Paulo Siqueira: O norte e os pântanos no caminho

Vivemos no Brasil atualmente um momento de transição, que está inserido em uma crise conjuntural a qual se insere dentro de outra mais complexa e estrutural que é mundial e do próprio capitalismo em sua transformação e superação atual.
Foto: Alan Santos/PR
Foto: Alan Santos/PR

Diálogo de cena do filme Lincon (Steven Spielberg, 2012) entre os personagens Thaddeus Stevens (vivido por Tommy Lee Jones), um abolicionista, da ala radical dos republicanos (não confundir com o partido republicano de hoje, nem muito menos com o democrata que foi refundado por Roosevelt nos anos 30 do século XX) e Abraham Lincon (vivido por Daniel Day-Lewis), o presidente dos EUA, acerca de um discurso que Stevens deveria proferir no congresso americano em defesa da 13a emenda à constituição americana que proibiu a escravatura. O contexto era Lincon buscava de consenso no congresso para obter os votos necessários para a aprovação da emenda, que era o objetivo de ambos, Stevens queria o embate, cada um optava por uma estratégia diferente:

 

Thaddeus Stevens:
– O povo elejeu-me! Para os representar! Para os liderar! E eu lidero! Você devia tentar o mesmo!

Lincon:
– Admiro o seu zelo, Sr. Stevens, e tenho tentado aproveitar exemplo dele. Se eu o tivesse ouvido, teria declarado todos os escravos livres…no mesmo instante em que o primeiro obus atingiu Forte Sumter. Então, os Estados da fronteira terse-iam passado para a Confederação, a guerra teria sido perdida, e com ela a União, e em vez de abolir a escravatura, como esperamos fazer dentro de duas semanas, estaria a olhar indefeso como uma criança como ela aumentava…do Sul da América para a América do Sul.

Thaddeus Stevens:
– Oh meu Deus, como você tem desejado dizer-me isso! Você proclama confiar neles. Mas você sabe como? O povo. Você sabe que a bussola interior que devia guiar a alma para a justiça…endureceu no homem branco e nas mulheres, do Norte e do Sul, até a inutilidade absoluta, pela tolerância da demoní¬aca escravatura. A gente branca não consegue suportar a ideia de partilhar…a infinita riqueza desta terra, com os negros.

Lincon:
– Uma bússola, aprendi quando fazia levantamentos, ela…aponta-lhe sempre o Norte desde onde estamos, mas não nos avisa dos pântanos…nem desertos nem abismos com que nos deparamos no caminho. Se no percurso do seu destino você mergulhar, sem preocupação com obstáculos, e não conseguir mais que se afundar num pântano…de que lhe serve saber onde fica o Norte?

Essa cena acima citada, ilustra de maneira interessante o dilema entre a convicção, cujo personagem de Thaddeus Stevens veste o arquétipo e a responsabilidade, ou seja a decisão imposta pelas circunstâncias, cujo personagem de Lincon representa na cena. Na campanha da anistia de 1978/79, muitos recusavam que ela se estendesse aos agentes da repressão e portanto aos torturadores, do outro lado a tese da anistia geral e irrestrita que acabou ganhando, pois havia a necessidade de se trazer de volta ao país, líderes opositores à ditadura e se iniciar o processo de redemocratização que ainda esperaria seis anos até que um presidente civil assumisse e uma década para que se realizasse eleições presidenciais.

Exemplos assim recheiam a história desde a noite dos tempos. O ponto é que o mundo vive em constantes transformações, mas não as transformações que seus protagonistas desejam, porém aquelas que são possíveis. Em se tratando de democracia, o tempo da transformação não poderia ser outro que não o tempo democrático, muito mais lento do que o humano, o que nos causa sempre angústias, esse hiato do tempo democrático se deve ao fato de que a sociedade não é um todo, mas a composição de vários segmentos, inclusive os mais conservadores ou atrasados, e portanto, numa democracia, estes têm direito a voz, sendo necessário o tempo de convencimento ou superação às resistências pelas transformações. E mesmo os segmentos mais progressistas da sociedade tendem a ser resistentes às mudanças nos seus campos de interesse direto, sempre preferindo que as transformações comecem por outros setores.

Vivemos no Brasil atualmente um momento de transição, que está inserido em uma crise conjuntural a qual se insere dentro de outra mais complexa e estrutural que é mundial e do próprio capitalismo em sua transformação e superação atual. Voltando ao Brasil, o governo de transição, o governo Temer, não é nem de longe o ideal, mas é o que tem pra hoje, visto que nas duas oportunidades de sua substituição, tanto no TSE, quanto na denúncia do PGR apreciada pela câmara, ele permaneceu. Por ser de transição é de sua natureza trazer elementos diversos, em particular do antigo com o que aponta para o novo, e tirando o campo da esquerda derrotada pelo impeachment, os que participaram dos governos petistas lá estão, convivendo com forças políticas que se opunham aos governos anteriores e hoje vislumbram uma oportunidade real de poder para 2018.

Se o governo Temer é uma realidade que se impõe, sua fragilização por meios de denúncias ou pela prisão de aliados próximos gera o efeito comum na política brasileira, de que para sobreviver, cai cada vez mais no jogo bruto da composição que lhe dá sustentação no congresso, lá onde o chamado centrão cobra cada vez mais caro pelo seguro de vida. Do ponto de vista do país, o custo é o aumento do rombo fiscal e o sacrifício das reformas que o Brasil precisa e que quanto mais tarde forem feitas, mais duras serão.

O PMDB, assim como outros partidos que estavam na composição do governo do PT e devido ao trabalho político do impeachment, foi deslocado do campo petista, o que era, óbvio, uma aliança de interesses e não de projetos. De qualquer forma, só foi possível derrotar o PT e as forças de esquerda, deslocando o centro deles. O PMDB estava lá e não está mais, não queremos que volte. As práticas desnudadas pela Lava-Jato que envolvem o PMDB e outros partidos nos causam indignação com certeza, mas não adianta irmos em linha reta para o norte da bússola se no caminho houver um pântano, como disse o personagem de Lincon no filme. Não devemos ter de jeito nenhum a postura do sim, senhor! Mas temos que apoiar aos projetos de reformas, colocando sempre nossas propostas, mas principalmente visando um país mais dinâmico, mais equânime, um estado mais eficiente e menos patrimonialista, devemos apoiar a recuperação da economia, onde quem sofre são sempre os mais frágeis da sociedade e caminhar para o pleito de 18, quando o eleitor vai tomar sua decisão sobre os caminhos a tomar.

Em 18, nós todos estamos olhando preocupados, com razão, a eleição presidencial, mas devemos observar também para as eleições do congresso, que tende a ter uma renovação bem alta. O congresso é eleito no primeiro turno, e devemos trabalhar para eleger o máximo possível de uma base parlamentar democrática, com compromissos republicanos, visto que pelas características políticas brasileiras, o baixo clero sempre irá existir, mas quanto maior for a base democrática/republicana que consigamos construir, melhores serão as condições de governabilidade do governo.

O risco maior é que o governo federal eleito seja populista, num claro retrocesso, com discurso de fácil aderência do eleitorado, mas descompromissado com o país, apontando num avanço para o passado. Esse risco se potencializa, pois apesar das demandas renovadoras da população brasileira, os segmentos que mais reivindicam as mudanças têm adotado a postura niilista na política e partido pro “não voto”, (abstenções, nulos e brancos) o que beneficia as forças tradicionais, pois por mais que estejam enfraquecidas, ainda detém capilaridade, estrutura e força eleitoral, o que tende a ocorrer nos governos estaduais. Outro fator de risco é a fragmentação das forças de centro em candidaturas com certo potencial, mas que se anulam por disputarem na mesma faixa de representação, principalmente sendo candidatos de São Paulo, como em 1989, estado cujo peso eleitoral garantiu em 2014 o Aécio no segundo turno e lhe conferiu musculatura que mesmo com sua derrota em Minas quase inverteu o resultado. Nesse cenário, é possível que três ou quatro candidatos de centro consigam entre 9% e 12% e por pequena margem se dê um segundo turno entre duas opções populistas. Mesmo que advoguemos as dificuldades de uma candidatura de extrema-direita cristã, como a do Bolsonaro se sustentar, devemos lembrar que não será por inércia que ele será batido e atualmente o período eleitoral é bem mais curto, com muito mais restrições e com regras que o marketing político tradicional ainda não possui acúmulo de experiência suficiente e ainda está se reinventando, o que facilita pra quem sai na frente.

Claro que a história não se repete e portanto sempre haverá generalizações e exageros ao citarmos exemplos como 1989 Collor x Lula, no Rio de Janeiro e Belo Horizonte em 2016, mais ainda citando Trump ou Macron. Mas devemos estar atentos e nos empenhar para a busca de um consenso no rumo democrático. As eleições passam e o país fica, mas se não vencermos a batalha de amanhã, a seguinte pode ser mais difícil.

* Paulo Siqueira é diretor de cinema e escritor

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