Day: março 23, 2021

Murillo Camarotto: Eleições, polarização e desertos de notícias

Colapso do jornalismo regional vai corroendo pilares da democracia

Tip O’Neill, antigo presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, ficou famoso por ter dito que “toda a política é local”. O argumento central era de que as grandes questões globais movem paixões e manchetes, mas importam menos na vida do cidadão comum do que as decisões tomadas na comunidade na qual ele está inserido.

Desde que a frase ganhou notoriedade - já há algumas décadas -, observadores da política americana vêm percebendo algumas transformações nesse conceito. Na esteira da polarização explosiva experimentada naquele país, as eleições locais passaram a refletir muito mais as questões ideológicas do que aquelas voltadas às realidades e necessidades comunitárias.

Esse fenômeno é intensificado pela aguda crise pela qual passa o jornalismo local nos Estados Unidos. O fechamento de redações dedicadas à cobertura de questões regionais - muitas delas centenárias - cresce a um ritmo assustador e suscita debates sobre os riscos desse processo para a democracia.

Na semana passada, em uma carta de 11 páginas encaminhada ao Congresso americano, o presidente mundial da Microsoft, Brad Smith, chamou atenção para o problema - em parte causado pelas gigantes da tecnologia. Smith relembrou a frase de O’Neill com o complemento de que “a democracia floresce ou murcha em nível local”.

Por aqui, caminhamos para o que pode ser a eleição mais polarizada desde o fim da ditadura militar. Nesse ambiente contaminado, as necessidades locais tendem a ter um peso cada vez menor na escolha dos eleitores.

Em condições naturais, candidatos a governador, senador, deputado estadual e deputado federal deveriam ser avaliados com base em suas realizações nos respectivos domicílios eleitorais, e não apenas no lado em que estarão na polarizada disputa federal.

Está ficando mais difícil, entretanto, conhecer a fundo o desempenho (ou ficha corrida) desses candidatos. Assim como na América, o jornalismo local agoniza por aqui, deixando no escuro vastas regiões do país, já batizadas no meio acadêmico de “desertos de notícias”.

Tecnicamente, os desertos de notícias são municípios nos quais não há nenhum tipo de veículo jornalístico. Os dados mais atualizados do “Atlas da Notícia”, organizado pelo Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), mostram que 62% das cidades brasileiras não têm hoje nenhuma imprensa local, o que representa 18% da população.

O problema, no entanto, é bem mais grave. Mesmo em regiões que ainda dispõem de órgãos de imprensa, a cobertura local é muito pobre. Por todo o país, diários tradicionais enfrentam diversas dificuldades operacionais e financeiras e rumam a passos largos para a irrelevância.

Em cidades importantes, como João Pessoa (PB), o jornalismo impresso acabou bem antes de ser concluído o processo de inclusão digital da população. Em outras capitais onde os periódicos de papel ainda circulam, as páginas de política priorizam a reprodução de notícias nacionais, a despeito dos temas mais caros à comunidade.

Nesse cenário, prefeituras, câmaras de vereadores, assembleias legislativas e tribunais de Justiça vão se acostumando à confortável ausência dos repórteres. As descobertas de escândalos locais rareiam, enquanto prosperam os blogs e timelines politicamente comprometidos.

É o terreno fértil para a proliferação do que os americanos chamam “folk teories”, histórias distorcidas que se espalham pelas redes sem qualquer base empírica, que acabam ganhando respaldo em uma parcela da sociedade e, fatalmente, influenciando as urnas.

Sem fontes confiáveis de informação, os cidadãos ficam expostos ao buraco negro das redes sociais. A utilização massiva de bancos de dados com bilhões de informações pessoais fez estragos pelo mundo afora nos últimos anos, com maior destaque para as eleições americanas e o referendo do Brexit.

No caso americano, a Cambridge Analytica mapeou os polos de indecisos e, com base em informações pessoais surrupiadas, bombardeou toda essa gente com memes e mentiras contra os adversários de seus clientes. Deu certo.

No Brasil, teremos as primeiras eleições gerais sob a vigência de Lei Geral de Proteção de Dados, mas os efeitos da regulação sobre o uso das informações pessoais pelas candidaturas ainda é incerto. Certo é que não devemos subestimar a nossa vulnerabilidade à manipulação.

A influência das redes no pleito será, mais uma vez, gigantesca. Estudiosos projetam uma prevalência dos vídeos curtos, atualmente em moda em plataformas como o Instagram e o novato TikTok. Nesse oceano, o jornalismo profissional terá que gritar ainda mais alto para ser ouvido.

“Reconheço que a tecnologia tem criado tantos problemas quanto benefícios. E esses problemas pedem novas e urgentes soluções”, reconheceu o executivo da Microsoft em sua manifestação.

Na Europa e na Austrália, o acerto de contas entre o jornalismo e as gigantes tecnológicas está mais avançado. A imprensa australiana conseguiu garantir mais dinheiro para o conteúdo que coloca na internet.

Ainda assim, o quinhão dedicado aos jornais locais é miserável, insuficiente para dar alguma sobrevida. Na França, Canadá e Reino Unido, já se discutem formas de socorro estatal, por meio de um novo enquadramento tributário. Nesses países, já amadureceu a percepção de que a debacle do jornalismo regional pode vitimar também a democracia.

É bem provável que eu venha a ser criticado por considerar a possibilidade de uma política pública de respaldo ao jornalismo profissional - sobretudo em nível regional. Mais provável ainda é que boa parte dos críticos tenham o hábito de consumir algum tipo de noticiário sem pagar nada.

Outros caminhos podem ser sugeridos, o importante é que o problema seja reconhecido, afinal, de negacionismo já estamos bem servidos. Para esse e outros dramas nacionais, jornalismo sério é a vacina.


Cristovam Buarque: Tempos de desgoverno

A dimensão da tragédia que atravessamos decorre da simultaneidade do coronavírus com o desgoverno. Outros países passam por dificuldades, mas nenhum enfrenta ao mesmo tempo o alto número de mortes, a falta de leitos em UTI, de oxigênio e de vacinas. Nenhum tem um desgoverno incapaz de organizar a logística de atendimento hospitalar, nenhum tem o desgoverno de um presidente incentivando pessoas a se aglomerarem, sem máscaras, a acreditarem em remédios sem comprovação científica. Há um vírus aliado ao desgoverno.

Em plena pandemia, o Ministério da Saúde teve à frente um militar seguindo ordens de seu comandante, independentemente de bases científicas. A administração profissional do Ministério foi tomada de assalto e dominada pelo caos. Porque não basta dar ordem, é preciso identificar propósitos e seguir uma lógica. Agora, já há um novo ministro, sem que o anterior tenha saído, o que é mais uma prova de desgoverno.

Há também o desgoverno na política externa, que relegou o Brasil ao posto de pária internacional. Nosso desgoverno pratica a antidiplomacia ao nos confrontar com a China, Venezuela, Estados Unidos, Argentina, França. O Ministério das Relações Exteriores faz o oposto do que sempre caracterizou nossa política externa, que já ocupou papel de destaque.

O Ministério da Educação tem passado a maior parte destes dois últimos anos desgovernando nossa, já pobre, educação. Nada trouxe de novo no plano federal, nem tenta coordenar os sistemas municipais e estaduais. As universidades estão abandonadas ou sendo confrontadas. Num momento em que o ensino à distância tem sido a única solução para manter as aulas em escolas públicas e particulares, respeitando o distanciamento social, não há ações coordenadas para investir em modernização do ensino.

O ministério que deveria zelar por nossos recursos naturais insufla ocupações de florestas por madeireiros e garimpeiros, ignora ou tolera incêndios. Nossos indígenas estão desprotegidos sob ações ou omissões do desgoverno genocida.

A pandemia trouxe desafios inesperados para a economia. Mesmo assim, sentimos o desgoverno também nesta área. Não se vê estratégia em execução, salvo os auxílios emergenciais que têm sido promovidos sobretudo pelo esforço do Congresso. Podemos dizer que, apesar do desgoverno, o parlamento tem feito seu papel.

Com a aproximação das eleições presidenciais, sentimos também que há um desgoverno nas oposições. O momento seria para a construção de uma base sólida que oferecesse alternativa viável para enfrentar e vencer o atual desgoverno. Em vez disso, vemos candidatos disputando entre si a chance de estar no segundo turno, em 2022, com o   desgoverno.

O desgoverno da oposição não permite aos líderes e aos partidos entenderem que, depois dos conflitos, discordâncias e acusações no primeiro turno, dificilmente o vencedor contará com o apoio seguro de candidatos e eleitores que perderão. A chance é grande de repetirmos o que ocorreu em 2018, quando o acirramento do antagonismo no primeiro turno provocou grande número de votos em branco, nulos ou abstenções.

A única forma de evitar esse resultado, mais uma vez, seria construir uma base eleitoral unida já no primeiro turno, reunindo todos os partidos e líderes que se opõem ao desgoverno atual. As discordâncias entre as propostas desses partidos devem ser discutidas a partir de 2023, olhando para 2026. Além de todos os partidos, como nos tempos decisivos nas lutas pela democracia, o candidato escolhido deverá ter apoio também de entidades representativas da sociedade. Para vencer e barrar tentações golpistas.

Esta unidade pode ser construída desde já, sobre cinco compromissos: a) enfrentar o coronavírus e as sequelas sociais, econômicas e educacionais nos próximos anos; b) recuperar as conquistas democráticas praticadas desde 1985; c) barrar a destruição de nossas reservas naturais, especialmente da Amazônia; d) recuperar nossa presença internacional; e) assumir que o presidente eleito não disputará reeleição em 2026.

Com estes cinco compromissos, deve-se aceitar o debate para escolher o candidato com maior chance de vencer as eleições, acima de qualquer preconceito, levando adiante um governo de transição, pós-desgoverno atual.

Em momentos extremos, é preciso gestos extremos. E em um tempo de tanta desunião, o gesto extremo seria a união de todos os líderes divergentes em relação ao futuro, mas com um mínimo de identidade e sentimento para salvar o Brasil neste momento.

*Cristovam Buarque - Professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB)


Joel Pinheiro da Fonseca: Nas redes sociais, toda política se resume à comunicação

Tudo o que Bolsonaro faz segue o critério único da popularidade (ou sobrevivência) imediata

Não é possível que alguém ainda acredite numa mudança de postura do presidente na reunião com governadores. Se nem mesmo o mais trivial dos atos de proteção da vida, o uso da máscara, Bolsonaro consegue defender, pode esquecer qualquer apoio às medidas de isolamento. A única certeza é que Bolsonaro jamais tomará uma atitude impopular junto à opinião pública, por mais importante que seja. Ele não precisa.

Tudo o que Bolsonaro faz segue o critério único da popularidade (ou, em alguns casos, sobrevivência) imediata. A política não depende da realidade em si, e sim das percepções. Bolsonaro e seus cabos eleitorais foram os que primeiro souberam adaptar essa velha máxima à realidade das redes sociais e dos aplicativos de mensagens.

A fragmentação das fontes de informações causada pelas redes permite, paradoxalmente, encalacrar grandes segmentos em bolhas informacionais que repetem sempre a mensagem desejada. Consumindo sites de extrema direita e recebendo mensagens em seus grupos de WhatsApp e Telegram, os apoiadores são alimentados com um fluxo ininterrupto de fake news pró-governo. Com isso, fazer intervenções bem-sucedidas na realidade é uma estratégia politicamente inferior a simplesmente investir na comunicação.

No mundo real, de decisões e entregas, Bolsonaro negligenciou a vacina e, pressionado, correu tardiamente atrás das doses, permitindo milhares de mortes desnecessárias neste início de ano. Em vez da vacina, promovia a cloroquina, remédio sem efeito cuja promessa de eficácia deixou as pessoas menos cautelosas. Sabotou os esforços do governo de SP de desenvolver e distribuir a Coronavac, que até agora tem sido nosso principal imunizante. Vivemos a piora acentuada das mortes e o colapso da Saúde, o Brasil transformado num criadouro vivo de novas variantes, enquanto o mundo se recupera. Fracasso total.

No mundo da comunicação do governo, no entanto, ele sempre foi pró-vacina e nosso desempenho é causa da inveja mundial. Uma das últimas fake news a que tive acesso diz que Bolsonaro, num lance de mestre, enganou a “esquerda” e trouxe especialistas de Israel para comandar a produção de vacina em solo nacional. Não duvido que a refutação dessa fake news chegue nos próximos dias. Mas os seguidores já terão esquecido e estarão na próxima. Quem se lembra, hoje, do milagroso spray nasal, também israelense? (Curiosamente, Israel, um dos países mais bem-sucedidos no combate ao Covid, usou um mix de lockdown e vacinação em massa; isso nosso governo não copia).

É claro que nenhuma estratégia é perfeita. Apesar da bolha de realidade alternativa produzida pelo bolsonarismo, há fatos que insistem em invadir a percepção dos eleitores: mortes de parentes, desemprego, queda na renda, altas dos preços de alimentos e combustíveis.

Mas o trabalho de associar esses fatos ruins ao governo federal é difícil e tortuoso. Afinal, como o ministro Paulo Guedes alegou, a culpa do dólar estar acima de R$ 5 é da esquerda (sempre ela!), que fala mal do competente Bolsonaro no exterior. A liga de confiança mínima no jornalismo profissional e na ciência foi perdida.

Em algum momento a realidade cobrará seu preço também na percepção do eleitorado. Ele e todos os seus aliados neste circo de mentiras irão para a vala comum que é seu destino. As armas de comunicação em cujo uso ele foi pioneiro, contudo, continuarão à disposição do próximo astuto e inescrupuloso o bastante para dominá-las. E não precisa nem sequer ocupar a mesma posição no espectro ideológico. Bolsonaro passará, as fake news não.


Alon Feuerwerker: Monitorar a vacinação

A primeira é que o imunizante de Oxford e da AstraZeneca conseguiu 79% de eficácia na prevenção de casos sintomáticos. A vacina também revelou 100% de eficácia contra casos graves. 
Além disso, não aumentou o risco de coágulos sanguíneos (leia). O estudo foi conduzido com mais de 30 mil vacinados nos Estados Unidos, Chile e Peru.

A segunda é que o imunizante da chinesa Sinovac é efetivo e seguro para crianças e adolescentes (leia).

Parece que as duas escolhas, do governo de São Paulo e do federal, vão se provando adequadas, resta agora torcer para que as entregas prometidas se realizem conforme o planejamento. A velocidade na vacinação é importante para ganhar a corrida contra as novas cepas que a seleção natural produz.

Para quem deseja acompanhar em tempo (quase) real a vacinação pelo mundo, no Financial Times tem os dados absolutos e proporcionalmente à população. Eu escolhi comparar Brics, México e Argentina (leia). Mas você pode comparar o que quiser. Vale favoritar. 

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Pedro Cafardo: Empresários acordam e Brasil pede socorro

Crise deixa como lição que empresários precisam se manifestar

Finalmente, as classes empresariais, os economistas e até líderes do mercado financeiro acordaram. No fim de semana, duas robustas e corretas manifestações pediram que o país seja respeitado. Mais de 500 economistas e banqueiros divulgaram uma longa carta aberta à sociedade pedindo, principalmente, a adoção de medidas efetivas para conter a pandemia. Em outra manifestação, um grupo de empresários e executivos lançou uma ofensiva no Congresso, não só pelo auxílio emergencial, mas também em favor da discussão de outras medidas sociais para socorrer as empobrecidas famílias brasileiras.

É redundante citar aqui as sugestões feitas pelas classes empresariais, inclusive do setor financeiro. As propostas são, basicamente, aquelas que vemos diariamente na grande imprensa, nas entrevistas desesperadas de médicos, cientistas e familiares de mortos, à medida que avança o número de vítimas fatais da pandemia, que se aproxima de 300 mil pessoas. Em resumo, as propostas combatem o negacionismo e pedem ação urgente do governo.

Tão importante quanto as sugestões feitas nos dois documentos é o fato de que os empresários acordaram para uma realidade: o país pede socorro e não pode continuar nessa marcha insensata, com o chefe de governo não só ignorando a pandemia como também incentivando comportamento suicida de brasileiros desavisados.

É preciso adotar a sinceridade e admitir que as classes empresariais tiveram importância fundamental na eleição do atual presidente da República. Não é necessário lembrar que a sustentação dessa escolha se baseou na ideia de que, para o bem ou para o mal, qualquer governo seria aceitável, desde que não representasse a continuidade dos quatro mandatos do PT. Ainda hoje, com todas as terríveis consequências de mais de dois anos de mandato, o índice de apoio dos empresários ao atual governo, em todas as pesquisas, segue muito maior que o da média nacional.

Houve, certamente, omissão, comportamento que parece estar mudando agora. Acreditou-se, antes e depois do início do governo eleito em 2018, que uma política econômica liberal e exclusivamente voltada ao aperto fiscal, deixando de considerar o impacto dessa política sobre a vida das pessoas que perdem o emprego, poderia salvar o país. Durante certo período, essa crença se materializou na reforma da Previdência, que sanearia as contas públicas nos próximos dez anos e impulsionaria os investimentos e o crescimento. Toda aquela economia que se imaginou para os dez anos já foi gasta com a pandemia.

Acreditou-se que o BNDES não era necessário para financiar a empresa brasileira e que, portanto, poderia ser, aos poucos, desidratado. Praticamente nenhum discurso em defesa do banco foi feito pelas entidades empresariais. E a palavra desenvolvimento foi extinta do vocabulário do governo.

Durante muitos anos, muito antes da administração liberal de hoje, aceitou-se nos meios empresariais, sem gritos ou sussurros, uma política de juros elevados que claramente desestimulava os investimentos produtivos e destruía a indústria no país. Agora, com a maior recessão da história à vista, o Banco Central volta a elevar juros.

Poucas e honrosas têm sido as reações contra a calamitosa política ambiental deste governo, que arruína a reputação brasileira no exterior e expõe o país a sanções internacionais.

Foram toleradas, sem reação, políticas que confessadamente se destinavam a punir alguns setores empresariais. Foram toleradas ações de procuradores em conluio com juízes para condenar réus, ainda que houvesse o nobre objetivo de combate à corrupção, sem preocupação com destruição de grupos empresariais. Foi tolerado o estímulo ao uso de armas de fogo. Foi tolerada a protelação por três anos da investigação do assassinato de uma vereadora do Rio. Foram tolerados o nepotismo descarado, a ação nefasta na educação, a tentativa de militarização do ensino e a exaltação de ditadores e torturadores.

Por fim, e mais importante, foi tolerada durante um ano inteiro, a negação da ciência e da importância da pandemia, bem como a completa omissão do Ministério da Saúde na condução do combate à doença. Não é razoável acreditar que as classes empresariais estivessem anestesiadas pelo dilema entre salvar vidas e salvar a economia. Agora, os hospitais estão abarrotados de doentes, morrem quase 3 mil pessoas por dia e há 12 milhões de pessoas infectadas com o vírus. Não há mais dúvidas de que a recessão econômica não será superada enquanto a pandemia não for controlada. E isso, segundo a nota assinada por banqueiros, economistas e empresários, exige “uma atuação competente do governo federal”, que “utiliza mal os recursos de que dispõe, inclusive por ignorar ou negligenciar a evidência científica no desenho das ações para lidar com a pandemia”.

Esse triste momento do país traz uma lição que não pode ser esquecida: as classes empresariais precisam se manifestar. Dá tudo errado quando se amedrontam ou se omitem diante das ações do governo. Gostemos ou não dessas opiniões, elas precisam ser explicitadas, até para que sejam confrontadas com propostas de outras representações, como as de trabalhadores, que praticamente sumiram do mapa depois da reforma trabalhista do governo Michel Temer.

Esta coluna já lamentou, anos atrás, a falta que nos faz Antônio Ermírio de Moraes, um dos donos do Grupo Votorantim, morto em agosto de 2014. Enquanto teve forças, ele foi um barulhento e corajoso representante do chamado “setor produtivo”, com apoios à direita e à esquerda, de empresários e trabalhadores.

A Segunda Guerra Mundial é pródiga em lições, e a mais importante delas se refere exatamente a omissões. É impossível não voltar a lembrar o que Winston Churchill disse em suas memórias: teria sido muito fácil evitar a tragédia da Segunda Guerra. Bastava, no fim da Primeira Guerra, manter a derrotada Alemanha desarmada e os vencedores aliados armados. Com isso, seria possível desfrutar de um longo período de paz na Europa. Os aliados viram quando Adolf Hitler tornou o serviço militar obrigatório, foi ampliando seus exércitos e transformou toda a indústria do país em um arsenal bélico. Viram, mas se omitiram. E deu no que deu, 60 milhões de mortos.

É hora de identificar e desarmar perdedores.


Igor Gielow: Novas falas de Bolsonaro sobre Forças Armadas incomodam militares

Sob pressão, presidente reprisa tática de 2020 e faz insinuações de uso de força

A nova tentativa do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de envolver as Forças Armadas na defesa de suas bandeiras está incomodando os altos escalões militares.

Oficiais-generais influentes da ativa e da reserva passaram o domingo (21) e a segunda (22) conversando entre si após Bolsonaro ter sugerido o uso do Exército contra governadores de estado que aplicam medidas para reduzir a circulação de pessoas para tentar coibir a transmissão do novo coronavírus.

“Alguns tiranetes ou tiranos tolhem a liberdade de muitos de vocês. Pode ter certeza, o nosso Exército é o verde oliva e é vocês também. Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade”, disse o presidente a uma multidão aglomerada na frente do Palácio da Alvorada no domingo.

“Estão esticando a corda, faço qualquer coisa pelo meu povo. Esse qualquer coisa é o que está na nossa Constituição, nossa democracia e nosso direito de ir e vir”, afirmou Bolsonaro, que celebrava seus 66 anos.

É um filme conhecido. Sempre que Bolsonaro se vê pressionado politicamente, ele "grita lobo", nas palavras de um oficial da Marinha. No caso, o "lobo" da fábula é algum tipo de intervenção militar.

No ensaio de crise constitucional do primeiro semestre do ano passado, quando o presidente estimulou atos golpistas que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro arrastou consigo a cúpula militar.

O presidente levou o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, para sobrevoar de helicóptero um desses atos. Ao mesmo tempo, as cúpulas das Forças tiveram de emitir duas notas para negar que houvesse tentações golpistas e reafirmando o compromisso com a Constituição.

Por outro lado, o mesmo Azevedo apoiou seu colega Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), que "gritou lobo" ao divulgar nota na qual alertava para "consequências imprevisíveis" devido à tramitação de um pedido para apreensão do celular de Bolsonaro, na apuração sobre interferência do presidente na Polícia Federal.

Essa posição ambígua acabou contribuindo para a desconfiança em diversos meios políticos. Com o desanuviamento da crise, a partir da melhora da popularidade de Bolsonaro durante os meses em que concedeu auxílio emergencial na pandemia e a associação com o centrão, os militares saíram do holofote.

A criticada gestão do general Eduardo Pazuello como ministro da Saúde os trouxe negativamente para a ribalta de novo, e agora Bolsonaro volta a insinuar que os militares estariam prontos para agir.

O presidente trocou sua ofensiva para barrar vacinas, em especial a Coronavac promovida pelo rival João Doria (PSDB-SP), por críticas ao isolamento social.

Com o colapso nacional do sistema de saúde neste momento agudo da pandemia, governadores estão endurecendo cada vez mais medidas. Pequenas manifestações contra os chefes estaduais e pedindo "intervenção militar com Bolsonaro no poder" reapareceram em diversos pontos do país.

Não por acaso, o presidente está em momento de grande fragilidade. Está em processo de troca de Pazuello pelo médico Marcelo Queiroga, uma transição atabalhoada que só lhe rendeu críticas.

Sua rejeição voltou ao pior patamar desde que assumiu, conforme mostrou pesquisa do Datafolha na semana passada, com especial repúdio à sua condução da crise sanitária. Mas ele mantém uma aprovação alta, de 30%.

Como a Folha ouviu de um dirigente do centrão nesta segunda, ninguém acredita que a inciativa de Bolsonaro de criar um comitê para lidar com a pandemia, passado um ano do seu início, irá dar algum resultado concreto.

Ele vê os esperneios do presidente junto à sua base mais radicalizada como um caminho natural, e brinca que se houvesse "dez pessoas na rua contra o Bolsonaro", o clima para um processo de impeachment no Congresso estaria dado, tal o azedume entre as forças que apoiam o governo e seu hospedeiro.

Nesse ambiente, os militares surgem como referência, e não exatamente positiva. Dois ministros do Supremo conversaram com um importante general da reserva sobre as inclinações das Forças e ouviram que não haveria risco de apoio a qualquer iniciativa autoritária ou inconstitucional.

Segundo ele, o nó para os militares se chama hierarquia, que impossibilita críticas públicas ao governo, não menos pela simbiose que há entre Forças Armadas e a gestão Bolsonaro, por mais que a cúpula da ativa tente evitar.

O maior temor entre esses oficiais céticos em relação ao governo tomou forma na sexta-feira (19), quando Bolsonaro afirmou que poderia tomar "medidas duras" na pandemia, uma semana depois de insistir que tinha apoio do "meu Exército", Força da qual é capitão reformado.

No mundo político, correu a versão segundo a qual Planalto estudava adotar estado de sítio, situação na qual as Forças Armadas têm papel central e na qual alguns direitos constitucionais são suspensos. O rumor foi tão forte que o presidente do Supremo, Luiz Fux, ligou para Bolsonaro para ouvi-lo negar a hipótese.

O mal-estar perpassou o fim de semana, com políticos consultando militares sobre o burburinho. A fala presidencial no domingo só acirrou mais os ânimos, e aos poucos a sensação de sobressalto que marcou 2020 vai ganhando corpo entre esses atores.


Rubens Barbosa: Mercosul, 30 anos

Bloco precisa de um freio de arrumação para resgatar os objetivo iniciais

O Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, comemora 30 anos esta semana. Como mecanismo de abertura de mercado e liberalização de comércio, o Mercosul está estagnado e se tornou irrelevante do ponto de vista comercial, representando hoje apenas 6,2% do intercâmbio total do Brasil, depois de ter subido a quase 16% do comércio exterior total nos anos 1990.

Nas quase três décadas de existência, o processo de integração dos países do Cone Sul alternou períodos de forte expansão e estagnação, tanto do ponto de vista econômico quanto institucional. Em geral, do ponto de vista do setor privado, o exercício foi positivo, no sentido de que os empresários passaram a se envolver nas negociações de acordos comerciais e a voltar sua atenção para nosso entorno como mercado para seus produtos manufaturados.

Desde o início o Mercosul enfrentou desafios para sua construção. Uma de suas características ao longo de todos esses ano foi a incerteza quanto à sua consolidação e ao seu futuro. A ideia de formar um mercado comum em quatro anos, a partir de 1991, como previsto no tratado, simboliza o grau de ambição não respaldada na realidade de todo o processo. A consolidação e o futuro do Mercosul sempre ficaram na dependência da evolução econômica e comercial de seus membros e de decisões políticas que afetaram a evolução natural do bloco. Por mais de dez anos, politizado, transformou-se em fórum político e social e aceitou a Venezuela como membro pleno.

A situação atual não é diferente. Há desafios políticos e técnicos que tornam o processo de integração sub-regional ainda mais incerto.

No campo político, os presidentes da Argentina e do Brasil, por motivações ideológicas, não se falam há dois anos. As conversas continuam em nível técnico, mas o apoio do mais alto nível inexiste. No ano passado a Argentina anunciou que deixaria de participar das negociações dos atuais acordos comerciais e das futuras negociações do bloco, para depois recuar e informar que continuaria nas negociações do Mercosul, mas em ritmo diferente dos demais membros. A justificativa principal argentina foi de que estava tomando a decisão para evitar os efeitos negativos da pandemia. Posteriormente, a Argentina decidiu que não participaria das negociações com a Coreia do Sul para não afetar a sua indústria. As negociações para a inclusão de açúcar e automotriz continuam fora do Mercosul, pela resistência argentina.

Com relação à Tarifa Externa Comum (TEC) – tão perfurada que justifica a qualificação do bloco como união aduaneira imperfeita –, o Brasil em 2109 propôs uma redução de 50% e agora aceita discutir a redução a cerca de 10%, sempre com a oposição da Argentina. O acordo de livre-comércio mais importante, negociado com a União Europeia, está paralisado por objeções de alguns países europeus em razão da política de meio ambiente brasileira. Estão em negociação ou sendo preparados acordos com Efta, México, Canadá, Líbano, Cingapura, Coreia do Sul, América Central, Reino Unido, Indonésia e Vietnã.

Este ano, por iniciativa do Uruguai, foi revivida a proposta de flexibilizar o Mercosul para permitir a seus membros, individualmente, concluir acordos de livre-comércio com outros países. Pretende-se que na reunião de cúpula virtual prevista para 26 de março essa ideia comece a ser examinada. Mas a discussão vai ser longa em função de interesses concretos que dificultam a superação de questões técnicas (como ficaria a TEC, o Tratado de Assunção teria de ser renegociado?) e políticas (fim da união aduaneira e volta a uma área de livre-comércio?).

Cabe registrar recentes avanços significativos: os acordos comerciais com os demais países da América do Sul formaram uma área de livre-comércio na região; o Estatuto da Cidadania, acordo sobre previdência social, educação, circulação na fronteira, residência, passaporte comum; negociação com diversos países de acordos de facilitação de comércio, de cooperação de investimento, de comércio eletrônico e de compras governamentais. Em termos institucionais, redução de órgãos, simplificação da burocracia interna e enxugamento do orçamento do Mercosul.

O fortalecimento do Mercosul, em termos econômicos, requer vontade política para entender o que está acontecendo no mundo e reagir adequadamente. Além da flexibilização e da redução da TEC, novos temas precisam ser discutidos, como cadeia produtiva regional, acumulação de origem, autonomia regional soberana, 5G e estratégia de negociação conjunta. O Protocolo de Ouro Preto, que criou a união aduaneira, em 1994, prevê em seu artigo 47 que os países-membros poderão convocar uma conferência diplomática para examinar sua estrutura, seu funcionamento e sua operação. Convocada pela primeira vez, essa conferência poderia, com visão de futuro, discutir políticas e medidas para fortalecer e revigorar o Mercosul.

Apesar das incertezas e dos desafios, nenhum país-membro está preparado para pagar o preço de pôr em risco a existência do Mercosul. Depois de 30 anos, o Mercosul precisa de um freio de arrumação para resgatar os objetivos iniciais de livre-comércio interno e maior inserção externa.

EX-COORDENADOR NACIONAL DO MERCOSUL (1991-1994)


Cristina Serra: A carta tardia do PIB

Entenderam que não adianta ter dinheiro para pagar UTI aérea para Miami?

Quer dizer que foi preciso um ano de pandemia, quase 300 mil cadáveres, o colapso dos hospitais e um tombo colossal na economia para que parte expressiva do PIB se manifestasse publicamente sobre a catástrofe humanitária que nos põe de joelhos? Tirante honrosas exceções que assinam a carta divulgada neste fim de semana, a maioria permanecera em indiferente pachorra.

São mais de 500 assinaturas; alguns sobrenomes reluzentes, de banqueiros, empresários, ex-ministros, ex-dirigentes do Banco Central e economistas que, até outro dia, clamavam pela urgência das reformas, mas não mostravam a mesma preocupação com a premência de salvar vidas.

Muitos até devem ter achado, como disse o famoso animador de auditório, que Bolsonaro teria uma "chance de ouro de ressignificar a política", seja qual for o sentido disso no dialeto da Faria Lima. Agora, com as UTIs dos hospitais privados lotadas, parecem ter despertado do modo "repouso em berço esplêndido".

O que mudou? Entenderam que não adianta ter dinheiro para pagar UTI aérea para Miami? Que não somos bem-vindos em nenhum país porque cevamos um criadouro de variantes agressivas do vírus? Que estamos todos na mesma tormenta, embora milhões a enfrentem agarrados a um pedaço de pau e pouquíssimos em um transatlântico? Simplesmente perceberam que Paulo Guedes não tem força para demolir o Estado, como esperavam ? Ou a soma disso tudo?

Com tal carta, nossa elite mostra como é elástica sua tolerância diante de uma tragédia que atinge principalmente os mais pobres. Ao ler o documento, procurei menção a, quem sabe, aumento de imposto sobre suas imensas fortunas. Nenhum palavra. Apesar de tardia, a carta pode até ajudar a controlar rompantes autoritários de Bolsonaro. Daí a conter o genocídio que nos abate há longa distância. Para isso, é preciso combinar com os mercenários e franco atiradores do centrão. E enquanto você lê esse texto, mais um coração brasileiro parou de bater.


Hélio Schwartsman: Se o vírus tivesse me ouvido...

O corona, porém, não atendeu a meus apelos

Em julho, quando o presidente anunciou que tinha contraído a Covid-19, escrevi a coluna "Por que torço para que Bolsonaro morra". Ganhei uma enxurrada de emails irados e um inquérito com base na LSN. Riscos da profissão.

A título de experimento mental, convido o leitor a adentrar no fantástico mundo dos contrafactuais e imaginar o que teria acontecido caso o vírus tivesse atendido a meu desejo.

Em princípio, nada muito animador. Bolsonaro teria sido substituído pelo vice-presidente, general Hamilton Mourão, que tem ideias parecidas com as do titular e também nutre crenças exóticas (cloroquina) em relação à Covid-19. Mas Mourão, admita-se, vem com uma demão de verniz civilizacional e parece mais disposto a seguir conselhos de especialistas.

De todo modo, as inclinações naturais do general nem são tão relevantes. Ao assumir a vaga de alguém que morrera de Covid-19, Mourão não teria alternativa que não a de declarar guerra ao vírus. Àquela altura, vale destacar, teria sido possível comprar antecipadamente grandes quantidades de vacinas, que talvez tivessem evitado as consequências mais catastróficas desta segunda onda que enfrentamos.

A própria população teria ficado assustada com a morte precoce do presidente e, presume-se, não resistiria a medidas de distanciamento social nos momentos em que elas se mostrassem necessárias.

Em 7 de julho de 2020, o Brasil contabilizava 1.658.589 casos confirmados da doença e 66.741 mortes. Hoje, esses números são 11.998.233 e 294.042 e aumentam rapidamente. Não dá para precisar quantos óbitos teriam sido evitados se Bolsonaro tivesse sucumbido à moléstia, mas não teriam sido poucos.

O vírus, porém, não atendeu a meus apelos. Para quem gosta de ciência e flerta com a teoria dos muitos mundos, resta o consolo de que existe um universo onde o Sars-CoV-2 levou Bolsonaro e, depois disso, o Brasil se tornou um exemplo no combate à epidemia.


Pedro Fernando Nery: A falácia dos deveres que recai sobre os brasileiros mais pobres

A contrapartida de direitos são os tributos, que aparecem fartamente na Constituição

O argumento é recorrente. Os brasileiros mais pobres já possuem benefícios demais: a própria Constituição citaria “direitos” dezenas e dezenas de vezes, mas “deveres” somente em um punhado de ocasiões. Com tantos direitos sem deveres correspondentes, o arranjo seria insustentável. O argumento é falacioso: a contrapartida de direitos são os tributos, eles são fartamente previstos na Constituição e incidem mais justamente sobre os mais pobres – aqueles que teriam direitos demais.

Comecemos com um Ctrl+F na Constituição. Tributos e seus tipos – impostos e contribuições – aparecem mais de 300 vezes. São eles os espelhos dos direitos, e não um termo genérico como “dever”. O direito à saúde é concretizado com contribuições sociais. O direito à educação é efetivado com impostos. E assim vai.

No Brasil, muitos desses tributos, ou deveres, recaem sobre quem ganha menos, que paga a conta indiretamente quando compra um produto. Na verdade, os mais pobres pagam mais em tributos indiretos do que os mais ricos, quando considerado o peso dos tributos em proporção à renda de cada grupo.

Essa distribuição é muito diferente da de vários países desenvolvidos, que exigem mais esses deveres dos mais ricos. Mesmo uma reforma da tributação sobre o consumo, como a PEC 45, pode atenuar a situação, ao distribuir melhor a carga entre o que é consumido pelos mais bem posicionados na distribuição de renda e os mais vulneráveis. Estudo da economista Débora Freire conclui que essa reforma tributária traria “ganhos de bem-estar” para as famílias mais pobres, pelo seu efeito nos preços.

Para que as elites tenham mais deveres, são importantes também medidas relacionadas à tributação da renda. Embora a Constituição demande tratamento igual entre os cidadãos em geral, e progressividade no Imposto de Renda em particular, o fato é que ele é regressivo para rendas mais altas: quanto mais se ganha, menos se paga (a alíquota efetiva chega a 5% para o grupo que ganha mais de R$ 300 mil). Isso porque para este dever muitos pagam 0% em relação a certas rendas, isentas legalmente de pagar o IR – em provocação à Constituição.

Temos também muitos problemas com isenções ou outros auxílios a empresários de setores específicos da economia. Estes ficam dispensados de seus deveres constitucionais parcial ou totalmente, por um prazo definido ou indefinidamente. São os chamados gastos tributários (renúncias, benefícios fiscais): um montante que eleva a nossa dívida com pouca clareza sobre suas vantagens em termos de políticas públicas. 

Um passo, ainda que tímido, foi dado semana passada para que os deveres sejam distribuídos de forma mais igualitária. Com a nova Emenda Constitucional n.º 109, decorrente da PEC emergencial, uma nova lei complementar passa a ser exigida regulamentando a criação desses benefícios fiscais, regras para avaliação e um plano para sua redução. É importante que a regulamentação do tema enquadre mecanismos que dão menos deveres a grupos mais prósperos, como isenções no IR ou tributação do patrimônio favorecida, abaixo dos limites da Constituição.

É verdade que em nosso pacto social é possível identificar direitos em excesso, mas a evidência é de que isso não ocorre entre os mais pobres. Se consideramos deveres os tributos, consideremos agora o gasto público como uma aproximação de direitos. Os dados apontam que transferências do governo são regressivas quando dividimos a população – por exemplo – em cinco grandes grupos de renda: isto é, quanto menos pobre cada quinto da população, mais recursos recebem. 

De tal forma que para o quinto mais rico pesam em sua renda os recursos recebidos do governo quase o mesmo tanto que para os mais pobres. Como mostra estudo da antiga Secretaria de Acompanhamento Econômico, esse padrão é muito divergente do de países da OCDE, em que o gasto é muito mais direcionado aos mais vulneráveis.

Como evidencia o debate do auxílio emergencial, uma larga parcela da população está, na verdade, com poucos direitos. Centenas de economistas lançaram no último fim de semana uma carta que chamou atenção pelas cobranças quanto à pandemia, mas que também defende de forma contundente uma reforma no sistema de proteção social – exatamente pela cobertura insuficiente. 

Muito mudou no País desde que Roberto Campos fez a crítica que seria popularizada nas décadas seguintes – de que a Constituição prevê direitos demais e deveres de menos. À época, ainda não haviam sido montados os mecanismos legais que hoje distorcem tanto nosso sistema tributário em benefício de quem está no topo. Que as mudanças que esperam nosso País nos próximos anos se orientem por uma verdade inconveniente: são os mais ricos que têm deveres de menos.

*Doutor em economia 


François Hollande: Papel da esquerda é tirar populistas do poder democraticamente

Ex-presidente francês afirma discutir com Lula como construir forças políticas capazes de encarnar a alternância

Beatriz Peres, Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - O ex-presidente francês François Hollande, 66, que comandou o país entre 2012 e 2017, considera palpáveis os danos causados pelo populismo que ascendeu em diferentes partes do mundo.

"A eleição de Jair Bolsonaro resultou em destruições importantes da floresta amazônica, em um declínio da democracia e das liberdades e em políticas muito duras com os mais pobres e muito complacentes com os mais ricos", diz o socialista. "Sem esquecer a gestão da crise sanitária, que, tanto no Brasil quanto nos EUA —quando Donald Trump estava no poder—, fez vítimas demais, por falta de medidas restritivas."

Em entrevista à Folha, por email, Hollande defende uma reação em bloco, como afirma ter acontecido com a candidatura do democrata Joe Biden na vitória sobre Trump. "Foi por pouco, e isso só foi possível porque o conjunto dos democratas, para além de suas diferenças, juntaram suas forças."

Depois da condenação do ex-presidente Nicolas Sarkozy, o senhor criticou o que chamou de “ataques repetidos contra a Justiça”. Por que considerou necessário defender a Justiça francesa neste momento? 

A separação dos Poderes é o fundamento da democracia. Na França, a Justiça é independente do Executivo. Os magistrados, os juízes e os procuradores conduzem suas investigações e proferem suas sentenças sem intervenção nenhuma do poder político. As decisões podem ser contestadas por todas as vias de recurso, o que Nicolas Sarkozy já fez em seguida à condenação. Por isso não aceitei os ataques vindos da direita e dos apoiadores do ex-presidente que visam desacreditar a autoridade judiciária.

No Brasil, a Justiça também está sendo criticada devido ao processo contra o ex-presidente Lula. É preciso defender a Justiça também no Brasil? 

A Justiça brasileira vai estabelecer ela mesma a verdade e poderá um dia verificar se as acusações contra o ex-presidente Lula tinham fundamento. Mas já parece claro que tudo foi feito no plano político para impedir Lula de se candidatar na última eleição presidencial. Foi isso que justificou minha tomada de posição, com outros chefes de Estado e de governo, desde 2018, para que Lula pudesse, livre, ser candidato à eleição presidencial. Hoje é um novo momento que se abre, e fico feliz de ver Lula recuperar plenamente seu espaço na vida política brasileira.

Nos EUA, a eleição de Joe Biden freou a onda populista de Donald Trump. Mas os movimentos populistas de extrema direita e de ultradireita estão espalhados pela Europa e também pelo Brasil. Qual é o papel da esquerda neste momento? 

Nós já podemos facilmente constatar os danos causados pelos populistas. A eleição de Jair Bolsonaro resultou em destruições importantes da floresta amazônica, em um declínio da democracia e das liberdades e em políticas muito duras com os mais pobres e muito complacentes com os mais ricos. Sem esquecer a gestão da crise sanitária, que, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos —quando Donald Trump estava no poder—, fez vítimas demais, por falta de medidas restritivas.

A esquerda nos Estados Unidos –porque é assim que podemos considerar os democratas americanos– foi capaz de se unir em torno de Joe Biden, cujo passado e experiência eram testemunhas de seu compromisso e despertaram confiança. Foi assim que Trump pôde ser derrotado. Foi por pouco, e isso só foi possível porque o conjunto dos democratas, para além de suas diferenças, juntaram suas forças. O papel da esquerda, portanto, é fazer de tudo para impedir que os populistas cheguem ao poder e, quando eles chegam, de retirá-los democraticamente propondo ao povo uma solução crível.

Na França, o Partido Socialista está programando um congresso de “refundação”, para definir um novo ciclo e renomear o partido. Do que se trata esse movimento de refundação? 

Em um mundo que evolui rapidamente e diante de desafios enormes como as desigualdades, a democracia e o aquecimento climático, cada geração deve assumir suas responsabilidades. Os partidos progressistas precisam se renovar, se refundar e se repensar, tanto do ponto de vista de sua organização como de seu projeto. Mas sem nunca se esquecer de sua história e sem perder os valores sobre os quais foram fundados. É essa a tarefa atual dos socialistas franceses.

O senhor tem discutido a renovação da esquerda com o ex-presidente Lula? 

Sim, nós concordamos em trocar experiências, em defender as mesmas posições em nível internacional e em construir, em nossos respectivos países, as forças políticas capazes de encarnar a alternância. Trabalharemos com todos que quiserem se juntar a nós para devolver a esperança à política. Nós compartilhamos os valores da liberdade, da democracia e da justiça social.

A França ainda vive o luto de atentados terroristas recentes, incluindo a decapitação do professor Samuel Paty, e os deputados aprovaram um projeto de lei contra os separatismos, que será examinado pelo Senado. As discussões do chamado “islamoesquerdismo” eclipsam o problema real? 

A França ama as polêmicas. Algumas podem ser frutíferas, outras ocultam os problemas reais. Sejamos lúcidos, existem fenômenos de radicalização, de divisão e mesmo de separatismo. E há até teorias que os justificam. Eles precisam ser discutidos e combatidos. Mas não vamos acreditar que eles sejam majoritários na esquerda, pelo contrário. É uma fração muito pequena que mantém esses movimentos para viver em protesto, em exclusão e na recusa de suas responsabilidades. Eu sou socialista e, portanto, universalista e não me satisfaço com os combates parciais. Tudo deve convergir para uma mudança global da sociedade. Quanto ao terrorismo, ele tenta nos assustar e nos dividir, não podemos ceder a ele.

O senhor concorda com a gestão do presidente Emmanuel Macron durante a pandemia

A gestão da pandemia é uma das crises mais difíceis que se poderia conceber, já que o vírus é resistente, a vacinação demora a produzir seus efeitos e uma parcela da população continua vulnerável. A gestão do governo pode ter parecido às vezes hesitante ou contraditória, mas foi assim em todos os países. Ao menos eu reconheço o mérito de Emmanuel Macron, ao contrário de Jair Bolsonaro, de ter admitido que o vírus era perigoso, que poderia matar e que era preciso tomar medidas restritivas, especialmente o confinamento.

O senhor se arrepende de não ter disputado as últimas eleições presidenciais? 

Eu deveria ter demorado mais para anunciar minha escolha, talvez um pouco mais tarde tivesse sido diferente. Eu me arrependo de não ter podido perseguir por mais tempo a política de redução das desigualdades, a priorização da educação e da inserção dos jovens, assim como a luta por uma ecologia social.

O senhor acredita ter um papel na eleição de 2022? Qual? 

Eu não sou mais dirigente do Partido Socialista. Tenho orgulho do que fiz pelo meu país, ainda que reconheça determinadas falhas, mas meu papel é contribuir para o debate de ideias, fazer propostas, expressar minhas convicções quando os pontos essenciais estão em questão e transmitir minha experiência às novas gerações.

*François Hollande, 66, Formado pela École des Hautes Études Commerciales de Paris e pelo Institut d'Études Politiques de Paris (Sciences Po), entrou para o Partido Socialista em 1979. Foi deputado pelo departamento de Corrèze e prefeito da capital, Tulle. Foi o sétimo presidente da quinta República Francesa.


Carlos Andreazza: A era dos xerifes

Os únicos crescimentos em V hoje no Brasil são o da presença do Centrão no governo e o do recurso à Lei de Segurança Nacional. Herança do estado de direito segundo a ditadura militar, a LSN está na moda de novo. Não poderia ser diferente. Há muito vivemos sob o espírito do tempo autoritário, o principal condicionante da depressão política cujo maior produto (até aqui) é Jair Bolsonaro na Presidência. Aquele Messias que diz: “Enquanto vivo for, enquanto eu for o presidente, porque só Deus me tira daqui, eu estarei com vocês”.

Só Deus — nem uma eleição, nem um impeachment — o tira do trono; brada aquele que afirmou ter provas (jamais apresentadas) de que o pleito de 2018 fora fraudado.

Pode piorar.

Não se chega a um presidente abertamente golpista — um investidor no caos, que tanto mais prosperará quanto mais forem as instabilidades e os conflitos — sem um longo percurso de permissões à violência. Pode piorar. (Enquanto isso, Fux — num gesto de bravura institucional — telefonará para saber se o discurso golpista pode se materializar em golpe; de resto, como se a dilapidação autocrática da democracia liberal precisasse de tanques nas ruas.)

Pode piorar. O encadeamento do esquema é lógico. Se a mentalidade dominante é a autoritária, influentes serão — mais oferecidos estarão — os instrumentos arbitrários. E então temos um presidente que, citando estado de sítio diariamente, apropria-se do Exército, forja governadores como tiranos e prega o armamento da população — instigando a desobediência civil — como maneira de resistir aos usurpadores imaginários da liberdade.

Se a mentalidade prevalecente é a discricionária, mais tentados seremos às soluções exorbitantes. Encaixa-se nessa concepção prepotente —em que a boa causa legitima se diluírem as fronteiras entre acusação e juízo — a forma como o lavajatismo compreende a Justiça. E, se nos sentimos à vontade ante o uso de ferramentas abusivas — justiceiras — contra adversários, porque, afinal, são adversários (a linguagem vigente os torna inimigos), então teremos entrado na cancha em que gente como Bolsonaro, o que faz “qualquer coisa pelo povo”, joga em casa.

O bolsonarismo — fenômeno reacionário de natureza populista-autocrática — será o dono da bola se as regras forem as autorizadas pela Lei de Segurança Nacional. A LSN é um paraíso para a equiparação entre a pessoa do governante e a representação do Estado; do que se desdobra a fé antidemocrática, exercida por alpinistas como o ministro da Justiça, de que a proteção à honra de Bolsonaro equivalha à guarda do próprio Estado brasileiro. E daí — numa corrida por quem pode mais — não haverá limites.

Decorrem dessa distorção o inquérito intimidador contra Felipe Neto (referiu-se ao presidente como genocida) e a ação contra um tocantinense que veiculou outdoor em que chamava Bolsonaro de pequi roído; para ficar apenas em dois casos recentes. Ambos atos do mais óbvio exercício da liberdade de expressão. Atos cujos conteúdos, porém, podem, sim, ofender a honra; ofensas contra as quais existe o Código Civil. Ponto final. Tudo o mais sendo tentativa — pelo Estado — de amedrontar. Ou alguma dessas manifestações — por agressiva que seja — tem potencial atentatório contra a segurança do presidente? Ou alguma dessas expressões investe contra a ordem política republicana? Não.

As falas do deputado Daniel Silveira, sim. Enquadram-se na LSN. Falas de alguém com mandato, agente que se exprime desde dentro da democracia representativa, que atacou um Poder da República. Mas é muito perigoso que a captura do crime de Silveira e os gatilhos para a prisão do parlamentar (de flagrante muito duvidoso, depois improvisada numa espécie de flagrante permanente) baseiem-se numa lei que, como próprio a mecanismos autoritários, molda-se a qualquer ímpeto ressentido e vingador, cujo alcance se estica para chegar a qualquer um, a depender do mendonça de turno na esquina.

Está aberta a pista — e já bem movimentada, com convites a toda sorte de aventureiro — para o baile em que Bolsonaro e seus silveiras são os melhores e mais experientes dançarinos. E a culpa aqui — pelo salão encerado e escancarado — é compartilhada entre Congresso e Supremo.

Da parte do Parlamento, porque ainda não jogou no lixo a LSN, em cujo espaço deveria erguer uma robusta legislação de defesa do estado democrático de direito — um marco destinado a tipificar os crimes contra a democracia e esclarecer os modos como um senador ou deputado, sem mais meios de deturpar a liberdade de se expressar, podem ser presos, inclusive provisoriamente, e cassados; com o que, ademais, se valorizaria o espírito republicano da imunidade parlamentar.

Da parte do STF, porque tem origem no tribunal o revigoramento da LSN, a excrecência que ancora o inquérito dito das Fake News, aquela doença totalitária, um enclave censor — já censurou uma revista — baixado de ofício e sem objeto investigado definido, ali onde tudo cabe, por meio do que o Supremo se impõe ao mesmo tempo como vítima, investigador, promotor e julgador.

Um péssimo exemplo. Que atiça qualquer empoderadinho com distintivo. Chama os revanchistas e oportunistas a expor os dentes. E desbasta o terreno em que a barbárie fareja as carnes. Aí está. Vai piorar.