Day: abril 23, 2021

Murillo de Aragão: Dificuldade em enxergar o óbvio

Estamos perdendo a capacidade de valorizar o que existe de bom

O Brasil é uma das últimas fronteiras do mundo para investimentos. Há necessidades gigantescas na área de infraestrutura e existe um mercado de mais de 200 milhões de pessoas educadas para o consumo.

As oportunidades existentes são únicas. Talvez nós, brasileiros, não tenhamos uma clara noção do nosso potencial devido à nossa irresistível vocação para falar mal do país. Na linha do que é ruim a gente mostra; o que é bom a gente esconde.

O setor imobiliário, por exemplo, pode avançar de forma extraordinária com a expansão do crédito. Somos uma das sociedades mais interconectadas do planeta, sistema que resistiu mesmo com o aumento de 50% do tráfego na internet durante a pandemia.

No campo ambiental, além de possuirmos uma das melhores matrizes energéticas do mundo, somos um dos maiores produtores de alimentos do planeta, mesmo com uma cobertura florestal que representa mais de 50% do território nacional. O agronegócio no Brasil, em sua imensa maioria, segue uma rígida legislação ambiental.

Com todo o fuzuê em torno das queimadas em nossas florestas, somos responsáveis por pouco mais de 3% das emissões globais de carbono. Os Estados Unidos, país campeão das narrativas em torno da defesa do meio ambiente, contribuem com mais de 14%. O pequeno Japão colabora com mais de 8% das emissões globais. E nenhum dos dois países é perseguido pela opinião pública mundial por questões ambientais.

 “No final das contas, temos imensos desafios a enfrentar, mas o Brasil é melhor do que parece”

No campo político, apesar da lentidão exasperante, fomos além do que a maioria dos países de nossa dimensão consegue em termos de reformas. E continuamos a avançar, com a nova lei de saneamento, a lei de recuperação judicial, o marco do gás e a autonomia do Banco Central.

Em 2019, tínhamos pouco mais de 700.000 investidores na bolsa de valores. Hoje são mais de 3 milhões de brasileiros. E esse número deve triplicar nos próximos anos. Temos mais de 300 fintechs em operação e um consistente processo de desbancarização em curso.

No campo institucional, os atritos entre os poderes da República representam mais a impossibilidade de uma hegemonia antidemocrática do que a possibilidade de uma ruptura institucional. O Brasil vive um sistema político compartilhado que ajuda a impedir a violência política arbitrando os conflitos.

No entanto, existe uma infeliz preponderância do conflito político estéril sobre a solução para nossos principais desafios. O desejo de destacar o atrito prevalece sobre a vontade de resolver nossos problemas. As good news de nosso país são soterradas pelas más notícias, fazendo com que percamos uma visão mais precisa da realidade.

No final das contas, temos imensos desafios a enfrentar, mas o Brasil é melhor do que parece. Isso, porém, não parece interessar a boa parte de nossa opinião pública nem às nossas autoridades, que se concentram mais no conflito do que nos desafios. Disse Clarice Lispector, “o óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar”.

Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735


Ricardo Noblat: Como de hábito, Bolsonaro mente da manhã à noite

Quem o pariu que o embale

O presidente Jair Bolsonaro acordou e foi dormir ontem mentindo, que é o que ele sempre sabe fazer de melhor.

De manhã, mentiu ao mundo na abertura da Cúpula do Clima ao dizer que “o Brasil está na vanguarda no enfrentamento ao aquecimento global”. Não está, já esteve.

Mentiu à noite nas redes sociais ao recomendar a cloroquina como remédio eficaz contra a pandemia do coronavírus.

A MM (mentira matinal) parece ter sido bem aceita por diplomatas que servem ao presidente Joe Biden, o organizador e anfitrião da cúpula. Eles gostaram do tom do discurso de Bolsonaro.

A MN (mentira noturna) pode ter agradado os devotos que a escutam como prova de coerência, mas somente a eles.

“Eu tomei um negócio ano passado, não vou citar o nome para não cair a live, mas se eu tiver um problema, vou tomar de novo”, prometeu Bolsonaro.

O desmatamento só cresce. Ao contrário do que disse, ele não está dobrando o orçamento das atividades de fiscalização ambiental.

À falta de vacinas porque o governo não as providenciou a tempo, o vírus segue matando. A culpa, segundo Bolsonaro, é de governadores e prefeitos que adotam medidas de isolamento.

Como o discurso da manhã foi lido, Bolsonaro não se enrolou. Como nas redes sociais ele improvisa, foi uma confusão só.

“Impressionante como só se fala em vacina”, reclamou Bolsonaro, que em seguida comparou a doença do vírus com os cânceres de mama e de próstata que ele considera tão mortais quanto.

Bolsonaro tomou emprestado aos governos que antecederam ao seu as ações em prol da preservação da natureza no Brasil.

Escondeu que o país é o campeão em perdas de florestas no mundo. Só de 2019 para 2020, foram eliminados 1,7 milhão de hectares de floresta primária no Brasil.

Isso é mais do que três vezes o que perdeu o segundo colocado, a República Democrática do Congo.

Comprometeu-se a eliminar “o desmatamento ilegal até 2030, com a plena e pronta aplicação do nosso Código Florestal” em vigor há 9 anos. Malandragem pura e direto na veia.

Na prática, pediu 19 anos de carência para cumprir a lei. E joga tudo nas costas dos próximos quatro governos.

Chega ou quer mais?


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro vende um Brasil imaginário na Cúpula do Clima

Jair Bolsonaro tentou vender um Brasil imaginário na Cúpula de Líderes sobre o Clima. Nas palavras do presidente, o país está “na vanguarda do enfrentamento ao aquecimento global”. Nem parecia o chefe do governo que mutilou a fiscalização ambiental e permitiu o avanço do desmatamento da Amazônia.

Na defensiva, Bolsonaro sustentou que o Brasil tem uma das matrizes energéticas mais limpas do planeta e promoveu uma “revolução verde” no campo. Se tudo vai bem, o mundo estaria perdendo tempo ao se preocupar conosco.

O capitão abusou da boa-fé dos estrangeiros. Sem corar, ele disse ter determinado o “fortalecimento dos órgãos ambientais”. Na vida real, seu governo pilota uma operação de desmonte, executada pelo ministro Ricardo Salles.

No início da semana, mais de 400 servidores do Ibama denunciaram que as atividades de fiscalização estão paralisadas. Eles explicaram que uma nova instrução normativa inviabilizou a aplicação de multas aos infratores.

É verdade que houve uma mudança de estilo na fala de Bolsonaro. No passado recente, ele ameaçou abandonar o Acordo de Paris, espalhou mentiras contra o movimento ambientalista e declarou que poderia trocar a saliva pela pólvora se Joe Biden chegasse à Casa Branca.

Ontem o capitão se disse “aberto à cooperação internacional” e adotou um tom dócil ao se dirigir ao novo presidente americano. Para seu azar, o democrata já havia deixado a reunião quando ele começou a rastejar diante da câmera.

A distância entre o discurso e a prática não foi o único problema que impediu o presidente de ser levado a sério. Numa reunião em que diversos líderes prometeram sacrifícios para reduzir as emissões de gases poluentes, Bolsonaro estendeu o pires e pediu dinheiro.

“Diante da magnitude dos obstáculos, inclusive financeiros, é fundamental contar com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostas a atuar de maneira imediata”, afirmou.

Só faltou apresentar a conta de US$ 1 bilhão em troca da preservação da Amazônia, como fez na véspera o ministro Salles.


Vera Magalhães: Jair sem Trumpinho

'Alvorada sem alambrado/ Pão sem leite condensado/ Sou eu assim sem você. Ema sem cloroquina/Dudu sem carabina/ Sou eu assim sem você.'

Na hora e meia em que esperou sua vez de falar sem convicção na Cúpula de Líderes sobre o Clima convocada por Joe Biden, Jair Bolsonaro bem poderia cantarolar essa versão negacionista do sucesso de Claudinho & Buchecha.

Não que o clássico do funk carioca mereça ter seus versos solares e meigos substituídos pelo lamento do presidente brasileiro sobre o isolamento a que foi relegado no tabuleiro mundial depois que seu amigo Trumpinho foi derrotado nas urnas. Mas sua visível falta de ambiente na reunião em que teve de ler, a contragosto, um papel com o contrário daquilo que pensa e pratica em termos de política ambiental me lembrou os versos “Eu não existo longe de você/ E a solidão é meu pior castigo”.

Antes, quando era Trump, e não Biden, o anfitrião, Jair, família e agregados eram recebidos com alegria galhofeira. A caravana dos puxa-sacos exóticos dos Trópicos vestia boné, ganhava tapinha nas costas e se achava a tal. Podia mandar às favas os indicadores vergonhosos de desmatamento e queimadas. Afinal, primo Donald não estava nem aí para esse mimimi.

Agora, as coisas mudaram. Biden, vejam que amolação, resolve fazer uma Cúpula do Clima e, ainda por cima, exigir metas concretas. Jair não pode nem ler o mesmo discurso de sempre, como gostaria, porque os chatos do Itamaraty, depois da saída do Ernesto, vêm estragar o almoço do costelão e dizer que talvez seja melhor propor alguma coisa com cara de concreta.

Então toca colocar terno e gravata verde (ainda se tivesse o escudo do Palmeiras, talkey?) e fazer cara de sério ao lado do Salles, esquecer a Anitta e desenterrar aquele discurso “comunista” dos governos do PT e do PSDB.

Bolsonaro deve ter ensaiado diante do espelho para repetir palavras como biocombustíveis, biomassa, bioma e biodiversidade sem intercalar com um palavrão ou falar que aquilo é tudo coisa de maricas.

Do lado de lá da tela do computador, Biden (que até saiu da sala, dado o climão da Cúpula do Clima) e os demais líderes mundiais devem ter achado certa graça em ver o antes destemido presidente brasileiro prometer com a voz baixinha dobrar recursos para a fiscalização de crimes ambientais, uma semana depois de mandar exonerar o superintendente da Polícia Federal que ousou combatê-los por meio de uma operação.

Até Trump, onde quer que esteja curtindo seu merecido oblívio, deve ter soltado uma gargalhada e exclamado: “Quem é esse cara?”. Nem parecia aquele que até ontem estava disposto a lhe fazer companhia na bravata de abandonar o Acordo de Paris. Que deixou de sediar a COP-25, que se recusou a conversar com a diretora do Greenpeace, Jennifer Morgan, quando a encontrou em Davos em 2019. Seria o mesmo cara? Aquele do filho de boné que não sabe falar inglês, mas queria ser embaixador?

Eventos como os desta quinta-feira evidenciam a absoluta inadequação de alguém como Jair Messias Bolsonaro para presidir o Brasil, e de auxiliares como Ricardo Salles para gerir qualquer coisa que não seja destinada à destruição.

Ao conseguir, em três minutos de fala, prometer o oposto do que praticou ao longo de dois anos e quatro meses de desgoverno, Bolsonaro assinou diante de um mundo livre do trumpismo o atestado do desastre que é sua gestão.

Resta verificar o dia seguinte da Cúpula em que o Brasil e seu presidente ficaram nus diante do mundo com sua incompetência. Parece difícil que, diante de todas as evidências de que Bolsonaro apenas fez malabarismo retórico para pedir um trocado no final, Biden esteja disposto a financiá-lo. Assim como Trump só enrolava o “amigo”, os Estados Unidos sob nova direção devem continuar a dar chá de cadeira no Brasil.


Eliane Cantanhêde: Rui o tripé ideológico

Bolsonaristas têm um trabalhão para seguir o salto triplo do ‘mito’ em saúde, política externa e ambiente

Depois de rasgar as bandeiras do combate à corrupção e do liberalismo econômico, o governo Jair Bolsonaro está desmoronando o seu tripé ideológico: saúde, política externa e ambiente. Isso, claro, cria um problemão para a sua seita, sobretudo na internet. Eles e elas terão de rever suas crenças e posições para seguir essa “inflexão”, ou salto triplo carpado, do presidente. Vão defender Joe Biden, França, Alemanha e Noruega? Cúpula de Paris, Fundo da Amazônia? Até China e vacina?

Não deve ter sido fácil para os bolsonaristas se alinharem com o PT no ataque ao ex-juiz Sérgio Moro, ícone do combate à corrupção, quando ele caiu acusando Bolsonaro de interferência política na Polícia Federal. E não está fácil jogar Paulo Guedes ao mar, depois do blablablá de que Bolsonaro podia não ser lá essas coisas, mas o Guedes segurava as pontas.

E lá se vai também o tripé ideológico. O diplomata Ernesto Araújo está de volta à sua insignificância e ao limbo dos seus delírios contra o comunismo. O general da ativa Eduardo Pazuello vaga pelo Exército, olhado de esguelha pelos companheiros de farda depois de humilhado e desautorizado pelo presidente na compra de vacinas e de se sair com o indecente “um manda, outro obedece”. Ambos, Araújo e Pazuello, estão na mira da CPI da Covid.

Com o cerco se fechando contra Ricardo Salles, Bolsonaro repete o script: elogia, leva para lives e confraternizações, dá tapinha nas costas e planta notinhas sobre o quanto gosta do ministro. Quanto mais o torniquete aperta, mais Bolsonaro prestigia seu ministro. Mas... quanto mais prestigia, mais o ministro esfarela.

Então, vejam como é a dura a vida de bolsonarista. Esquece Ernesto Araújo e o que ele fazia e dizia, para enaltecer o sucessor, Carlos França, e fazer juras de amor para China, França, Alemanha, Noruega, até para a Argentina de Alberto Fernández? E Joe Biden, chamado de “gagá”, “sequelado” e “esquerdista”, virou um cara legal.

E, agora, com Pazuello fora e o médico Marcelo Queiroga tentando correr contra o tempo e contra os erros gravíssimos na pandemia? Os e as que papagaiavam Bolsonaro, trocavam ciência por ideologia e comparavam as vacinas à talidomida, que matou e mutilou na década de 1950, correm para oferecer o braço e salvar suas vidas. Não consta que nenhum deles tenha virado jacaré...

Com os “novos” política externa e Ministério da Saúde, quem tem estômago deveria entrar nas redes para ver os bolsominions conclamando todos a se imunizarem e defendendo “aquela vacina chinesa do Doria”, que, na verdade, é praticamente a única maciçamente disponível no Brasil. Vencem a realidade e a racionalidade. Viva a China! O Butantan! A vacina! E viva a vida!

Mesmo antes do “novo Ministério do Meio Ambiente”, vem aí o novo discurso de Bolsonaro sobre sustentabilidade: antecipar a neutralidade das emissões para 2050, acabar com desmatamento ilegal até 2030, dobrar a verba para fiscalização já. Dá-lhe racionalidade! Viva a Amazônia! As leis ambientais! E viva o Biden, líder da causa ambiental no mundo!

Faltam: um pedido de desculpas ao cientista Ricardo Galvão, demitido do Inpe por alertar para desmatamento da Amazônia; resgatar o Ibama e o ICMBio; reativar as multas ambientais; cobrar compromissos com os indígenas. Bolsonaro quer escancarar as reservas para mineração, agricultura, turismo... Mas não tocou nisso na cúpula do clima.

O Brasil não tem só governo, um governo rechaçado no mundo inteiro. Tem cidadania, instituições, entidades, atores das mais variadas frentes, na pandemia, na política externa e no ambiente. Salvar o planeta é aqui e agora! Goste ou não Bolsonaro, ele é obrigado a cair na real. Governos vêm, governos vão, o Brasil fica.


Sergio Fausto: Preservar a democracia e as Forças Armadas

Há uma relação de mútua dependência, seja o que for que os militares pensem do golpe de 64

A crise militar desencadeada por Bolsonaro deixou no ar um misto de alívio e apreensão. O pior não aconteceu. O presidente seguiu o critério de antiguidade na nomeação dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. A apreensão deriva do fato de que essa não foi a primeira nem será a última vez que Bolsonaro busca instrumentalizar as Forças Armadas em função do seu projeto político, sabidamente autoritário e destrutivo das instituições do Estado. O que está em jogo é a preservação da democracia e das Forças Armadas, como instituição republicana, impessoal, que não se confunde com governos e chefes de Estado transitórios. São dois objetivos inseparáveis.

O presidente é sistemático e incansável em seu intento de criar exércitos para chamar de seus. Na base da sociedade, fomenta o acesso a armas e uma cultura de violência, em nome da liberdade e da segurança individuais, mandando às favas quaisquer escrúpulos de civilidade. Usa seu poder presidencial para reforçar sua identidade com grupos de indivíduos que fazem da intimidação um modo de ser, quando não um modo de vida e um negócio, como no caso das milícias. Na base do Estado, estimula o antagonismo entre policiais militares e governadores. Visa ao menos a criar a impressão de que, no dia D e na hora H, exércitos de PMs obedecerão ao seu comando para, junto com milícias civis bolsonaristas, encostar governadores e prefeitos contra a parede. Na cúpula do Estado, Bolsonaro dedica-se a enredar as Forças Armadas nas malhas de seu governo, pois sabe, como Hugo Chávez sabia, que sem cooptação das forças regulares a ameaça de intimidação de facções armadas é menos plausível.

Nunca antes em regime democrático, nem mesmo durante o regime militar, tantos oficiais – da reserva e da ativa – ocuparam tantas e tão destacadas posições em ministérios e empresas estatais. O sentimento de missão a cumprir, a natural atração que o poder exerce e a ilusão de que poderiam controlar o presidente levaram os militares a acreditar que este governo era o seu governo. Bolsonaro sabe cultivar esse sentimento: abre espaços na administração, melhora salários e proventos, amplia o orçamento da Defesa, comparece a formaturas, etc.

Bolsonaro já deve ter-se dado conta de que as Forças Armadas não embarcarão numa aventura autoritária sob o seu comando. Basta, no entanto, que lhe deem suficiente margem de manobra para que ele possa seguir tagarelando sobre o alinhamento político entre o governo e os militares. Para a sua base fiel, o recado é claro: se a chapa esquentar, eu tenho a força. A parolagem irresponsável do presidente é instrumental para manter vivo o mito do homem forte, tão mais útil quanto mais a realidade o mostra politicamente enfraquecido.

A confusão propositada entre governo e instituição militar terá custos crescentes para as Forças Armadas. A reeleição do presidente se tornou mais difícil. Ele enfrentará a disputa do próximo ano em condições muito piores do que jamais imaginou, carregando as perdas humanas, sociais e econômicas de uma tragédia que se tornou ainda maior por seus atos e omissões. Se Lula vier a ser seu principal adversário, travará uma guerra de deslegitimação do candidato petista e, se necessário, do próprio processo eleitoral. Se as heterogêneas forças de centro-direita e centro-esquerda se aglutinarem em torno de um candidato que caia no gosto popular, sua situação se complicará mais ainda. Mas, num caso ou noutro, mobilizará suas milícias online e offline para o que der e vier e usará todos os instrumentos do Estado que puder utilizar em favor de sua campanha. Bolsonaro pouco distingue as fronteiras entre família, governo e Estado.

O presidente conhece a resistência que o PT enfrenta no meio militar (mais uma razão para sonhar com a polarização com Lula). Ela se formou ao longo do governo Dilma e se consolidou com a Lava Jato. Os militares não digeriram a Comissão da Verdade. Também não gostaram do que entenderam ser tentativas de interferir em assuntos internos das Forças Armadas. O ex-juiz Sergio Moro continua a contar com prestígio entre os militares e a decisão do STF de declará-lo suspeito é tida como um retrocesso inaceitável. Bem aceito em seu governo, depois o ex-presidente ganhou inimigos nas Forças Armadas.

Falemos em português claro: o presidente joga com a hipótese de os militares se mostrarem mais maleáveis a seus interesses num cenário eleitoral em que Lula desponte como seu principal adversário. Nesse quadro, aposta que pode haver coincidência de interesses e maior alinhamento político. Aposta perigosa, para a democracia e para as Forças Armadas.

Ante o risco que Bolsonaro representa, há uma relação de mútua dependência entre a preservação da democracia como regime político e das Forças Armadas como instituição de Estado, independentemente do que os militares pensem a respeito do golpe de 31 de março.

*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do GACINT-USP


Podcast discute impacto da pandemia no futuro do Brasil

Ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão é o convidado da semana no programa Rádio FAP

O Brasil se aproxima da triste marca de 400 mil mortes por Covid-19. Já são cerca de 15 milhões de casos registrados da doença no país e os números não param de crescer. Para analisar o pior momento da pandemia no Brasil, o podcast Rádio FAP recebe o médico sanitarista e ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão.






A importância do Sistema Único de Saúde (SUS), a condução do governo federal na pandemia e a perda da liderança do Brasil no sistema de saúde global são alguns dos temas desta edição. O episódio conta com áudios do Jornal Nacional, da TV Globo, e perguntas conduzidas durante entrevista para a Revista Política Democrática nº 30.

O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues. A edição-executiva é de Renato Ferraz, gerente de Comunicação da FAP.

Ouça também!










Alon Feuerwerker: O cachorro do Pavlov

Os reflexos condicionados contra uma frente ampla de oposição

Na culinária e na política, nem sempre quem faz o bolo come o bolo. Em 1992, o PT ofereceu a base popular para depor o presidente Fernando Collor de Mello. Certa hora, achou-se que Luiz Inácio Lula da Silva emergiria do processo imbatível em 1994. Mas Fernando Henrique Cardoso reagrupou as tropas dispersas do collorismo, pegou o trem do Plano Real e matou o sonho do PT de surfar a onda do impeachment rumo ao poder.

Deu-se o mesmo na queda de Dilma Rousseff. PSDB e PMDB (hoje MDB) decretaram o fim do quarto governo petista, reuniram-se em torno de Michel Temer e projetaram poder ir adiante no tempo. Mas a entropia trazida pela Lava-­Jato foi além da conta e acabaram ambos tragados pelo tornado bolsonarista. O antipetismo trouxe junto a antipolítica e o antitudo, e tucanos e emedebistas viram o bolo escapar na undécima hora.

Esse fenômeno não se dá só em situações contaminadas por derrubadas de governos. Acontece também em transições normais, decorrentes de eleições convencionais. Quantas vezes se viu a polarização eleitoral, antes resiliente, ser atropelada por um azarão de última hora? Aí o oposicionista que fez de tudo e consumiu as melhores energias para minar o incumbente fica na poeira. Pois se tem algo difícil de combinar antecipadamente com o eleitor é o resultado de uma eleição.

“Na pandemia, esquerda e centro ensaiam juntar-se para fazer o bolo da lipoaspiração do atual presidente”

Assiste-se agora à ofensiva da esquerda e da ex-direita, rebranded como centro, contra Jair Bolsonaro. No momento, o objetivo de ambas é enfraquecê-lo para derrotá-lo na urna. Até porque Hamilton Mourão não tem sido, por enquanto, um replay de Itamar Franco ou Michel Temer. Não dá esperanças aos políticos hoje excluídos do poder. Nem esses andam dispostos a cozinhar o bolo e, de novo, ficar a ver navios. E Bolsonaro vai navegando…

Mas os mares andam cada vez mais turbulentos. Inclusive por certos incômodos que a condução governamental desencadeou e fez crescer na pandemia. Um deles, importante: pela primeira vez a elite sente algo parecido com as gentes do povão quando ficam doentes e não têm certeza de que vão encontrar um leito vazio de hospital ou UTI.

Atenção, eu disse “algo parecido”. Mesmo hoje, continuam situações no limite incomparáveis.

Na tempestade da pandemia, esquerda e centro ensaiam juntar-se para fazer o bolo da lipoaspiração do atual presidente, mas sempre com um olho no peixe, Bolsonaro, e outro no gato, o aliado de momento e já garantido adversário de amanhã. E, ao contrário de situações históricas anteriores, desta vez nem tentam disfarçar. Não é mais um jogo de dois, bolsonarismo e antibolsonarismo, ou petismo e antipetismo, mas de três.

Jogo de três é sempre mais complicado de operar. Se até o cachorro do Pavlov aprendeu, desenvolveu reflexos condicionados, não é difícil supor que os políticos também tenham aprendido. De viver, estudar ou ouvir falar, tanto faz. Entrar de gaiato numa “frente ampla” para confeitar o bolo e correr o risco de ficar sem nenhum pedacinho dele na hora de comer talvez não atraia mais tantos incautos como no passado.

Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735