Day: novembro 20, 2020

Zumbi dos Palmares portrait1 | Foto: Reprodução

Igualdade23: Novembro de Zumbi e João Candido

O mês de novembro celebra dois momentos distintos no tempo e na localização, porém próximos quando se trata do tema da luta no combate ao racismo e pela promoção da igualdade racial. No dia 20, a data refere-se ao momento que Zumbi dos Palmares foi assassinado na Serra dos Dois Irmãos, então Província de Pernambuco atual Estado do Alagoas, em 1695.
Simbolicamente, o dia da morte de Zumbi se consagrou como o mais significativo, tanto que é feriado em várias cidades brasileiras.

Ao longo dos anos foi se fortalecendo a ponto de se transformar numa semana de comemoração e atualmente se estabeleceu o “novembro negro”, que reúne uma série de atividades correlatas em todos os estados do Brasil.
A data de 22 de novembro também merece reverência. Foi nesse dia, em 1910, que se desencadeou a Revolta da Chibata, liderada pelo marinheiro João Cândido, “o Almirante Negro”. Nesse ano de 2020, o Coletivo Igualdade 23, do Cidadania, prima por dar destaque às duas efemérides e a esses dois heróis.

Zumbi dos Palmares e João Cândido foram, cada qual à altura de seus contextos históricos, ícones que representam a bravura e a busca pela dignidade coletiva. Dois homens que despenderam sacrifícios pessoais a fim de ousar conduzir mentes e corações na trilha da liberdade.
“Nós marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira”, alertava o ultimato redigido pelos sublevados comandados por João Cândido endereçado ao então presidente Hermes da Fonseca. Passados 110 anos, há certa atualidade nas reivindicações do manifesto. A Armada não aplica mais castigos físicos.

No entanto, na sociedade negros e negras de todo o território permanecem clamando por acesso aos bens da vida, à democracia e aos pilares da república, ou seja, os exemplos de Zumbi e Cândido continuam fazendo sentido e seguem importantes para nós. Assim entendemos no Igualdade 23.


Valor: “Fim das coligações produziu o melhor sistema eleitoral da história”, diz Nicolau

Votação por aplicativo, tese levantada pelo presidente do TSE, ameaça o sigilo, diz professor

Por Maria Cristina Fernandes | Valor Econômico

SÃO PAULO - Debruçado há três décadas sobre o sistema eleitoral brasileiro, o professor da Fundação Getulio Vargas do Rio, Jairo Nicolau, diz que as eleições municipais se realizam sob as melhores regras da história. Não tem dúvidas de que o fim das coligações nas eleições proporcionais oferecerá um maior controle do eleitor sobre o resultado das urnas e depuração do quadro partidário no Legislativo. A maioria das Câmaras de Vereadores do país reduziu o número de partidos lá representados. E, com isso, a hiperfragmentação da Câmara dos Deputados, quesito em que o Brasil se mantém no pódio mundial há muitos anos, também deve se reduzir. Por isso mesmo, já se iniciou um movimento para ressuscitar as coligações proporcionais.

Presença frequente em todas as discussões de reforma política no Congresso Nacional nos últimos anos, onde sempre advogou pelo fim das coligações proporcionais, Nicolau não acreditava mais que o dispositivo cairia quando, finalmente, em 2017, sua extinção foi constitucionalizada. Por isso, não se surpreendeu ao saber do movimento, liderado pelos pequenos partidos, pela volta do mecanismo. É a sobrevivência de sua representação na Câmara dos Deputados que está em jogo - “É um vexame nacional se vier a acontecer”.

Essas legendas viram a redução de seus exércitos de vereadores, com os quais contam para sua recondução. Nas contas de Nicolau, 15 partidos não chegaram a 2% dos votos para vereador em 15 de novembro. É esta a cláusula de desempenho para 2022. Com isso, o tema já entrou na barganha dos pequenos partidos na disputa pela Mesa da Câmara. Em alguns deles a discussão já é aberta - o apoio estará condicionado ao compromisso dos candidatos à Mesa com a flexibilização das regras. Não é um acordo fácil de ser operacionalizado. Até porque os partidos com mais chances de levar a presidência da Câmara estão entre aqueles mais beneficiados pelo fim das novas regras: PP, DEM, MDB e Republicanos.

Jairo Nicolau vê com ceticismo a proposta da federação de partidos como alternativa à coligação. Ao contrário desta, a federação vai além da conjuntura eleitoral e prevê a atuação conjunta dos partidos também ao longo da legislatura. O dispositivo já foi derrotado na Câmara. Para não ser uma burla à coligação, diz Nicolau, teria que ser uma federação nacional, de canto a canto do país, o que confronta as contingências regionais dos partidos.

O fim das coligações não é o único retrocesso que pode advir das eleições municipais. O atraso na contagem dos votos, amplificado pela militância de extrema direita, deu asas a teorias conspiratórias de fraude eleitoral. O presidente Jair Bolsonaro retomou a defesa do voto impresso e encontrou guarida em parlamentares como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Nicolau acompanhou de perto o tema quando o TSE, na gestão Gilmar Mendes, promoveu debates sobre o aprimoramento do processo eleitoral. Os engenheiros presentes alertaram para a inviabilidade técnica da alternativa pelo potencial de problemas que as impressoras podem causar. No limite, diz, o TSE poderia fazer a impressão do voto por amostragem.

Outra mudança aventada que Nicolau teme é a do voto pelo aplicativo. A questão chegou a ser levantada pelo presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, antes dos problemas com a apuração. Animado com a boa aceitação do registro da ausência no local de votação pelo aplicativo do TSE, ao qual se atribui, somado à pandemia, o aumento na abstenção, o ministro foi adiante e disse que o Brasil, um dia, também poderia votar pelo aplicativo. A mudança, diz o professor, não poderá ser feita sem anuência legislativa, uma vez que abre portas para a adoção paulatina do voto facultativo. E não apenas. Ameaça o sigilo do voto. “Não é fantasioso imaginar que se formem filas nos currais eleitorais para se ‘ensinar’ o eleitor a votar”, diz. É a volta - ou a modernização - do voto de cabresto.


César Felício: Esteios da governabilidade

Partidos que crescem não vão disputar Presidência

As eleições municipais registraram crescimento dos seguintes partidos na malha de prefeituras espalhada pelo país: PP (de 495 para 682), PSD (de 537 para 650), DEM (de 266 para 459), PL (de 294 para 345) e Republicanos (de 103 para 208). Estes cinco partidos somaram 1.695 conquistas em 2016. Foram 2.344 agora, ou 38% a mais.

Em comum, estes partidos têm a característica de estarem vocacionados para as eleições de caráter local e parlamentar. Não são legendas para disputar a Presidência, salvo às vezes fornecendo o nome para vice em alguma chapa, como fez o PP em 2018 e o DEM em 2010, acompanhando os candidatos tucanos. O PP não lança candidato próprio à Presidência desde 1994, quando ainda se chamava PPR. o DEM não o faz desde 1989, ocasião em que era o PFL. PSD, PL e Republicanos jamais o fizeram. São, portanto, coadjuvantes, e não protagonistas do jogo presidencial.

Os partidos que tradicionalmente são atores da eleição maior tiveram encolhimento de malha. O MDB (candidaturas próprias em 1989,1994 e 2018) caiu de 1.035 para 773. O PSDB minguou de 785 para 512. O PDT deslizou de 331 para 311. O PSB despencou de 403 para 250. E o PT saiu de 254 para 179. Somados, recuaram de 2.808 para 2.025, queda de 28%. A conta pode mudar um pouco com o segundo turno, mas nada que altere o eixo da Terra.

Sem legenda, Bolsonaro não fixou em lugar algum o bolsonarismo. Esta foi uma eleição em que o coração governista ficou de fora, salvo uma ou outra incursão desastrada do presidente por alguma eleição local.

O resultado da eleição tomado pelo atacado, ou seja, pela soma da quantidade de prefeituras conquistadas pelas grandes siglas, mostra uma diminuição da polarização e do efeito nacional sobre as eleições locais, que já não era lá muito grande.

Mesmo sendo bastante tênue, a polarização nacional ainda assim se refletia na competição pelas prefeituras. PT e PSDB viveram ciclos de crescimento nas bases municipais enquanto monopolizavam as eleições presidenciais, entre 1994 e 2014. Agora não há mais o corte entre bolsonarismo e antibolsonarismo. Nem como efeito da eleição de 2018, nem como projeção do que pode ser a escolha para o Legislativo e a presidencial em 2022.

Essa desideologização do pleito de 2022, em linhas gerais, indica uma tendência importante de PP, PSD, DEM, PL e Republicanos terem bancadas muito grandes depois da eleição que acontecerá dentro de dois anos. Passarão com louvor pelo teste da cláusula de barreira e darão cartas no próximo governo.

É no sentido de facilitar a governabilidade e o de darem alguma musculatura a quem tem pouca que estes cinco partidos serão muito disputados para alianças na próxima eleição presidencial.

PP e Republicanos já indicaram de forma claríssima a possibilidade de apoio a uma candidatura presidencial de Bolsonaro. É comentada a hipótese do presidente se filiar a um desses dois partidos.

A adesão ao bolsonarismo é muito menor em relação ao DEM e PSD. O DEM herdará o governo de São Paulo caso o tucano João Doria dispute a Presidência, o que não é pouco. O presidente da sigla, ACM Neto, sequer coloca à mesa um nome próprio para negociar alianças de 2022, o que é sugestivo. O presidente do PSD, Gilberto Kassab, coloca alguns, para valorizar o passe, e daí citou em entrevista à “Folha” os senadores Antonio Anastasia e Otto Alencar.

Os partidos que mais amealharam prefeituras podem dar ossatura para Bolsonaro e Doria na eleição presidencial de 2022, mas obviamente não lhes fornecem os votos para se elegerem. A dinâmica presidencial é outra. Permitem antever apenas, no caso de vitória de um ou de outro, base parlamentar relativamente tranquila para governar.

Pode-se perguntar onde está o MDB nesta análise. O MDB é um esteio da governabilidade que esmaece. Tinha 1.194 prefeitos depois das eleições de 2008, às vésperas de fechar a parceria Dilma/Temer vencedora de duas presidenciais. Era 35% maior do que hoje. O MDB hoje é mais uma entre as legendas que se candidatam a fiel de balança.

O jogo da esquerda é disputado nas grandes cidades. Guilherme Boulos mudou de patamar na política nacional, ainda que perca a eleição paulistana, como é provável. O PT não poderá olhar mais o Psol com a condescendência de um irmão mais velho, como faz hoje. Se José Sarto ganhar em Fortaleza, o PDT e Ciro Gomes se preservam do vexame das apostas erradas no Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo.

O duelo entre Marília Arraes (PT) e João Campos (PSB) pela Prefeitura do Recife terá consequências na eleição presidencial de 2022. A vitória de Marília tende a ameaçar a hegemonia do PSB no governo de Pernambuco e deste modo situar a sigla de modo definitivo no antipetismo. Pode ser uma boa notícia para Ciro.

Ganhando ou perdendo em Porto Alegre, Manuela d’Ávila será uma estrela a brilhar com força no PCdoB, partido condenado a morrer pela cláusula de barreira. É provável que o PCdoB, com o governador do Maranhão Flávio Dino à frente, procure uma incorporação branca a alguma sigla de esquerda ou centro-esquerda mais capacitada a sobreviver. PT parece o caminho mais natural, mas de nenhum modo é a única saída que resta.

E Luciano Huck? O apresentador de TV e candidato a ser um presidenciável pouco ou nada tem a ver com as eleições municipais. Sua possível candidatura dependerá do fracasso de outros atores. Huck se viabiliza caso tudo ou quase tudo dê errado para Doria e Bolsonaro. Vencida esta peneira, ele procurará os esteios da governabilidade já mencionados.


Fernando Abrucio: Lições para além da vitória do centro

Muitos creem que as eleições, nos EUA e aqui, apontam um novo caminho de centro para 2022. Faz sentido, porém, é preciso destacar que moderação política não significa inação

Marco Maciel, um dos políticos mais experientes do país, já dizia que uma eleição começa quando acaba a outra. No momento atual, o debate brasileiro multiplica esse provérbio: duas eleições recentes estão alimentando a discussão política, a presidencial americana e a municipal daqui. Inspirados pelo enredo e resultados de ambas, muitos acreditam que elas apontam um novo caminho para o pleito de 2022, no qual um novo centro teria grande espaço para conquistar a Presidência da República. A ideia faz sentido, mas é preciso evitar que ela não se transforme numa fácil e falsa fórmula eleitoral.

Inspirar-se efetivamente nessas duas últimas eleições seria buscar o seu sentido mais profundo, e não ficar na superfície do fenômeno. Se isso for feito, as descobertas irão além de um receituário para o novo centrismo, em contraposição ao Centrão e à polarização Bolsonaro versus Lula. Trata-se de entender os contextos, atores e projetos que deram materialidade à vitória de Joe Biden e Kamala Harris nos Estados Unidos, bem como as razões do triunfo dos políticos pragmáticos vencedores das eleições municipais de 2020.

De maneira sucinta, cinco elementos advêm dessas duas experiências eleitorais como lições para os que pretendem vencer o presidente Bolsonaro. O primeiro deles é que o desempenho do governante de plantão é a baliza básica do jogo político, especialmente quando ele busca a reeleição. No caso americano, a principal escolha estratégica de Biden foi mirar nos principais erros de Trump, colocando-se como o seu oposto nestes pontos, algo que foi facilitado pelo rotundo fracasso federal no combate à covid-19.

Para quem quiser seguir essa trilha, dois passos são necessários: definir quais são os pontos mais frágeis de Bolsonaro, centrando o foco neles, e começando a se construir como oposição a eles. Parece uma obviedade, mas o debate sobre novo centrismo brasileiro fala pouco de oposicionismo. Lembra-se muito da característica moderada de Biden - o que é verdade -, porém se esquece que sua moderação veio a serviço de uma oposição que não foi montada às vésperas da eleição.

Colocar-se mais claramente e o mais rápido possível como oposição, especialmente centrando a crítica nos pontos certos, é fundamental para se definir como um dos projetos alternativos ao governo Bolsonaro. Provavelmente haverá mais de uma proposta política em 2022, de modo que quem ficar esperando e apenas dourando a pílula não terá identidade política junto ao eleitorado. Definitivamente, moderação política não é inação.

Um bom exemplo da necessidade de contrapor claramente ao poder vigente vem de um dos mais brilhantes políticos de centro da história brasileira: Tancredo Neves. Ele só conseguiu o apoio da sociedade que queria acabar com a ditadura e, ao mesmo tempo, dos dissidentes do regime porque marcou sua posição contra o então governante, fez críticas certeiras durantes meses, sem que isso o impedisse de conversar com todos os lados. Cabe ressaltar que se Bolsonaro perder popularidade (e isso tem boas chances de ocorrer), mais a população e os políticos (inclusive governistas) vão começar a buscar alternativas. Qualquer novo centrismo tem que se mexer, o mesmo valendo para os opositores à esquerda.

Uma segunda lição que vem das eleições americanas e das disputas aos governos locais no Brasil é que o desempenho eleitoral depende muito das políticas públicas, mais fortemente quando há um candidato à reeleição. Muitas razões explicam a derrota de Trump, um dos poucos presidentes do pós-guerra que não se reelegeu. Mas é inegável que, quando analisadas as pesquisas de opinião, fica evidente o fracasso de seu governo. Segundo os eleitores, sua atuação na pandemia foi desastrosa, a política educacional foi ruim, a criação de empregos e de um colchão de proteção social diante da crise foi modesta. No computo final, a maioria do eleitorado preferiu votar olhando para resultados, em vez de se definir por guerras culturais.

De maneira inversa, os vitoriosos das eleições nas capitais brasileiras que buscavam a continuidade do governo tiveram seu sucesso muito atrelado à aprovação de suas políticas públicas. Daí que quem quiser usar essas lições eleitorais para pavimentar o caminho contra Bolsonaro precisa definir o atual governo como um fracasso de políticas públicas - na Educação, Saúde, Meio Ambiente, Direitos Humanos etc. - e apresentar alternativas simultaneamente críveis e desejáveis pela população. Esse debate é o terreno mais difícil para o bolsonarismo.

Dentro da agenda de políticas públicas, é preciso entender quais são as tendências que mais vão mobilizar os eleitores. Essa é outra lição, a terceira, para quem quiser vencer em 2022. A dupla Biden-Harris concentrou-se nas principais questões que poderiam engajar a maioria dos cidadãos: pandemia, desigualdades, questão racial, uma política menos polarizada, entre as principais, captando o espírito da época, o que foi expresso numa diferença de cerca de 5 milhões de votos.

Quais serão as principais tendências da eleição de 2022? É muito difícil cravar com certeza uma lista de prioridades porque em dois anos muita coisa pode acontecer. Mas parece que o espírito da época que vai marcar a próxima eleição presidencial vai ter na desigualdade, em suas várias facetas (de renda, regional, de gênero, racial e de acesso aos serviços públicos), o seu aspecto central. Além disso, a questão ambiental, ainda mais com a pressão externa, deve crescer de importância. Por fim, todo mundo quer que a economia ande, pois ninguém aguenta mais uma estagnação tão longa. Em outras palavras, pauta de costumes perde força quando o básico falta para a população.

Qualquer projeto oposicionista vai ter de dizer que com Bolsonaro o Brasil piorou. As qualidades da moderação centrista podem se sobrepor à polarização, mas esse grupo precisa estar antenado com as principais preocupações da população, trazendo respostas aos problemas que afligem à maioria do eleitorado. Em síntese, um novo centro só vai ganhar do bolsonarismo e da esquerda se interpretar melhor o espírito da época que vai alimentar as eleições de 2022. Não basta vender o bom-mocismo.

Além da compreensão do espírito da época, o sucesso da campanha presidencial no Brasil vai depender do grau de engajamento de setores estratégicos do eleitorado. A quarta lição aqui vem mais forte do caso americano, embora o caso paulistano recente tenha mostrado como Boulos foi muito sagaz em mobilizar o eleitorado jovem num momento de pouca participação das pessoas em comícios e afins. Quem quiser ter melhor sorte em 2022 precisará construir uma estratégia de comunicação envolvente, que atinja os grupos que podem decidir a eleição. Aliás, é neste ponto que o bolsonarismo tinha vantagem sobre as outras forças político-partidárias, como ficou claro em seu triunfo em 2018, apesar da dúvida que há hoje após o fiasco nas eleições municipais.

A dupla Biden-Harris foi capaz de fazer uma campanha que se colocou contra o histrionismo de Trump, ao mesmo tempo em que foi criativa e engajadora dos três grupos mais relevantes para a vitória democrata: os mais jovens, as mulheres e os negros. Ficam as perguntas: quais serão os setores decisivos na eleição presidencial de 2022? Como mobilizá-los, tanto na forma como no conteúdo? Essas duas questões são essenciais para todos os aspirantes à Presidência da República, sejam de esquerda, direita ou centro. Ser centrista não é uma forma óbvia de dar conta desses desafios. Criatividade, pluralismo e inserção social mais profunda serão muito mais importantes.

A construção das alianças será essencial, por isso fica aqui como a lição que finaliza o artigo. Entretanto, é engraçado que o debate brasileiro tenha começado neste ponto, quando deveria lidar com os quatro primeiros para desaguar neste último. De qualquer modo, a questão central é a seguinte: uma candidatura fora dos extremos precisa unir candidatos diferentes numa mesma chapa. Ou seja, se o presidenciável vem do centro ou centro-direita, tem de ter um vice mais à esquerda, e se vem da centro-esquerda, tem de ter uma companhia mais ao centro (ou centro-direita). Essa foi a fórmula democrata, que aliás também procurou construir uma parceria entre dois atores políticos com características distintas - um homem e uma mulher, um branco e uma negra, um da costa Oeste e outro da Leste. Isso tem de ser adaptado para as circunstâncias brasileiras, encontrando que tipos de coisas diferentes devem ser unidas para produzir uma chapa competitiva.

Em suma, encontrar uma estratégia para se organizar como oposição ao bolsonarismo, focar no debate das políticas públicas (calcanhar de Aquiles de Bolsonaro), entender quais são as tendências predominantes que importam aos eleitores, construir um modelo de engajamento e comunicação que atue sobre grupos estratégicos do eleitorado, e, por fim, montar uma aliança presidencial entre diferentes, são as peça-chave para se ter uma candidatura bem-sucedida em 2022. Ser de centro ou ter apoio de parcelas importantes do centrismo são características que podem ajudar nesta tarefa, mas com certeza isso não é suficiente. Biden entendeu isso, bem como os pragmáticos que venceram as eleições municipais de 2020.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.


Merval Pereira: O que é, o que é?

O ministro da Economia, Paulo Guedes, volta e meia se arrisca a uma análise política, e quando o faz costuma tecer conceitos elásticos sobre o conjunto ideológico. Ontem, ele disse que “a mesma aliança de centro-direita que ganhou as eleições em 2018 continuou ampliando seu espectro de votos” nas eleições municipais. Quase a mesma análise do pastor Silas Malafaia, que também ontem esteve com o presidente para fazer um balanço do resultado, garantindo que quem perdeu a eleição foi PT e PSDB, Bolsonaro saiu vencedor.

Também o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, festejou a vitória dos partidos do Centrão como sendo do governo. Para combater o que chamam de “narrativa da esquerda”, vários governistas têm insistido nessa outra “narrativa”.

Guedes considera que a “centro-direita” aumentou seu poder, colocando essa avaliação na conta do grupo de apoio ao governo Bolsonaro. O Centrão agradece, e vai cobrar mais espaço no governo, mas PSD já quer ocupar lugar próprio e DEM e MDB saíram do Centrão.

Na campanha de 2018, Guedes insistia em colocar no mesmo balaio PT e PSDB, atribuindo a eles mais de 20 anos de domínio da social-democracia no Brasil, todos governos de esquerda que estariam sendo substituídos por um governo de direita.

Guedes recuperou a imagem de esquerda do PSDB, causando indignação do PT, que passou os últimos anos tentando colocar os tucanos na direita política, tarefa que cabe hoje ao PSOL em São Paulo, ligando Bruno Covas a Bolsonaro, através do governador Dória.

Conforme as forças vão se colocando no tabuleiro político, a definição ideológica obedece mais aos interesses eleitorais do que a análises com bases acadêmicas. Assim como é risível a tentativa de pregar em Fernando Henrique Cardoso ou em José Serra a peja de direitistas, também é um exagero de retórica política dizer que o ex-ministro Sérgio Moro é de extrema-direita pelo simples fato de que aceitou participar do governo Bolsonaro.

No momento, para a esquerda, todos os candidatos opositores são de direita, não se admitindo nem mesmo que haja políticos de centro. No entanto, é o centro político que, no momento, tem mais capacidade de se impor nas composições partidárias que devem frutificar ainda no primeiro semestre de 2021, quando as forças eleitorais terão que começar a se definir. Até mesmo o ex-ministro Ciro Gomes, um quadro da esquerda brasileira, se coloca como de centro-esquerda, e foi nesse papel que tentou chegar ao segundo turno em 2018.

Essa divisão ideológica num país que sempre foi conservador abre a chance de uma série de enganos, e é aí que entra a teoria da Janela de Overton, criada por Joseph P. Overton, um ex-vice presidente do Mackinac Center for Public Policy, um centro de estudos liberal nos Estados Unidos. Overton imaginou uma “janela” onde as teses aceitas pela sociedade naquele momento determinado podem ser defendidas pelos políticos.

Seriam teses “aceitáveis” ou “populares”. Se ideias “impensáveis” ou “radicais” forem defendidas, elas saem da “janela” e o político não ganha votos. Portanto, os políticos defendem as teses “populares”, e não o que realmente pensam. Mas ideias antes “impensáveis” podem se tornar “aceitáveis” para a maioria. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o divórcio. Ou o casamento de homossexuais. Mas há também quem queira alargar a “janela”, criando situações que tornem ideias “radicais” em “aceitáveis”. É o que Boulos tenta fazer na campanha paulista.

Da mesma maneira, as definições ideológicas passam por essa “janela” e podem ser ou não aceitas. Os bolsonaristas consideram inaceitável que Ciro seja considerado de centro, mas muita gente também rejeita as definições de Bolsonaro como um “conservador” ou “liberal”, que o fizeram palatável para muitos eleitores de 2018.

A mudança que pretendem fazer com Bolsonaro, transformando-o em um membro do Centrão moderado, é uma tentativa, possivelmente a ser frustrada, de ampliar seu eleitorado para fora da extrema-direita, onde estão seus apoiadores radicais. Por isso também esses bolsonaristas “de raiz” preferem que o presidente vá para seu próprio partido, ou, pelo menos, para um partido menor do Centrão, onde poderia ter o controle.


Bernardo Mello Franco: Duelo em família no Recife

Para quem gosta de acompanhar uma disputa em família, a eleição do Recife é diversão garantida. Os primos João Campos e Marília Arraes travam uma batalha renhida pela prefeitura. Eles duelam pelo espólio político de Miguel Arraes, governador de Pernambuco por três mandatos.

O filho de Eduardo Campos é candidato pelo PSB. Ele encarna o papel do príncipe herdeiro. Sua coligação reúne uma dúzia de partidos e conta com as máquinas do estado e da prefeitura.

Marília, a ovelha desgarrada, rompeu com o pai do rival em 2014. Acusava Eduardo de controlar a legenda com “mão de ferro” e de fazer tudo pelo poder. Ele se aliou a adversários históricos do avô e chegou a governar praticamente sem oposição.

Depois do acidente que matou o presidenciável, a dinastia acelerou a preparação do sucessor. Aos 22 anos, João virou chefe de gabinete do governador Paulo Câmara. Aos 24, tornou-se o deputado mais votado do estado. Aos 26, tenta se eleger prefeito.

A escalada pode ser interrompida por Marília, que migrou para o PT em 2016. Aos 36 anos, ela já mostrou que é boa de briga. Desafiou a direção regional do partido e se lançou com o aval do ex-presidente Lula, que havia vetado sua candidatura ao governo na eleição passada.

Ontem os primos se enfrentaram no primeiro debate do segundo turno. Quase saiu faísca. João acusou Marília de prometer cargos a figurões do PT sem mandato. Marília chamou João de “imaturo” e sugeriu que ele cumpre ordens da mãe. “Quem é que vai mandar na prefeitura? Comigo, as pessoas sabem. Com você, a gente fica sempre na dúvida”, provocou.

Os dois trocaram estocadas sobre alianças à direita. “Causa estranheza você estar se aliando com aqueles que chamam Lula de ladrão”, disse ele. “O palanque salada russa é o seu, tem do PCdoB ao partido dos filhos de Bolsonaro”, devolveu ela.

O candidato do PSB foi o mais votado no primeiro turno. Ontem o Datafolha informou que o vento virou no Recife. Marília ultrapassou João e agora lidera com dez pontos de vantagem: 55% a 45% em votos válidos.


Vinicius Torres Freire: Na hora de planejar a economia em 2021, há apagão na escuridão do governo

Por ação ou omissão, é hora de decidir por arrocho ou avacalhação do teto

Existem três hipóteses para o começo de 2021: 1) um arrocho por inércia dos gastos do governo federal; 2) um arrocho conflituoso, que depende de mudanças da Constituição; 3) uma avacalhação do limite de gastos federais, o “teto”. O ritmo de despiora da economia e a popularidade de Jair Bolsonaro dependem da decisão que será tomada (por ação ou omissão).

Se vier uma vacina no início do ano, haverá um choque favorável de expectativas, claro. Seus efeitos práticos, ao menos econômicos, apareceriam na segunda metade do ano, porém. Nem é bom pensar no que aconteceria em caso de repique relevante do número de infecções, agora ou até o Carnaval mudo de 2021. Mesmo no melhor cenário para a epidemia, o gasto do governo terá papel dominante.

Faz meses que esse é o assunto maior e mais urgente da economia, discussão empurrada com a barriga pelo governo, em particular desde o início de outubro. Passada a distração das eleições, o muro do final do ano parlamentar e do problema do gasto estará a palmos dos nossos narizes. Qual o risco de quebrarmos a cara?

No cenário de “arrocho por inércia”, o governo não aprova medida alguma de corte relevante de despesas. Corta mais um pouco, a fim de respeitar o teto, de início talvez até mais, pois é grande a possibilidade de o governo federal não ter um Orçamento aprovado no início do ano (o que exigirá um escalonamento de despesas mais comedido). Nesse cenário, não haverá Renda Brasil, Bolsa Família encorpado ou coisa que o valha. Os pobres desempregados irão à miséria e haveria um impacto mais forte na capacidade de consumo.

Dadas a incompetência e a desumanidade de quem comanda o governo federal, que não sabe fazer coisa melhor, o cenário “arrocho conflituoso” talvez seja o menos mau. Nessa hipótese, governo e Congresso aprovam alguma mudança constitucional que arroche setores específicos. Isto é, cortam salários de servidores ou o abono salarial, por exemplo; pior e improvável, acabam com a despesa mínima federal em saúde e educação. Neste caso, haveria algum troco para dar auxílio aos mais pobres.

No cenário “avacalhação do teto”, governo e/ou Congresso inventam pelo menos uma gambiarra a fim de burlar o limite constitucional de gastos e pagam algum auxílio emergencial ou Bolsa Família menos magro.

O primeiro cenário, de inércia, é o arroz com feijão. Depois de despiorar, a economia se arrasta quase ao passo de 2017-2019. Há uma degradação lenta das expectativas econômicas e, tudo mais constante, do prestígio de Bolsonaro.

No segundo, haveria conflitos políticos sérios com as vítimas específicas do arrocho, melhora mínima do auxílio para pobres e miseráveis, alguma perspectiva melhor de crescimento e um resultado incerto na política.

No terceiro, do teto avacalhado, haveria alguma degradação das condições financeiras (juros em alta, dólar mais caro) e perspectiva de estagnação econômica ou coisa pior, a depender do tamanho da avacalhação e do tumulto financeiro. Note-se que não se discute aqui de revisão ordenada do teto dentro de um plano econômico sério (goste-se ou não da cor ideológica dele), tocado por governo e economistas capazes. Trata-se de avacalhação.

O país não tem nem Orçamento. O Congresso está atolado em disputas sobre seu comando em 2021 e sobre a (suposta) reforma ministerial. Bolsonaro está quase em pânico com o risco de cadeia para o filho Flávio e, pois, de mais revelações sobre os negócios históricos da família. Aumenta o risco de apagão na escuridão do governo.


Reinaldo Azevedo: Advirta, leitor, o otimismo da vontade com o pessimismo da inteligência

Eleitor recusou a estupidez antipolítica, mas a esperança precisa aprender a fazer conta

Saúdo alguns sinais que vêm das urnas como auspícios de sanidade. Mas estamos ainda lendo o voo das aves e fazendo interpretações. Convém não confundir presságios com realidade, bom augúrio com antevisão do futuro. “O mundo é para quem nasce para o conquistar/ E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.”

Os versos pertencem ao poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa, no heterônimo Álvaro de Campos. Não se trata de autoajuda para tontos, mas de autoironia para sábios. No verso seguinte, escreve: “Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez”. O poeta conquistou o mundo como inapto e sonhador. A literatura, felizmente, consagra o erro porque não é tabela trigonométrica. A política é quase.

O eleitorado, na média, manteve distância da estupidez encarnada pelo presidente da República. O sobrenome “Bolsonaro” agregado a candidatos (re)elegeu apenas o vereador Carlos, que obteve 35.657 votos a menos do que em 2016, quando Jair era só um postulante à Presidência, de sucesso então improvável. O poder do pai tirou votos do filho.

Até o bolsonarismo Nutella do Novo levou uma sova. Os laranjas que faziam a dança do acasalamento da antipolítica com férias em Miami não conseguiram eleger nem um miserável prefeito. Seus candidatos obtiveram menos de 392 mil votos no país. Ou mudam o CEO ou chamam de volta o antigo, sei lá.

Aquela que entrou na disputa pela Prefeitura de São Paulo como Joice Hasselmann (PSL) saiu como Joice Cristina. Durante a voragem de 2018, a “Bolsonaro de saias” teve desempenho fabuloso: 1.064.047 votos —289.404 só na capital. Chutada pelos filhos do pai, rompeu com o clã e até engrolou alguma civilidade. A candidata, no entanto, voltou ao velho figurino: “direita raiz”, “biógrafa de Sergio Moro”, “sem mimimi” etc.

Pois bem: Joice Cristina, o segundo orçamento eleitoral público na cidade, amargou 1,84% dos votos: 98.342. Nem a rima elíptica em debate de TV, em que associou o IPTU ao monossílabo tônico sem acento mais famoso da língua, garantiu-lhe saliência eleitoral compatível com a da personagem que inventou.

Seu ocaso é oportuno para que eu advirta para o trincado da xícara que ainda pode nos conduzir à terra dos mortos —de Covid-19, susto, bala perdida ou vício— caso achemos que basta sonhar para conquistar o mundo. Bolsonaro tentará tomar de volta o espólio do PSL. Precisará de recursos e de tempo no horário eleitoral para disputar a reeleição. Se não conseguir, não lhe faltará abrigo em outra legenda do centrão ou da extrema direita.

Esquerda e centro-esquerda murcharam no primeiro turno na comparação com 2016. Juntas, obtiveram pouco mais de 21 milhões de votos. Legendas que podem ser classificadas, sem exagero, de extrema direita somaram quase 13 milhões. A direita e o centrão saltaram de pouco mais de 24 milhões para quase 31 milhões.

Na centro-direita, o DEM ganhou quase 3,5 milhões, mas o PSDB perdeu quase 7 milhões. O centrista MDB assistiu à evaporação de mais de 4 milhões. Os números estão detalhados na minha página no UOL​. Os vitoriosos da eleição de 2020 compõem, em suma, a base do governo ou, ainda que nela não estejam formalmente, cedem seus quadros para uso de Bolsonaro.

Há fatores de risco para a sobrevivência do presidente como candidato, mas também os há para o seu fortalecimento. Não cabem neste texto. O que, nesse cenário, independe de artes divinatórias? Se esquerda e centro-esquerda preferirem a balcanização à federação e se centro e centro-direita juntarem mais vaidades do que objetividade —flertando, inclusive, com a antipolítica—, os auspícios da sanidade podem dar na terra dos mortos.

Eleições municipais e federais têm variáveis distintas, eu sei. Estas estão muito mais sujeitas à guerra de valores. As abstrações ideológicas tomam o lugar dos buracos nas ruas. Cresce, pois, o perigo do flerte com a estupidez. Não quero ser o chato da festa, leitor, eu juro! Mas não custa lembrar que a “cadela do fascismo está sempre no cio”. Melhor que o “pessimismo da inteligência” torne prudente o “otimismo da vontade”.

Reinaldo Azevedo é jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.


Bruno Boghossian: Bolsonaro completa um ano sem partido e coleciona incertezas

Convites para filiação refletem fragilidades, desconfiança e projeto personalista

Um feirão partidário se abriu para Jair Bolsonaro depois de seu papelão no primeiro turno das eleições municipais. Líderes de siglas do centrão enxergaram um presidente enfraquecido pela falta de estrutura política e fizeram convites de filiação ao chefe do Planalto.

Até agora, os acenos partiram de legendas que passaram a compor o núcleo da nova base de Bolsonaro no Congresso: o PP do senador Ciro Nogueira, o PL do ex-deputado Valdemar Costa Neto e o Republicanos, que atualmente hospeda dois dos três filhos políticos do presidente.

O caminho escolhido por Bolsonaro deve fazer pouca diferença por enquanto, assim como não foi determinante sua passagem pelo partido de aluguel que serviu de veículo para a candidatura de 2018. Ainda que seja alvo de assédio de algumas siglas, seu projeto de poder é individual.

O presidente vive num vazio partidário há um ano, quando perdeu uma disputa pelo controle do PSL e decidiu deixar a sigla. Usou o peso de sua popularidade e agitou militantes fiéis, mas fracassou na missão de coletar assinaturas para criar a própria legenda —num país em que até burocratas inexpressivos chegam lá.

Bolsonaro precisará de uma legenda para tentar a reeleição em 2022. As siglas de seus amigos do centrão parecem sedutoras porque contam com uma máquina consolidada e uma fatia razoável do fundo de financiamento de campanhas. A decisão seria óbvia, mas a relação de desconfiança entre os dois lados pode inviabilizar um acordo.

Aliados aconselham o presidente a repetir a busca por um partido pequeno. A justificativa é a dificuldade que Bolsonaro (já driblado pela cúpula do ex-nanico PSL) teria em quedas de braço com caciques experimentados das siglas maiores.

As incertezas sobre o destino do presidente reforçam algumas de suas características mais marcantes: a inabilidade política, a inconsistência ideológica e o personalismo. Mesmo que encontre uma casa nova para os próximos anos, suas alianças permanecerão instáveis.


Hélio Schwartsman: O futuro da esquerda

Se quiser assegurar um lugar no futuro, PT precisará superar Lula

Como epidemias em países continentais, resultados eleitorais precisam ser analisados com cautela. São várias coisas diferentes acontecendo ao mesmo tempo, o que tende a produzir miragens.

Se olharmos para o número absoluto de prefeituras, o bloco dos partidos considerados de esquerda, PT, PDT, PSB, PCdoB, Rede e PSOL, perdeu posições em relação ao ciclo anterior. Em 2016 eles haviam conquistado 1.088 paços municipais. Neste ano, foram, até aqui, 795.

O problema de olhar apenas para os números absolutos é que homegeneizamos coisas muito diferentes. Nessa métrica, Serra da Saudade, com 781 habitantes, vale tanto quanto São Paulo, com mais de 12 milhões. Grotões tendem a responder com muita lentidão às mudanças políticas. Se quisermos ter uma ideia mais precisa de para onde os ventos sopram, devemos dirigir o olhar para os maiores centros urbanos. E neles a esquerda parece retomar protagonismo.

Das 95 cidades com mais de 200 mil eleitores, em que o segundo turno é possível, 57 voltarão às urnas. A esquerda está em 28 dessas corridas. No ciclo anterior, foram 26, mas o PT, que chegara a apenas sete segundos escrutínios (e perdeu todos), agora participa de 15 —é a legenda que disputa mais returnos.

É impossível, porém, deixar de observar que o PT perdeu espaço para siglas de esquerda menores em duas das cidades mais importantes do país. Em São Paulo e Porto Alegre, Guilherme Boulos (PSOL) e Manuela d'Ávila (PCdoB), empurrados principalmente pelo voto de jovens, roubaram um espaço em que o PT tinha cadeira quase que cativa.

E isso nos leva para o dilema de Lula. O ex-presidente ainda tem popularidade demais para deixar de ser o centro de gravidade da legenda, mas tem má fama o bastante para alienar do partido segmentos relevantes do eleitorado. Os casos de São Paulo e Porto Alegre mostram que, se o PT quiser assegurar um lugar no futuro, precisará superar Lula.


Míriam Leitão: Uma nova onda e o mesmo tormento

Nós brasileiros estamos submetidos a longo sofrimento, a uma dor que se desdobra em várias aflições neste ano em que “distopia” deixou de ser forte o suficiente para descrever o que vivemos, virou uma palavra pálida. Quando o país achava já ter vivido tudo, começam os sinais de que a pandemia vai se agravar. Mais mortes, mais doentes, mais saudades, mais erros do governo. Como o presidente se atreve a ser assim tão desrespeitoso com a vida humana, por tanto tempo? Como o ministro da Saúde consegue ser tão servil a um presidente que ameaça a saúde pública, pela qual ele deveria zelar?

Quando o Ministério acerta em uma postagem breve, o recado é censurado. Na quarta-feira, às 10h44, o aviso do Ministério da Saúde foi de que “não há vacina, substância ou remédio que previnam” a Covid-19. Portanto, “a nossa maior ação contra o vírus é o isolamento social e a adesão das medidas de proteção individual”. O recado foi retirado e substituído por postagens recomendando apenas o “tratamento precoce”. Pode-se imaginar o que houve. O presidente enquadrou o ministro. E o general mostrou de novo que para ele obedecer a uma ordem é mais importante do que cumprir seu dever. Ele está no comando da área da Saúde no meio de uma pandemia que sangra o país, mas para Pazuello o importante é o lema: “Ele manda, eu obedeço.”

A Constituição, à qual o general deve obediência muito maior, estabelece que é crime impedir alguém de cumprir o seu dever. Releia, ministro, os artigos 196 a 200 da Constituição Federal, que o Brasil escreveu após a ditadura. Aquela que é o nosso pacto social, nossa Carta Política. Eles definem os direitos e deveres do Estado na Saúde. As políticas públicas, diz o texto, devem reduzir o risco à doença e oferecer serviços de proteção. A rede de saúde é regionalizada e hierarquizada no Sistema Único, o nosso valioso SUS. Deve haver, ao mesmo tempo, descentralização e direção central. Portanto, é irrenunciável o papel de coordenação do governo federal. Mas não pode ser, como tem sido com Bolsonaro, no sentido inverso ao da proteção da saúde. Veja o artigo 200. Está escrito “executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica”. E lembre-se, ministro, dos momentos difíceis que passou com o coronavírus no corpo. “Estou zero bala”, disse ao presidente. Estava não general, estava entrando num túnel de dúvidas e angústias que muitos brasileiros vivem neste momento. E outros temem. Sim, temem. Isso não nos diminui, não nos transforma em fracos, como o presidente diz, com palavras carregadas de preconceito. Quem protege a própria vida ajuda a proteger a coletividade. O recado sensato do Ministério da Saúde foi eliminado porque houve, disseram, “erro humano”. O erro foi acertar.

Que as autoridades, todas elas, releiam o artigo 85 da Constituição, que descreve o que são os crimes de responsabilidade. O presidente já os cometeu várias vezes, além de infringir outros códigos. O artigo 2º da Lei 1079, a do impeachment, diz: “Os crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda de cargo”. Um desses é ameaçar os direitos sociais, como o da saúde.

Está havendo um crescimento dos casos de infecção, internação e morte. Ontem, em entrevista ao Jornal da CBN, o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, Carlos Eduardo Lula, disse que não dá para enfrentar a segunda onda sem ter uma coordenação federal nas políticas. Várias questões, segundo ele, têm que ser “capitaneadas pelo Ministério da Saúde”. O secretário lembrou que não haverá Natal, nem Ano-Novo, como normalmente vivemos.

Está sendo duro para todos nós. Cada um sabe a dor de viver o que vive. A solidão, o distanciamento, as renúncias, a saudade, a expectativa na espera de um exame, a dor da perda, o luto dos funerais apressados. Os que perderam seus entes queridos sofrem muito mais. Mas há uma dor coletiva, um sofrimento difuso no ar.

O Brasil está entrando em uma nova onda de agravamento da doença sem qualquer esperança de que o presidente mude seu comportamento. Estamos passando por um tempo extremo, com um governante que em nenhum momento, nestes duros oito meses, mostrou qualquer empatia pelos que sofrem. E além da falta de solidariedade, Bolsonaro também não entendeu, ainda, o papel do governo federal numa calamidade.


Elena Landau: Memória tumultuada

Ministro Guedes marcou sua gestão por tentar adaptar a realidade a seus devaneios

A Controladoria-Geral da União (CGU) organizou um seminário sobre Os Desafios da Desestatização há poucos dias. Uma das estrelas do evento foi Paulo Guedes, que se confessou frustrado por não ter vendido nada, apesar das promessas de campanha. De fato, é inexplicável que um governo eleito com uma pauta de desestatização tão clara e com metas tão ousadas tenha feito tão pouco.

Infelizmente, não ouvimos um mea-culpa. Sem um bom entendimento dos desafios, não se consegue traçar um plano para superá-los. Repetindo a cantilena de sempre, atribui aos acordos políticos no Congresso a responsabilidade da tibieza do programa. Mas não disse em que exatamente nossos parlamentares estão atrapalhando.

Como não há desejo de vender Petrobrás, Caixa ou Banco do Brasil, muito pouco depende de anuência do Legislativo. Só a Eletrobrás está pendente. A lista de intenções do governo chama atenção pela ausência das empresas que não precisam de autorização específica, como EBC, EPL, Infraero ou Valec. Ou mesmo, a liquidação de outras, como Hemobrás.

Enquanto o ministro falava, o Gabinete de Segurança Institucional enviava para publicação no DOU uma resolução recomendando a criação da Alada – Empresa de Projetos Aeroespaciais SA. Já será a segunda estatal criada neste governo.

Se for para achar os inimigos da privatização, Guedes não precisa atravessar a rua, estão todos na Esplanada dos Ministérios. Cabe a ele, como presidente do Conselho do PPI, convencer seus colegas a desapegarem de suas estatais.

Ao final, não faltou, é claro, a promessa de fazer quatro grandes vendas em 2021. Semana que vem, ano que vem, 90 dias, tanto faz. Ninguém dá bola mesmo.

Não fosse o introito, a palestra não teria trazido nenhuma novidade. É ali que Guedes se revela como historiador. Em tom professoral, inicia explicando por que temos um Estado tão grande. A razão é ter sido moldado pelos militares, com objetivo de acelerar o tempo e aprofundar a infraestrutura. E então completa o raciocínio: “A estrutura de Estado foi montada durante um regime politicamente fechado… Era até relativamente sofisticado que em vez de ter um, houve um rodízio de presidentes. Então, ao contrário de alguns lugares onde a gente pode caracterizar claramente como um regime ditatorial, aqui o Congresso ficou funcionando, operando, havia uma eleição indireta”.

Guedes marcou sua gestão por tentar adaptar a realidade aos seus desvarios. São os trilhões das privatizações, os 40 milhões de testes do amigo inglês ou o mundo se surpreendendo com o Brasil. Mas, dessa vez, passou de qualquer limite. Pode fazer a projeção delirante que quiser, mas reescrever a história política do País não dá. É um desrespeito a quem viveu durante o regime militar; a quem perdeu parentes para a tortura; aos que foram exilados; aos inúmeros deputados cassados, assim como ministros do STF; à imprensa que foi calada; aos artistas censurados; à toda sorte de perseguição que sofreram os que ousaram se colocar contra esse regime “relativamente sofisticado”.

Sem falar na herança econômica da hiperinflação, da concentração de renda, da década perdida e das suspeitas de corrupção que envolviam obras faraônicas, como a Transamazônica ou as usinas nucleares de Angra.

Ele pode até ser a favor do golpe e da ditadura, mas não pode fingir que não aconteceu. Impossível ignorar as atrocidades do governo muito sofisticado de Garrastazu Médici.

Diz ele que tinha apenas 13 anos quando foi “instalado” o governo militar, muito jovem para ter percepção ou opinião. Eu nem era nascida quando Getúlio se matou, nem por isso eu posso afirmar que o presidente morreu de causas naturais.

Para quem leu Keynes três vezes no original, deve ser fácil encarar os cinco volumes de Elio Gaspari. Se tiver com preguiça pode ir direto para o A Ditadura Escancarada.

Eu tinha seis anos quando veio o golpe. Com apenas dez, ouvi com meu pai o discurso de Mario Covas e lembro dele dizendo: “Belíssimo, mas vai ser cassado”. Logo depois, veio o AI-5. Quem era um adolescente em 64, já era um homem em 68.

Paradoxalmente, Guedes falou do ato institucional mais de uma vez em seu mandato. A memória volta quando lhe convém. Pode ser ato falho de quem acha melhor governar sem Congresso.

Ao fim da palestra, prometeu o desfazimento do Estado gigante porque “agora temos um governo liberal-democrata”. Com um porta voz desses não é à toa que o liberalismo tem sido tão questionado.

Vade retro.


Um belo resultado dessas eleições e uma boa notícia para os liberais: o aumento da diversidade nas Câmara de Vereadores pelo País.

*Elena Landau, economista e advogada