“A abolição da escravidão não libertou o negro”, diz o historiador Ivan Alves Filho, autor do livro Memorial dos Palmares

ivan_alves_filho

Comunicação FAP

Em entrevista à Fundação Astrojildo Pereira (FAP), ligada ao Cidadania 23, o autor, historiador e documentarista Ivan Alves Filho discute a quarta edição de seu livro Memorial dos Palmares destacando a atualização e o amadurecimento de sua compreensão sobre o tema ao longo de 50 anos de pesquisa. Ele aborda a origem do Quilombo dos Palmares, defendendo sua localização inicial em Sergipe, e diferencia o conceito africano de quilombo daquele que se desenvolveu no Brasil como espaço de resistência e liberdade.

O autor também traça um paralelo histórico, argumentando que a escravidão moderna, ao contrário da antiga, é intrinsecamente ligada ao racismo como justificativa para a acumulação de capital e a venda de pessoas, conectando a abolição formal de 1888 à questão agrária e a marginalização da população afrodescendente na sociedade brasileira atual. “O racismo é uma consequência do modo de produção que gerou a escravidão; foi a escravidão que gerou o racismo”, diz. A seguir, confira trechos da entrevista.

Livro Memorial dos Palmares  | Foto: Comunicação FAP
Livro Memorial dos Palmares | Foto: Comunicação FAP

FAP: O senhor é autor do livro Memorial dos Palmares, que terá uma nova edição em 2025. O que o público pode esperar de atualização neste livro?

Ivan Alves Filho: Comecei a trabalhar com o tema de Palmares em 1975. Minha pesquisa inicial me levou a Portugal, onde mergulhei nos arquivos históricos, especialmente no Arquivo Histórico Ultramarino. Essa abertura de arquivos ocorreu após a queda do colonialismo na África, permitindo acesso a material relativo ao Brasil. Ao longo de 50 anos trabalhando com este tema, amealhei muitos dados novos e cresci na compreensão do fenômeno Palmares, que, sem dúvida, foi o maior libelo contra a escravidão que acredito ter existido em toda a história da humanidade. Um movimento que durou 130 anos.

FAP: Em edições anteriores do livro, o senhor questiona de onde partiram os escravos rebelados que formariam o Quilombo dos Palmares no final do século XVI. Autores mais modernos sugeriam origens em quilombos baianos ou sergipanos. O senhor chegou a uma resposta mais afirmativa sobre a origem desses escravos rebelados?

Ivan Alves Filho: Eu defendo, e continuo defendendo no livro, que o ponto de partida foi em Sergipe. Há referências, já em 1596, 1597, de senhores de engenho em Alagoas que ganharam terras para se defender do Quilombo de Palmares, o que indica que uma revolta já existia. Localizo no livro referências sobre a possibilidade de ter partido de Sergipe. Pela documentação colonial portuguesa, que é nossa principal fonte, tendo a acreditar que o ponto de partida foi em Sergipe.

> 13 de maio: Conquistas da população negra mudam cenário brasileiro, mas desafios persistem

> Massacre Eldorado dos Carajás: “Não houve justiça pelo sangue derramado”, diz Arnaldo Jordy

FAP: Como a organização de Palmares repercutiu em outros quilombos brasileiros como espaços de resistência, para além da questão da origem?

Ivan Alves Filho: O conceito de quilombo no Brasil é muito curioso, pois na África ele não era necessariamente um espaço de resistência. Era uma organização militar para capturar pessoas e entregá-las aos traficantes. Essa característica de resistência se adquire no Brasil. O traço de união entre os quilombos no Brasil é a luta pela liberdade. O grande denominador comum era criar um foco de resistência e um refúgio onde se pudesse viver em paz. Palmares era uma confederação de quilombos, uma espécie de contra sociedade. Era multiétnico, com mesclas culturais, onde se professava a religião católica. Havia capelas. Em situação de liberdade, as pessoas estavam fadadas a viver em conjunto, independentemente da escravidão na sociedade oficial. Falava-se português como língua unificadora. Havia urbanização, como ruas de 1,5 km, no estilo africano. Os alimentos eram os ensinados pelos índios aos negros, como o milho. Era um “contra Brasil”, um Brasil mais livre ou totalmente livre em formação.

A região da Serra da Barriga, em Alagoas, acolhia o Quilombo dos Palmares, o mais conhecido da história brasileira | Arquivo/Agência Alagoas
A região da Serra da Barriga, em Alagoas, acolhia o Quilombo dos Palmares, o mais conhecido da história brasileira | Arquivo/Agência Alagoas

FAP: A historiadora Beatriz Nascimento compara os quilombos em Angola a uma primeira forma de Estado (organização, não no sentido moderno). O senhor entende que a organização do quilombo no Brasil pode ser vista de forma similar, como uma representação de Estado?

Ivan Alves Filho: A palavra Estado, talvez, seja forte, pois mesmo o Estado tal qual concebemos hoje é uma construção recente. Palmares existiu entre o final do século XVI e o século XVII. Havia organização política. Nenhuma sociedade, mesmo sem classes, como Palmares, vive sem poder. O Estado, na minha tradição, marxista, surge do conflito interno de classe ou imposição externa. Um Estado que surgisse dos conflitos de classe para regulá-los não existia no Brasil, em 1548. Eu tendo a achar que Palmares é uma solução para um problema da sociedade brasileira em gestação.

FAP: Qual problema?

Ivan Alves Filho: Palmares corresponde a uma realidade brasileira. O ciclo de vida de um escravo era muito pequeno, o trabalho era embrutecedor, as pessoas morriam, ficavam inválidas. Havia sempre alguém recorrendo a uma recomposição do estoque de escravos no Brasil. Isso, evidentemente, fica trazendo a memória constante da África entre nós. Na África, antes da chegada dos europeus, havia escravidão, mas em caráter mais doméstico. Não havia escravidão na extensão comercial que a Europa implantou, e, antes dela, os próprios árabes implantaram na África. Então, no Brasil, o campo de confronto era completamente diferente. Se o problema era combater a sociedade de classe, havia intermédio de uma luta de classe que desemboca em uma luta pela liberdade, pela criação de um espaço livre em uma área brasileira isolada. E não é por acaso, porque se criava dificuldades de acesso a tal ponto que mesmo os índios não conheciam a região das palmeiras.

Quilombo dos Palmares | Foto: Reprodução
Quilombo dos Palmares | Foto: Reprodução

FAP: Passados 137 anos da abolição formal da escravatura no Brasil, o senhor acredita que o modo de escravidão se redesenhou e continua na sociedade hoje de alguma forma?

Ivan Alves Filho: É importante notar que a escravidão antiga não era racista. Grego escravizava grego, romano escravizava romano. Com a reinvenção da escravidão impulsionada pelo surgimento do capitalismo e do comércio, o tráfico foi um elemento crucial de acumulação. O objetivo em ir à África para capturar negros era fazer dinheiro, capital, estabelecer relações comerciais. O dinheiro vinha da venda das pessoas. Se depois essas pessoas iriam plantar café, açúcar ou extrair ouro, era uma consequência. É aqui que entra o racismo, que foi usado para tentar justificar essa escravidão comercial que não existia na Antiguidade. O racismo é uma consequência do modo de produção que gerou a escravidão; foi a escravidão que gerou o racismo. Considero a abolição da escravidão a única revolução social brasileira, pois ela mudou o modo de produção. No período indígena, havia um modo de subsistência, sem extração de sobretrabalho ou exploração. O modo de produção surge com a exploração do trabalho de um grupo por outro, ligado à ideia de exploração. A mudança do trabalho escravo para o assalariado, uma mudança no modo de produzir e distribuir mercadorias, é possibilitada, mas não imediatamente, pela abolição. Não havia capitalização interna para transformar todos em assalariados imediatamente. Daí surgem formas como a meação ou o aviamento.

FAP: Mas por que a abolição da escravatura, de fato, não libertou os negros?

Ivan Alves Filho: Em 1850, vem o fim do tráfico negreiro com a Lei Eusébio de Queirós. Pouco tempo depois, Dom Pedro II baixa a Lei de Terras. Antes de 1850, a terra era doada. Com o fim da escravidão se aproximando – o fim do tráfico levaria naturalmente ao fim da escravidão –, a classe dominante não queria que terminasse o atrelamento do negro ao trabalho nos latifúndios. Se ele tivesse acesso à terra, não trabalharia na terra dos outros, e o latifúndio desabaria. Isso foi armado pela classe dominante, que impediu o acesso à terra. Vemos as consequências disso na luta pela reforma agrária e nas periferias sociais das cidades, onde há uma massa enorme de pessoas, muitas descendentes de africanos, sem espaço social, e isso foi deliberado. A abolição da escravidão representou um grande passo ao libertar o país da escravidão, mas não necessariamente libertou o negro, que ficou atrelado a uma divisão injusta da terra.

Privacy Preference Center