Eliane Cantanhêde: Chacoalhada

Coronavírus mexe na balança do Planalto: Bolsonaro se isola, uns sobem, outros descem

A crise do coronavírus acabou dando uma chacoalhada no governo, com mudanças de posições, ministros em alta, ministros em baixa e um consenso constrangido entre todos eles: é preciso agir e atacar a doença em conjunto, isolando o presidente Jair Bolsonaro. Não por ser do grupo de risco, ter mais de 60 anos e estar cercado de contaminados por todos os lados, mas porque é urgente que ele pare de atrapalhar.

Em alta no próprio governo e na opinião pública está o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, sistematicamente desautorizado pelo presidente, mas reconhecido pelos colegas ministros, que temem a força do coronavírus e a demissão do personagem-chave do combate à epidemia. Demitir Mandetta seria esfacelar, no momento decisivo, toda a estrutura do Ministério da Saúde, que tem o controle da operação e o reconhecimento popular.

Além de Mandetta, dois generais estão em alta: Braga Netto, da Casa Civil e com sala próxima do gabinete presidencial, e Fernando Azevedo e Silva, da Defesa, que despacha em outro prédio, mas é personagem assíduo no Planalto. Os dois têm duas características comuns: relacionam-se há anos com Bolsonaro e são respeitados pela cúpula do poder, que recorre a eles quando é preciso “dar um jeito no capitão”. Carioca jeitoso, Fernando foi colega de turma do insubordinado Bolsonaro no Exército.

Na balança, Braga Netto e Fernando Azevedo sobem, dois outros generais descem: Augusto Heleno, do GSI, sobre quem repousavam as melhores expectativas no início do governo, e Luiz Eduardo Ramos, secretário de Governo, que chegou ao governo para cobrir o vácuo de Onyx Lorenzoni, o chefe da Casa Civil que acabou trocado por Braga Netto. Heleno, que pegou coronavírus, parece estar se cansando do jogo. Ramos sofre pelas virtudes, não pelos defeitos: a personalidade contemporizadora, oposta à dos Bolsonaro.

Também em baixa o verdadeiro mito do governo, Sérgio Moro, alvo do mesmo ciúme que o presidente dedica agora a Mandetta e já despejou sobre Gustavo Bebianno, general Santos Cruz e até sobre Regina Duarte, logo na largada. Moro foi desautorizado inúmeras vezes, a última delas quando assinou o decreto suspendendo a entrada de estrangeiros de vários países. Bravo, Bolsonaro riscou sem pestanejar os cidadãos dos EUA – hoje, campeão de casos confirmados.

Depois das sucessivas desautorizações, Moro se recolheu e Bolsonaro passou a cobrar o contrário. Antes, condenava os “excessos” do ministro, que aparecia demais na mídia e lhe ofuscava a popularidade. Hoje, critica a “omissão” dele, reclamando que a área jurídica do governo está “acéfala”, o governo perde uma atrás da outra no Supremo e em todas as instâncias.

Na segunda-feira, 30, aliás, o ministro Dias Toffoli disse que não se combate o vírus com “achismos” e outros ministros do STF avisaram que vão derrubar medidas contrárias à saúde e à ciência. E, se Bolsonaro havia conclamado os políticos a saírem às ruas, como ele próprio fez no domingo, todos os líderes do Senado responderam com um sonoro “não”, em forma de manifesto a favor do isolamento social.

Assim, Bolsonaro está isolado dentro e fora do Brasil. Seguindo os líderes que prudentemente decretaram o isolamento social contra o coronavírus desde o início, também os teimosos Trump (EUA), Boris Johnson (Inglaterra) e Giuseppe Conte (Itália) se renderam às evidências. Ou seria à realidade?

Há poucos dias, Bolsonaro disse, todo orgulhoso, que Trump seguia “uma linha semelhante à nossa”. Mas, com quase 140 mil infectados e 2.500 mortes nas suas barbas (ou cabeleira), até Trump acaba de recuar e estender o isolamento para 30 de abril. O presidente brasileiro vai esperar tanto para cair na real?


Eliane Cantanhêde: Mandetta à equipe: ‘No meio do caminho, uma pedra’

Bolsonaro nas ruas foi forma de provocar a queda do ministro, mas Mandetta não caiu na armadilha, e enviou poema de Drummond a sua equipe

O presidente Jair Bolsonaro aproveitou o domingo para exercitar sua birra contra o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que na véspera alertou: “Se o sr. for para metrô ou ônibus em São Paulo (como chegou a dizer em entrevista), vou ser obrigado a criticá-lo”. Ao que o presidente rebateu: “E eu vou ter que te demitir”.

Como não havia logística para ir a São Paulo ontem, Bolsonaro decidiu fazer o teste no Distrito Federal mesmo, indo a padarias, mercadinhos, fazendo até fotos com criança. Evidentemente, uma forma de provocar a queda do ministro, mas Mandetta não caiu na armadilha.

A atitude do presidente foi considerada “óbvia”, um pretexto para a exoneração – que, aliás, provocaria um efeito dominó no Ministério da Saúde. Assim, Mandetta se recolheu, pedindo paciência à equipe com um poema de Carlos Drummond de Andrade: No Meio do Caminho. Resta saber o que o ministro dirá na coletiva de hoje à tarde, além de pedir desculpas à mídia. Na guerra contra o coronavírus e a morte, ela é a sua grande aliada.

Outra grande expectativa hoje é se Bolsonaro vai mesmo editar um decreto para liberar todas as profissões para trabalhar em meio à pandemia ou se foi só mais uma ideia jogada ao ar, enquanto confrontava Mandetta nas ruas.

Se não sair decreto nenhum, essa história é mais uma para a longa lista de coisas que o presidente diz e ninguém leva a sério, nem lembra depois. Se sair, a coisa vai ficar muito grave. Além da crise sanitária, teremos uma crise federativa: a União contra os Estados, o presidente contra governadores e prefeitos.

Como o ministro do STF Gilmar Mendes alertou Bolsonaro no sábado, basta que São Paulo, Rio e Minas desobedeçam uma medida legal tomada pelo Planalto para essa medida virar pó, letra morta. Os três Estados reúnem quase cem milhões de pessoas e os governadores João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ) não parecem interessados nem em quebrar a quarentena nem em cumprir decretos e maluquices de Bolsonaro numa hora de vida ou morte.


Eliane Cantanhêde: Isolamento sim!

Governo emite sinais trocados e Brasil começa a se dividir. Coronavírus agradece

Eta gripezinha que está custando caro! O presidente da República fala para um lado e os ministérios agem para o outro, anunciando montanhas de dinheiro para enfrentar o abandono dos miseráveis que precisam do Bolsa Família, a insegurança dos informais e a dramática ameaça aos empregos. Isolamento, sim, para salvar vidas. E medidas emergenciais para reduzir os danos na economia.

É a realidade se impondo, com as lições vindo assustadoramente de fora. Se não quer ouvir a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Ministério da Saúde, a ciência e as estatísticas, o presidente deve ao menos se informar sobre o que aconteceu nos dois países mais afetados pelo Covid-19 no mundo. Nos Estados Unidos, seu tão amado Trump foi obrigado a recuar e agora clama para os americanos ficarem em casa. Na Itália, o mea culpa do prefeito de Milão é um grito de alerta.

Trump, como o “amigo” brasileiro, minimizou o coronavírus até que os EUA passaram a ser o epicentro da doença, ultrapassando os cem mil infectados e beirando 1.500 mortos. Só aí ele se rendeu à única “vacina” contra a pandemia: o isolamento social. Na Itália, o prefeito de Milão desdenhou do tsunami, animando as pessoas a saírem. Agora admite: “Errei”. Tarde demais. Os italianos já contabilizam mais de 9 mil mortes, 919 só na sexta-feira.

“Infelizmente, algumas mortes terão. Paciência, acontece, e vamos tocar o barco”, conformava-se o presidente brasileiro no mesmo dia, ignorando alertas e estatísticas, a lógica, o bom senso, a humanidade. Pior: a responsabilidade. Tudo em nome do seu novo slogan político: “O Brasil não pode parar”. O problema é que, se milhões são contaminados e milhares morrem, aí é que o Brasil vai parar. Só não vê quem põe sua visão pessoal acima das evidências.

Num país dividido, com um governo que emite sinais trocados, governadores e prefeitos, em maioria, decidem deixar o capitão falando sozinho e se articulam para enfrentar a pandemia, acolher os infectados e evitar mortes, enquanto os do Nordeste lançam manifesto “pela vida”. Mas o efeito do comando do presidente contra o isolamento já se faz sentir, com governadores aliados de Mato Grosso, Santa Catarina, Rondônia e Roraima se assanhando para flexibilizar o isolamento.

Na sociedade, o mesmo. CNBB (bispos), OAB (advogados), ABI (imprensa), SBPC (ciência), ABC (ciência) e Comissão de Direitos Humanos de São Paulo fazem alerta “em defesa da vida” e conclamam a população a “ficar em casa”, em respeito à ciência, aos profissionais de saúde e à experiência internacional.

Do outro lado, as falas e a campanha do presidente produzem aumento de pessoas nas ruas, shoppings de Minas reabrindo, a ofertazinha bacana da CNI em tempos de gripezinha: testes rápidos de coronavírus, de 15 em 15 dias, para 9,4 milhões de trabalhadores industriais. Isolamento social? “Só para pessoas com exame positivo.”

Bolsonaristas vão alegremente às ruas contra o isolamento. Mas de carro, que ninguém é besta, enquanto defendem que seus empregados se exponham ao vírus em ônibus e metrôs e garantam seu lucro. Só não entenderam ainda, e vão entender na marra, que, se os trabalhadores se contaminarem, eles também vão se contaminar, depois contaminar seus amores, famílias, amigos. E, “infelizmente, algumas mortes virão...”, lembram?

É profundamente importante, sim, reduzir os danos na economia, nos empregos, na pobreza. E é por isso que o Estado está devidamente flexibilizando a prioridade fiscal para tomar as medidas necessárias. O que não pode é desdenhar da morte em nome da economia. Até porque nada comprova a eficácia desse método ignorante e desumano (para não buscar adjetivos e referências pavorosas na história).


Eliane Cantanhêde: Isolamento vertical

Bolsonaro teme crise na economia e nas ruas, com derrota em 2022. E busca culpados

Uma pergunta sobrevoa os ares de Brasília nesses tempos de coronavírus: por que, com toda a tragédia e péssimas previsões para a economia, o presidente Jair Bolsonaro não dá um tempo nas suas guerras pessoais e assume mínima postura de estadista? A resposta inevitável é o temperamento incontrolável do presidente, mas isso é só uma parte da explicação.

Além da incapacidade de ouvir a própria assessoria, da mania de perseguição e da inveja de quem brilhe mais do que ele, o presidente tem motivações políticas e econômicas para a radicalização e o confronto, como no fatídico pronunciamento em que mandou às favas o isolamento social para se concentrar na economia. Os dois não são excludentes, mas isso é outra história.

Bolsonaro quer jogar a culpa da crise na mídia, governadores, prefeitos, Congresso, STF e até na China, porque teme perder apoio da base (aliás, do topo) bolsonarista – grande capital, empresariado e a tropa da internet. Logo, começou a bater o pânico de não ter gás para 2022. Com a economia derretendo, ou derretida, fica tudo mais difícil.

Há, também, outros fatores nas manifestações erráticas de Bolsonaro. Além de seu “passado de atleta”, de ter sobrevivido a uma facada e não temer “gripezinhas” e “resfriadinhos”, como esse tal de coronavírus, ele não é homem de esperar calado os ataques que imagina vindo de toda a parte. Sobretudo da esquerda, pretexto para tudo.

Antes mesmo da chegada do coronavírus ao Brasil, Bolsonaro já temia manifestações de rua, a exemplo do Chile. A esquerda, tão recolhida e tão morna desde a posse do novo governo, no ano passado, estaria se articulando para “dar o bote” no melhor momento – que corresponderia ao pior momento do presidente.

Forças Armadas, Ministério da Justiça e Segurança Pública e Agência Brasileira de Inteligência (Abin) monitoram e acompanham riscos de eventuais distúrbios. Em avaliações internas, esses riscos já existiam e podem ser potencializados pela pandemia, quebradeira de empresas e o horizonte de milhões a mais de desempregados.

Assim, o Ministério da Defesa montou dez comandos de emergência, oficialmente para a necessidade de Exército, Marinha e Aeronáutica virem a entrar no combate à doença, mas também como prevenção para o caso de convulsão social provocada pela realidade e instrumentalizada pela esquerda, com manifestações, saques e tumultos.

Bolsonaro teria uma certa obsessão com isso, achando que, mais cedo ou mais tarde, algo assim possa ocorrer e enfraquecer sua autoridade e sua posição de presidente. O que não percebe é que o ex-presidente Lula, o PT e seus satélites não estão com essa bola toda e ações radicais seriam rechaçadas maciçamente pela sociedade. Assim, quem tem trabalhado incansavelmente para enfraquecer sua autoridade e sua posição é o próprio Bolsonaro.

Após ambientalistas, estatísticos, jornalistas, professores, governadores, presidentes de outros países Congresso, STF e as áreas de Direitos Humanos, pesquisa e Cultura, ele bate de frente de novo com a ciência e inclui a área de saúde, ao minimizar o coronavírus, apesar de todas as evidências, e defender a troca do isolamento social por um “isolamento vertical”, apesar de todos os protocolos da OMS que o Ministério da Saúde e os Estados seguem.

Bolsonaro teria se saído muito melhor se ouvisse mais seus generais e assessores, menos Carlos Bolsonaro e o “gabinete do ódio”, e tivesse feito o discurso da prioridade zero, um, dois e três para o combate ao coronavírus e para salvar vidas, mas sem perder a perspectiva de preservar o possível da economia, das empresas e do emprego. O velho e bom equilíbrio. O capitão, porém, prefere sair atirando. Inclusive no próprio pé.


Eliane Cantanhêde: A Escolha de Sofia

O Brasil hoje: se correr, o bicho covid-19 pega; se ficar, o bicho da recessão come

O mundo todo e o Brasil, particularmente, vivem um dilema típico de “A Escolha de Sofia”. Aprofundar o isolamento e a paralisação de estados, cidades, empresas, empregos e pessoas, em nome da saúde e da vida? Ou mitigar o combate radical ao coronavírus para tentar preservar empresas e empregos, em nome da economia?

Na prática, uma guerra da área sanitária com parte de governantes, empresários e economistas. De um lado, governadores que trabalham diretamente com o Ministério da Saúde e os especialistas no setor; de outro, o presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da Economia e aliados.

Em tese, todos têm razão. A prioridade absoluta neste momento é trabalhadores, funcionários, autônomos e diaristas em casa para interromper a transmissão do vírus maldito. A prioridade de hoje, porém, não pode desconsiderar a de amanhã: a pandemia acaba e as vítimas não serão só os mortos e contaminados, mas todos que produzem, vendem, trabalham. O horizonte é de terra arrasada, com recessão, quebradeira de empresas e lojas, 40 milhões de desempregados, na previsão de um grupo de empresários.

Como sempre, em todas as crises, dificuldades e momentos, as maiores vítimas todos nós sabemos quem são e serão: velhos, homens, mulheres e crianças da tal da “base da pirâmide”. Passado o momento em que os infectados e mortos eram recém-chegados da Ásia e da Europa, ou por eles foram contaminados, a expectativa, que dá um tremor no corpo e um frio na coluna, é que o vírus chegue às favelas, cortiços, às imensas áreas sem água, sabão, muito menos álcool gel.

São milhões com imunidade baixa, higiene precária, compreensão da situação equivalente ao (mínimo) grau de educação. Logo, serão os alvos fáceis de um vírus oportunista e letal. São os moradores de rua, os que vendem água, milho ou qualquer coisa por aí, os diaristas que só recebem (e comem) quando trabalham e, entre eles, os informais, que crescem freneticamente e sem amparo legal. Eles vão morrer mais com o vírus e vão sofrer mais no pós-vírus. Se correrem, o bicho covid-19 pega; se ficarem, o bicho da recessão come.

O novo coronavírus chegou para valer em todas as unidades da Federação, decretando calamidade pública, prenunciando colapso da saúde e crescendo na velocidade do exemplo mais dramático, a Itália. E tudo isso na pior hora. Um dos líderes mundiais em desigualdade social, o Brasil convive com falta de estado e bolsões de miséria absoluta em todas as suas regiões. E vem de dois anos de recessão, de mais dois “crescendo” 1,3% e desperdiçou 2019 com PIB de 1,1%. Mais: a questão fiscal é o maior obstáculo da economia.

De onde tirar a montanha de dinheiro que o País precisa para salvar vidas, tratar doentes, preservar setores mais atingidos, empregos, milhões de famílias sem renda? O governo tem anunciado medidas, como flexibilização das regras trabalhistas e de pagamento de dívidas e vales de R$ 200,00 para informais e os mais miseráveis entre os miseráveis. Mas, num País populoso como o nosso, significa que a conta é altíssima para os cofres públicos, mas o valor que chega à mesa das famílias é irrisório. Tudo deprimente, apavorante.

A luz no fim do túnel só virá, primeiro, com o máximo rigor contra a transmissão do vírus e, depois, com união, patriotismo, solidariedade, as disputas políticas de lado, o presidente acordando para a realidade e uma certa elite esquecendo, por ora, a eterna ganância e a velha arrogância. Aliás, uma pergunta: como os bancos vão entrar nessa onda? Governos de esquerda, centro e direita vêm e vão e esse é o setor que mais lucra. É hora de retribuir, porque se trata de questão de vida e morte. Das pessoas e da economia.


Eliane Cantanhêde: Colapso

Mortes, contaminação, calamidade, colapso, recessão. Não é ‘gripezinha’

Os mortos pelo novo coronavírus já passam de 11.500 no mundo. Chegaram até ontem a 18 no Brasil, 220 nos Estados Unidos, em torno de 500 na França, 1000 na Espanha, 1.400 no Irã e 4000 mil na Itália, além de mais de 3100 na China. O número de contaminados nem dá mais para contar. E muitos deles vão morrer.

Em sã consciência, é impossível chamar tudo isso de “gripezinha” e defender realização de cultos religiosos, como fez o presidente da República Federativa do Brasil, depois de ter reduzido tudo a uma “fantasia”, criticar a “histeria”, estimular manifestações (aliás, contra o Congresso e o Supremo) e tocar mãos e celulares de centenas de pessoas mesmo ainda sujeito a novos testes para o vírus. Como não criticar esses absurdos?

Quanto mais a doença se abate sobre a humanidade, mais os cidadãos buscam o melhor de si para reforçar a empatia, a solidariedade, o patriotismo, a resistência. Arrasada, a Itália nos brinda com exemplos comoventes de artistas cantando óperas e distribuindo gentileza e esperança pelas janelas e varandas. O Brasil segue o exemplo e faz panelaços em agradecimento ao bravo pessoal da saúde.

Não vamos estragar isso, presidente. Só o uso de máscaras inúteis não resolve nada nem do ponto de vista simbólico nem do epidemiológico.

O ministro Henrique Mandetta prevê “colapso na Saúde” logo ali, em abril, enquanto o governo anuncia transmissão comunitária em todo o País e Câmara e Senado providenciam às pressas votações remotas e aprovam o estado de calamidade pública. O teto de gastos e a tão suada e fundamental Lei de Responsabilidade Fiscal foram devidamente jogados pela janela para abrir espaço ao principal: o combate ao coronavírus.

Nesse quadro de guerra, de responsabilidade, é preciso pensar antes de falar, ter cuidado com o outro, respeitar a dor das famílias dos mortos de hoje e de amanhã. E não custa lembrar que, neste momento, o presidente é uma ilha cercada de contaminados: os chefes do GSI, da Secom, da Segurança, da Ajudância de Ordens e do Cerimonial, que integram a incrível lista de 22 pessoas da comitiva presidencial que trouxeram o coronavírus dos Estados Unidos (e não da China...).

Entre as vítimas mais sensíveis, está a economia. A previsão do governo para o crescimento de 2020 era de 2,4, caiu para 2,1% e já está em 0,02% que, tira daqui, põe dali, significa zero, nada, estagnação. E é considerada otimista. A FGV já trabalha com um tombaço de 4,4%. Recessão das brabas.

Levantamento feito pela Cielo, maior credenciadora de cartões do País, mostra que as vendas do varejo caíram 5,4% nos primeiros 19 dias de março em relação a fevereiro e essa queda vem piorando de semana a semana. O setor mais afetado é exatamente o de serviços, onde se encaixa o turismo: queda de nada mais nada menos que 25,5%. As pessoas, trancadas em casa, não viajam, não consomem. Lojas estão fechadas, não lucram. Empresas param, não produzem. Um ciclo maldito, cujo resultado final, em tese, é quebradeira, queda de empregos e renda. Dor.

Em meio a tudo isso, o Brasil segue os EUA e a Europa e começa a testar cloroquina em pacientes de Covid-19 em situação gravíssima, mas o presidente da Anvisa, médico e contra-almirante Antonio Barra Torres, faz um apelo dramático: “Não comprem cloroquina!”

Segundo ele, 1) os testes para o coronavírus ainda são muito preliminares; 2) há risco sério de efeitos colaterais; 3) o medicamento pode faltar (aliás, já está faltando) para os que realmente precisam: os que têm Lupus, malária, artrite e outras doenças reumáticas. É preciso ouvi-lo. Automedicação é uma praga. Numa pandemia, uma praga ainda mais perigosa. Como a irresponsabilidade e a displicência nos momentos graves.


Eliane Cantanhêde: Salve-se quem puder!

O mundo em guerra contra o coronavírus, mas Bolsonaro mira seus inimigos particulares

Já que o presidente Jair Bolsonaro vive sua realidade paralela, os três Poderes declaram trégua e traçam ações comuns contra os efeitos do novo coronavírus apesar dele. Com isolamento médico ou não, Bolsonaro está se isolando dos demais Poderes e ontem não participou de uma videoconferência de presidentes da América do Sul sobre a doença e a crise econômica. Enquanto isso, o vírus vai se multiplicando dentro e fora do Brasil.

Presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo se reuniram com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, para ouvi-lo, traçar planos de ação e contornar a fogueira política diante do problema maior. Foi Rodrigo Maia, aliás, quem primeiro estendeu a bandeira branca, apesar de ter sido o principal alvo do presidente e dos bolsonaristas no domingo.

Bolsonaro já disse que a crise é uma “fantasia”, uma “histeria”, e considerou que tudo é “superdimensionado”, ora por “interesses econômicos”, ora pela “luta pelo poder”. Das palavras aos atos, tirou a máscara, deu de ombros para o Ministério da Saúde, abandonou o monitoramento, não esperou o segundo teste e foi confraternizar com manifestantes em frente ao Planalto.

“Se eu me contaminei, ninguém tem nada a ver com isso”, disse ontem, mas não é bem assim. O problema não é apenas ele se contaminar, é o risco de ter contaminado as 272 pessoas com quem teve contato, de acordo com levantamento do Estado. E, depois, todo mundo tem muito a ver, sim, com a saúde do presidente da República.

Ele não é uma pessoa privada, é a autoridade pública número um.

O próprio ministro da Saúde classificou protestos e eventos culturais neste momento como “completamente equivocados”. O governador Ronaldo Caiado, um dos raros a apoiar Bolsonaro, foi vaiado por manifestantes em Goiás ao lembrar, como médico, que “não se mostra apoio a governo colocando em risco sua população”. Se eles queriam pôr a própria saúde em risco, problema deles, mas sem o direito de pôr a dos outros. Cada contaminado tem poder de multiplicação do vírus.

A reação de Bolsonaro à contaminação da saúde e da economia tem sido errática, de quem não está entendendo nada nem parece muito interessado. Na terça-feira passada, declarou que era “fantasia da grande mídia”. Dois dias depois, deixou de ser fantasia e ele fez o primeiro teste e uma live com máscara. Mais dois, tirou de novo a máscara e lá se foi, sorridente, cumprimentar manifestantes contra o Supremo e o Congresso. Os contaminados da sua comitiva aos EUA já chegavam a 12.

Diante da perplexidade de Rodrigo Maia e do senador Davi Alcolumbre, abandonou de vez o vírus, a disseminação, a crise do mercado, a previsão do PIB esfarelando para bater boca pela TV com os presidentes da Câmara e do Senado. “Está em jogo uma disputa política por parte desses caras”, disse, resumindo tudo isso a uma “luta pelo poder”. Vocês sabem quem são “esses caras”.

Irritado, Bolsonaro disse que está “há 15 meses calado, apanhando”, e vai passar a revidar. O curioso foi ele dizer que passou todo o mandato calado, o que, absolutamente, não é verdade. E o mais intrigante foi ele anunciar que vai atacar e antecipou os alvos: “Grande parte da mídia, chefes do Legislativo e alguns governadores”. O mundo está em guerra contra o novo coronavírus, mas o presidente brasileiro abre uma guerra particular contra instituições e críticos.

Com o autoisolamento do presidente, são os ministros Mandetta e Paulo Guedes, além de Maia, Alcolumbre e Dias Toffoli, do STF, que vão ter de segurar a onda, ou o tsunami. Mandetta sobrevive bem, mas o conceito de Guedes já foi melhor e o dos demais vem sendo sistematicamente atingido pelo presidente, seu entorno e a tropa bolsonarista. Logo, salve-se quem puder!


Eliane Cantanhêde: Brincadeira de vida ou morte

Há tempos o Brasil não assiste, à luz do sol, a uma irresponsabilidade como a do presidente da República, que jogou para o alto as recomendações de saúde e se encontrou com manifestantes em frente ao Planalto. Em nova versão da “fantasia”, Jair Bolsonaro passou para a população a mensagem de danem-se o Ministério da Saúde, os especialistas, os médicos!

Entre o correto e o conveniente politicamente, Bolsonaro optou pela conveniência política, o que se torna ainda mais irresponsável quando a epidemia está só começando no País e, ao lado dele, estava o diretor substituto da própria Anvisa. Chocante.

Paulo Guedes defende reformas, mas Bolsonaro senta em cima das propostas e publica fotos justamente com faixas de “Fora Maia” nas manifestações. E o ministro Luiz Henrique Mandetta tenta evitar mortes e contaminação e adverte que em pessoas acima de 60 anos a covid-19 é mais letal e todos que tiveram contato com contaminados devem se preservar – e preservar os outros –, mas o que faz Bolsonaro? Vai à rua, toca pessoas e seus celulares.

É contra a ciência, os deveres do cargo, os direitos dos cidadãos. E danem-se as pessoas que, ingenuamente, foram colocadas em risco por quem ainda é sujeito a um segundo teste e tem recomendação de isolamento, depois de dias ao lado de contaminados. Mas Bolsonaro não foi o único irresponsável.

Nas manifestações do “Fora Maia”, “Fora STF” e “SOS Forças Armadas”, tudo foi grave: o ataque às instituições, o uso do nome das FFAA em vão e o risco em que aquelas pessoas se colocavam e colocarão as outras, todas as outras. Não viram China, Itália, EUA? Acreditam na versão de Bolsonaro de que tudo era fantasia? Não é fantasia. É um pesadelo, questão de vida ou morte.


Eliane Cantanhêde: Isolamento

Presidente, bananas não salvam vidas e não reduzem danos numa economia já combalida!

Tudo o que este mundo enlouquecido precisava para um freio de arrumação era um inimigo comum a toda a Humanidade, mas veio o novo coronavírus e o que se vê, assustadoramente, é o contrário: os líderes aproveitando para reforçar fronteiras e se isolar ainda mais, enquanto o presidente Jair Bolsonaro se ocupa em dar bananas para jornalistas, incorrigível, entre um teste e outro para o vírus.

A história está cheia de exemplos comprovando que é nos piores momentos que se forjam os grandes líderes, mas o inverso também é verdadeiro: nas crises, líderes ou emergem ou desaparecem. Há décadas não se vê uma crise da dimensão atual. Vamos ver quem sobrevive e quem sucumbe.

O novo coronavírus contamina as pessoas e as economias de países de todos os continentes. Nos dois casos é potencialmente letal e ele veio com tudo justamente num ambiente de desaquecimento global e quando a migração é uma das questões mais graves na agenda internacional. É hora de testar os líderes, saber quem tem ou não visão estratégica e grandeza pessoal. Restarão poucos, nesses tempos de Trump, Putin, Erdogan e tantos outros.

No Brasil, o presidente deveria aproveitar o isolamento para deixar de lado a obsessão por bananas, parar de atacar tudo e todos e refletir sobre sua imensa responsabilidade. O mundo está em crise, o Brasil está em crise, os casos de coronavírus vão disparar, a Bolsa teve a maior queda desde 2008, são 12,5 milhões de desempregados. E, antes mesmo do tsunami, o pibinho já foi de 1,1%.

A economia brasileira não tem margem para piorar. E vai piorar. As previsões de crescimento já não eram animadoras e agora não param de cair, deixando no ar a sensação – ou o pavor – de uma nova recessão. Logo, o governo precisa fazer um malabarismo estonteante para dar suporte a setores estratégicos sem explodir as contas públicas.

Quem tem a caneta e o poder de decisão é o presidente e, goste-se ou não, lamente-se ou não, trata-se de Jair Bolsonaro. Como ele não tem conhecimento e não manifesta interesse, significa que é o ministro Paulo Guedes quem está no centro do furacão.

Na Saúde, como dito aqui desde o início, a forte cultura e os quadros de excelência da saúde pública, mais a grata surpresa que é Luiz Henrique Mandetta, estão fazendo sua parte. Ao contrário do que ocorreu, por exemplo, na Itália e nos EUA, onde as mortes já passavam de 40 e não havia nem estatísticas sobre contaminados quando Donald Trump enfim anunciou emergência e abriu as torneiras.

Distante de disputas partidárias, o ministro da Saúde prepara o País para a rebordosa. Contratou leitos de UTI à disposição dos Estados, encomendou 17 milhões de máscaras hospitalares da China para o pessoal de Saúde, antecipou a maior operação de vacinação do mundo, com 75 milhões de doses contra a influenza.

Na economia, todos parecem atordoados, mas a expectativa é de um pacote de medidas amanhã. Assim como Mandetta, Guedes precisa agir para reduzir danos. A diferença é que um foi mais previdente e o outro corre atrás do prejuízo, sem que o presidente demonstre real compreensão da situação. Guedes bate na tecla das reformas e Bolsonaro bate no Congresso, até mesmo ao desarticular as manifestações previstas para hoje.

Assim como não há vacina nem tratamento específico para a covid-19, só paliativos, também na economia não havia como impedir a crise e não há tratamento sem dor para um país parado, com as pessoas evitando viajar, circular, comprar, os serviços esvaziando e as empresas esfarelando nas bolsas ou em solo, como as companhias aéreas. Mas há, sim, como evitar um número maior de vítimas e um prejuízo maior. O presidente, se não consegue ajudar, deve aproveitar o isolamento para não atrapalhar.


Eliane Cantanhêde: Fantasia e pesadelo

O presidente ainda acha que Bolsas, dólar e coronavírus são 'fantasias da grande mídia'?

É dramaticamente irônico que o presidente Jair Bolsonaro tenha dito que o coronavírus não passava de uma “pequena crise”, uma “fantasia” criada pela “grande mídia”, e apenas dois dias depois um dos contaminados no Brasil venha a ser justamente o secretário de Comunicação da Presidência, Fábio Wajngarten. Vítima da “fantasia”? Vítima da imprensa?

O fato é que, agora, a Organização Mundial da Saúde (OMS) já declarou pandemia, os casos e mortes se multiplicam rapidamente por todos os continentes, as Bolsas despencam, eventos nacionais e internacionais são cancelados, um atrás do outro, e as escolas estão sendo fechadas.

A curiosidade é por que o presidente perde todas as chances de ficar calado. Fantasia? O coronavírus já atingiu centenas de milhares de pessoas no mundo, com perto de 5 mil mortes. No Brasil, já havia em torno de 80 casos confirmados e mais de 1.400 suspeitos em vários Estados e no DF.

A Bovespa já foi suspensa quatro vezes nesta semana, com as maiores quedas desde 1998, enquanto o dólar chegou a bater em R$ 5. É para brincar com uma coisa dessas? Ou para imitar seu ídolo Donald Trump? Ou para aproveitar para jogar descrédito sobre a mídia? Melhor do que isso seria o Planalto e o Ministério da Economia seguirem o exemplo do Ministério da Saúde. Mostrar serviço, atenção, presteza. Não é essa a sensação, nem em Brasília nem no mercado.

Em meio a tudo isso, é muito preocupante, sim, que Wajngarten tenha viajado no mesmo avião do presidente e tido contato o tempo todo com ministros e assessores da comitiva presidencial a Miami. Para constrangimento geral, ele também participou do jantar de Trump para Bolsonaro na restrita Mar-a-Lago e ainda tirou foto com Trump e o vice Mike Pence com aquele boné ridículo do “Brasil great again”. Já imaginaram se ele sai contaminando a cúpula da Casa Branca?

É óbvio que Wajngarten é uma vítima, um paciente, totalmente isento de qualquer responsabilidade, mas, na prática, o presidente, a primeira-dama Michelle, o filho Eduardo, ministros e assessores da Presidência estão numa situação delicada. Não precisa isolamento, mas monitoramento e evitar aglomerações, reuniões, apertos de mão, abraços e beijos. Logo, o governo brasileiro está em “home working”.

Enquanto isso, o Congresso derruba o veto da ampliação do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para idosos carentes e deficientes, dando uma de bonzinho para o eleitor e uma de mau para as contas públicas e para Bolsonaro e o governo.

Para piorar, uma parte do Congresso faz jogo duro para liberar os R$ 5 bilhões que o ministro Luiz Henrique Mandetta reivindica para preparar o País para acolher e tratar os pacientes de coronavírus por toda parte. Mandetta pediu, o deputado Rodrigo Maia e o senador Davi Alcolumbre apoiaram, mas líderes de partidos do Centrão arranjam pretextos para dificultar as coisas. É brincar com fogo.

A situação ainda vai piorar muitíssimo, antes de atingir o pico e começar a melhorar. Por enquanto, os contaminados são pessoas que estavam na Ásia, na Europa, particularmente na Itália, e têm acesso ao que há de melhor em saúde no Brasil. O problema será quando os “ricos” começarem a passar o vírus para os “pobres”. Esse será o grande teste, não apenas da saúde pública no Brasil, mas também das autoridades brasileiras, a começar do presidente e do Congresso. Não é fantasia e não se pode brincar com vida e morte.

Aliás, e se usassem para o secretário o que Abraham Weintraub usou para a educadora Priscila Cruz, após suspeita do coronavírus? Citando a Bíblia, ele comemorou: “O Senhor nosso Deus os destruirá”. Sorte que há poucos Weintraub para coisas assim.


Eliane Cantanhêde: Trump e Bolsonaro

Acordo com EUA amplia acesso do Brasil ao mercado de defesa mundial

O Brasil poderá dar importante salto no complexo universo de defesa amanhã, em Miami, quando fecha um acordo com os Estados Unidos para pesquisa, desenvolvimento, testes e avaliação de produtos nessa área. Esse acordo materializa a aliança extra-OTAN, amplia o acesso do Brasil ao riquíssimo mercado internacional de defesa e, indiretamente, melhora a posição brasileira na disputa por uma vaga à OCDE.

O Brasil é o 14.º país no seleto grupo que já fez esse mesmo acordo com os EUA, sob a sigla RDT&E. Nenhum deles é da América Latina, nem mesmo do Hemisfério Sul: França, Inglaterra, Itália, Holanda, Alemanha, Índia, Suécia, Estônia, Finlândia, Noruega e Coreia do Sul. O objetivo é harmonizar produtos de defesa com base nos EUA e na OTAN.

Depois de jogar todas as fichas na aproximação com os EUA, sem receber o equivalente em troca, finalmente o presidente Jair Bolsonaro - que jantou ontem com Donald Trump em Palm Beach - pode dizer que está fazendo um gol. Para Defesa e Itamaraty, um golaço. Para os céticos, uma dúvida: o governo tem obsessão por defesa, mas e a desigualdade social?

Não confundir indústria de defesa com indústria de armas e munições, que reúne só 1,7% das empresas do setor no Brasil. Todo o resto é, em resumo, nas áreas de satélites, comunicações, segurança cibernética, plataformas terrestres e navais, controle aéreo e por aí afora. De todas, só três são estatais, Emgepron, Imbel e Amazul.

Do ponto de vista estratégico, essas áreas não dizem respeito só às Forças Armadas, mas trazem benefícios para a tecnologia, a indústria em geral e a sociedade civil, como ocorreu com a internet e o GPS, entre tantos outros.

Do ponto de vista econômico, o governo considera que “o céu é o limite”, pela grande sofisticação, altos preços e mercado internacional do setor. Com o selo RDT&E, os produtos brasileiros terão outro patamar. Há, ainda, a questão da tecnologia e do treinamento de pessoal no Brasil, onde a defesa já responde por 250 mil empregos diretos e igual número de indiretos, com uma renda três vezes maior que a média nacional e um efeito multiplicador poderoso: cada real aplicado tem potencial de gerar 9,8 reais na economia.

O acordo, que será assinado pelo chefe do Estado-Maior Conjunto do Brasil e pelo comandante do Comando Sul dos EUA, não envolve recursos. Isso é uma outra história, ou um outro acordo, ainda não em discussão, mas já no radar do Brasil: o RDT&F, sendo o F de “funding”, ou financiamento. Além do acordo de defesa, Bolsonaro já assinou o decreto do “Global Entry”, para ampliar a dispensa de vistos para grandes empresários, e estão em pauta em Miami comércio, troca de tecnologia, investimentos e infraestrutura. Até por isso, é estranho que Paulo Guedes não vá. De repente, pressa para as reformas?

Não se pode diminuir a simbologia de Trump abrir as portas para um jantar, sábado à noite, para o brasileiro, mas o encontro teve caráter informal, não de reunião de trabalho para percorrer a extensa agenda comum. Até porque, cá pra nós, nenhum dos dois gosta dessas chatices.

Também não custa lembrar: quem é melhor comerciante, Trump ou Bolsonaro? Aliás, se um tema era certo no jantar, era o 5G. Trump não quer nem ouvir falar em 5G da China, só não se sabe como colocaria para Bolsonaro: em forma de advertência, ameaça ou premiação pela decisão. Mas a pressão é forte. A ver.

Para Bolsonaro, o troféu da viagem será a foto com Trump, mas Trump não é eterno, os EUA não são os únicos parceiros e a nossa verdadeira guerra é a tragédia social. Não adianta ser aliado extra-Otan dos EUA e entrar na OCDE só com o discurso de que, um dia, quem sabe, isso reverterá para toda a sociedade. Quem tem fome tem pressa.


Eliane Cantanhêde: Que surpresa?

É normal crescer 1%? Não. Não é normal, mas não é surpresa e faz todo o sentido

O ministro Paulo Guedes manifestou “surpresa com a surpresa” diante do pibinho de 1,1% de 2019, que conseguiu a proeza de ser menor que o 1,3% de 2017 e 2018, apesar de pesos e condições políticas bem diferentes: o presidente Michel Temer assumiu após um impeachment, Jair Bolsonaro chegou com a força do voto.

Na verdade, porém, não houve “surpresa” com o pibinho, mas, sim, desânimo, decepção e preocupação com o futuro. Se no primeiro ano de um governo cheio de gás foi assim, como será o segundo? Em 2019, houve Brumadinho, os embates EUA-China, se quiserem dá para incluir a crise suína na China. Em 2020, há coronavírus, Bolsas derretendo, dólar disparando e previsão de desaquecimento global, que já antecedia tudo isso. E não é só. Há muito mais para atrapalhar.

Na barafunda, uma constatação incomoda: a agenda do governo parece ter se esgotado em 2019, com a reforma da Previdência e o programa de privatizações e concessões deixado praticamente de bandeja por Temer. Logo, não dá para pular de otimismo para este ano. Nem para os próximos.

Como o que está ruim sempre pode piorar, há um mesmo fator político em 2019 e 2020 segurando investimentos, confiança e a própria recuperação do Brasil: o presidente Jair Bolsonaro, que insiste em viver em guerra e ultrapassa limites mínimos de civilidade e de respeito ao cargo.

Como investir num país onde o presidente, para fugir de falar do PIB, traz em carro oficial um comediante para jogar bananas em repórteres? Eles estão ali para ouvi-lo (ao presidente, não ao comediante) e informar a população. E, não satisfeito com cenas grotescas, o presidente também age colocando em risco o aquecimento da economia, logo, a retomada dos tão desesperadamente necessários empregos.

Além da “surpresa com a surpresa”, Guedes declarou que a economia está “claramente acelerando” e acenou com crescimento de 2% neste ano... “se as reformas forem aprovadas”. É aí que mora o perigo, porque não adianta botar a culpa nos deputados e senadores, no coronavírus, em Marte ou na “herança maldita”, como fazia Lula em relação a Fernando Henrique. A responsabilidade maior pelas reformas é do Executivo e não dá para fugir disso. Ele tem de apresentar suas propostas e tem de negociá-las com o Congresso, como em toda democracia.

Há dois consensos, dentro e fora do governo. Um é que a reforma da Previdência foi um ótimo passo, mas só um primeiro passo. Outro é que o Congresso tem uma disposição muito positiva para aprovar as reformas seguintes, mas há uma questão de timing: o ano é eleitoral e, portanto, deputados e senadores têm interesses diretos nas campanhas, aliás, legitimamente.

Se Guedes condiciona crescimento a reformas e o Congresso está disposto a aprová-las, o que está atravancando o processo? A área econômica, o Planalto, ou o próprio presidente? A reforma tributária do governo, ninguém sabe, ninguém viu. A reforma administrativa foi fechada pela equipe de Guedes há meses e o Planalto diz que Bolsonaro já assinou, mas é um fantasma. Foi adiada uma, duas, três, sei lá quantas vezes, atravessou o carnaval, a Quarta-Feira de Cinzas, a semana seguinte e... ainda não se materializou!

Para piorar, as reformas só saem com acordo entre Executivo e Legislativo (ou “entendimento”, para não contrariar o presidente e os bolsonaristas), mas Bolsonaro, os filhos e seu entorno não param de atacar os “chantagistas” do Congresso e torcem pelos protestos que terão Rodrigo Maia na mira das pedradas.

Para o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, “não é normal um país como o Brasil crescer 1% ao ano”. De fato. Nada é surpresa, nada é normal, mas tudo faz sentido.