Day: dezembro 19, 2020

‘Projeto da frente democrática deve ser mantido’, diz José Álvaro Moisés

Em entrevista à revista da FAP de dezembro, professor da USP afirma que ‘bolsonarismo não vai se desmilinguir’

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O professor do Departamento de Ciência Política da USP (Universidade de São Paulo) José Álvaro Moisés diz que o projeto da frente democrática deve ser mantido, já que, segundo ele, a premissa é que “o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria”. “Isso é uma presunção em relação a um governo que não tem rumo, tem muitos defeitos e muitas vezes comete crimes de responsabilidade que quase potencializam seu impeachment”, afirma, em entrevista exclusiva concedida a Caetano Araújo e Vinicius Müller, publicada na revista Política Democrática Online de dezembro.

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Todos os conteúdos da publicação, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), são disponibilizados, gratuitamente, no site da entidade. Coordenador do Grupo de Trabalho sobre a Qualidade da Democracia do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, Moisés explica que o bolsonarismo não vai se desmilinguir por conta própria porque, segundo ele, seria como se os bolsonaristas abrissem mão de governar. “Isso não vai acontecer”, afirma.

O professor da Unesp avalia que existe hoje, no Brasil, um vácuo de lideranças democráticas e progressistas capazes de interpretar o momento e os desafios do país e que possam se opor com chances reais de vencer o presidente Jair Bolsonaro nas eleições de 2022. Ele é especialista em temas como transição política, democratização, cultura política e sociedade civil.

Moisés publicou diversos livros de análises políticas como “Os brasileiros e a democracia” (Ed. Ática, SP 1995),"Democracia e confiança: Por que os cidadãos desconfiam das instituições públicas?" (edUSP), “O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão” (2011), e "Crises da Democracia: O Papel do Congresso, dos Deputados e dos Partidos (2019), entre outros.

Na avaliação do entrevistado, o grande desafio da oposição para superar o bolsonarismo - tanto os partidos de centro-esquerda como os da esquerda - é o de se constituir em uma força com reconhecimento da sociedade para garantir a sobrevivência da democracia e, ao mesmo tempo, adotar estratégias adequadas para a retomada do desenvolvimento do País. De acordo com o cientista político, isso envolve o enfrentamento das desigualdades sociais e a necessidade de promover o crescimento econômico.

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O Estado de S. Paulo: Partidos de esquerda fecham apoio ao bloco de Maia

Siglas têm juntas 281 deputados; nome de candidato da frente ainda será decidido

Camila Turtelli, Anne Warth e Ricardo Galhardo, O Estado de S. Paulo

Numa ofensiva contra o Palácio do Planalto, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou nesta sexta-feira, 18,  a entrada de cinco partidos de esquerda no bloco que formou para a disputa do comando da Casa, marcada para 1.º de fevereiro. Agora, seu grupo conta com 11 legendas, que somam 281 deputados, mais do que os 257 necessários para um candidato se eleger. Não foi desta vez, porém, que Maia anunciou o nome do parlamentar que será o seu candidato.

A intenção de Maia é derrotar o deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), líder do Centrão que conta com o apoio do governo de Jair Bolsonaro. Lira tem o apoio de dez partidos, que somam 203 parlamentares.

A adesão da esquerda ao bloco de Maia foi puxada pelo PT, maior bancada da Câmara, com 54 deputados, que decidiu na noite de anteontem apoiar um nome do grupo liderado pelo atual presidente da Casa. Em 2019, a sigla decidiu não apoiar o deputado do DEM na disputa, o que lhe custou cargos no comando do legislativo.

Além do PT, PSB, PDT, PCdoB e Rede entraram no bloco que já tinha DEM, PSL, MDB, PSDB, Cidadania e PV. Como o voto para a presidência da Câmara é secreto, o apoio do partido não significa necessariamente que todos os deputados da sigla vão votar no mesmo candidato. A “traição” neste tipo de disputa, por sinal, costuma ser comum.

Maia disse que a tendência é o grupo definir um nome de centro-direita como candidato, mas não descartou a possibilidade de que ele saia, inclusive, do campo da esquerda. Os preferidos do presidente da Câmara são Baleia Rossi (MDB-SP) e Aguinaldo Ribeiro (PP-PB). “Este grupo que hoje se apresenta tem muitas diferenças, sim. Porque, diferente daqueles que não suportam viver no marco das leis e das instituições e que não suportam o contraditório, nós nos fortalecemos nas divergências, no respeito, na civilidade e nas regras do jogo democrático”, disse.

Ao lado dos líderes dos 11 partidos do bloco, Maia leu uma carta em defesa da democracia. Segundo ele, a Câmara ganhou projeção nos últimos anos por ter se tornado a “fortaleza da democracia no Brasil, o território da liberdade, exemplo de respeito e empatia com milhões de cidadãos brasileiros”.

Sem citar Bolsonaro, o presidente da Câmara acusou o governo de autoritarismo e citou Ulysses Guimarães, que presidiu a Casa em duas ocasiões: antes da ditadura militar, entre 1956 e 1958, e na redemocratização, entre 1985 e 1989. “Enquanto alguns buscam corroer e lutam para fechar nossas instituições, nós aqui lutamos para valorizá-las. Enquanto uns cultivam o sonho torpe do autoritarismo, nós fazemos a vigília da liberdade. Enquanto uns se encontram nas trevas, nós celebramos a luz”, disse. “Certamente, Ulysses Guimarães estaria deste lado aqui e talvez repetiria em alto e bom som: Eu tenho ódio e nojo das ditaduras.”

A carta do bloco de Maia ressalta a diferença entre os partidos do grupo e sustenta que ele é mais forte em razão dessas divergências. “Esta não é uma eleição entre candidato A ou candidato B. Esta é a eleição entre ser livre ou subserviente, ser fiel à democracia ou ser capacho do autoritarismo, ser parceiro da ciência ou ser conivente com o negacionismo, ser fiel aos fatos ou ser devoto de fake news”, diz.

Lira reagiu com ironia ao anúncio do bloco por Maia. “Meu projeto é claro e está posto. Mas eu queria saber uma coisa: quem é o candidato do Rodrigo Maia?”, postou em uma rede social.

A presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), disse que a adesão do partido ao bloco não significa apoio imediato às candidaturas preferidas por Maia. “Temos muito respeito pelos companheiros Aguinaldo e Baleia, mas a oposição construirá um nome para apresentar ao bloco também como alternativa”, disse.

Ela reconheceu que o bloco reúne partidos que divergem sobre várias pautas, sobretudo a agenda econômica. “Temos muitas diferenças e já travamos muitos embates nessa Casa, mas temos uma pauta que nos une, a defesa da democracia, das instituições e da liberdade dessa Casa”, acrescentou, ressaltando que o bloco espera ainda contar com o apoio do PSOL.

Até o início desta semana, um grupo de parlamentares, líderes sindicais e ex-dirigentes do PT defendiam apoio a Arthur Lira. O movimento foi barrado pela bancada na quinta-feira com a aprovação de uma resolução que proibia o apoio do partido a candidatos ligados a Bolsonaro. Depois da derrota, este grupo, junto com dissidentes do PSB, passou a defender o lançamento de uma candidatura própria, o que pulverizaria as candidaturas e beneficiaria Lira.

A agenda mínima proposta pela oposição tem como ponto fundamental o respeito ao critério da proporcionalidade das bancadas na escolha dos cargos na Mesa Diretora e comissões. Em 2019, o PT não apoiou Maia e mesmo tendo a maior bancada da Casa ficou sem nenhum cargo na mesa e sem a presidência de comissões.

A oposição avalia que Maia jogou errado, apostou que o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizaria sua reeleição, e enfrentou dificuldade para unificar seu bloco em torno de um nome. Por isso, o presidente da Câmara teria ficado dependente da oposição, que tem 133 parlamentares e pode ser a fiel da balança na disputa contra Lira.


Demétrio Magnoli: Bolsonaro usa versão vulgarizada de Lênin para praticar nacionalismo de extrema direita

Os 'liberais bolsonaristas', essa curiosa irmandade de falsários, precisam substituir seus manuais de cabeceira

 “Imperialismo, Estágio Superior do Capitalismo”, publicado em 1917, inaugurou o chamado marxismo-leninismo. Marx enxergava a luta de classes como motor da história. No seu livro, Lênin flexionou o conceito, introduzindo a ideia de que as burguesias das nações industriais exploravam não só o próprio proletariado mas, ainda, os “países atrasados” coloniais e semicoloniais.

Bolsonaro não deve ter lido nem Marx nem Lênin, mas utiliza uma versão vulgarizada do segundo para praticar seu nacionalismo de extrema direita.

Segundo Lênin, no “estágio supremo” do capitalismo, as burguesias imperialistas deflagrariam guerras incessantes pela partilha de esferas de influência, abrindo caminho à revolução mundial. Os bolcheviques tomaram o poder na Rússia, fundaram a Terceira Internacional e mobilizaram a teoria leninista para definir a linha dos partidos comunistas nos “países atrasados”.

Neles, os comunistas deveriam forjar “frentes nacionais” —ou seja, alianças anti-imperialistas com as elites locais. Nascia, no pensamento de esquerda, o argumento de legitimação de regimes autoritários apoiados na bengala retórica do nacionalismo.

Pretexto perfeito. Os regimes autoritários pós-coloniais na África culparam as potências coloniais do passado e os imperialistas do presente por seus fracassos. Fidel Castro alegou que as carências cubanas derivavam da sabotagem imperialista dos EUA.

A ditadura de Suharto na Indonésia exigiu fidelidade à Pancasila, uma “filosofia oficial” destinada a preservar a nação das “influências ocidentais” (o liberalismo e o comunismo).

Os militares argentinos deflagraram a Guerra das Malvinas, contra os britânicos, invocando o anti-imperialismo. A China acusa o imperialismo de atentar contra sua soberania sempre que confrontada com denúncias de violações das leis de Hong Kong ou dos direitos humanos dos muçulmanos do Xinjiang.

Imperialismo: Bolsonaro redescobriu o artefato que cansou de utilizar no passado, quando acusava potências estrangeiras de pretenderem “roubar nosso nióbio”. O velho imperialismo volta ao centro do palco, apenas rebatizado como “globalismo”.

Na sua mórbida campanha anti-imunização, Bolsonaro fez mais que declarar as intenções de não tomar a vacina e de submeter os brasileiros a um (ilegal) termo individual de responsabilidade. Em outubro, o presidente ensaiou exigir que, antes de ser usada no Brasil, uma “vacina estrangeira” fosse “aplicada em massa no seu país de origem”.

Depois, na reunião dos Brics, declarou que “o Brasil busca uma vacina própria” —isto é, nacional e soberana. Na prática, seu Ministério da Saúde corre, atrasado, para importar agulhas e seringas.

Junto com o nacionalista grão-russo Putin e o nacionalista de esquerda López Obrador, do México, Bolsonaro ocupou os últimos lugares na fila do reconhecimento da vitória do “globalista” Biden —mas ainda adiantou-se a Kim Jong-un. Destacou-se dos colegas, porém, ao dar um passo à frente para tornar-se o único governante do mundo que reproduziu as sentenças de Trump sobre uma fictícia fraude eleitoral nos EUA.

Biden prometeu cobrar os compromissos do Brasil com o Acordo de Paris e a preservação ambiental. Bolsonaro retrucou batendo os tambores da “soberania nacional”, um ritmo praticado há décadas pelo nacionalismo militar. Acrescentou, numa imitação das bravatas de Saddam Hussein, a ameaça de trocar a “saliva” da diplomacia pela “pólvora” de batalhões dispostos a invadir Washington.

A Faria Lima jamais será a mesma. Os “liberais bolsonaristas”, essa curiosa irmandade de falsários, precisam substituir seus manuais de cabeceira. Na canoa bolsonarista, Paulo Guedes deve trocar Hayek e Friedman por Lênin. Ou, para facilitar, em diapasão mais nacional e popular, por Jones Manoel, o queridinho de Caetano Veloso e da esquerda neostalinista brasileira.


Paulo Fábio Dantas Neto: Congresso Nacional 2021 - Manter sempre teso o arco da promessa

A notícia da incorporação, ontem, dia 18.12, de cinco partidos de esquerda (PT, PDT, PSB, REDE, PCdoB) à frente, já anteriormente formada pelo chamado “Centro Democrático” (DEM, MDB, PSDB, Cidadania, PSL, PV), que o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, articula para disputar sua sucessão, marca uma aliança política de grande significado. Independente dessa aliança levar ou não a uma candidatura única, importa que se torna bem mais robusto um movimento de amplas dimensões pela independência daquela casa legislativa e de reação à tentativa do Poder Executivo de instrumentalizar o seu comando. Nesse momento o deputado Artur Lira, candidato apoiado pelo Planalto, passa, em tese, à condição de candidato minoritário, se somados como seus adversários os deputados integrantes das bancadas daqueles onze partidos.

Vários tópicos entram em pauta para se analisar as implicações desse fato político. Dentre eles é possível citar o grau de correspondência efetiva que haverá entre as decisões das direções partidárias e o comportamento das bancadas, as repercussões, nas bancadas dos partidos do bloco “centro democrático”, especialmente o PSL e o DEM, dessa aliança com a esquerda, PT incluído e a nova relação que se poderá estabelecer entre as eleições na Câmara e no Senado, por vezes vistas como partes de uma “operação casada”.  Cedo para compreender tudo isso. Mais produtivo analisar o contexto mais geral dos processos sucessórios nas duas casas do Congresso, ao qual o fato de ontem se incorpora.  Parto da premissa de que o referido processo teve sua dinâmica afetada pelo timing de uma decisão judicial provocada por adversários do movimento unitário que se robustece na Câmara.

Judicialização como refração de um processo político

Como sabido e já bastante comentado, as urnas de 2020 trouxeram más notícias aos bolsonarismo e ao lavajatismo, os grandes vencedores de 2018. É menos evidente, devendo ser salientado, que essas duas faces da direita negativa não metabolizaram a nova disposição do eleitorado, que valorizou a eficácia da política na gestão de municípios e deu sinal verde a políticas de frente democrática de um centro moderado. Poucos dias após a apuração dos votos, juntaram-se para tentar armar a mão do STF contra esse impulso agregador. Tiverem êxito, ainda que por apertada maioria. O tribunal interceptou o processo político que se esboçava nas duas casas do Congresso para a renovação de suas mesas diretoras. Processo que mal começara a entrar em sua fase mais importante, a fixação de candidaturas expressivas de um realinhamento de forças no Legislativo, que só poderia mesmo avançar a partir do resultado eleitoral, como se requer numa democracia.

É bom lembrar que o STF foi formalmente provocado à judicialização preventiva do processo pelo PTB, partido da base governista, que assim fez o primeiro movimento de revide ao veredicto das urnas. Na sequência, uma bem articulada ameaça de “cancelamento” via redes sociais recorreu a palavras chave do dicionário político das eleições de 2016 e 2018 para emparedar o tribunal. Embora usando outro palavreado, não foi diferente a posição da mídia tradicional. Armou-se o raciocínio de que o STF prevaricaria se permitisse a continuidade do jogo político no Legislativo. Conforme esse raciocínio, “os políticos”, fatalmente, rasgariam a Constituição. Logo, caberia ao tribunal antecipar-se, mesmo na ausência de fato concreto, para pôr ordem na “bagunça”.  Preconceito antipolítico travestido de prevenção, pois, se é verdade que havia sinais de que um ator importante, o presidente do Senado, movia-se em direção a uma transgressão, sinais opostos partiam de articulações do Presidente da Câmara. E, para além disso, o processo envolvia um conjunto de partidos e lideranças que, por dever de oficio e instinto de sobrevivência política, tenderiam a ser afetados pelo espirito das urnas. Tinha horizonte, ao menos na Câmara, a articulação de uma ampla candidatura comprometida a conservar a independência da Casa frente ao Executivo e o padrão de decisões colegiadas que ali se verificaram nos últimos anos.  E se, no caso no Senado, seu presidente passasse da intenção ao gesto para viabilizar sua reeleição, com aparente cobertura de um plano B do Governo aí, sim, o STF seria chamado a se pronunciar perante um fato concreto.

Para não raciocinar sobre hipóteses, o STF poderia ter simplesmente desconhecido a ADIN do PTB.  Aliás, se não fosse o preconceito que ali também há contra a lógica do Parlamento, essa poderia ter sido a posição preliminar do presidente do tribunal. Feito relator, o ministro Gilmar Mendes também poderia, como Pilatos, ter ido nessa direção. Não o fez, mas também não foi na linha da interferência no jogo político. Ao contrário, apontou que era assunto do Legislativo, o que lhe rendeu críticas. Se houvesse lavado as mãos seria criticado do mesmo modo, por não ter interferido a tempo para impedir a "bandalheira".  Por outro lado, o fechamento prévio da porta à estratégia de Rodrigo Maia (que acabou ocorrendo, contra o voto de Gilmar) pode ter aberto a porta da Câmara dos Deputados a Bolsonaro. O tamanho desse perigo só sabia quem tinha informação sobre a correlação de forças real. Deve ter sido o caso de Mendes, dotando seu voto de razões próprias de um cálculo político. Um pecado? Quem disso escapa, na posição em que ele está? Gilmar foi minimalista e propôs deixar à liderança do outro Poder a decisão sobre os custos políticos comparativos da derrota de um candidato de continuidade que não fosse o próprio Maia e os das implicações de marcar um gol em impedimento. Gol que no fim das contas não valeria, já que habemus STF. Logo, o voto minimalista foi condicional e não rasgou a Carta. Na contra mão de um senso comum que acha realista prejulgar políticos, penso que faria mais bem à saúde das instituições brasileiras se a maioria do STF tivesse seguido o voto de Gilmar Mendes e dado a Rodrigo Maia o benefício da dúvida, mantendo a condicional.

Por que não o fez? Difícil aceitar a hipótese de que tenha sido por razões doutrinárias. Como observou um aluno perspicaz, é curioso que a letra da Carta tenha sido defendida pelos partidários do “direito criativo” e o “jeitinho”, proposto pelos garantistas.  Do paradoxo só escapou o ministro Marco Aurélio. Afora ele, parece que gregos e troianos votaram com a lógica da política. O voto de Gilmar tem afinidades eletivas com a política dos políticos. Já a posição da maioria expressa quanto o impacto da ética faxineira da Lava Jato ainda afeta a conduta de parte da cúpula do Judiciário. Alguém me dirá que depois da desmoralização de Moro, essa hipótese é enxergar vida no velhinho que morreu ontem.

Sergio Moro e sua turma entraram em decomposição. O lavajatismo, penso que não. É força latente, atuante na subjetividade de larga faixa da sociedade, mesmo que momentaneamente esteja na penumbra, pela prioridade objetiva da pandemia sobre a corrupção. Vejo-o como um sentimento público em busca de novo intérprete após o fracasso político de Moro. João Dória é um óbvio candidato a esse legado, daí sua dificuldade e sua indisponibilidade para interagir com tudo que cheire a esquerda. Mas Bolsonaro não renunciará ao mesmo legado, daí a guerra sem quartel entre ambos. Bolsonaro, ou a política palaciana, já trabalha para reconectar o legado lavajatista ao seu eclético repertório eleitoral, usando o aparato da segurança pública, sua influência em áreas do MP e as brechas que vai abrindo no Judiciário, prisma sob o qual se deve analisar, a meu ver, a coalizão de veto que aconteceu no STF no julgamento da ADIN do PTB.

Efeitos politicamente regressivos da judicialização

Salta aos olhos que uma frente ampla contra a bolsonarização da Câmara até a npte de ontem ainda não pudera passar de palavra a ato. O jogo político exige harmonização de discursos e de interesses complexos. É preciso gerenciar compromissos político-partidários, distribuir recursos e espaços políticos entre os aliados, no Congresso e fora dele e sintonizar as alianças nesse episódio particular com as que têm 2022 no horizonte e com as ainda mais gerais e permanentes, que importam na defesa das instituições. O encurtamento do prazo para fazer tudo isso teve graves implicações. Admito não ter tido, prospectivamente, no momento em que o STF julgava, a clareza que penso ter disso hoje, após o leite derramado.  O candidato fisiológico passou a operar na Câmara com desembaraço bem maior. E mesmo que não seja bem sucedido, que perca a eleição ou mesmo desista dela, a solução alternativa vencedora deverá estar mais distante de ter um perfil político contraposto ao dele. Bolsonaro pode não ganhar a Câmara do jeito que quer, nem controlar o Senado.  Mas tampouco será fácil isolá-lo, a não ser que ele deseje.

Por outro lado, foi um teste e tanto para a possibilidade de uma frente política futura que tenha no DEM um eixo de articulação. As tensões no partido acentuaram-se na razão direta da redução do espaço de manobra de Rodrigo Maia. A costura nos bastidores do nome da ministra Teresa Cristina para a cadeira que hoje ele ocupa é um recado claro de que o partido já age para enquadrar o seu personagem até aqui mais destacado. E não é realista esperar que partidos aliados ajudem a dissipar essas tensões. O MDB enxerga a possibilidade de retomar o controle do Congresso. Tucanos, sempre no limiar do discurso hegemônico, têm essa tendência reforçada pelo comando de João Dória. Quanto à esquerda, notou-se, após o julgamento do STF, movimentos erráticos que vão desde alimentar candidatura própria a negociar no varejo turvo de Artur Lira. O gesto político de ontem sinaliza a reversão do segundo tipo de movimento, mas a ideia de candidatura de esquerda à presidência da Câmara não se afastou da boca da presidente nacional do PT.

Existe a possibilidade do passo agregador dessa sexta-feira reverter um perigo que se insinuava no centro político da Câmara dos Deputados e em suas conexões à esquerda, aquele pathos centrífugo que acometeu, a partir de 2017, a coalizão que sustentara o impeachment de Dilma Rousseff e levara Michel Temer à Presidência. A centrifugação da amplíssima articulação do presidente começou quando Rodrigo Janot produziu um artefato midiático com o caso Joesley Batista. A centrifugação do arco de Rodrigo Maia tornou-se possível desde que o STF, também diante de um artefato de apelo midiático, aceitou fazer da sucessão das mesas do Congresso um parto prematuro. 

Tirado de tempo, Maia tentou a autoconvocação do Congresso, que suspenderia o recesso parlamentar para não deixar o governo agir solto no breu das tocas. A PEC emergencial não foi pauta capaz de fazer os partidos de centro se moverem e fez a esquerda roer a corda com receio das reformas.  Pela enésima vez não confiou no caminho da negociação política, preferindo a comodidade do status quo. O relator governista da PEC não apresentou, é claro, seu relatório e assim sepultou a ideia da convocação extraordinária, cuja serventia iria além da PEC e se estenderia a dois problemas cruciais para o País, no momento, para cuja solução se requer unidade e moderação, logo, vigilância do Congresso. Além das sucessões no próprio Congresso, o da vacinação, interesse público número um, de que tratarei na próxima semana pois não se pode tratá-lo a não ser como foco central.

Com tempo ruim todo mundo também dá bom dia

Em meio a tantos percalços e com o Congresso fechado em janeiro, o campo estará, em tese, livre para o governo operar nas sombras e tentar impor seus candidatos. Mas quem der como certo que o Parlamento foi neutralizado e que aceitará ser humilhado pela leviandade contumaz do Presidente da República pode ter surpresas.  Situação oposta ficou patente, também nessa sexta-feira, 18, na tribuna da Câmara dos Deputados. O presidente da Casa reagiu de modo contundente a uma acusação de Bolsonaro ao Legislativo, qualificando-a de mentirosa e tendo sua narrativa dos fatos, pela qual restabeleceu a verdade, confirmada pelo próprio líder do governo. Fora do plenário, no manifesto que anunciou a ampliação do “Centro Democrático” lê-se que “Os radicalismos se retroalimentam e são fundamentais para explicar a nossa união. Enquanto alguns buscam corroer nossas instituições, nós aqui lutamos para valorizá-las”.

Esses sinais de contraponto à ingerência espúria de outro Poder nas decisões do Legislativo animam, mas não devem iludir quanto a dificuldades de um processo em que a assimetria de recursos de cooptação e de chantagem joga contra a autonomia da instituição e cujo desfecho se dará numa votação secreta. Mas um discurso político forte pela independência da Câmara tem apelo pragmático também. Deputados e senadores, de um modo geral, têm noção do poder de barganha que perdem se elegerem presidentes que se dobrem a um Executivo comandado por um candidato a ditador. Tendem a preferir alguém com moderação no trato com o governo, mas firmeza na defesa do Poder e que cumpra acordos internos. Esse foi o roteiro de construção da liderança de Rodrigo Maia. 

Nomes assim não podem ser encontrados se o roteiro para tratar desse problema for o confronto personalizado com Bolsonaro.  A resiliência de sua popularidade seduz os mais pragmáticos, porém, seu efeito mais corrosivo é irritar os adversários impacientes, fomentando a dispersão e jogadas para a plateia. Santos guerreiros são ineptos para lidar com o tipo de maldade que o presidente encarna. Provam-no os sucessivos momentos em que foi desafiado nesses termos e, das urnas ou pesquisas, emergiram efeitos perversos. Foi assim no segundo turno de 2018, com o “elle Não!” puxado por um lulo-petismo ferido; foi assim em maio desse ano, quando o mito começou a ressurgir, ainda antes do auxilio emergencial, logo após Sergio Moro supor que o foguetório de artificio de seu rompimento seria um tiro de misericórdia sobre um presidente até então isolado por se opor à política pública do moderado ministro Mandetta; está sendo assim agora quando, uma semana depois de fortes embates com o governador de São Paulo em torno da vacina, pesquisa Datafolha informa que Bolsonaro é bem avaliado por 37% dos entrevistados e que para 52% ele não tem nenhuma culpa pelo total de mortos pela covid no Brasil.

Na esteira dessas lições o discurso político firme e unitário precisará, nesses pouco mais de trinta dias, ser combinado com a abertura de novas frentes de entendimento com áreas próximas à candidatura de Lira na Câmara e com a bancada governista no Senado. Preparar-se para vencer um embate em condições adversas é um empreendimento em que, afinal, um acordo pode também se tornar razoável. E ele também é possível, se o adversário tiver igualmente juízo atento ao preço pago por Dilma Rousseff por imaginar que poderia politizar plebiscitariamente uma eleição no interior do Legislativo.

Num cenário como esse, estará em posição privilegiada quem, a essa altura, ainda puder intermediar, com êxito, uma negociação do centro democrático do Congresso com as bases parlamentares governistas nas duas casas, em torno de possíveis nomes de consenso. A posição discreta que o ex-presidente Temer ocupa na geografia política do país faz dele alguém que poderia obter um “nada a opor” do governo a tal entendimento sem, necessariamente, precisar de um “tá ok” de Bolsonaro. Até porque não se pode escrever o que o ex-capitão diz. As chances de êxito dessa interlocução provem dela poder se dar, simultaneamente, com o centro e o centrão e favorecer um entendimento autônomo, no Legislativo, para manter teso, numa conjuntura social e sanitária crítica, o arco da promessa de governabilidade com preservação da democracia que exerceu em 2019-2020.

Na falta de um horizonte límpido, a experiência de dois anos de labuta com o fator Bolsonaro traz bons conselhos. Olhar para os resultados das eleições e para frentes políticas que se formaram e venceram. Lembrar dos trinta primeiros dias de enfrentamento articulado da pandemia no Brasil; de cooperações entre governos estaduais e municipais adversários; do auxílio emergencial, do auxílio aos Estados, da votação do Fundeb. Nesses momentos Bolsonaro se isolou e perdeu espaço. Ao inverso, recupera-se sempre que se perde o foco nesse processo plural e incremental. Sei que o que estou dizendo não responde a certas urgências e convicções, mas o que responde?

Peço, a quem o desfecho dessa coluna decepcionar, que me conceda o benefício de esperar a da próxima semana. Talvez tratando de outro tema crucial, eu possa argumentar melhor pelo bem público que faria um grande acordo político que evitasse a disputa dilacerante que se anuncia pelo controle das mesas diretoras do Congresso. Daqui a 30 dias o país agradeceria se sobre ambas reinasse, soberano, em vez da sucessão, o tema da vacinação. Sem prejuízo de que a frente democrática que se desenhou hoje na Câmara tenha longa vida e ganhe muita força no parlamento e na sociedade. Aliás, um acordo nacional para vencer a crise com aval do Legislativo é uma promessa que depende da solidez do arco.

* Cientista político e professor da UFBa.