de UTIs, com ociosidade de 50%, e a rede pública tem 14.876 e está a um passo do colapso

O médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto defendeu a instituição de uma fila única para o atendimento de pacientes de Covid-19 em hospitais públicos e privados. Nas suas palavras:

“Dói, mas tem que fazer. Porque senão brasileiros pobres vão morrer e brasileiros ricos vão se salvar. Não tem cabimento isso”.

Ex-diretor da Agência de Vigilância Sanitária e ex-superintendente do Hospital Sírio-Libanês, Vecina tem autoridade para dizer o que disse. A fila única não é uma ideia só dele. Foi proposta no início de abril por grupos de estudo das universidades de São Paulo e Federal do Rio. Na quarta-feira, o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Zasso Pigatto, enviou ao ministro Nelson Teich e aos secretários estaduais de Saúde sua Recomendação 26, para que assumam a coordenação “da alocação dos recursos assistenciais existentes, incluindo leitos hospitalares de propriedade de particulares, requisitando seu uso quando necessário, e regulando o acesso segundo as prioridades sanitárias de cada caso.”

Por quê? Porque a rede privada tem 15.898 leitos de UTIs, com ociosidade de 50%, e a rede pública tem 14.876 e está a um passo do colapso.

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (ex-diretor de uma Unimed) jamais tocou no assunto. Seu sucessor, Nelson Teich (cuja indicação para a pasta foi cabalada por agentes do baronato) também não. Depois da recomendação do Conselho, quatro guildas da medicina privada saíram do silêncio, condenaram a ideia e apresentaram quatro propostas alternativas. Uma delas, a testagem da população, é risível, e duas são dilatórias (a construção de hospitais de campanha e a publicação de editais para a contratação de leitos e serviços). A quarta vem a ser boa ideia: a revitalização de leitos públicos. Poderia ter sido oferecida em março.

Desde o início da epidemia os barões da medicina privada se mantiveram em virótico silêncio. Eles viviam no mundo encantado da saúde de griffe, contratando médicos renomados como se fossem jogadores de futebol, inaugurando hospitais com hotelarias estreladas e atendendo clientes de planos de saúde bilionários. Veio a Covid, e descobriram-se num país com 40 milhões de invisíveis e 12 milhões de desempregados.

Se o vírus tivesse sido enfrentado com a energia da Nova Zelândia, o silêncio teria sido eficaz. Como isso era impossível, acordaram no Brasil, com 60 mil infectados e mais de seis mil mortos.

A Agência Nacional de Saúde ofereceu aos planos de saúde acesso aos recursos de um fundo se elas aceitassem atender (até julho) clientes inadimplentes. Nem pensar. Dos 780 planos, só nove aderiram.

O silêncio virótico provocou-lhes uma tosse com a recomendação do Conselho Nacional de Saúde. A fila única é um remédio com efeitos laterais tóxicos. Se a burocracia ficar encarregada de organizá-la, arrisca só ficar pronta em 2021. Ademais, é discutível se uma pessoa que pagou caro pelo acesso a um hospital deve ficar atrás de alguém que não pagou. Na outra ponta dessa discussão, fica a frase de Vecina: “Brasileiros pobres vão morrer e brasileiros ricos vão se salvar.” Os números da epidemia mostram que o baronato precisa sair da toca.

A Covid jogou o sistema de saúde brasileiro na arapuca daquele navio cujo nome não deve ser pronunciado (com Leonardo DiCaprio estrelando o filme). O transatlântico tinha 2.200 passageiros, mas nos seus botes salva-vidas só cabiam 1.200 pessoas: 34% dos homens da primeira classe salvaram-se; na terceira classe, só 12%.

Sinal dos tempos estranhos
Um dia alguém vai estudar o Brasil de 2020 durante a pandemia.

Enquanto a rede pública de saúde dava sinais de colapso, o presidente da Federação Brasileira de Hospitais, guilda de 4.200 instituições privadas, informava que a ociosidade média dos leitos de UTIs de seus associados estava em 50%.

O diretor do Sírio-Libanês, o hospital das celebridades (Lula, Dilma e companhia), explicava o efeito dessa ociosidade, provocada pela suspensão dos procedimentos eletivos para clientes de planos de saúde dos abonados:

“Todos os nossos hospitais nesse momento que estão com ocupação baixa têm custos fixos que têm que ser pagos. Essas empresas vão ficar numa situação econômica difícil. Já neste mês há instituições com dificuldade de pagar a folha de pagamento. Outros vão aguentar de dois a três meses. Mas se essa situação persistir por muito tempo, vão ter problema de solvência.”

Se esse darwinismo econômico é irredutível, vale o que disse o doutor Paulo Guedes: “É da vida ser abatido, é do mercado. Uma economia de mercado de vez em quando é atingida”. Quem acha que é da vida ser abatido pelo coronavírus deve entender que também é da vida que sua empresa pegue o vírus da insolvência.

Madame Natasha
Natasha adora as entrevistas do ministro Nelson Teich. Suas platitudes permitem que ela tire sonecas vespertinas.

Por acaso ela ainda não tinha adormecido quando o doutor disse o seguinte:

“O que tem que ficar claro é que é um número que vem crescendo”.

Naquele dia haviam morrido 473 pessoas (durante todo o ano em que combateu o exército alemão na Itália, a Força Expedicionária Brasileira perdeu 474 pracinhas).

Como o ministro havia visto sinais de que a epidemia estava contida, deveria ter dito o seguinte:

“Ficou claro para mim que o número vem crescendo.”

Na mesma entrevista, o ministro apontou para o fato de que o aumento das mortes estava restrito a alguns estados, como São Paulo, Rio e Amazonas.

Em agosto de 1945, os militares japoneses aloprados diziam em Tóquio que havia um problema restrito às cidades de Hiroshima e Nagasaki.

Chavismos
A deputada Joice Hasselmann, ex-líder do governo de Jair Bolsonaro no Congresso, disse à repórter Julia Chaib que o Brasil corre o risco de cair “num chavismo de verdade, com sinal trocado”.

Em 2018, durante a campanha eleitoral, o general Hamilton Mourão, que foi adido militar na Venezuela, explicou a essência do poder chavista:

“Existe uma corrupção muito grande nas Forças Armadas venezuelanas. Elas perderam a mão em relação à missão que têm no país.”

Vargas tentou
Quando o ministro Alexandre de Moraes bloqueou a nomeação de um delegado amigo da família Bolsonaro para a direção da Polícia Federal, mostrou que o bom funcionamento das instituições acaba protegendo os presidentes.

Na manhã de 29 de outubro de 1945, Getulio Vargas decidiu nomear seu irmão Benjamin para a Chefatura de Polícia do Rio, um dos cargos mais importantes da República. À noite, estava deposto.

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e garante:

Essa epidemia é uma gripezinha, o programa Pró-Brasil era apenas um estudo e o amigo inglês de Paulo Guedes está pronto para oferecer 40 milhões de testes para o coronavírus.


Elio Gaspari: Guedes herdou a carta branca de Moro

Teatrinho do Pró-Brasil revela apenas um governo desorientado

Fica combinado que “o homem que decide a economia” no Brasil é Paulo Guedes. Afinal, Sergio Moro tinha carta branca e a política do toma lá dá cá com o centrão era coisa do passado. Cartas brancas não existem, e as tais bancadas temáticas que substituiriam as negociações com os partidos eram um delírio. Assustado com a ruína de seu governo, Bolsonaro bateu à porta do centrão. Repete Dilma Rousseff e Fernando Collor.

A fé de Bolsonaro em fantasias é inesgotável. Pena que a capacidade de Paulo Guedes de criar debates inconsequentes seja incontrolável. Diante de uma epidemia, de uma recessão e do teatrinho do lançamento do Pró-Brasil, Paulo Guedes resolveu encrencar com os servidores:

“Precisamos também que o funcionalismo público mostre que está com o Brasil, que vai fazer um sacrifício pelo Brasil, não vai ficar em casa trancado com geladeira cheia e assistindo à crise enquanto milhões de brasileiros estão perdendo emprego.”

Boa ideia. Que tal um programa de sacrifícios gradativos, começando pelos magistrado e procuradores que embolsam acima de R$ 30 mil por mês? O general da reserva Augusto Heleno já disse que tinha vergonha do seu salário de R$ 19 mil líquidos.

Guedes tomou uma bolada nas costas e partiu do oficialismo a pecha de que ele é um “inimigo dos pobres”. Teria surgido até uma banda “desenvolvimentista” no Planalto. Isso é falso por três razões.

Primeiro, porque o Pró-Brasil é apenas teatralista, como o foram seu pai — o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) — e seu avô, o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (PND).

Também porque esse desenvolvimentismo seria encarnado pelo ministro Rogério Marinho. Como secretário para Previdência e Trabalho de Guedes, o doutor teve a ideia de taxar os desempregados que recebem um seguro do governo. Justificando a tunga, disse que com isso o desempregado continuaria na Previdência Social. Só não explicou por que a medida seria compulsória. Se fosse voluntária, tudo bem.

Finalmente, porque o teatrinho do Pró-Brasil nunca foi coisa nenhuma. Revela apenas um governo desorientado. Quando Bolsonaro diz que Paulo Guedes é “o homem que decide a economia”, isso significa que, quando for o caso, poderá ser descartado, com a mesma argumentação usada para defenestrar Sergio Moro.

Até o mês passado Paulo Guedes queria reformar a economia brasileira com 40 milhões de invisíveis e 11 milhões de desempregados. Na segunda-feira ele reafirmou a vitalidade de seu projeto e encrencou com a geladeira dos servidores.

Na recessão americana de 1929 o secretário do Tesouro, Andrew Mellon, também viu um renascimento a partir da ruína e propôs ao presidente Herbert Hoover: “Liquide os sindicatos, liquide o papelório, liquide os fazendeiros, liquide o mercado imobiliário. Isso purificará a podridão do sistema. (...) As pessoas trabalharão mais e levarão uma vida com mais moral”. Felizmente, Hoover não o ouviu.

Em 1933, Franklin Roosevelt assumiu a Presidência, olhou para o andar de baixo e mudou a cara dos Estados Unidos.

Em tempo, o andar de cima americano nada tem a ver com o de Pindorama: Andrew Mellon doou ao povo o prédio da National Gallery de Washington e mais de mil peças de sua coleção. Coisa de dezenas de bilhões de dólares em dinheiro de hoje.


Elio Gaspari: Bolsonaro sonha com o fim do mundo

Desde a chegada da pandemia, assombrado pelo medo de que seu governo possa acabar, Bolsonaro cultiva um radicalismo delirante

Os eleitores de Jair Bolsonaro viveram o suficiente para ver o ex-juiz Sergio Moro lembrando que durante a Operação Lava-Jato a presidente Dilma Rousseff não procurou intervir nas investigações que corroíam seu governo. Isso na mesma fala em que denunciou a interferência do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal e o uso essencialmente fraudulento de sua assinatura eletrônica na exoneração “a pedido” do delegado Maurício Valeixo. A pedido de quem?

Formalmente, Moro pediu demissão. No mundo real, ele foi expulso do governo por Jair Bolsonaro. O ministro procurou negociar a substituição de Valeixo, mas esse caminho foi bloqueado no escurinho de Brasília. Sua saída agrava uma crise que Bolsonaro deliberadamente estimula.

Desde a chegada da pandemia, assombrado pelo medo de que seu governo possa acabar, Bolsonaro cultiva um radicalismo delirante. Demitiu o ministro da Saúde, foi para o portão do QG para estimular golpistas, apadrinhou uma mirabolância econômica que transforma o ministro Paulo Guedes em adereço de passista. Se tudo isso fosse pouco, avançou na jugular de Sergio Moro.

O repórter Gerson Camarotti sintetizou a conduta de Bolsonaro: ele entrou no “modo desespero”. Isso existe. Bernard Madoff era visto como um mago da finança americana e havia presidido a bolsa de tecnologia de Nova York. Em 2001, seu fundo de investimentos, um negócio de US$ 65 bilhões, rendia 10% ao ano, alegrando granfinos, inclusive alguns brasileiros. Era tudo mentira e sua explosão, questão de tempo. Ele passou a torcer para que o mundo acabasse. Assim ninguém saberia que ele era um vigarista. No dia 11 de setembro de 2001 ele viu o atentado da torres gêmeas e aliviou-se: “Ali poderia estar a saída”.

Não estava. Ele foi apanhado anos depois e está na cadeia, cumprindo uma pena de 150 anos de prisão. Um de seus filhos matou-se e todos os seus bens foram a leilão, inclusive os chinelos.
Num país assolado pela pandemia e por uma recessão econômica, assombrado e dispersivo, Jair Bolsonaro sonha com o fim do mundo.

O pandemônio presidencial
Paulo Guedes, o poderoso Posto Ipiranga, disse que seu projeto foi atingido por um “meteoro”. Tinha razão, mas depois do meteoro da Covid-19 veio o Pró-Brasil, uma fantasia de R$ 30 bilhões de investimentos que criaria um milhão de empregos e duraria dez anos. Guedes honrou o evento com sua ausência.

Para um ex-aluno da Universidade de Chicago, Guedes vive um pesadelo ao ouvir gente dizendo que o Pró-Brasil é um “Plano Marshall”. Quem acha isso confunde guindaste com girafa. O chefe da Casa Civil condenou o paralelo, mas infelizmente não conseguiu detalhar o plano.

Noutra analogia, o programa seria comparável ao “New Deal” americano dos anos 30 do século passado. Para isso, seria necessário colocar no mesmo pódio Jair Bolsonaro (que extinguiu o Ministério do Trabalho) e o presidente Franklin Roosevelt, que redesenhou as relações trabalhistas americanas. Quem quiser brincar de “New Deal” em Pindorama, deve saber que o presidente americano criou uma Previdência Social que ampara todos os cidadãos. Aqui há 40 milhões de invisíveis.

O Pró-Brasil é também uma vaga prestidigitação econômica. Os doutores falaram em investimentos do setor privado no mesmo dia em que o secretário de Desestatização revelou que não cumprirá sua meta de privatizações. O setor privado nacional está asfixiado e o internacional precisa ser convencido a investir num país governado por um negacionista que flerta com a quebra da ordem constitucional.

Atingido por uma crise que não provocou, Paulo Guedes está agora num governo que pretende desfilar o Pró-Brasil em ritmo de samba, enquanto ele continuará a dançar sua valsa na comissão de frente.

O Pró-Brasil é um neto torto do II Plano Nacional de Desenvolvimento, de 1975. Quando perguntaram ao então ministro da Fazenda Mário Henrique Simonsen o que ele achava do PND, publicado num livrinho de capa azul, ele foi breve: “Não leio ficção”.

Ninguém se incomodou porque sabia-se que era verdade.

Receita de ruína
Governos que não tiveram um ou mais generais no Planalto estrelando espetáculos foram estáveis e, às vezes, bem-sucedidos. A saber: os governos de Lula, Fernando Henrique, José Sarney e Emílio Médici. Todos tiveram chefes militares no comando do Exército.

Dois governos desastrosos tiveram generais buliçosos no palácio. A saber: as presidências de João Figueiredo e Costa e Silva.

Isso, deixando-se de lado o governo de João Goulart, com o poderoso “dispositivo militar”do general Assis Brasil.

Digital
Pode ter sido coincidência, mas a técnica de manifestação em frente a um quartel tem a digital do capitão Jair Bolsonaro.

Em 1992 ele era deputado e foi para o portão da Academia Militar das Agulhas Negras no dia da cerimônia de entrega dos espadins aos aspirantes. Pretendia distribuir panfletos aos convidados.

A bagunça foi contornada quando o comando mandou o major Luiz Eduardo Ramos negociar com Bolsonaro para que ele se distanciasse do portão.

Ramos, que hoje é ministro do capitão, rememorou o episódio para a repórter Maria Cristina Fernandes:

“Estava em uniforme de gala, mas subi na moto e fui encontrá-lo. ‘P... Jair, aqui não dá’. (...) Jair, me ajuda, eu recebi uma ordem. (...) Aí consegui que ele continuasse a distribuir os panfletos, só que em outro lugar que não ficava no caminho das autoridades. Todo mundo feliz e não deu mais problema.”

Não deu problema, naquele dia.

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e acredita que se Bolsonaro entregar ao centrão as arcas da Funasa e do FNDE, a parlamentares da estirpe do notório Valdemar Costa Neto, eles honrarão seus compromissos.

O cretino empolgou-se com o grito de guerra do presidente na porta do QG do Exército: “Acabou a época da patifaria”. O que ele não entende é por que ainda não se sabe quem fez o edital de agosto passado do FNDE pretendendo comprar 1,3 milhão de computadores, notebooks e laptops para a rede pública de ensino a um custo de R$ 3 bilhões.

A Advocacia-Geral da União mostrou que o certame parecia viciado e que os 250 alunos de uma escola de Minas Gerais ganhariam 30 mil laptops. Outros 355 colégios receberiam mais de um equipamento para cada estudante. A licitação foi suspensa em setembro e cancelada em outubro.

Os mecanismos de controle da Viúva funcionaram, mas a patifaria persiste, porque até hoje não se revelou quem (e por quê?) botou o jabuti na forquilha.

Eleição
A eleição municipal de outubro poderá ser adiada para novembro ou dezembro.

Uma coisa é certa, ela acontecerá neste ano.

Os interessados na prorrogação dos mandatos dos prefeitos devem tirar o cavalo da chuva.


Elio Gaspari: O presidente virou vivandeira

Nem todos os eleitores de Bolsonaro eram golpistas, mas todos os golpistas votaram nele

Vivandeira é uma palavra bonita que designa coisa feia. A expressão foi usada em agosto de 1964 pelo marechal-presidente Humberto Castello Branco, numa memorável lição:

“Há mesmo críticas tendenciosas e sem fundamento na opinião pública de que o poder militar se desmanda em incursões militaristas. Mas quem as faz são sempre os que se amoitaram em meios militares. Felizmente nunca rondaram os portões das organizações do Exército que chefiei. Mas eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar”.

O presidente Jair Bolsonaro amoitou-se diante do quartel-general do Exército, onde havia uma aglomeração de vivandeiras que pediam extravagâncias do poder militar. No dia seguinte, disse que não tinha nada a ver com as faixas que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e uma volta à ditadura escancarada do Ato Institucional nº 5.

O capitão disse também que “eu sou, realmente, a Constituição”. Não é. Dias antes, falou em “minhas Forças Armadas”. Minhas?

Deve-se voltar ao marechal Castello Branco. Como chefe do Estado-Maior do Exército, no dia 20 de março de 1964, uma semana depois do comício do João Goulart ao lado do quartel-general enfeitado por tanques, ele assinou uma circular reservada para os comandos. Disse que “os meios militares nacionais e permanentes não são propriamente para defender programas de governo, muito menos a sua propaganda, mas para garantir os Poderes constitucionais, o seu funcionamento e a aplicação da lei”.

Mais: “Não sendo milícia, as Forças Armadas não são armas para empreendimentos antidemocráticos”.

Castello Branco era um general francês. Já o seu colega Aurélio de Lyra Tavares, subchefe do Estado-Maior do Exército, era qualquer outra coisa. No dia seguinte, mandou-lhe uma carta na qual dizia que havia lido a circular depois de sua expedição. (Portanto não tinha nada a ver com aquilo). Informou que percebia um clima de apreensão “pela leitura dos jornais”. (Maldita imprensa.)

Em qualquer corporação há Castellos e há Lyras. O general viria a ser o desastroso ministro do Exército do presidente Costa e Silva e integrante da patética junta militar de 1969. Deu no que deu.

Nem todos os eleitores de Jair Bolsonaro eram golpistas, mas todos os golpistas votaram no capitão. Em janeiro de 2019, quando ele entrou no Planalto com seus 58 milhões de votos, poderia haver o sonho de um emparedamento do Congresso. Passado um ano, o Executivo ficou menor que o Parlamento. Atingido pela pandemia, o capitão meteu-se num negacionismo pueril e viu-se atirado ao olho de uma crise econômica que não provocou e que não mostra competência para administrar. Nas suas palavras: “Se acabar economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo. É uma luta de poder”. Não é uma luta de poder, nem acaba qualquer governo e o dele deve continuar até 31 de dezembro de 2022.

Se o presidente nada teve a ver com a vivandagem, torna-se impossível encaixar o Bolsonaro de domingo (19) no Bolsonaro da segunda-feira (20). Do alto da caçamba de uma camionete ele disse que “não queremos negociar nada. (...) É agora o povo no poder”.

Sem golpe, não haverá como.

Elio Gaspari é jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".