Day: dezembro 20, 2020
Affonso Celso Pastore: O grau de incerteza na economia
Coube ao presidente do BC dizer que a vacina custa menos do que a ajuda emergencial
Não basta que existam vacinas com eficácia comprovada. Para salvar vidas e restabelecer a normalidade da economia, é preciso vacinar 100% da população no prazo mais curto possível, como já está ocorrendo na Europa e nos EUA. Infelizmente, em vez de agir com rapidez e eficiência, reduzindo o número de mortes e a incerteza, o governo se comporta como se o problema não existisse. É surpreendente, mas coube ao presidente do Banco Central, e não ao presidente da República, explicar que “a vacina custa menos do que uma ajuda emergencial”.
De fato, além de prolongar a crise sanitária a ausência de um plano eficiente de vacinação expõe a economia a nova desaceleração, aumentando a pressão para que ocorram mais gastos e aumente o desemprego, fechando-se um círculo vicioso que precisaria ser rompido. Mas meu propósito neste artigo não é expressar mais uma vez minha indignação pelo desrespeito do governo com a vida humana, e, sim, abordar como a elevada incerteza retarda a recuperação econômica.
A FGV constrói um índice de incerteza da economia. Quando ele está abaixo de 100, o grau de incerteza é baixo, o que significa que há uma elevada previsibilidade que é essencial para planejar os investimentos em capital fixo, que contribuem para o crescimento econômico. Observa-se que nas três recessões que precederam a “recessão da covid” sempre ocorreu uma forte queda da taxa de investimentos associada a elevações do índice de incerteza da economia para próximo de 130 pontos.
Na recessão de 2002, por exemplo, o risco de que o governo Lula não manteria o compromisso assumido por FHC, de gerar superávits primários suficientemente elevados para reduzir a relação dívida/PIB, provocou o aumento do índice de incerteza ao lado de uma queda da taxa de investimento de 18% para 16% do PIB. Porém, a rápida adesão do governo às metas de superávits primários derrubou o índice de incerteza abaixo de 100, ocorrendo uma elevação de dois pontos porcentuais na taxa de investimento e uma rápida recuperação da economia. Na crise de 2008, o índice de incerteza também se elevou acima de 130, e a taxa de investimentos caiu de 20% do PIB para 18%. Foi uma recessão curta que também se encerrou com a rápida recuperação dos investimentos associada à queda do índice de incerteza abaixo de 100.
Precedida pela malfadada experiência da “nova matiz macroeconômica”, em 2014 iniciou-se uma recessão que durou até o final de 2016. Embora desta vez o pico do índice de incerteza também tenha atingido em torno de 130, manteve-se persistentemente elevado – acima de 110 pontos – até o final de 2019 e, como não poderia ser diferente, a taxa de investimentos manteve-se em nível histórico de baixa. Contrariamente às duas recessões anteriores, cuja recuperação foi liderada pelo aumento da formação bruta de capital fixo, desta vez ela foi liderada pelo consumo, que não tem a mesma força propulsora, ou o mesmo “efeito multiplicador”, dos investimentos em capital fixo. Foram três anos consecutivos de crescimento do PIB a uma taxa média de apenas 1% ao ano, pouco acima da taxa de crescimento populacional, de 0,8% ao ano, mantendo deprimida a renda per capita.
Logo que a covid atingiu o Brasil, o índice de incerteza da economia saltou para 210 pontos, recorde absoluto da série. Recuou em seguida, mas vem se mantendo em 150 pontos, que é bem superior aos valores máximos anteriormente atingidos por este indicador. Com tal nível de incerteza, é literalmente impossível admitir que a retomada dos investimentos em capital fixo será uma força motriz da recuperação da economia em 2021. A exemplo do ocorrido na saída da longa recessão iniciada em 2014, teremos de nos beneficiar da recuperação do consumo, que além da esperança nos efeitos de uma suposta e questionável “desova” da assim chamada “poupança precaucional” terá de enfrentar os freios impostos pelo fim da ajuda emergencial a 66 milhões de pessoas, e uma elevada taxa de desemprego.
Os dados mais recentes confirmam que a “recessão da covid” foi bem menor do que se temia, já que não se imaginava tamanho estímulo fiscal, provocando “apenas” uma contração entre 4% e 4,2% do PIB. Mas para crescer acima de 4% em 2021, que é apenas o efeito estatístico herdado de 2020, é preciso reduzir o grau de incerteza da economia, o que exigiria vacinação rápida da população e o delineamento de uma estratégia de crescimento. Com este governo, há pouca ou nenhuma esperança que isto ocorra.
*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.
Lourival Sant'Anna: Sem política externa
Governo não moveu uma palha para evitar a perda do poder de voto do Brasil na ONU
Em seu livro de memórias Promessa de Pai, o presidente eleito Joe Biden reflete sobre o papel central das relações pessoais na política em geral e na política externa em particular.
“Acredito que toda política é pessoal porque, no fundo, a política depende de confiança, e a menos que você possa estabelecer uma relação pessoal, é terrivelmente difícil construir confiança”, escreve Biden. “Isso é especialmente verdadeiro em política externa, porque pessoas de países diferentes normalmente sabem pouco umas sobre as outras, e têm pouca história e experiência compartilhadas.”
Durante a campanha de 2016, Donald Trump ameaçou não cumprir o acordo de defesa mútua com o Japão, argumentando que o país se tornara rico o suficiente para não depender do contribuinte americano para sua proteção. Essa posição representava uma ameaça existencial para o Japão. A Constituição do país proíbe suas forças militares de executar ações ofensivas (e portanto dissuasivas), por exigência justamente dos EUA, que entraram na 2.ª Guerra depois do ataque japonês a Pearl Harbour, e das outras potências aliadas.
Além disso, o presidente americano retiraria os EUA da Parceria Trans-Pacífico, desenhada por seu antecessor, Barack Obama, para isolar a China e estreitar as relações comerciais com as outras economias do Pacífico, sobretudo o Japão. E ainda ameaçava sobretaxar os produtos japoneses.
Trump representa o oposto da cultura japonesa, que valoriza a discrição, a modéstia e o comedimento. O então primeiro-ministro, Shinzo Abe, não tinha nenhum motivo para se sentir feliz com sua eleição. Mas tinha um país para proteger da rivalidade da China e das duas Coreias.
Abe foi o primeiro governante a se reunir com Trump, apenas 11 dias depois das eleições americanas. Seguiram-se muitos encontros. Abe se tornou parceiro de golfe de Trump. Lustrou seu ego. Foi o governante com o maior número de reuniões com o presidente americano.
Trump se comprometeu com a defesa do Japão e as disputas comerciais se resolveram com o tempo. Abe é um nacionalista de direita, mas nutriu, antes disso, excelente relação com o governo Obama. Ele se ajustou à realidade, mirando os interesses nacionais do Japão.
Como Abe em 2016, o presidente Jair Bolsonaro enfrenta agora um sério contencioso com o presidente eleito dos EUA, que durante a campanha disse que imporia sanções ao Brasil por causa do desmatamento da Amazônia. Bolsonaro dobrou a aposta, falando em “pólvora quando acaba a diplomacia”, foi o penúltimo governante a reconhecer a eleição de Biden (à frente só de Kim Jong-un, da Coreia do Norte), e agora seu governo anuncia que, até a posse dia 20 de janeiro, os contatos serão só na esfera diplomática.
Se o secretário de Relações Exteriores da Câmara, Alex Manente, não tivesse lido na imprensa que o Brasil perderia o poder de voto na ONU a partir de 1.º de janeiro, por inadimplência, o Congresso teria entrado em recesso sem destinar recursos para pagar a parcela mínima da dívida - US$ 113 milhões, equivalente a uma anuidade.
Manente consultou o chanceler Ernesto Araújo sobre a questão no dia 17 de novembro. Araújo respondeu no dia 10, detalhando as dívidas do Brasil com organismos multilaterais, incluindo entidades ligadas ao agronegócio, que somam R$ 2,8 bilhões. Na quinta-feira, penúltimo dia de sessão do Congresso antes do recesso, foi aprovada a destinação de R$ 917 milhões, sem qualquer dificuldade: 317 votos a favor e 2 contra.
O governo não moveu uma palha para evitar a perda do poder de voto na ONU. Portanto, não é que ele prefira o multilateralismo em detrimento das relações bilaterais, o que em si seria um erro, já que ambos são complementares e não excludentes. Simplesmente, o Brasil não tem uma política externa.
Vinicius Torres Freire: Como pode ser a vida depois das primeiras vacinas de Covid-19
Se vacinação e distanciamento funcionarem, vida passa a melhorar no meio do ano
Em abril, o número de mortes por Covid-19 em São Paulo deve começar a cair graças à vacina, se der certo o plano do governo paulista. Com base em premissas otimistas, a vacinação pode derrubar o morticínio em 64%. Atualmente, morrem 154 pessoas por dia no estado; em abril, morreriam então mais de 50 (no início de novembro, eram 85 mortes diárias).
Os números importam, mas dizem pouco sobre como pode ser a vida depois da primeira onda de vacinação: ainda difícil. Até 22 de março, terão sido vacinadas pessoas com mais de 60 anos, gente da saúde, indígenas e quilombolas, nove milhões de pessoas, apenas um quinto da população.
Mas, com vacina e com os cuidados de distanciamento que tomávamos em outubro, poderíamos reduzir o número de mortes diárias à casa da dezena em meados de 2021. Se a Coronavac também evitar contágios, a menos ainda.
As vacinas derrubariam o número de mortes em abril porque em grande parte seriam aplicadas no grupo que padece mais da doença. Cerca de 77% dos mortos em São Paulo tinha 60 anos ou mais. Quase 0,5% dessa população morreu de Covid-19, uma pessoa em duzentas, um horror.
A hipótese otimista depende de premissas esperançosas sobre taxa de vacinação e da eficácia da Coronavac.
Supôs-se que a eficácia dessa vacina seja de 86%, similar à da sua prima Sinopharm, número até agora não publicado com rigor técnico, porém. Supôs-se ainda que sua efetividade na vida real seja idêntica à da eficácia na fase de testes. Supôs-se também, de modo heroico, que a Coronavac seja aplicada em tantos idosos quanto aqueles que receberam a vacina de gripe no ano passado (97,6%, em São Paulo). Mas Jair Bolsonaro faz campanha criminosa de desmoralização da vacina. Pode ser que a adesão caia para 75%.
Eficácia e efetividade de 86% significa que uma de cada sete pessoas vacinadas estará sem proteção. Os hospitais ficarão menos cheios, mas o risco individual ainda será relevante.
Por eficácia entende-se por ora a capacidade da vacina de proteger as pessoas dos efeitos graves da doença. Não se sabe se as vacinas disponíveis evitam (ou limitam) a transmissão. Cientistas acreditam que, em alguma medida, as vacinas em geral possam limitar o contágio. Isto é, fazer com que o vacinado e infectado espalhe menos o vírus. Assim, mesmo sem terem sido vacinadas, menos pessoas adoeceriam, tudo mais constante. Por tabela, haveria menos padecimento econômico.
Tão cedo não haverá informação sobre isso. Será preciso acompanhar grupos de vacinados por uns quatro meses, fazendo testes de contaminação algo complicados.
Em suma, em abril a vida ainda estará prejudicada. Para diminuir o prejuízo, será preciso vacinar o grupo de 40 a 59 anos, que conta quase 20% das mortes (e equivale a 27,5% dos paulistas).
A fim de conter a tragédia educacional, social e psicológica do fechamento das escolas, talvez seja preciso vacinar os 470 mil professores do ensino básico (e quantos mais funcionários de apoio?). Não haveria vacina bastante na primeira rodada. Uma segunda rodada de mesmo tamanho e velocidade da primeira estaria completa apenas em fins de maio.
Até abril ainda estaremos sujeitos a um aumento pavoroso do número de mortes. Até agora, não temos vacina. Assim que tivermos, não podemos dar ouvidos a genocidas. Temos de nos vacinar tanto quanto nas campanhas antigripe e seguir os cuidados que em outubro ajudaram a reduzir o morticínio. Com menos casos, talvez enfim possamos testar, rastrear e isolar os doentes.
Há jeito de dar cabo da peste.
Hélio Schwartsman: Guerra, militares e boas histórias
Se desempenho de oficial à frente da Saúde equivale ao de nosso Exército, então Bolívia pode conseguir saída para oceano Atlântico
Na tentativa de entender melhor a cabeça dos militares, que ocupam espaço cada vez maior no governo brasileiro, comprei, baixei e comecei a ler "War" (guerra), da historiadora Margaret MacMillan. Não me arrependi.
A tese central da autora é simples. A guerra é muito mais central para o ser humano do que estamos dispostos a admitir. E ela não serve só para matar gente. Muitos dos avanços científicos, tecnológicos e até de organização da sociedade resultaram de conflitos. O forte do livro, porém, não são teorias, e sim as boas histórias que conta sobre guerras, militares e os que teorizaram sobre isso.
Examinemos o caso da intendência. O general alemão Erwin Rommel não foi nada ambíguo em relação ao que achava dela: "A condição essencial para um exército ser capaz de suportar batalhas é um estoque adequado de armas, combustível e munição. Na verdade, as batalhas são travadas e vencidas pelos oficiais de intendência antes de os tiros serem disparados".
E, se sempre foi vital garantir armas a guerreiros, a intendência ganhou ainda mais importância nos conflitos modernos. Foi a introdução de serviços de higiene, como a lavanderia, na 1ª Guerra que fez com que, pela primeira vez, doenças não causassem mais baixas que o fogo inimigo.
A intendência alterou a natureza do conflito, já que permite que ele tenha duração indeterminada. Nas batalhas antigas, a peleja não podia ir além da comida disponível nas imediações. Pior, ao fazer a ligação entre a capacidade de produção de um país e sua performance na guerra, a logística borra a distinção entre alvos legítimos e ilegítimos. O operário civil de uma fábrica de uniformes pode ser abatido?
Bolsonaro entregou o Ministério da Saúde a um oficial de intendência. Se seu desempenho à frente da pasta é representativo do de nosso Exército, então a Bolívia poderá conseguir sua tão sonhada saída para o mar, pelo Atlântico...
Bruno Boghossian: Bolsonaro acena a policiais e militares recém-formados em busca de afinação política
Só em dezembro, presidente foi a seis cerimônias de formação e visitou alunos de um curso da Abin
Jair Bolsonaro participou de seis cerimônias militares e policiais só em dezembro. Foram formaturas de aspirantes das Forças Armadas, a conclusão do curso de delegados da PF e um evento de soldados da PM do Rio. Como bônus, o presidente ainda visitou alunos de pós-graduação da Abin, no início do mês.
Não fosse a frequência de compromissos (um a cada três dias), não haveria nada particularmente espantoso na agenda. Afinal, o presidente fez carreira como um sindicalista dessas categorias e manteve o perfil depois de chegar ao Palácio do Planalto. Esses eventos, no entanto, cumprem uma função adicional.
Os acenos de Bolsonaro têm todas as características de um trabalho para costurar uma coalizão política com integrantes das forças militares, das polícias e dos órgãos de inteligência. Nesse movimento, o presidente investe em agentes e oficiais em formação –grupos em que seus impulsos radicais costumam ter mais aderência do que nas cúpulas.
Na sexta (18), Bolsonaro se sentiu confortável o suficiente para jogar 845 policiais recém-formados contra jornalistas, que ele trata como inimigos pessoais. "Não se esqueçam. Essa imprensa jamais estará do lado da verdade, da honra e da lei. Sempre estará contra vocês. Pense dessa forma antes de agir", discursou.
Para conquistar a simpatia, o presidente oferece prestígio, alinhamento de discurso, abertura de concursos e apoio financeiro. No último item, estão desde a proteção dos orçamentos dos órgãos e a blindagem de categorias na reforma da Previdência até promessas miúdas. Num evento recente, ele pediu a parlamentares que dobrassem a diária de soldados que trabalham em obras públicas.
Em troca, Bolsonaro conquista uma afinação política dentro de instituições que deveriam se manter independentes. Em março, a ameaça de motins policiais pelo Brasil guardava uma sintonia nítida com o bolsonarismo. Na última segunda (14), os novos delegados da PF chamaram o presidente de mito e se referiram a ele como "instrumento de Deus".
Janio de Freitas: Os mortos de um e os mortos de outro
A última semana, como um início de cerco a Bolsonaro, deu-lhe os ares e os atos de desespero
“Periculosidade social na condução do cargo”. Uma qualificação judicial que parece criada para resumir as razões de interdição de Bolsonaro.
Embora a expressão servisse ao ministro Og Fernandes (STJ) para afastar o secretário de Segurança da Bahia, ajusta-se com apego milimétrico a quem incentiva a população a riscos de morte ou sequelas graves, com a recusa à prevenção e ao tratamento científico.
Já em seu décimo mês, e sem qualquer reparo das instituições que, dizem, “estão funcionando”, a campanha de Bolsonaro e as medidas de seus militares da Saúde chegam ainda mais excitadas e perigosas ao seu momento crucial.
Quem observou os movimentos reativos que o caracterizam por certo notou que é também dele a vulgar elevação da agressividade quando o medo, a perda de confiança, o pânico mesmo, são suscitados pelas circunstâncias. A última semana, como um início de cerco a Bolsonaro, deu-lhe os ares e os atos de desespero.
O confisco da vacina Sinovac-Butantan pelo governo federal, toda a vacinação concentrada no militarizado Ministério da Saúde, a exigência de responsabilização do vacinado por hipotéticos riscos foram alguns dos foguetes hipotéticos que mostravam um Bolsonaro se debatendo, aturdido. Nem a liberação total para armas importadas abafou a onda crítica.
A revelação de participações da Abin na defesa de Flávio Bolsonaro (feita por Guilherme Amado na Época), apesar da rápida e óbvia negação da agência e do general Augusto Heleno, desarvorou Bolsonaro.
Estava em mais uma de suas fugas reeleitoreiras de Brasília, em desavergonhadas advertências de deformações ridículas em vacinados, quando o Supremo desmontou suas trapaças contra a liberdade de ação dos estados e municípios na pandemia.
E, boa cereja, a advogada Luciana Pires confirmou o recebimento de instruções da Abin para a defesa de Flávio, um truque para anulação do inquérito.
A explosão, incontível, não tardou. Na mesma quinta (17), Bolsonaro investe contra a imprensa, atiça as PMs contra jornalistas. Em fúria, faz os piores ataques aos irmãos donos de O Globo. Sem apontar indícios das acusações.
Se verdadeiras, por que não as expôs, para uma CPI, quando na Câmara representava os “militares anticorrupção”? Ou, presidente, não determinou o inquérito, como de seu dever? Nos dois casos, o silêncio é conivência criminosa. Sendo inverdadeiras as acusações, desta vez feitas a pessoas identificadas, sua entrada no Código Penal é pela mesma porta, a dos réus.
O gravíssimo uso da Abin, entidade do Estado, para proteger Flávio Bolsonaro e o desvio de dinheiro público, caiu em boas mãos, as da ministra Cármen Lúcia no Supremo. Troca de vantagens não haverá, medo não é provável.
Isso significa atos mais tresloucados de Bolsonaro. E um problema para e com os militares que, no governo, em verdade são a guarda pessoal de Bolsonaro.
Não só, porque o general Augusto Heleno, o Heleninho sempre protegido e bem situado, está comprometido dos pés à cabeça. A distância pode ser pequena, mas bastante para o autoritarismo militar sacudir a pouca poeira que resta.
A propósito, a menção ao general Heleno no artigo anterior o levou a vários adjetivos insultuosos a mim, concluindo por me dizer “pior como ser humano”. Essa expressão, ser humano, me lembrou uma curiosidade de muitos e que o general é o indicado para esclarecer: quantos seres humanos mortos pesam em suas costas, pela mortandade que ordenou sobre a miséria haitiana de Cité Soleil?
A ONU pediu ao governo brasileiro sua imediata retirada de lá, exclusão sem precedente nas tropas de paz, e a imprecisão sobre as mortes, dezenas ou centenas, perdura ainda.
Já no caso da Abin, pode-se desde logo esperar algumas respostas interessantes. E cáusticas.
O CERTO E O OUTRO
Diretor do Butantan, Dimas Covas venceu a divergência sobre o surgimento das vacinas. Militares da Anvisa só a previam para meado de 2021, até mesmo só no segundo semestre. Muitos pesquisadores e médicos. Dimas esteve só, ou quase, antevendo a vacina ainda para este ano.
Por fim, o Natal vem aí, sim, mas certifique-se. Na quinta, o general-ministro Pazuello disse três vezes, sempre com a segurança de suas estrelas, que “janeiro é daqui a 30 dias”. E depois, sobre a aplicação da vacina: “A data precisa é... janeiro”.
Sem dúvida, é um grande general, como disse Bolsonaro ao apresentá-lo.
Elio Gaspari: Fritada de morcego no menu
Ganha uma fritada de morcego do mercado chinês de Wuhan quem for capaz de mencionar uma só fala de Jair Bolsonaro que tenha contribuído para o bem-estar da saúde nacional desde o começo da pandemia do coronavírus.
Mesmo quando ele fez um arremedo de conserto, dizendo que, “se algum de nós extrapolou ou até exagerou, foi no afã de buscar solução”, estava iludindo a boa-fé do público. Um dia antes ele havia dito que “não vou tomar a vacina e ponto final”.
A “gripezinha” e a cloroquina tornaram-se símbolos do amargo folclore do capitão. A eles juntam-se outros, como o estímulo ao desmatamento, as “rachadinhas” de Fabrício Queiroz e o orgulho de seu chanceler ser um “pária” no cenário internacional. Nunca na História do Brasil o trem parou e o maquinista queria andar para trás. Ele parava, mas se discutia quando voltaria a andar para a frente.
Há em Bolsonaro uma perigosa mistura de ignorância pessoal com autoritarismo político. Ele pode ter acreditado na gripezinha ou mesmo nos efeitos milagrosos da cloroquina. Chamou a possibilidade de segunda onda de “conversinha”, e na quinta-feira (17) voltou-se ao registro de mil mortes por dia. Talvez tenha apenas apostado, mas nesse caso estaria apenas exercitando a ignorância de outra maneira. O perigo mora na mistura com o mandonismo.
Bolsonaro irradiou esse comportamento pela sua administração, produzindo apenas uma bagunça arrogante. Por exemplo: em outubro o general-ministro Eduardo Pazuello disse que “a vacina do Butantan será a vacina do Brasil”. No dia seguinte, Bolsonaro acordou cedo e respondeu no Facebook que a vacina “NÃO SERÁ COMPRADA”. Como se viu, será comprada e oferecida, pois o capitão ficou preso num cadeado do governador João Doria.
O general Pazuello disse a parlamentares: “Não falem mais em isolamento social”. Pensou que falava a uma plateia de tenentes. Ele perguntou “para que essa ansiedade, essa angústia?” e depois explicou que sua frase foi tirada do contexto, desculpando-se. É o caso de se perguntar qual medicação está tomando desde que teve alta da Covid.
Já um diplomata de carreira designado para embaixada junto à Organização das Nações Unidas em Genebra recusou-se a responder a uma pergunta da senadora Kátia Abreu dizendo que não estava “mandatado” para isso. Tomou um contravapor do senador Major Olimpio e perdeu o cargo. Foi rejeitado por 37 votos contra 9. (Afora o mau português, podia ter respondido de outra forma, mesmo sem dizer nada.)
Trabalhando com um chanceler que se orgulha de ser “pária”, o embaixador levou a excentricidade para o lugar errado. A pandemia expôs a bagunça diante de uma dificuldade que daqui a pouco terá matado 200 mil pessoas. Os brasileiros ligam as televisões e veem cenas de imunização nos Estados Unidos, França, Inglaterra e Arábia Saudita. Como lembrou Fernando Gabeira, só em Pindorama a vacinação virou tema de debate.
EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota, nunca tomou vacina nem vai tomar. Por isso também acha que o Supremo Tribunal Federal tomou “uma medida inócua”.
O que o cretino não entendeu foi outra frase de Bolsonaro: "Quando se fala em vacinação e saúde, tem que ter uma hierarquia".
Eremildo torce para que o presidente explique como funcionará essa hierarquia e se dispõe a ir de casa em casa levando cloroquina para quem ficar de fora.
Eu apalpo, você fica nervosa
O deputado Fernando Cury (Cidadania) apalpou sua colega Isa Penna (PSOL) ao vivo e a cores diante da Mesa Diretora da Assembleia Legislativa de São Paulo. (Ela estava de costas.)
Depois do episódio, o presidente da Casa, Cauê Macris, disse que não poderia liberar as imagens. Pressionado pela deputada com um discurso e pelas lideranças partidárias, mudou de ideia.
Casado, Cury foi à tribuna, reiterou um pedido de desculpas e disse que jamais tomou intimidades indevidas com mulher alguma. O doutor tem o benefício da dúvida e empenhou sua palavra.
A porca torce o rabo quando se vê que, no dia seguinte, Cury foi à tribuna e, explicando-se, disse que depois de ter sido apalpada, sua colega “estava nervosa”, “ficou brava” e diante de uma nova tentativa de pedido de desculpas, “ela começou a gritar, a me xingar”.
Certo mesmo é que Fernando Cury se defende recriminando a conduta de uma mulher, nervosa, brava, xinguenta e gritona. Está tudo na rede: o vídeo da apalpada, o discurso da deputada e a explicação de Cury.
Forster e Biden
Os trechos conhecidos dos telegramas mandados pelo embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster, depois da vitória de Joe Biden ilustram a bagunça que o orgulhoso pária Ernesto Araújo impôs à Casa do Barão.
Forster foi aplicado ao mostrar que Donald Trump pretendia contestar a vitória de Biden. Nesse sentido, fez seu serviço. Em nenhum momento o embaixador sugeriu que Bolsonaro cumprimentasse o vencedor. Poderia ter feito, mas também não sugeriu o contrário.
Os Estados Unidos não são uma ilha perdida, para que o cumprimento ao eleito dependa de sugestão do embaixador. Quem levou 38 dias para reconhecer a vitória de Biden foi Jair Bolsonaro. Forster foi para a linha de tiro pelas convicções bolsonaristas que o levaram ao cargo.
O PREÇO DA XENOFOBIA
A Alemanha bloqueou a entrada da Turquia na Comunidade Europeia por diversos motivos, entre os quais o discreto racismo de uma parte de sua população contra imigrantes.
Há décadas a Alemanha não fazia uma boa figura no mundo da tecnologia como a que conseguiu agora com a vacina desenvolvida pelo seu laboratório BioNtech, para a Pfizer americana. Sediado em Mainz, foi criado por um casal de turcos. Ele, nascido em Iskenderun, ela, filha de uma médico que emigrou.
PROMOÇÕES MILITARES
A bagunça bolsonariana funciona até quando o capitão volta atrás. Três dias depois de ter acabado com as promoções por antiguidade de oficiais aos postos de coronel ou capitão de mar e guerra, ele revogou o ato. O decreto revogado não era um jabuti.
A ideia do fim da promoção por antiguidade nessa patente ampara-se em bons argumentos e foi proposta por autoridades militares que entendem do assunto.
A piada tem um século, mas, quando um oficial disse ao major Joseph Veller, da missão militar francesa, que um colega aprenderia com a experiência, ele respondeu: “O burro do duque de Saxe assistiu a mais de cem batalhas e continuou sendo um burro”.
CONTEM OUTRA
Há algo no ar além do vírus. Quatrocentos empresários tinham marcado para a quinta-feira um almoço em homenagem ao presidente Jair Bolsonaro e seu antecessor, Michel Temer.
No domingo o ágape foi cancelado, diante do aumento do número de casos de Covid. Contem outra. Dias antes do cancelamento, quando os convites circulavam, pela média móvel semanal estavam morrendo 544 pessoas.
BOLSONAVAC
O governador João Doria continua sob os efeitos de sua Bolsonavac. Em uma semana, limitou-se a dar uma breve resposta às provocações de Bolsonaro. Preferiu presenciar o desembarque de vacinas.
Bernardo Mello Franco: Frente contra Bolsonaro na Câmara aponta caminho para 2022
Demorou, mas Rodrigo Maia enfim começou a mover as peças no tabuleiro da sucessão na Câmara. Na sexta-feira, o deputado anunciou um bloco de 11 partidos para enfrentar o candidato do governo. Conseguiu algo que até outro dia parecia impensável: unir na mesma foto os presidentes de PT e PSL.
O grupo redigiu um manifesto para justificar a aliança heterogênea. “Esta não é uma eleição entre candidato A ou candidato B. Esta é a eleição entre ser livre ou subserviente; ser fiel à democracia ou ser capacho do autoritarismo; ser parceiro da ciência ou ser conivente com o negacionismo”, afirma o documento.
O bloco superou as diferenças em nome de um objetivo comum: proteger as instituições de um governo que se esforça para corroê-las. “Certamente, Ulysses Guimarães estaria deste lado”, arriscou o presidente da Câmara. O Senhor Diretas teria notado os riscos há mais tempo, mas cada um sabe o que fez em 2018.
Além de ter votado em Bolsonaro, Maia ajudou a sustentá-lo no poder. Ele liderou a aprovação da reforma da Previdência, que manteve o apoio do mercado ao presidente. Depois sentou-se sobre uma pilha com mais de 50 pedidos de impeachment. A blindagem teve o efeito de um salvo-conduto. O capitão continuou a cometer crimes de responsabilidade em série, ameaçando as instituições e sabotando o combate à pandemia.
Ainda assim, a Câmara travou as pautas mais obscurantistas do Planalto. Impediu o liberação geral das armas, vetou projetos contra o meio ambiente, preservou as terras indígenas e protegeu direitos das mulheres e das minorias. Essas barreiras tendem a sumir se Bolsonaro emplacar o sucessor de Maia.
Desengavetar a agenda de costumes é vital para a reeleição de Bolsonaro. Apesar de ter se rendido ao centrão, o governo precisa manter o clima de radicalização política no ar. A retórica anticorrupção perdeu força após a deserção do soldado Moro e a prisão do sargento Queiroz. Agora o capitão depende de temas como aborto, ideologia de gênero e excludente de ilicitude.
No papel, a arca de Maia reúne votos suficientes para vencer o governista Arthur Lira. No entanto, siglas como PSL e PSB já embarcaram divididas. O presidente da Câmara ainda precisa definir seu candidato, e a votação secreta aumenta o espaço para traições.
A oposição piscou para Lira, mas parece ter compreendido o perigo de entregar as chaves da Câmara a Bolsonaro. Se for bem sucedido, o bloco contra o autoritarismo pode apontar um caminho para 2022. Ninguém aposta numa frente tão ampla que seja capaz de unir esquerda, centro e direita civilizada. Mas é possível voltar a pensar numa grande aliança pela democracia no segundo turno.
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O embaixador Roberto Abdenur, entrevistado na coluna de quinta-feira, pede um registro sobre as suas críticas a Nestor Forster, atual embaixador do Brasil nos EUA. “Ele ligou para reclamar dos meus comentários. Tivemos uma conversa amistosa e concluí que fui injusto com ele”, diz Abdenur.
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Merval Pereira: Machismo degradante
Há muito tempo não via uma cena tão degradante quanto a que mostra o deputado Fernando Cury, da Assembleia Legislativa de São Paulo apalpando acintosamente sua colega Isa Penna em frente à mesa diretora da Casa. Não se trata nem mesmo de uma questão de tendência política, pois o deputado-cafajeste era do Cidadania, um partido da esquerda moderna que, por ser uma agremiação que zela pela democracia e pelos direitos femininos, o expulsou de suas hostes.
Cury abraçou sua colega por trás e apalpou seus seios, tendo sido repudiado duas vezes, sem que se veja no vídeo nenhum tipo de atitude tomada pelo deputado que presidia a sessão naquele momento, à frente de quem a cena ultrajante ocorreu. A deputada Isa Penna diz que ele estava bêbado quando se aproximou, e é possível que estivesse, porque somente fora de si poderia ter protagonizado, no plenário da Assembleia, uma cena tão nojenta.
Quando está longe de todos, do que será capaz esse sujeito? Há um detalhe no vídeo que é bastante sintomático. Um deputado de terno cinza tenta pará-lo quando Cury se dirige à mesa onde já estava a deputada. Esse deputado sabia exatamente o que seu colega intencionava fazer, provavelmente porque o avisou antes, jactando-se do que faria.
O fato é daqueles que dão vergonha alheia a todo homem que não se acha com o direito de assediar uma mulher simplesmente por ser do sexo masculino. Essa masculinidade tóxica faz com que a cada fato desses mais seja demonstrada a necessidade da punição rigorosa dos abusos sexuais, sem o quê o Brasil continuará sendo terra de trogloditas onde um comportamento regressivo, animalesco, tem permissão de existir.
A maior prova disso é que nada menos que dez parlamentares foram ao gabinete do deputado assediador prestar-lhe solidariedade, não se sabe bem a troco de que. A deputada Isa Penna já fora chamada de “vadia”, “vagabunda” e “terrorista” quando era vereadora, pois o ambiente parlamentar no Brasil, de maneira geral, é daqueles dominados por homens brancos heteros, cuja maioria ainda vive séculos de atraso mental.
A tal ponto que a obrigatoriedade legal de dar espaços às mulheres candidatas transformou-se em fonte para falcatruas no financiamento eleitoral. Mulheres não representativas e sem chance alguma de serem eleitas são escolhidas apenas para serem usadas como “laranjas” para o uso do fundo eleitoral. Transformam as mulheres, e transformarão outras minorias, em meros instrumentos de trambiques com o dinheiro público, sem nenhum interesse em diversidade na representação partidária.
O machismo é fato tão banal que o atual presidente Jair Bolsonaro foi capaz de agredir a deputada sua colega Maria do Rosario, verbalmente, afirmando que não a estupraria porque ela não merecia, e não sofreu nenhuma punição.
Outro desdobramento dessa praga brasileira revelou-se no julgamento de uma mulher agredida pelo marido em mais um episódio de violência doméstica tão comum na nossa sociedade. Tão relevante quanto a gravidade do episódio em si é o fato de o caso ter sido denunciado pelo site Papo de Mãe, da jornalista Mariana Kotscho, mais uma expressão da atuação feminina no combate ao machismo estruturando sociedade brasileira.
Um juiz da Vara de Sucessões de São Paulo, cujo nome não foi revelado por o caso estar em segredo de Justiça, fez comentários escabrosos durante uma audiência, sempre de caráter machista, indicando qual seria sua tendência na decisão: “Vamos devagar com o andor que o santo é de barro. Se tem lei Maria da Penha contra a mãe, eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”, afirmou.
O juiz desmereceu a lei e criticou a mulher por registrar boletins de ocorrência contra o ex-marido, ameaçando-a com a perda da guarda dos filhos: “Ficar fazendo muito B.O. depõe muito contra quem faz. (...) “Qualquer coisinha vira lei Maria da Penha. É muito chato também, entende? Depõe muito contra quem…eu já tirei guarda de mãe, e sem o menor constrangimento, que cerceou acesso de pai. Já tirei e posso fazer de novo”.
A audiência foi gravada em vídeo, que está exibido no site Papo de Mãe para quem quiser constatar como o machismo arraigado na nossa sociedade faz com que juízes e deputados se sintam em condições de cometer absurdos, certos da impunidade.
Ricardo Noblat: Bolsonaro volta a atacar a imprensa e humilha seu filho Eduardo
“Você teve um voto. O resto foi meu”
Ao assumir a presidência da República em janeiro de 2019, a prioridade número um de Jair Bolsonaro era reeleger-se dali a quatro anos. Quanto ao resto, empurraria com a barriga.
Depois, à medida que seus três filhos zeros começaram a ser alvos de denúncias por corrupção, a reeleição passou a ser a prioridade número dois. Se não salvar os filhos, não se salvará.
É preciso, pois, desacreditar os autores das denúncias, especialmente a imprensa, que as divulga e pressiona os demais poderes a investigá-las a fundo.
A mais recente denúncia bateu diretamente à porta do gabinete presidencial no terceiro andar do Palácio do Planalto, e isso explica a escalada recente dos ataques de Bolsonaro à imprensa.
Ele reuniu-se com advogados do seu filho Flávio, acusado de embolsar dinheiro público à época em que era deputado estadual no Rio, com o propósito de ajudá-los no que fosse possível.
Estavam presentes o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e seu subordinado, o delegado Alexandre Ramagem, chefe da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).
Dois relatórios, mais tarde, enviados por Ramagem aos advogados, são a prova de que a Abin deu o caminho das pedras para que eles fossem bem-sucedidos em sua tarefa.
A descoberta de que isso aconteceu, pode configurar crime de responsabilidade praticado por Bolsonaro e, no limite, até custar-lhe o mandato, deixou o presidente da República apoplético.
Sua entrevista, ontem, ao canal do filho Eduardo no Youtube não contém nada de novo, mas é uma demonstração de como ele está fortemente incomodado com o episódio.
“Me chama de corrupto, vamos lá”, desafiou Bolsonaro referindo-se à imprensa. “Me chama de corrupto, porra. Não tem mais grana mole para vocês. Acabou a treta. O fim de vocês está próximo”.
“Imprensa canalha, não vale nada”, insistiu. “Não leiam jornais. É tudo um lixo. Vão para a internet. […] Ai do ministro se eu souber que [no seu local de trabalho] tem jornais”.
Como seria impossível ocupar mais de uma hora de entrevista somente falando mal da imprensa, Bolsonaro revisitou seu estoque de temas preferidos. Ao fazê-lo, repetiu as velharias de sempre.
Sobre a facada que levou em Juiz de Fora: o caso foi mal apurado porque Sérgio Moro era o ministro da Justiça. Líderes políticos da esquerda queriam matá-lo, e ainda querem.
Sobre o voto eletrônico: não confia nele e, por seus cálculos, mais de 70% dos brasileiros também não. Perguntou: “Em que país do mundo esse sistema foi adotado?”
Sobre tortura no período da ditadura militar de 64: “[Os que reclamam] não eram presos políticos, eram terroristas. E eram tratados [nos porões do regime] com toda a dignidade”.
Sobre as eleições municipais: “A imprensa falou que eu perdi. Quantos prefeitos eu tinha? Zero. Então vou dar uma de Dilma aqui: Eu não ganhei nem perdi”.
E sobre a pandemia: “Ela está chegando ao fim. A pressa da vacina não se justifica. Vão inocular algo em você. O seu sistema imunológico pode reagir ainda de forma imprevista”.
Por último, em meio a risadas, humilhou o filho ao trocar de posição com ele. Travou-se então o seguinte diálogo:
– Vamos ver se você está ficando inteligente. Você teve quantos votos nas últimas eleições? – perguntou Bolsonaro.
– Eu fui eleito [deputado federal por São Paulo] com 1.843.735 votos em 2018 – informou Eduardo.
– Não aprendeu nada. Você teve um voto. O resto foi meu.
Enquanto o pai gargalhava, o filho apenas retrucou:
– Você não acha que foi o meu trabalho?
Bolsonaro não respondeu.
Eliane Cantanhêde: Quem mente?
Brasil assiste à vacinação alheia, Maia avança na Câmara e Bolsonaro às voltas com Abin
Rodrigo Maia (DEM) ao centro, Gleisi Hoffmann (PT) à esquerda e Luciano Bivar (PSL) à direita, ao lado de presidentes e líderes de 11 partidos – todos eles, não à toa, de máscara – marcam não apenas a disputa pela presidência da Câmara em fevereiro de 2021, mas um movimento que significa o seguinte: para além das diferenças, a prioridade é combater um adversário comum. É preciso dizer qual?
Não se trata da união de todos na alegria e na tristeza, até que a morte os separe, e nem mesmo que estarão juntos numa mesma chapa em 2022 para enfrentar a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Mas comprova o quanto Bolsonaro é competente para criar inimigos, trocar de amigos e espicaçar os eleitores mais escolarizados e bem informados – logo, com mais capacidade de influenciar votos.
A eleição para a presidência da Câmara se transformou num embate direto e virulento entre Bolsonaro, que tem o Centrão, e Maia, cujo desafio era, e é, aglutinar desde a esquerda até a direita hoje refratária ao bolsonarismo. O foco da disputa recaiu sobre o Republicanos, presidido pelo pastor Marcos Pereira, e o bloco de PT, PSB, PCdoB e PDT. O resultado é mais que natural.
Pereira só aceitaria compor com Maia como candidato a presidente e fica mais confortável com o deputado Arthur Lira (PP), apoiado por Bolsonaro, que não está nem aí para a pauta econômica, reformas e privatizações, mas quer dobrar o Congresso em 2021 e 2022 para sua pauta pessoal, de costumes, armas e excludente de ilicitude, um denso elenco de retrocessos. E, objetivamente, o Republicanos é a sigla dos filhos de Bolsonaro e de seus candidatos derrotados às prefeituras de São Paulo, Celso Russomanno, e do Rio, Marcelo Crivella. Pereira e o partido caíram na rede certa.
Nas esquerdas, imperou a força da militância. Quando a bancada do PSB abanou asas para Lira/Bolsonaro, provocou uma rebelião nas redes, foi obrigada a recuar e deixou uma lição para os parceiros da esquerda: apoiar o candidato do Bolsonaro era uma fria. Assim, acabou liderando as esquerdas para o trilho racional. Não custa lembrar que a eleição é secreta, acordo com partidos não significa 100% dos seus votos e parte do PSB ainda balança, mas Maia vai indo bem.
Ele, que joga seu futuro e a aglutinação de forças da centro-esquerda à centro-direita para 2022, contra Bolsonaro, enfraqueceu-se com a tentativa de reeleição à presidência no tapetão do Supremo. Mas, depois da primeira carga de críticas, vem confirmando a habilidade política e superando obstáculos. Falta o nome do candidato, que afunila para Baleia Rossi (MDB-SP). Depois, é o tudo ou nada.
Após um hiato “paz e amor” num discurso lido, Bolsonaro culpou Maia pela falta do 13º para o Bolsa Família neste ano. Mirou no presidente da Câmara e acertou no ministro da Economia e no líder do governo. Maia chamou Bolsonaro de mentiroso e ameaçou por em votação, já, a MP que pode prorrogar o auxílio emergencial com R$600, estourando as contas públicas. Sem saída, Guedes foi “obrigado” a admitir que é impossível dar o 13º para o Bolsa Família e Barros eximiu Maia de culpa, dizendo que o governo é que não queria. Logo, o ministro e o líder confirmaram Maia: o presidente mentiu.
Enquanto isso... o Brasil assiste EUA, UE, Inglaterra, Canadá, Chile e até Arábia Saudita vacinando seus cidadãos e o presidente muito ocupado em outras frentes. Se usa a Abin a serviço da família presidencial, o delegado Alexandre Ramagem confirma indiretamente a suspeita de que iria para a PF com essa mesma missão. Se mentir, é falso testemunho. Se contar tudo, é explosivo. Isso fortalece, no Supremo e na opinião pública, as acusações de Sérgio Moro contra o presidente. O centro se articula para 2022 e acompanha tudo de camarote.
Carlos Melo: Saldo ainda mais negativo…
O saldo dos dois anos do governo Bolsonaro é trágico: da economia à política, da cultura aos exemplos que os líderes precisam expressar, quase nada do que se fez ou foi prometido pode ser aproveitado. Só não é pior porque muito do que se pretendeu fazer agravaria ainda mais a situação caso fosse efetivado, são os exemplos da pauta de costumes ou da agenda de Segurança Pública, compromissos do presidente com sua base mais fundamentalista e radical. Contudo, é claro, nada do que disse este parágrafo é consenso; e uma questão importante é compreender o porquê.
O presidente e seus aliados argumentam que o saldo negativo deve ser debitado da conta da oposição – que não existiu –, do espantalho de um “globalismo-comunista” (de ficção), da pandemia que paralisou o mundo em 2020. De fato, o ano foi marcante em todo planeta, em virtude da covid-19. Naturalmente, desse choque decorreram crises econômicas e sociais, tornando esse o período mais dramático desde a segunda guerra mundial, pelo menos. Mas, no Brasil, por inacreditável que pudesse parecer, o presidente e os seus conseguiram agravar a situação.
Acelerando o processo, a pandemia escancarou a miséria política nacional e revelou que o Brasil é um país que não apenas não tem governo, como há um grupo que imagina governá-lo, tornando o ambiente ainda mais caótico; fazendo das múltiplas crises questões de difícil superação, como que acreditando que para sair de um buraco é necessário cavar mais fundo. Um grupo que investe na desconstrução do país, sem saber o que edificar para proveito de uma sociedade mais ampla e moderna que seus acólitos.
Assim, o saldo de dois anos de governo revela com crueza algo muito pior do que promessas não cumpridas: 2020 encerra uma década perdida, uma década de desatinos e retrocessos, que chegou ao seu final com o país dirigido por um presidente da República incapaz, que, por conta do desconforto dessa situação, tem sido tratado pelas elites e pelas instituições como inimputável; um parente incômodo e desagradável que não pode ser colocado para fora da festa da família, pois, afinal, existem laços (políticos) que não se quer (ou não se pode) desatar. E que laços seriam esses?
A verdade é que Bolsonaro não está só. Embora evidente, o saldo negativo é tido por uma parcela (delirante) da sociedade brasileira como positivo, e assim o saúda e o defende, sendo irredutível no apoio ao desastre. São setores multifacetados: uns, vítimas da 4ª. Revolução, ressentidos com o Estado, com a democracia e a política que de fato os esqueceu ou os pune, na irredutibilidade da crise econômica, na precariedade do próprio Estado, na ineficiência dos serviços essenciais e das políticas públicas.
Outros que, por índole pessoal e cultural, trazem o gosto de sangue na boca e acreditam nas soluções fáceis e brutas, defendendo o uso irracional da força a partir de um mítico messias gestado no ventre da barbárie social e política. E ainda outros, enfeitiçados pelo canto do ultraliberalismo oco e improdutivo, quando confrontado com os desafios do século 21.
É preciso encarar os fatos, o levantamento mais profundo – que cruza desempenho governamental com dados de pesquisas de aprovação ao governo — demonstra que o saldo desses dois anos é ainda mais negativo do que a evidência das promessas não realizadas. Ele revela o desconforto de um nó político: Bolsonaro não demonstra desempenho administrativo, econômico, social e político que justifique a despesa dos cofres públicos consigo, seu grupo e sua família. Mas, expressando o caos e vocalizando o vazio, é representativo de uma década em que o país se perdeu e que custa a se reencontrar em vista fragmentação e do esfacelamento das demais forças políticas. E isso torna a todos responsáveis.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.