Soam por toda parte os sinais de perigo e os toques de reunir. Forças malévolas que nos sitiavam, espreitando nossos movimentos e confiantes na pandemia que nos obriga, em defesa da vida, a evitar as manifestações nos espaços públicos, um recurso importante do nosso repertório defensivo, calcularam ter chegado a hora do assalto às nossas posições. Não há por que tergiversar, o risco é real e seu nome é fascismo – tabajara, mas fascismo – que nos ronda desde os anos 1930, derrotado por duas vezes, em 1945 e 1985, mas nunca erradicado, entranhado como está em nossa história de modernização capitalista autoritária.
Fernando Gabeira, em iluminado artigo no Estado de São Paulo na edição de 29 do corrente mês, a rigor um manifesto, bendiz o dom de receber na derradeira fase da sua bela trajetória pessoal a missão de lutar pela democracia. Tal missão a todos, de todas as gerações, é confiada nesse momento difícil em que a sociedade se vê acuada pelo flagelo de uma epidemia letal. Hegel dizia que a escravidão somente era possível quando o bem da vida se punha acima do bem da liberdade. Nosso caso não é tão dramático, mesmo confinados contamos com espaços de liberdade e recursos para uma livre comunicação por meio da internet, conquista civilizatória ao alcance de todos.
Gabeira está consciente disso e dos limites que nos atam diante dos imensos recursos das forças que nos sitiam, mas os homens pensam e criam, e os desafios que nos confrontam exigem imaginação e inventividade. O caso da favela paulista Paraisópolis e de outras comunidades populares nos servem como paradigmas exemplares, a organização por conselhos, por sovietes, formas clássicas presentes em lutas populares, bem celebradas na obra de Hanna Arendt, ensinam caminhos a serem percorridos.
Em suas ações de defesa da vida, ameaçadas pela difusão da epidemia que a todos assola, as comunidades populares têm encontrado o apoio em círculos externos a elas, intelectuais solidários, pessoas e instituições de boa vontade, especialmente na Universidade e nos seus especialistas em saúde pública e técnicas de organização social. Surgem dessas inovações uma trama promissora, ainda em embrião, a combinar a agenda da defesa da vida com a da liberdade, pauta dos intelectuais ameaçados tanto pela pandemia como pela escalada autoritária em curso que tem como alvo o mundo da cultura e seus valores.
Tal descoberta para se impor na vida social depende da manifestação da vontade, muito particularmente da Universidade, que conta em seus quadros com especialistas capazes de levarem a termo a sua difusão mesmo nas circunstâncias adversas em que todos nos encontramos. A propósito, vale lembrar os protestos atuais contra a violência policial na sociedade americana –um caso extremo em que cidadãos se arriscam ao contágio pelo vírus diante da luta por liberdade –, exposta como a nossa à pandemia. Aqui, estamos começando a aprender a nos reunir e deliberar pela internet.
Decerto que a resistência nessa escala minimalista não tem o condão de opor uma linha forte de resistência ao avanço crescente do autoritarismo, embora em si mesma ela represente um reforço possível da sociedade civil e de suas ações. O reduto principal do sistema defensivo da nossa democracia está nas instituições que herdamos da Carta de 88, principal foco do assédio autoritário em suas tentativas cada vez mais intensas no sentido de neutralizá-las e, no limite, erradicá-las. O poder judiciário, um poder desarmado escorado apenas em sua autoridade moral, somente poderá resistir ao assédio de que é objeto se encontrar sustentação na opinião pública, nas instituições da sociedade civil e nos movimentos sociais que animam a vida popular. Sobretudo na disposição de reiterar aqui o esforço exemplar dos cidadãos americanos nos dias que correm de defesa intransigente dos seus direitos constitucionais.
Para uma defesa eficaz contra os perigos que nos rondam, não basta inventariar os recursos de força com que contamos, morais e organizativos, entre os quais os entes federativos refratários à escalada autoritária que se prepara para um golpe final em nossa democracia. A reunião do nosso sistema de defesa requer imperativamente a capacidade de sobrepor o interesse comum, qual seja o de evitarmos o abismo que se abriria diante de nós se permitirmos a ocupação do nosso país por forças estrangeiras à sua história e às suas tradições de perseguir os fins de uma obra civilizatória. Torna-se necessário também compreender a que aspiram as forças que nos antagonizam e a lógica que organiza sua movimentação.
O triunfo da coalizão de forças heterogêneas na sucessão presidencial contou como uma de suas palavras chave a ideologia do neoliberalismo, por meio da qual atraiu o apoio decidido das elites econômicas, especialmente das financeiras e agrárias, presença dominante no capitalismo brasileiro atual. Com essa marca de batismo, o novo governo nasce em antagonismo com a Constituição, de concepção, em seus traços principais, socialdemocrata. Remover a Carta, considerada como entrave aos seus fins econômicos, tornou-se assim um objetivo estratégico do governo Bolsonaro em seu projeto de capitalismo de estilo vitoriano, endossado por seu ministério, tendo à frente a anacrônica presença do ministro Paulo Guedes.
Em razão da arquitetura da Carta, que confiara a defesa dos direitos que criara a uma rede complexa de instituições, ao estilo da Constituição americana e com elementos importados do sistema alemão, a ser sustentada, em última instância, pelo Poder Judiciário, em particular no Supremo Tribunal Federal, o regime Bolsonaro identificou de pronto o inimigo a ser confrontado. O teatro das operações ora em curso estava armado, e a palavra de ordem delenda Cartago com que os romanos preparavam sua guerra de extermínio contra a sua cidade rival pelo domínio do mar Mediterrâneo, encontra sua tradução nos desígnios do atual governo de defenestrar o Poder Judiciário do sistema político, entregue apenas à jurisdição dos conflitos privados.
A vontade do poder, encarnada no chefe da nação, não deve reconhecer obstáculos à sua manifestação, leitura privilegiada dos desígnios de Deus, da pátria e da família. Com pandemia e contra todos os riscos, o que há de melhor em nós, acima de todas as diferenças entre nós, não podemos aceitar isso.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, PUC-Rio