FAP Entrevista: Hamilton Garcia

Crise pela qual passa a república brasileira é um problema de nascença, avalia Hamilton Garcia: a distância existente entre Estado e sociedade, que se explica pelo caráter da colonização.
WhatsApp Image 2018-05-27 at 21.24.41

Crise pela qual passa a república brasileira é um problema de nascença, avalia Hamilton Garcia: a distância existente entre Estado e sociedade, que se explica pelo caráter da colonização

Por Germano Martiniano

A entrevista desta semana da série FAP Entrevista é com o sociólogo Hamilton Garcia de Lima. Formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), fez Mestrado em Ciência Política na Unicamp e Doutorado em História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF), se dedicando ao estudo dos partidos de esquerda. Atualmente leciona na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) disciplinas de Política e Sociologia Política voltadas para a compreensão dos processos políticos e seus (múltiplos) desenvolvimentos – levando em conta fatores “genéticos” e “mutacionais” produzidos ao longo das formações histórico-sociais que lhes servem de base –, além de colaborar com o portal Gramsci e o Brasil e com a Fundação Astrojildo Pereira (FAP). Esta entrevista integra uma série que a FAP está publicando, aos domingos, com intelectuais e personalidades políticas de todo o Brasil, com o objetivo de ampliar o debate em torno do principal tema deste ano: as eleições.

Em uma semana extremamente difícil para conjuntura socioeconómica e política brasileira, Hamilton Garcia analisa a greve dos caminhoneiros como um “exercício da cidadania”, com o agravante da impopularidade do governo Temer. “O Governo Temer está “pendurado na brocha”, sem condições de tocar sua agenda, com irrisório reconhecimento popular e incerto apoio parlamentar; o que se deve, evidentemente, às denúncias que sofreu e a reação que teve, se agarrando ao poder para não ter que se explicar à Justiça”, afirmou o sociólogo.

Hamilton também ressalta que a crise, que o Estado e a sociedade brasileira vivem, é consequência do próprio distanciamento entre essas duas partes. “Nossa República sofre cronicamente de um problema de nascença: a distância existente entre Estado e sociedade, que se explica pelo caráter da colonização – como bem nos mostrou Caio Prado Jr. – e pela ausência de verdadeira revolução burguesa por aqui”, avalia.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

FAP – Para o senhor, o que representa essa greve em relação ao Estado democrático brasileiro?
Hamilton Garcia – Exatamente o exercício da cidadania, com os excessos aos quais estamos acostumados. É claro que ela se reveste de uma excepcionalidade, que está ligada ao fato de que o Governo Temer está “pendurado na brocha”, sem condições de tocar sua agenda, com irrisório reconhecimento popular e incerto apoio parlamentar; o que se deve, evidentemente, às denúncias que sofreu e a reação que teve, se agarrando ao poder para não ter que se explicar à Justiça.

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, autorizou as Forças Armadas a desobstruírem as rodovias bloqueadas pelos grevistas. Rodrigo Maia, presidente da Câmara, disse que tal atitude era “coisa de governo fraco”. Temer perdeu a “mão” no governo do Estado brasileiro?
Rodrigo Maia é um dos responsáveis pela “coisa”: ajudou a blindar Temer das investigações do MPU – nos deixando um governante frágil num contexto dificílimo – e pleiteia ser reconhecido como uma alternativa à crise; faria papel melhor se ficasse calado. O uso da força será implementado, como prevê a lei, e isso não acarretará grandes problemas, embora não seja garantia de total desarticulação do movimento. A questão é que Temer criou o problema, dando carta branca aos liberistas na Petrobras, e agora tem que remediá-lo.

Luiz Carlos Azedo, jornalista, em um dos seus artigos nesta semana para o Correio Braziliense, Coisa Estranha, lembrou que foi uma greve de caminhoneiros que desestabilizou o governo de Salvador Allende no Chile e abriu caminho para o golpe do general Pinochet. Com o uso das Forças Armadas, você crê em algum risco para nossa democracia?
No nosso caso, creio que o risco que corre a democracia se relaciona mais com fatores estruturais do pacto de poder, do que com a conjuntura política; embora esta seja, evidentemente, decisiva para o desencadeamento das crises.  A crise que estamos vivendo, desnudada pela revolta de 2013, nada mais é que o virtual esgotamento do pacto de poder da redemocratização, constituído pelos grandes interesses empresariais, burocráticos, sindicais e partidários, que teceram variadas coalizões políticas baseadas em seus interesses, com menor ou maior ênfase nos “descamisados” – como se referia Collor aos depauperados pelo sistema –, mas sem tocar nos seus privilégios, se limitando a aumentar o acesso de novos grupos a eles; o que já não pode ser mais suportado pela sociedade, que é quem sustenta os custos do Estado e dos monopólios privados – das finanças, da energia, das telecomunicações e das oligarquias políticas. Nesse contexto, as FFAA só podem atuar como última instância – de acordo com nossa tradição republicana – e sempre nos limites do interesse nacional, que, na sua perspectiva, implica na reativação do desenvolvimento industrial, tanto para mantê-las autônomas e bem aparelhadas, como para realizar a “paz social” e garantir o “progresso do país”; como reza o evangelho positivista que faz parte de seu DNA. Se os civis não forem capazes de reformar o regime neopatrimonial , naturalmente, as pressões sobre os militares crescerão. Mas a cúpula militar parece comprometida com seu papel histórico, não com a anomalia de 1964. Tudo, porém, depende do desenrolar dos acontecimentos eleitorais e governamentais por vir.

Qual lição o governo e o povo brasileiro podem tirar dessa greve? Por exemplo, a greve expôs o quanto a sociedade brasileira é dependente de um recurso esgotável como o petróleo.
A incompetência histórica do mercado em diversificar os modais de transporte para benefício da produção patenteia a necessidade de elaborarmos projetos nacionais de longo-prazo, não só neste caso, mas também para a diversificação das fontes de energia, para nossa inserção nas cadeias produtivas globais, etc.. Todas estas questões, nesses 34 anos, estiveram fora das agendas políticas por conta de um sistema político-eleitoral voltado para o atendimento dos grandes interesses particularistas, no atacado, e dos pequenos interesses populares, no varejo.

No seu último artigo, A democratização do Estado, o senhor discorre que o Brasil teve um processo de democratização “falso”, se assim podemos dizer, pois o governo continuava a ser comandado pelas oligarquias latifundiárias. Atualmente, não parece ser diferente com os atuais “coronéis” Jader Barbalho, Eunício de Oliveira, Renan Calheiros, Romero Jucá e outros nomes, que há tempos estão no comando da política brasileira. Como mudar este quadro?
Nossa República sofre cronicamente de um problema de nascença: a distância existente entre Estado e sociedade, que se explica pelo caráter da colonização – como bem nos mostrou Caio Prado Jr. – e pela ausência de verdadeira revolução burguesa por aqui – revoluções estas que, alhures, foram as responsáveis pelo corte do cordão umbilical que atava o Estado Nacional aos interesses particularistas dos velhos estamentos medievais. A solução, portanto, passa pela ruptura radical com as forças político-sociais que sustentam o atual pacto de poder, estejam elas na esquerda, centro ou direita. Ela passa pela constituição de um novo pacto a partir de uma coalizão política comprometida em realizar, com o apoio de forças liberais, socialistas e mesmo conservadoras, um programa mínimo de reformas que contemple a responsabilização dos partidos e seus agentes no poder – coisa que o sistema de Justiça já está nos proporcionando, mas apenas de modo parcial e incerto –, a reforma radical do Estado, com o fim dos privilégios corporativos, da ingerência indevida dos políticos na educação, na saúde, nas penitenciárias, polícias, etc., e uma política de desenvolvimento econômico, em parceria com o mercado, mas sem os vícios atuais de privilegiamento dos monopólios, que nos coloque de novo na rota do desenvolvimento – com ênfase no fator humano pelo trabalho –, entre outras providências para tornar nosso Estado sustentável, nossa economia próspera e nosso povo mais capacitado e participante.

Lula e Bolsonaro, por sua vez, não são estes tradicionais coronéis da política brasileira, no entanto, representam a face do populismo e também do salvacionismo. Lula está preso, mas o senhor acredita que Bolsonaro tem reais chances de vitória nas eleições presidenciais? E o que representaria uma vitória de Bolsonaro?
Bolsonaro surfa no fracasso da esquerda que se associou ao sistema em putrefação, ao invés de reformá-lo. Seu sucesso eleitoral, todavia, não garante sua vitória política. Ele me parece um personagem incapaz de dar conta da refundação que necessitamos, prisioneiro que é de seu próprio passado e suas concepções ideológicas sectárias. Se eleito, todavia, será forçado a realizar importantes reformas, mas não poderá fazê-las a partir de uma perspectiva democrática; o que pode tornar o processo mais rápido, é verdade, mas também bem mais incerto e custoso.

Por que o senhor defende a racionalização do Estado em contraste a opiniões liberais de intervenção mínima?
Os novos liberais estão colocados diante do desafio de pensar o Brasil, não de imitar seus ídolos. Esse problema já nos acometeu no passado, basta ver como os comunistas se submeteram aos ditames do stalinismo, cujo líder era chamado, até a denúncia de seus crimes, de “guia genial dos povos”, com os custos sabidos e pagos. Os liberais precisam se debruçar sobre os erros das suas gerações passadas, mas sem perder de vista as circunstâncias que fizeram delas o que elas foram, inclusive na desconcertante heterodoxia desenvolvimentista que praticaram sob o regime militar – não sem antes expurgarem os pensadores progressistas defensores do planejamento econômico e das políticas de desenvolvimento nacional. Tal heterodoxia, é bom que se diga, não obstante seus erros, nos colocou no clube dos países industrializados, que a democracia não soube, até aqui, nem preservar, nem muito menos desenvolver.

O que o senhor espera das eleições 2018? Quais devem ser as prioridades do novo governo brasileiro?
O cenário não é muito alvissareiro em termos eleitorais. Ninguém chega a uma crise de representação, como a que vivemos, sem ter a atividade política rebaixada e mesmo vilipendiada. A ascensão de Bolsonaro é um indicativo disso, ao mesmo tempo que a candidatura de um Lula corrupto e preso é a evidência de que a ameaça à democracia vem de outro lado. Pena que o PPS, até aqui, tenha aberto mão de ser o articulador da frente ampla para um novo pacto, e tenha elegido como seu principal interlocutor um candidato para a disputa presidencial que representa mais uma tentativa de compromisso com a velha ordem do que uma ruptura.

*Excepcionalmente a entrevista desta semana está sendo publicada nesta segunda-feira (28/05/2018).

 

Privacy Preference Center