Almir Pazzianotto Pinto: Utopia versus realidade

Creio que os defensores da Constituição a conhecem pela rama, como diria Eça.
Foto: Dorivan Marinho/STF
Foto: Dorivan Marinho/STF

Creio que os defensores da Constituição a conhecem pela rama, como diria Eça

Foi o dr. Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, que, num arroubo de entusiasmo, redigiu de uma penada a breve introdução encontrada na primeira edição do Senado. Eu o vejo cheio de esperanças, diante do texto promulgado em 5 de outubro de 1988, a escrever. “O homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto, sem cidadania. A Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o País. Diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem. Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança. É a Constituição Cidadã.”

Foram passageiros os aplausos tributados à Lei Fundamental, nascida “do parto de profunda crise que abala as instituições e convulsiona a sociedade”, como afirmou o dr. Ulysses. A velhice e a decadência vieram céleres e cruéis. Podem ser aquilatadas nas emendas já realizadas pelo Poder Legislativo e na incorporação do espírito constituinte pelo Supremo Tribunal Federal.

Vários argumentos são invocados para impedir a busca de nova Constituição. Dois exigem mais atenção: o receio da volta ao autoritarismo e o medo da perda de direitos sociais. Só insanos e boquirrotos defenderiam a ditadura e o uso de atos institucionais. Tratarei, portanto, apenas dos direitos sociais, que compreendem, de acordo com o artigo 6.º, “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Consultei as Constituições dos Estados Unidos, da Alemanha, da Finlândia, países desenvolvidos, civilizados, cujos índices de desenvolvimento humano (IDH) são invejáveis. Em nenhuma encontrei garantias minuciosas, utópicas, extravagantes como as nossas. O ranking mundial aponta a Alemanha na 5.ª posição (0,936); na 13.ª, os Estados Unidos (0,924); na 15.ª, a Finlândia (0,920). O Brasil amarga o 79.º lugar (0,759), abaixo de Bósnia-Herzegovina, Sri Lanka, Granada, México, Cuba, Portugal e Albânia, o país mais atrasado da Europa.

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, proclama o artigo 196. Com semelhante exagero o artigo 205 garante o direito universal à educação gratuita. Sobre o meio ambiente diz o artigo 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O parágrafo 4.º do dispositivo vai além e afirma: “A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”.

Também transcrevo o inciso IV do artigo 7.º, relativo aos direitos sociais, garantindo a trabalhadores urbanos e rurais, “além de outros que visem a melhoria da sua condição social”, “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”. Observe-se, afinal, o que diz o artigo 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Em que nível de alucinação se achavam os membros da Assembleia Nacional Constituinte, ao imaginarem ser possível proporcionar o Estado de bem-estar à Nação sem trabalho, suor, perseverança, ética e disciplina? Mesmo quem mal conhece a real situação do País percebe que a Lei das Leis é filha da empolgação e da fantasia. Nenhum direito baixaria das nuvens, qual chuva-criadeira, para aflorar como realidade.

A Constituição tem defensores. Não os censuro. Creio, porém, que a conhecem pela rama, como diria Eça de Queiroz. Não se deram conta dos prejuízos causados pela mitomania jurídica. Afinal, para que serve a Lei Superior? Segundo Ferdinand Lassalle, “uma Constituição deve ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme e de mais imóvel que uma lei comum”. Para ser firme deveria ser verdadeira, o que a Constituição de 1988 não é. A culpa não lhe cabe, mas aos demagogos que a redigiram e promulgaram motivados por veleidades populistas.

Substituir a Constituição não é simples. Poderá ser fruto benéfico do consenso, ou nascer de golpe de Estado. Nada impede, contudo, que algum partido político apresente como programa de governo, nas eleições de 2022, esboço de Constituição enxuta, clara, objetiva, democrática e liberal. Para tê-lo à mão, por que não recorrer ao auxílio de instituição idônea, ligada ao mundo jurídico? O Instituto dos Advogados de São Paulo, onde se concentram a nata da advocacia paulista e constitucionalistas de escol, poderia assumir voluntariamente a tarefa e converter o saber acadêmico em obra concreta de interesse nacional.

O Brasil deve decidir se fica com uma Constituição prolixa e utópica ou encara a dura realidade.

*Advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, é autor de ‘30 anos de crise – 1988-2018’

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