Eliane Cantanhêde: Esticando a corda

Guerra assimétrica: um lado tem as leis e a Constituição, o outro tem armas

A nota conjunta do presidente Bolsonaro, do vice Mourão e do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, é uma clara ameaça e está em sintonia com o secretário de Governo da Presidência, general Luiz Eduardo Ramos, que disse à revista Veja que é “ultrajante” falar em golpe militar, para em seguida ressalvar: “Mas não estica a corda”. A frase ficou no ar. Faltou completar: senão…

O que significa “não esticar a corda”? Enquanto a resposta não é clara, soa como advertência a um menino levado, desobediente: “Ou você se comporta, ou vai ficar de castigo, levar uma palmada”. O que nos remete às ameaças de “ruptura” e de AI-5, já alardeados por ninguém menos que o filho do presidente da República, que orna a parede da sala de jantar com a imagem de uma metralhadora.

Nos remete também às “consequências imprevisíveis” citadas pelo general Augusto Heleno contra uma decisão do STF e encampadas pelo general Fernando – que é o primeiro militar a ocupar o Ministério da Defesa e desfilou num helicóptero com Bolsonaro para saudar manifestações contra o Supremo e o Congresso. Outros militares de alta patente prestigiaram atos assim, como o próprio Ramos, que é da ativa. Do alto da rampa do Planalto, mas ele estava lá.

Quanto à nota, Bolsonaro e os dois militares dizem que as Forças Armadas estão sob autoridade suprema do presidente e não cumprem “ordens absurdas, como a tomada de poder”. E ressaltam: “Também não aceitam a tomada de poder por outro poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos”. Novamente, faltou: senão…

É preciso especificar, ou decifrar, o que significa dizer que as FA “não aceitam” isso ou aquilo. No caso, a tomada do poder pelo Executivo (um auto-golpe) ou por um “outro poder”. E vem o dedo em riste: um outro poder que possa fazer “julgamentos políticos”. Vale para o Judiciário, citado literalmente, já que responsável por julgamentos. E vale para o Congresso, que faz julgamentos legal e legitimamente políticos, como o que sofreu Dilma Rousseff.

Em resumo, portanto, temos que o presidente, o vice e o ministro da Defesa anunciam ao País que não aceitam julgamentos do STF, do TSE e do Congresso. Não por que eventualmente contrariem a Constituição e as leis, mas os que ameacem suas posições e interesses. E isso é álcool na fogueira de manifestações antidemocráticas.

É uma situação delicada, a ser tratada com maturidade institucional e firme consciência democrática, num momento em que o Supremo investiga a acusação do ex-ministro Sérgio Moro de intervenção de Bolsonaro na Polícia Federal, o TSE analisa oito ações contra a chapa Bolsonaro-Mourão, STF e CPMI acumulam dados sobre fake news que podem chegar ao Planalto e, na presidência da Câmara, pousam 30 pedidos de impeachment de Bolsonaro.

Com trocas de informação, pedidos de vista daqui e dali e declarações variadas contra impeachment, as instituições se autodefendem das ameaças de “ruptura” e acumulam arsenal. O TSE deu sinal verde para embolar as investigações sobre fake news num mesmo processo: no TSE, denúncias de uma máquina de robôs para disparar mentiras na campanha de 2018; no STF, a rede de ataques contra ministros, suas famílias e a própria instituição.

Quem ameaçou primeiro, porém, tem armas, arsenal literalmente mais letal. E é aí que essa guerra se torna assimétrica e nos arrepia. De um lado, a democracia, com apoios e uma resistência difusa, mas atuante, na sociedade civil. Do outro, as armas – e não só das FA. Onde Bolsonaro quer chegar? Até onde as nossas Forças Armadas se sujeitam a ir? E qual a força da munição do Supremo, do Congresso e do TSE para resistir?


Eliane Cantanhêde: Atraindo raios e trovoadas

Bolsonaro emenda crises: recuou na Saúde e já partiu para cima das universidades

Saúde e Educação são áreas sensíveis e estratégicas, com corporações mobilizadas e grande capacidade de fazer barulho. Pois a Saúde foi obrigada a recuar e parar de esconder os números da pandemia e, já no dia seguinte, a Educação entrou na roda com uma medida provisória do presidente Jair Bolsonaro que quebra a autonomia universitária e dá poderes a Abraham Weintraub – inimigo número um das universidades – para nomear reitores a bel prazer durante a pandemia.

É assim que o Brasil vai vivendo aos trancos e barrancos. Bolsonaro manda maquiar o número de mortes. Epidemiologistas, sanitaristas, infectologistas, cientistas e associações médicas gritam. O Congresso, a mídia e o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta providenciam estatísticas independentes. E o Supremo determina a volta da metodologia internacionalmente aceita. Aí o governo recua.

Sem se dar tempo para respirar, Bolsonaro já providencia automaticamente a nova crise. Se aquela era na Saúde, que sofre um desmanche à luz do dia, esta é na Educação, onde o ministro Abraham Weintraub nunca explicou a que veio, brinca no twitter de “Cantando na chuva” (com guarda-chuva e tudo), provoca os chineses com um vídeo trocando os “R” pelos “L” e ataca professores, alunos e universidades, enquanto massacra a língua pátria.

A Saúde recuou da chocante troca de metodologia dos números da pandemia num dia e já no dia seguinte Bolsonaro anunciava uma medida provisória com a novidade: Weintraub, que despreza as universidades (onde só há “balbúrdia” e “plantações de maconha”), vai adquirir superpoderes, passar por cima do corpo docente, do corpo discente e dos funcionários e indicar quem ele bem entender para ocupar temporariamente as reitorias que vagarem durante a pandemia. Só de pensar no tipo de gente que ele nomeará, ou nomearia, dá um frio na barriga.

A reação no caso da Saúde se reproduziu no da Educação: Congresso, mídia, professores, alunos, entidades de educação e partidos estão botando a boca no trombone. Além do principal – Weintraub escolhendo reitores à sua imagem e semelhança?! –, há a questão jurídica, porque a MP do presidente atinge a autonomia das universidades, logo, é inconstitucional. Assim como recuou na sonegação de dados da covid-19, é muito provável que Bolsonaro recue também no caso das universidades.

Enquanto faz da Saúde e da Educação gato e sapato, Bolsonaro vai desdizendo o que disse na campanha de 2018 e o que acaba de declarar, em 30 de abril, à Rádio Guaíba: “Não existe nenhum ministério sendo oferecido para ninguém, como aconteceu no passado, nenhuma presidência de banco oficial e tampouco estatais”. E ainda ressaltou: “Esse é o nosso trabalho e vai continuar sendo feito dessa maneira. O resto é intriga.”

Então, intrigantes, o que aconteceu? Além de ter nomeado indicados do Centrão para fundos milionários (atenção!) da Educação e da Saúde, o presidente também deu a eles o Banco do Nordeste (o indicado caiu em 24 horas, em mais um recuo) e acaba de brindá-los com um ministério. Não um já existente, mas um recriado: o das Comunicações. O deputado Fábio Faria vem aí! Ele é do PSD do ex-prefeito Gilberto Kassab, que integra o Centrão, e genro do dono do SBT, Silvio Santos. Uma combinação perfeita, uma síntese da “nova política”.

Se a moda pega. O general Mark Milley, chefe do Estado Maior Conjunto e principal autoridade militar dos EUA, pediu desculpas por ter participado de uma presepada de Trump que nada tem a ver com Forças Armadas: “Minha presença (…) criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna”, lamentou. Bingo. Já imaginaram no Brasil? Ia ter fila.


Eliane Cantanhêde: Cortando as asinhas

‘Grande problema’ não são atos pró-democracia, mas falta de governo, de estatísticas, de pudor

À deriva, o governo faz água por todo lado. O presidente Jair Bolsonaro continua fora de órbita, em outro planeta, Moro caiu, Mandetta foi demitido, Nelson Teich desistiu, Paulo Guedes sumiu, o Ministério da Saúde acabou e o da Economia submergiu, enquanto outras pastas pintam e bordam, sem rumo, sob aplausos do presidente. Ou o rumo é romper com a China, estorricar a Amazônia, prender ministros do Supremo e governadores? Uma situação melancólica, ou desesperadora.

Nem a exposição da reunião de 22 de abril, uma síntese do governo, que gerou ou alimentou investigações no Supremo, conteve Bolsonaro. Conforme o Estadão, foi ele quem deu, pessoalmente, a ordem para o Ministério da Saúde divulgar “menos de mil mortes por dia” e “acabar com matéria do Jornal Nacional”. Pois entrou plantão extraordinário na novela, o Congresso está criando uma central própria e Estadão, G1, O Globo, UOL, Folha e Extra fecharam parceria para prestar as informações que o governo sonega ou manipula.

O dr. Jair, epidemiologista, assumiu desde o início uma cruzada particular contra o isolamento social adotado no mundo todo. O dr. Jair, cientista, determinou o uso indiscriminado da cloroquina sem qualquer aval internacional ou nacional. Agora, o deus Jair decide quantos são os mortos do coronavírus. Danem-se os fatos e as mortes. O que importa é a versão do dr. Jair, o Messias Bolsonaro.

É triste, e preocupante, o desmanche do Ministério da Saúde – um antro de esquerdistas, segundo Damares. E é igualmente triste, e preocupante, que generais e coronéis se disponham a assumir o jogo sujo, sem nunca terem visto uma curva epidemiológica, mas prontos para a “missão”: bater continência e cumprir as ordens do presidente que nenhum médico decente cumpriria. “Às favas os escrúpulos de consciência” – e a condenação da história. Por que a prioridade para a “mudança de metodologia” na contagem de vítimas a esta altura? A quem enganam?

Com os mortos passando de 37 mil, as empresas e os empregos derretendo e a previsão de queda de 8% do PIB, o presidente declara, sem o menor pudor, que “o grande problema” do momento são as manifestações de domingo pró-democracia, contra o racismo e o próprio Bolsonaro. “Estão botando as manguinhas de fora”, acusou.

Definitivamente, o grande problema do Brasil não são as novas manifestações, é a gritante falta de governo, que choca o País e o mundo. Como explicar que o presidente brasileiro não apenas guerreia com a realidade como passa a assassinar as estatísticas da pandemia? Fraudar ou dourar o número de mortos e contaminados não é próprio de democracias.

Estamos em más companhias – Venezuela, Coreia do Norte e Arábia Saudita – e até por isso, apesar das dúvidas e das críticas legítimas que cercam a realização de manifestações neste momento, a resistência das instituições, das entidades, da mídia e das ruas vai encorpando e encorajando as pessoas a gritarem “basta!”.

Quem “botou as manguinhas de fora” primeiro? Não foram os que foram às ruas só no último domingo, mas, sim, os bolsonaristas que afrontaram as recomendações da OMS e de quase todos os países para fazer aglomerações em atos contrários ao STF e ao Congresso, usando até o QG do Exército como fundo. E o que dizer dos 30 alucinados que se dizem 300 e se plantam armados na Praça dos Três Poderes?

Os vários manifestos, os atos pró-democracia e a união nacional proposta por Fernando Henrique, Marina Silva e Ciro Gomes não são ataque, são movimentos de defesa. Exatamente para “cortar as asinhas” do “gabinete do ódio” do Planalto e dos golpistas estimulados pelo presidente da República e pelas redes sociais, com o beneplácito das Forças Armadas.


Eliane Cantanhêde: Inteligência? Que nada!

Ao exigir relatórios, Bolsonaro não visa dados estratégicos, mas sim de aliados e adversários

O presidente Jair Bolsonaro recebeu um relatório do Exército e outro da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) mostrando com gráficos, curvas epidemiológicas e estudos científicos que o isolamento social era, como é, a forma mais eficaz de conter a disseminação e as mortes pela covid-19. O que ele fez? Deixou para lá, se é que não jogou no lixo, junto com as orientações da OMS e as pesquisas sérias sobre a cloroquina.

Isso confirma que, ao contrário do que disse na reunião de 22 de abril, o presidente não está preocupado com a qualidade dos relatórios de inteligência da Polícia Federal, dos órgãos de informações de Exército, Marinha e Aeronáutica e da própria Abin. Na verdade, ele não dá a menor bola para eles.

O importante, para Bolsonaro, não é ter relatórios de inteligência, e de técnicos inteligentes, para refletir, tomar decisões e governar. Ele só quer informes que confirmem o que ele acha – como no caso do isolamento social – e que avisem direitinho se alguém está se metendo com sua família, amigos e aliados. Não é questão de inteligência, é de interesse.

Para que Bolsonaro precisaria da Abin (órgão de assessoramento direto da Presidência), se ele tem todas as certezas? Quando os relatórios da Abin e das Forças Armadas chegam, ele já foi emprenhado pelos ouvidos por filhos, gurus, empresários que financiam fake news contra instituições e por puxa-sacos variados que pululam à sua volta – como de qualquer presidente.

“Se os fatos não correspondem à versão, danem-se os fatos.” Se os dados não correspondem à vontade do presidente, danem-se também. E assim vai-se vivendo, e morrendo, com Bolsonaro jogando relatórios fora, indo a aglomerações golpistas, exibindo-se em helicópteros, jet skis e cavalos, com meio milhão de infectados, 30 mil mortos e uns malucos replicando a macabra Ku Klux Klan na porta do STF.

É chocante, mas não é novidade a guerra de Bolsonaro com ciência, estatística, pesquisas, estudos internacionais e racionalidade, para prestigiar achismos, teorias e maluquices em nome de uma ideologia que ninguém entende direito, mas em torno de 30% de brasileiros seguem obtusamente. O passado condena. E se repete o tempo todo. Desde a campanha, por exemplo, o presidente desconfiava de pesquisas e das urnas eletrônicas e depois até já acusou, sem mostrar qualquer prova, que a própria eleição foi fraudada. É inédito que seja o vencedor a denunciar fraude.

O cientista Ricardo Galvão foi demitido do Inpe porque os dados sobre desmatamento da Amazônia (como os da Abin sobre isolamento) diferiam do que o presidente exigia. Novos estudos confirmaram os de Galvão, o desmatamento em abril foi o maior em dez anos e a destruição da Mata Atlântica também só aumenta. Aliás, com o ministro Ricardo Salles aproveitando a “distração” com a pandemia para passar boiadas, as coisas podem piorar muito.

Assim, dados científicos de Saúde, Ambiente e Educação não valem. Bolsonaro não quer, nem tem paciência, para estudos sobre temas nacionais e estratégia. Ao acusá-lo de querer interferência política na PF e acesso direto aos relatórios de inteligência, o ex-ministro Sérgio Moro se refere a dados que possam ter uso político contra familiares e aliados, como “10 a 12 deputados do PSL”, ou de espionagem contra adversários. (Na mesma cesta, podem estar o Coaf e a Receita.)

Ah! Na segunda, o presidente criticou as posições de Moro contra o aumento de posse e porte de armas e a favor de medidas duras contra contaminados pela covid-19 que pusessem pessoas em risco deliberadamente. Nos dois casos, Moro se pautou em dados científicos e estatísticas. Mas errou. Não era inteligência que o chefe esperava dele, da PF, da Abin…


Eliane Cantanhêde: A boa notícia

Há resistência, senso de dever e responsabilidade. O Brasil nunca será uma Venezuela

Para quem imagina, ou teme, que tudo está perdido, eis a boa notícia: as instituições e os setores responsáveis da sociedade se movem contra a escalada que vai de impropérios imbecis a ameaças perigosas. Não há reuniões secretas pela madrugada, apenas a velha e boa troca de impressões, informações e perplexidade, à luz do dia. Em plena pandemia, todos conversam freneticamente e há uma saudável resistência democrática no País.

O primeiro passo é contar a verdade, desmontar a versão de que o presidente Jair Bolsonaro é a vítima e que os palavrões e absurdos de 22 de abril foram “desabafo” de um homem perseguido com sua família, amigos e aliados. Afinal, quem ameaça quem? Quem ataca e quem é vítima? Quem precisa de um “basta, pô!”? Certamente, quem faz discurso em atos que se apropriam das cores e símbolos nacionais, com o QG do Exército ao fundo, para atacar a democracia e a ordem constituída.

E não é de hoje. Quem disse que “basta um soldado e um cabo para fechar o Supremo”? Faz apologia de “rupturas”? Comanda o “gabinete de ódio”? Insiste em intervir em PF, Coaf, Receita? Desafia até protocolos universais de saúde em atos contra o Legislativo e o Judiciário?

O senso de dever e responsabilidade uniu os desiguais do Supremo, pôs as cúpulas do Congresso e de partidos de barbas de molho, mexeu com o instinto democrático da mídia, reanimou velhas associações de belo passado e presente inerte e a até a discreta Sociedade Brasileira de Psiquiatria deu um grito pela democracia. A Igreja Católica anda mais quieta do que a história exige, mas as entidades judaicas acusam indignação com o uso de Israel em vão. Cresce a consciência do que se passa no País, cresce a resistência.

As Forças Armadas não passam ao largo disso. Nelas pululam dúvidas, discordâncias, o temor de quebra de uma imagem exemplar. Em nome do que? Do falso dilema entre defender Bolsonaro dos próprios fantasmas ou ser devoradas por dragões comunistas imaginários que estão sob cada cama, ministério, instituição? Louve-se o silêncio dos comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica. O general Augusto Heleno tentou consertar sua frase sobre “consequências imprevisíveis” e o vice Hamilton Mourão descartou golpes e aventuras militares com desprezo, ironia.

No artigo “O militar surtou”, no Estadão, Manuel Domingos Neto, ex-vice-presidente do CNPq e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED), lembra a presença decisiva das FA na engenharia, topografia, desenho, infraestrutura, artes, ciência, história, matemática, veterinária, logística, aeronáutica. E provoca: para hoje os militares se imiscuírem com terraplanistas, criacionistas, inimigos da razão? Contra a ciência e as pesquisas? Artigos assim servem de boia para militares que querem distância de fake news e golpes.

O mais objetivamente grave da reunião de 22 de abril foi o presidente encarnar Hugo Chávez: “Eu quero todo mundo armado. Povo armado jamais será escravizado”. Não é bravata. Partiu de quem já condecorou e empregou familiares de líder de milícias, derrubou portarias do Exército sobre armas e multiplicou munições nas ruas, enquanto mete as polícias no bolso. Como ficam as FA se milicianos armados tentarem invadir o Supremo, as polícias lavarem as mãos e o circo da democracia pegar fogo? É melhor prevenir do que remediar.

Em 31/03/2019, no texto “Construir, não destruir”, descrevi o que há de comum entre os projetos do capitão Bolsonaro e do coronel Chávez de alimentar as milícias e espancar Judiciário, Legislativo e mídia para instalar suas crenças e delírios de poder. O Brasil, porém, jamais será uma Venezuela. Nem pela direita, nem pela esquerda. Há resistência e é à luz do dia.


Eliane Cantanhêde: Nada faz sentido

Reunião foi do balacobaco e ministro da Saúde tem de fazer o que dr. Jair manda

Nada faz mais sentido, com as versões oscilando entre inacreditáveis e ridículas. Mas vamos ao principal: o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril confirma toda a versão do ex-ministro Sérgio Moro e deixa o presidente Jair Bolsonaro na patética situação de alegar que não falou em Polícia Federal, só em PF… Ah, bem!

O trecho divulgado pela Advocacia Geral da União, que defende Bolsonaro, deixa tudo em pratos limpos. Bolsonaro não apenas citou a PF como a citou em primeiro lugar. E todo o contexto não deixa dúvidas: “querem F…. com ele e a família”, é preciso cuidar da segurança da família e dos amigos.

O órgão responsável pela segurança pessoal da família não é a Polícia Federal (ok, a PF), é a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), vinculada ao GSI. E nem a PF nem a Abin cuidam da segurança de amigos, vamos convir. Logo, o presidente não estava falando da segurança física nem da Abin. Estava falando, sim, da PF. E os desdobramentos confirmam à sobeja.

“Vou interferir. Ponto final”, avisou o presidente. E interferiu. Onde? Na PF. Quem foi demitido foi o diretor geral da PF, delegado Maurício Valeixo, não o também delegado Alexandre Ramagem, da Abin, que chegou, inclusive, a ser nomeado para a vaga de Valeixo. O presidente promoveu quem não estava cuidando direito da segurança pessoal da família e dos amigos?! Não.

Assim, o presidente usa nomes falsos em exames de covid-19, demora meses para entregar os laudos à Justiça, diz que não falou na Polícia Federal, mantém a versão sem sentido da “segurança pessoal”. Dr. Jair, médico renomado, também insiste em desconsiderar estudos científicos do mundo todo para impor o uso da cloroquina em pacientes iniciais, como insiste na sua cruzada contra o isolamento social. E instiga a guerra contra governadores, que “querem quebrar a economia para atingir o meu governo”. Non sense.

Saiu Luiz Henrique Mandetta, entrou Nelson Teich e nada mudou. O presidente exige que o ministro da Saúde, seja quem for, faça o que ele próprio tem na cachola. A Dra. Damares Alves topa o jogo, falando em “milagre da cloroquina”. Mas, se insistir em nomear um general para o Ministério, Bolsonaro vai criar uma saia justa. O estudo mais completo, claro e realístico sobre a importância do isolamento social foi feito pelo… Exército. Um ministro-general vai seguir os estudos científicos ou os achismos do presidente?

A semana, portanto, começa sob duas expectativas. Quem será e o que vai dizer e fazer o novo ministro da Saúde num momento dramático da pandemia? O relator Celso de Mello, do STF, vai quebrar o sigilo integral ou só parcial da reunião do dia 22? Há quem defenda que ele libere geral, em nome da transparência, há quem ache melhor a divulgação em parte, em nome da segurança e da imagem do Brasil.

Curiosos foram os argumentos do procurador geral Augusto Aras, contra a divulgação integral: trata-se de um “arsenal de uso político” e de “instabilidade pública”, “proliferação de querelas” e de “pretextos para investigações genéricas sobre pessoas”. A conclusão é que a reunião foi do balacobaco. Além do presidente falando palavrão, mostrando que é capaz de qualquer coisa para proteger a família – o que consta dos trechos da AGU –, há ministros falando qualquer coisa para agradar ao presidente.

Um verdadeiro vale tudo com provocações gratuitas contra o maior parceiro comercial do Brasil, proposta de botar na cadeia os onze ministros do Supremo, a ideia de prender junto os governadores. Celso de Mello, portanto, vai ter de decidir se os brasileiros têm ou não o direito de saber onde estão metidos e se o mundo precisa saber o que está ocorrendo no Brasil.


Eliane Cantanhêde: A fila anda

Bolsonaro tem crise de abstinência quando não persegue alguém. Vítima da vez é Nelson Teich

“Tratar isso como não essenci…, como… como não essen… como essencial é um passo inicial. Foi decisão do presidente… que decidiu isso aí. Saiu hoje isso? Manicure, academia… barbearia? Não… Isso aí… não é atribuição nossa.”

Foi assim, pego de surpresa, balbuciando, que Nelson Teich, ministro da Saúde, médico oncologista respeitado, com especialização em gestão em saúde, descobriu numa entrevista coletiva que não apenas não manda nada como passou a ser o novo saco de pancadas do presidente Jair Bolsonaro no governo.

Mal acabou de demitir Luiz Henrique Mandetta e de empurrar porta afora o “superministro” Sérgio Moro, o presidente já passou a desautorizar ninguém menos que o novo ministro da Saúde, justamente em meio à pandemia e com o número de mortos chegando a mil por dia. Por dia!

O enredo é bem conhecido. Primeiro, o presidente dá bronca no ministro ou auxiliar em entrevistas. Depois vai minando a autonomia e a autoestima da vítima. Por fim, demite ou pressiona para a demissão. No script, falas recheadas de autoafirmação: “Eu sou o presidente, pô!”, “eu que fui eleito”, “Eu nomeio, todos têm de ser afinados comigo”, “Quem manda sou eu. Ou vou ser um presidente banana?”.

A fila das vítimas é longa. Além de Mandetta e Moro, o delegado Maurício Valeixo, da PF, o general Santos Cruz, secretário de governo, o amigão Gustavo Bebianno, secretário geral da Presidência, o economista Joaquim Levy, do BNDES, e o cientista Ricardo Galvão, do Inpe. Sem falar na secretária da Cultura, Regina Duarte, que está em banho maria, nem nos superintendentes da PF no Rio, um atrás do outro. Em compensação, Ernesto Araújo (anti-China), Weintraub (anti-STF e antiportuguês) e Ricardo Salles (desmatamento) continuam muito prestigiados.

Assim como Regina Duarte, Nelson Teich assumiu sem nunca ter assumido e é uma ilha na própria casa, provavelmente nem sabe os nomes da sua equipe. Não indicou ninguém para o Ministério, engoliu uma penca de militares que não conhecia e nunca conseguiu apresentar um programa, um modelo de combate ao coronavírus. Da última vez que tentou, acabou cancelando a entrevista minutos antes do início.

Há um muro entre Jair Bolsonaro e Nelson Teich: a ciência. Apesar de bolsonarista desde a campanha de 2018, Teich tem uma biografia a zelar. Não vai jogar isso fora para agradar ao presidente, contrariando estudos científicos do mundo inteiro e pregando o fim do isolamento social e o uso indiscriminado de cloroquina.

Enquanto Teich admite até o lockdown em algumas circunstâncias e regiões, Bolsonaro mantém sua cruzada insana contra o isolamento e, portanto, para jogar mais e mais pessoas nas ruas, nas UTIs e nos túmulos. Enquanto o ministro avisa que a cloroquina não salva vidas e tem graves efeitos colaterais, o Dr. Jair “está exigindo” seu uso.

É assim, na base do achismo e centrado nele mesmo, que Bolsonaro solta uma polêmica MP livrando agentes públicos de responsabilidade por decisões durante a pandemia, define uma “guerra” contra o governador João Doria, confraterniza com o grande capital, tenta capturar eleitores pobres do PT e mantém sua relação esquizofrênica com deputado Rodrigo Maia. Ataca, depois chama em palácio e abraça.

Enquanto isso, convém ler e entender o artigo de ontem do vice Hamilton Mourão no Estadão, com múltiplos recados e puxões de orelhas no Judiciário, governadores e mídia, sem um pingo de crítica (ou autocrítica) aos graves erros do governo. “Nenhum país do mundo vem causando tanto mal a si mesmo como o Brasil”, decreta o vice. Impossível discordar. Mas faltou nomear quem efetivamente causa tanto mal assim.


Eliane Cantanhêde: Moro tem o controle da situação e não sobra pedra sobre pedra

Enquanto frisava que jamais acusara Bolsonaro de crime, Moro deu, sem histrionismo e adjetivos, todos os passos para as investigações. E dissimulou a bala de prata: a reunião de 22 de abril

A principal conclusão sobre a reunião ministerial de 22 de abril é de que o ex-ministro Sérgio Moro tem o controle da situação e da narrativa que pode levar à denúncia e a um processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro. Moro lapidou seu temperamento frio e calculista ao longo de 22 anos de magistratura e na Lava Jato e não mergulharia numa aventura. Ele tinha bala na agulha. Ou melhor, uma bomba atômica. Ao comunicar sua demissão do Ministério da Justiça, Moro falou da investida política de Bolsonaro na PF e, na mesma noite, expôs a troca de mensagens em que o presidente reclama das investigações contra dez ou doze deputados do PSL e diz: “mais um motivo para a troca (na PF)”.

O golpe mais certeiro, porém, Moro reservou para o depoimento à PGR e à PF, tratado erroneamente como tiro n’água por bolsonaristas. Na realidade, ele foi estratégico e avassalador. Enquanto frisava que jamais acusara Bolsonaro de crime (medida preventiva contra denunciação caluniosa), Moro deu, sem histrionismo e adjetivos, como quem não quer nada, todos os passos para as investigações. E dissimulou a bala de prata: a reunião de 22 de abril.

Além de “confissão” e “prova material” da ingerência política de Bolsonaro na PF por interesses pessoais, a reunião é demolidora. Não como uma bomba, mas como várias que vão explodindo aos poucos, dia a dia, com ironias contra a China, sugestão de prisão de ministros do Supremo, governadores e prefeitos e todos ouvindo o presidente admitindo, despudoradamente, intervir na PF e demitir o ministro da Justiça para proteger a própria família. Moro sabia exatamente a bomba que tinha nas mãos. Não sobra pedra sobre pedra.


Eliane Cantanhêde: E daí?

Moro mirou no que viu e acertou no que não viu, ou sabia do potencial explosivo do vídeo?

O ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro mirou no que viu e acertou no que não viu, ao jogar luz, e curiosidade pública, na fatídica reunião ministerial com o presidente Jair Bolsonaro no dia 22 de abril, no Planalto. Ou será que não? Será que ele citou a reunião apenas para efeito jurídico e para confirmar suas acusações? Ou será que, intencionalmente, para expor o que foi dito, e como foi dito, ali?

O fato é que, com os temores dos efeitos jurídico, político e midiático da reunião, os três poderes giram em torno de um vídeo, que foi central no depoimento de Moro e causou boas trapalhadas no Planalto, até ser “achado”, reconhecido e colocado sobre a mesa do relator do processo no Supremo, Celso de Mello. E, hoje, será visto pelo próprio Moro, a PF e a PGR. Sem direito a pipoca, choro, risada e muito menos tédio.

O potencial jurídico do vídeo, pelo menos o esperado por Moro e temido por Bolsonaro, é dar materialidade à acusação do ex-ministro de que o presidente não apresentava nenhuma razão para demitir o superintendente do Rio e o diretor-geral da Polícia Federal, senão ter a liberdade para interferir politicamente no órgão (ou seja, nas suas investigações e operações). É isso, segundo Moro, que Bolsonaro admite na reunião com ministros.

Já o efeito político e midiático do vídeo vai além, porque as versões divulgadas até agora variam entre constrangedoras e aterrorizantes e a reunião, eternizada num pequenino pendrive, expõe as entranhas de um governo em que faltam comando e compostura. Pelos relatos, há ali um presidente irritado e ministros trocando desaforos, com palavrões voando pela sala. O ministro da Educação ataca o Supremo e seus onze integrantes, o chanceler e o presidente ironizam a China, onde Bolsonaro diz ter um bom amigo, o presidente Xi Jinping. O que diria Xi Jinping se visse o vídeo do amigão? Ou o que dirá, quando o vir?

Depende de Celso de Mello quebrar ou não o sigilo da reunião, que já foi tratada, em ofício do governo ao STF, como reveladora de “assuntos sensíveis” de segurança nacional e de política externa. Aparentemente, não eram propriamente assuntos sensíveis, mas uma grande demonstração de insensibilidade e falta de liturgia institucional e diplomática. Um retrato do governo e mais um vexame, entre tantos outros que derretem a imagem do Brasil no mundo.

Se o vídeo está no centro da crise política e do risco de uma denúncia formal contra Bolsonaro, ele é apenas uma das peças da investigação. Ontem, os depoimentos dos delegados Maurício Valeixo, demitido da direção-geral da PF, Ricardo Saadi, afastado da Superintendência do Rio, e Alexandre Ramagem, impedido pelo STF de tomar posse na vaga de Valeixo. Hoje, os generais Braga Netto, Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos.

Todos eles, estejam de um lado, de outro ou em cima do muro, decidiram abrir os microfones com uma intenção: ater-se aos fatos, tentando escapulir de dar opiniões e de cair em perguntas capciosas de interrogadores experientes. Isso vale sobretudo para Valeixo, pivô da crise que atingiu o coração do governo, rachou o bolsonarismo, uniu Moro, Supremo e Congresso como alvos de atos golpistas e joga mais e mais Bolsonaro no colo do Centrão. Em última instância, a crise pode chegar até a ameaçar o mandato de mais um presidente.

Essa barafunda, em meio a mais de 150 mil contaminados e de 11 mil mortos pelo coronavírus no Brasil, não tem desfecho predefinido, mas ainda vai revelar muito das entranhas do governo e do presidente. Longe de reuniões e churrascos, Moro aguarda, aliviado. Resta saber as reações de Bolsonaro às acusações e revelações: tudo não passa de “histeria”, “neurose”, “gripezinha”, “resfriadinho”, “loucura”, como a pandemia? E daí? Nesse caso, é uma boa pergunta.


Eliane Cantanhêde: Além do churrasco

Polícia Federal, Forças Armadas e Itamaraty cercados de dúvidas e na boca do povo

Dos ministérios da Educação e do Meio Ambiente, nem se fala mais, mas três instituições historicamente respeitadas e admiradas andam na boca do povo: Polícia Federal, Forças Armadas e Itamaraty. Dúvidas e temor de ingerência na PF, risco de imagem e contaminação política nas FA, uma política externa que atrai perplexidade e crítica mundo afora.

Jogada no centro de mais uma crise política, num país que viveu impeachment duas vezes em três décadas, a PF tem dificuldade de entender o que está acontecendo. O delegado Maurício Valeixo, uma referência, quase unanimidade, foi demitido. Alexandre Ramagem foi impedido de assumir pelo Supremo. Rolando Alexandre de Souza fez as escolhas certas e ia bem, até que, na sexta-feira, foi chamado ao Planalto e o governo tentou novamente emplacar Ramagem.

Os acertos de Rolando desagradam ao presidente Jair Bolsonaro? Essa pergunta não quer calar na PF, onde a percepção é de que está em curso um processo de enfraquecimento do novo diretor-geral, visto agora como “tampão”, achando que tem uma autonomia que na verdade não tem. O foco é a Superintendência do Rio.

Rolando nomeou para o Rio o delegado Tácio Muzzi, elogiado pelos seus pares e bom conhecedor da praça, onde trabalhou com os antecessores Ricardo Saadi e Carlos Henrique – justamente com quem Bolsonaro implica. Saadi, aliás, está na lista de depoentes desta semana sobre as acusações do ex-ministro Sérgio Moro ao presidente. Logo, o que paira na PF é: até quando Rolando Alexandre fica? E Muzzi? E para que novas trocas?

Nas FA, até onde se possa perceber, há três grupos. Os generais do Planalto, apoiando tudo o que seu mestre mandar até o fim, seja lá que fim seja. Os comandos, onde há incômodo com sacolejos entre poderes, atos golpistas até diante do QG do Exército, descaso com pandemia e mortes, churrasco (fake?) no sábado. E as bases, da ativa e reserva, com várias centenas de cargos, DAS camaradas e famílias felizes. Ser leal a quem, ou ao quê?

No Itamaraty, nenhum outro termo define melhor a situação: perplexidade. Num país de diplomacia sólida, estável, baseada em princípios e independência, o atual governo segue cegamente os Estados Unidos e cria atritos e crises com França, Alemanha, Noruega, Argentina, Chile, mundo árabe e, toda hora, com a China.

Em movimento inédito, Fernando Henrique, Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek, José Serra, Rubens Ricupero e Hussein Kalout, de cinco governos diferentes, assinam o manifesto “Reconstrução da política externa”: “Além de transgredir a Constituição, a atual orientação impõe ao País custos de difícil reparação como desmoronamento da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de investimentos”.

Pelo twitter, o chanceler Ernesto Araújo, que guerreia contra o multilateralismo, endeusa Donald Trump, demoniza a China e vive assombrado por um comunismo delirante, acusou os autores de “paladinos da hipocrisia” e o texto de “clichês globalistas”, para desferir: “Não fiquem usando a Constituição como guardanapo para enxugar da boca a sua sede de poder”. Pode ser tudo, menos linguagem diplomática.

Assim, o Brasil atinge 10 mil mortos e vai chegando a epicentro mundial da Covid-19 e ao colapso de redes de saúde e funerária, mas o presidente insiste na apologia da aglomeração, brinca com churrasco para 30 ou 30 mil pessoas, só pensa na PF do Rio e está às voltas com a tal reunião apocalíptica de 22 de abril. Quanto à ida ao STF: segundo arguto personagem, ele procura “sócios para carregar as alças dos caixões”. Porém, o que vale hoje vale amanhã: “Quem manda sou eu”. Não se esqueçam


Eliane Cantanhêde: Fim do Mundo

Brasil no epicentro da pandemia, Moro depondo, Bolsonaro e povo sem entender nada

O ex-chanceler alemão Helmut Schmidt, grande orador e um dos maiores estadistas do século 20, previu numa conferência do InterAction Council, fundação que reúne ex-chefes de Estado e de governo, em Xangai, em 1994, que o fim do mundo não seria por guerras e bombas, mas sim por uma doença desconhecida disseminada pelas migrações massivas. O Homo Sapiens surgiu de uma mutação genética e seria destruído por um vírus.

O relato é do ex-presidente José Sarney, que estava presente, ao lado de figuras lendárias como Henry Kissinger, Robert Mcnamara e o fundador de Cingapura, Lee Kuan Yew. Ao completar 90 anos, Sarney mantém íntegros a memória primorosa e o capricho ao contar histórias, uma característica dos maranhenses.

Quanto ao fim do próprio mundo não se sabe, e espera-se não saber tão cedo, mas a sensação é de fim do mundo no Brasil, que vai se transformando no novo epicentro da covid-19, com a economia e os empregos implodindo e uma crise política absurda. Em meio ao caos, o presidente da República e milhões de pessoas continuam sem entender nada.

As manchetes de sábado reproduziam a realidade. Estado: “Impeachment é a última opção”, segundo o ministro do STF Luís Roberto Barroso; “Ninguém vai querer dar um golpe em cima de mim”, declarava o presidente Jair Bolsonaro; “A incógnita Mourão nos bastidores do poder”, informava a Coluna do Estadão. Globo: “Brasil vira um dos polos globais da covid-19”. UOL: “Bolsonaro ameaça demitir ministro que não ceder cargos ao Centrão”.

O ex-ministro Sérgio Moro detalhava à PF e ao MP suas acusações ao presidente. Local: justamente a Superintendência da PF em Curitiba, onde o ex-presidente Lula ficou preso por 580 dias, condenado por Moro e pelo TRF-4 no caso do triplex do Guarujá. Alvo do depoimento: Bolsonaro, pivô da ação que pede ao STF o impedimento do ex-juiz nos processos de Lula. Moro condenou Lula e pode condenar Bolsonaro. Alvo da esquerda lulista, é agora também da direita bolsonarista.

O destino de Bolsonaro está nas mãos e nas provas que Moro diz ter. O destino do governo depende institucionalmente do STF e do Congresso e, politicamente, dos militares e do Centrão. Tudo embrulhado nas milhares de mortes, a maior recessão da história, um oceano de empresários quebrados e trabalhadores desempregados e, portanto, um cenário social nada tranquilizador.

Alheio à realidade, o povo volta em massa às ruas e à sanha do coronavírus, que ganha a guerra sem esforço e adversários. Há os desesperados que se amontoam para dividir o vírus e a esperança de R$ 600,00. Os que enfrentam o vírus “como homens, não como moleques”. E os perversos, que salvam a própria pele, mas não estão nem aí para a pele de pobres e trabalhadores.

É assim que o Brasil vai se destacando nas manchetes internacionais e até nas entrevistas de Donald Trump como a “bola da vez”, mesmo com a China sob críticas, desconfianças e forte recessão, a Europa juntando os cacos, a África esperando bovinamente a sua vez e os próprios EUA atingindo 70 mil mortos e uma avalanche de desempregados jamais vista.

A imagem do Brasil vem sendo devastada por ataques à OMS, votos na ONU, o presidente contra o isolamento e pró atos golpistas, os textos alucinados do chanceler Ernesto Araújo. E o casal de bolsonaristas, com a bandeira nacional, atacando enfermeiros clamando pacificamente por melhores condições de trabalho e portando cruzes negras pela morte de colegas?

Em todos os países, homenagem e reverência ao pessoal da saúde, que arrisca (e perde) a própria vida para salvar vidas. Não na capital do Brasil. Aqui, até os enfermeiros são “comunistas”, os vilões da história.


Eliane Cantanhêde: Decisão não é de um ministro, mas sim de um Poder

Em relação a Bolsonaro, a disposição no Supremo é de 11 x 0 quando se trata de temas relacionados a democracia e equilíbrio entre Poderes

A suspensão da posse do delegado Alexandre Ramagem na Polícia Federal, determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, surpreendeu o mundo político, mas não é um fato isolado. Faz parte de um pacote de resistência do Supremo Tribunal Federal a um governo que acha que pode tudo, mesmo ultrapassando a linha do razoável. Em relação ao presidente Jair Bolsonaro, a disposição é de 11 x 0 quando se trata de temas relacionados a democracia e equilíbrio entre Poderes.

A nomeação de ministros e do próprio diretor-geral da PF é atribuição exclusiva de presidentes da República, mas Alexandre de Moraes - que foi secretário de Segurança Pública em São Paulo e conhece bem as polícias - recorreu a um princípio constitucional que vem se popularizando: o da impessoalidade e da moralidade pública.

Como delegado de carreira, não há reparo a Ramagem nem dentro nem fora da PF, muito menos no STF. O problema está nas circunstâncias: todas as credenciais dele se resumem à grande proximidade com Bolsonaro e seus filhos desde a campanha eleitoral de 2018, quando chefiou o esquema de segurança do então candidato do PSL. Ou seja: a suspeita é que Ramagem tenha sido escolhido não para trabalhar pela PF, mas para a família Bolsonaro.

Para reforçar a percepção, a nomeação veio no rastro da acusação do então ministro Sérgio Moro de que o presidente queria acesso direto ao diretor-geral, a superintendentes e a relatórios de inteligência da PF. Para, em tese, como muitos temem, poder manipular as informações a favor de aliados e filhos e contra adversários.

Nada contra o próprio Ramagem, mas, como Ernesto Araujo era “embaixador júnior” ao assumir o Ministério das Relações Exteriores sem jamais ter ocupado uma embaixada, ele foi nomeado para a direção geral da PF sem ter sido superintendente do órgão em nenhum Estado. A comparação de seu currículo com o do antecessor Mauricio Valeixo, demitido por Bolsonaro, é constrangedora.

O fundamental, porém, é que a decisão de Alexandre de Moraes tem respaldo dos seus pares de toga, atentos desde a inesquecível fase do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) - “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo” - e perplexos com o apoio explícito do já presidente Jair Bolsonaro a atos que pedem intervenção militar, com fechamento do Congresso e do STF.

Há na alta corte do País dois movimentos na mesma direção: a autopreservação e a garantia da democracia.

As sucessivas demonstrações do Judiciário têm a adesão da cúpula do Legislativo. A diferença é que o Supremo tem torpedos, mas o botão da bomba atômica - autorizar ou não um pedido de impeachment - está com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A ele, sobra uma nova alternativa: jogar parado. E, de preferência, calado. Afinal, batalhas têm sido inevitáveis, mas a ninguém interessa uma guerra. Resta esperar, agora, o contra-ataque de Bolsonaro.